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Os desafios para efetivar gestão democrática em Conferências de Educação no Brasil

Um PNE Pra Valer requer o fortalecimento da participação de movimentos sociais e sociedade civil organizada nas instâncias e processos de gestão democrática em educação 

II Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena
II Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena/ Divulgação

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

A Conferência Nacional de Educação (Conae), que acontece de 28 a 30 de janeiro em Brasília, tem uma missão nada simples: formular as diretrizes, metas e estratégias que irão construir o novo Plano Nacional de Educação (PNE). Com o tema “Plano Nacional de Educação 2024-2034: Política de Estado para garantia da educação como direito humano com justiça social e desenvolvimento socioambiental sustentável”, a Conferência foi convocada em caráter extraordinário, assegurando a presença da sociedade na construção do novo PNE, que ainda não tem texto consolidado. 

A ideia é que dessas discussões, que incluem a avaliação dos problemas e necessidades do PNE atual, saia o documento de referência para o próximo Plano – cuja elaboração fica a cargo do Fórum Nacional de Educação para posterior apresentação no Congresso. Serão sete eixos de discussão sobre o PNE. 

“Conferências são tecnologias sociais que representam uma ruptura com a manutenção do status quo dominante, uma vez que a participação social é um direito e, se é um direito, é para todas as pessoas”, resume o co-fundador do Movimento Negro Unificado (MNU), Adão de Oliveira, que ressalta que “se não há participação social efetiva, há continuidade do sistema escravagista, em que uns decidem pelos outros”. 

Rubens Barbosa de Camargo, professor sênior da Faculdade de Educação da USP e membro da diretoria da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca) explica que há vários mecanismos possíveis de participação social para viabilizar a gestão democrática, como Conselhos, fóruns, conferências, consultas públicas, além da eleição de diretores e outros gestores. “Nenhum desses mecanismos foi dado, foram todos forjados numa luta – quem defendeu a gestão democrática sempre foi, historicamente, os movimentos sociais”, diz o professor. 

Seguindo o processo que é comum às Conferências, as etapas municipais e estaduais da CONAE precederam a etapa nacional, sendo realizadas em 2023. Nelas, delegadas e delegados e seus suplentes foram eleitos para a última etapa. 

CONAE 2024: retomada do processo democrático

Em um Brasil que tenta se recuperar de anos de erosão da democracia e da participação social desde o golpe parlamentar de 2016, a efetivação da gestão democrática em espaços institucionais como a CONAE permanece sendo um desafio. “A gestão democrática é um princípio constitucional desde 1988, é relativamente novo comparado a outros princípios como a obrigatoriedade e a gratuidade de serviços como a educação”, explica Rubens, da FEUSP e da Fineduca. 

Esta será a quarta edição da CONAE – as outras foram em 2010, 2014 e 2018 -, e é marcada pela retomada do diálogo entre governo e sociedade civil, relação que foi interrompida na gestão Bolsonaro que esvaziou o sentido da CONAE de promover um debate amplo e democrático sobre os rumos da política educacional do país. Foi quando movimentos sociais e a sociedade civil organizada deixaram de enxergar na CONAE um espaço legítimo de discussão e de avanços democráticos norteados pela Constituição e pelo PNE. E quando diversas entidades do campo educacional se articularam e criaram, em resposta, o Fórum Nacional Popular de Educação (FNPE). O FNPE organizou, em 2018 e 2022, a Conferência Nacional Popular de Educação (Conape), e monitorou e defendeu o PNE paralelamente às instâncias oficiais. 

“Todo o processo de construção democrática, previsto na Constituição e que vinha se concretizando desde o PNE de 2001, foi alterado”, reforça Adão de Oliveira, co-fundador do Movimento Negro Unificado (MNU) de São Paulo e integrante do Fórum Municipal de Educação da capital. “O [atual] PNE teve interferência e influência de todos os setores, da esquerda à ultradireita. Tanto no FNE como no CNE tínhamos o mais próximo possível da democracia. Mas após o impeachment da presidenta Dilma, o FNE foi praticamente extinto em sua finalidade, o MEC passou a ser o mandatário de tudo. Foi um crime”, lembra o ativista. 

Rubens Barbosa de Camargo, professor sênior da FEUSP e membro da diretoria da Fineduca, também posiciona a época do impeachment de Dilma Rousseff como uma ruptura no que vinha sendo construído e implementado pouco a pouco em termos de participação social. “Quando o Fórum Nacional de Educação teve sua composição alterada, ele ainda era entendido como um órgão de Estado com a função de organizar conferências e acompanhar a efetivação do PNE vigente. Mas o Brasil é um país de pouca tradição democrática, onde parte da população não acredita nessa perspectiva. Exemplo foi a extinção dos muitos Conselhos em 2019 [um dos primeiros atos do governo Bolsonaro], o que ilustra a importância do princípio da gestão democrática tornar-se parte das unidades escolares e dos sistemas de educação”, opina. 

Adão, do MNU, vê com preocupação o fato de que mesmo após a derrota da extrema-direita nas urnas e com a retomada do processo democrático nem todas as mudanças tenham sido revertidas. “Esse ataque à participação social prevaleceu até o fim do governo Temer, se agravou no governo Bolsonaro, mas ainda não se reverteu no governo Lula, porque o FNE e o CNE ainda não voltaram totalmente à antiga composição”, explica ele. 

Para o professor Rubens Barbosa de Camargo aprimorar a democracia é um trabalho longo e de aprendizado contínuo. “É um problema que só se resolve quanto mais praticamos a própria democracia. Temos vários Conselhos de Educação que estão tomados por grupos de origem neoliberal, que pouco pensam no interesse público, e precisamos sim debater essas composições, mas são problemas que aprendemos conforme os vivenciamos. Com o próprio PNE que está se encerrando agora já aprendemos muito”. 

Desafios à efetivação da gestão democrática e movimentação conservadora

Coordenada pelo Fórum Nacional de Educação (FNE), a CONAE tem papel fundamental na construção do PNE que, por sua vez, é o principal instrumento da política educacional brasileira. O que é levantado e debatido na Conferência deve ser incorporado no texto do Plano aprovado. Por isso, é vital que estejam representados, na Conferência, os diversos setores da sociedade brasileira e das comunidades escolares: trabalhadoras e trabalhadores da educação, estudantes de diferentes níveis, vozes da educação do campo, quilombola, indígena, dos movimentos negros, LGBTQIA+, de mulheres, da sociedade civil organizada e dos movimentos sociais em geral. É somente com participação efetiva desses grupos que as políticas educacionais podem refletir as reais necessidades do país e caminhar no sentido da redução das desigualdades educacionais. É urgente pautar, por exemplo, a incorporação das perspectivas de gênero e raça de forma articulada em todos os Eixos do Documento Referência que subsidia a CONAE e o novo PNE. 

Mas há desafios para a etapa nacional da CONAE 2024: desde que foi convocada, a CONAE tem recebido críticas pelo curto intervalo entre as etapas, que podem ter simplifcado ou encurtado o debate em uma agenda tão fundamental. Esta edição da conferência conta com uma delegação menor do que a de 2014 – a última antes do rompimento do processo democrático – são cerca de mil delegados a menos. Além disso, os recursos não custeiam as despesas de todas as pessoas participantes, apenas de quem tem status de delegada/o. E movimentos sociais e sociedade civil organizada comprometidos historicamente com as agendas dos Direitos Humanos não foram considerados Setores nas eleições de delegadas e delegados nas etapas municipais e estaduais. 

Esses aspectos podem fazer com que alguns grupos de atuação histórica, como o Movimento Negro Unificado (MNU), fiquem de fora. “O MNU teve indicação como delegado e cheguei a passar meus dados para o Ministério. Recebi informações sobre a emissão da passagem aérea, mas depois fui informado que houve uma ‘revisão’ e que nossa presença seria avaliada. Até o momento, ainda não recebi nenhuma outra mensagem de confirmação ou não”, narra Adão de Oliveira, do MNU. 

São limitações e obstáculos que afetam a efetivação da gestão democrática em educação. “Se isso está acontecendo é porque mudanças em sentido antidemocrático permanecem nesse governo, porque não houve força social suficiente pra alterar isso”, critica o ativista, reforçando que o movimento negro tem propostas concretas para apresentar na CONAE, como um Plano Nacional de Implementação da lei 10.639/03, que prevê recursos específicos para esse fim. 

Somando a esses problemas, matéria recente do Intercept Brasil mostrou que bolsonaristas organizaram força-tarefa para incidir na conferência, tentando pautar temas como Escola Sem Partido e educação domiciliar, além de planejarem fortalecer perspectivas reacionárias, como uma visão reducionista de “família” que teria primazia em relação às políticas  públicas. Segundo a apuração do Intercept, os grupos – que aparentemente não têm representação entre delegadas e delegados eleitos para a Conae – buscam não apenas tumultuar o evento, mas ampliar a influência das frentes ultraconservadoras nos estados e municípios, que também elaborarão seus planos de educação após a aprovação do novo PNE. Para o professor da FEUSP Rubens Barbosa de Camargo, o embate com visões opostas faz parte do processo, desde que em uma perspectiva democrática. “É curiosa a tentativa [da direita] de ocupar espaços institucionais, coisa que não permitem quando são eles que estão no Poder. Por isso sentimos que as forças não estão balanceadas. Mas na Conferência leva a melhor o setor que estiver mais organizado, e acredito que sejam os progressistas”, avalia. No entanto, como ele reitera, é importante não perder de vista que as batalhas por um PNE Pra Valer estão apenas começando. “Embora tudo tenha sido meio apressado, é muito possível que saiamos da CONAE com um bom texto, mas ele vai precisar ser aprovado pelo Congresso, e é lá que a disputa é muito mais incoerente e complicada. A briga que vem depois torna ainda mais crucial sair com um bom texto-base da Conae”, acrescenta. 

Serão muitas as frentes de batalha da Conferência que se inicia nesta semana, e que, embora marcada por muitos desafios e pelo retrocesso democrático que assolou o Brasil na última década, ainda tem o potencial de construir as bases para o retrocesso ser revertido. Nas palavras do professor Rubens: “apesar de todos os percalços na construção da CONAE, não tenho dúvida que o que temos é muito melhor do que se o texto do PNE fosse produzido em um gabinete e sem nenhuma participação. O fato de muitos grupos não verem a perspectiva democrática como fundamental é exatamente o que torna mais importante do que nunca demonstrar que ela é possível, importante, viável e apresenta as melhores soluções para a educação nacional”.

BAIXE A CARTILHA “Em defesa de processos participativos e gestão democrática para a construção de um novo PNE” 


Igualdade de gênero nos planos de educação: uma tarefa urgente

As agendas de “gênero” e “raça” devem se articular a todos os Eixos do Documento Referência da CONAE, como: financiamento, gestão democrática, valorização profissional e qualidade na educação

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

A educação e a sociedade brasileira sentiram os efeitos, na última década, da retirada do “gênero” no texto do atual Plano Nacional de Educação (PNE). A exclusão dessa garantia no mais importante documento de planejamento educacional do país ajudou a fomentar um clima de censura e perseguição nas escolas, impactando discussões sobre gênero, raça e outras formas de discriminação junto às comunidades escolares. Às vésperas da tramitação do novo PNE e da Conferência Nacional de Educação (CONAE), onde será construída uma proposta para o novo Plano,  a sociedade civil agora age para garantir um PNE sem retrocessos, com ousadia e que reafirme o direito de profissionais da educação e estudantes discutirem gênero, raça e sexualidade na escola. 

Nesse contexto, a Ação Educativa lançou a campanha #FiqueDeOlho: para combater a violência, gênero nos Planos já!, reforçando que garantir igualdade de gênero nos Planos é se comprometer com a melhoria da qualidade na educação, já que educação de qualidade é a que consegue incluir e acolher todas as pessoas. É preciso criar espaços de acolhimento e solidariedade nas escolas; prevenir e combater o assédio, abuso sexual e violência doméstica; discutir as desigualdades entre homens e mulheres; promover o direito das pessoas viverem livremente sua sexualidade, entre outras ações. Esses são alguns aspectos que a equipe, por meio da Campanha, tem discutido no processo da CONAE, inclusive com escuta e encaminhamento de demandas de jovens a partir de uma Conferência Livre realizada na Ação Educativa durante a etapa municipal de São Paulo.   

A incorporação da igualdade de Gênero nos Planos para que o novo PNE avance no combate à violência e na redução das desigualdades educacionais significa, entre outras ações: 

  • Incorporar a laicidade na educação pública como princípio do PNE e incluir no texto o enfrentamento às desigualdades e discriminações de gênero, raça e sexualidade. 
  • Defender a implementação da LDB alterada pelas Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008 como instrumento essencial para a construção de uma educação antirracista. 
  • Garantir a manutenção de escolas quilombolas e indígenas em seus territórios. 
  • Defender as políticas de ações afirmativas com recorte racial e social nas instituições de educação superior. 
  • Atuar por um financiamento adequado com distribuição equitativa dos recursos em diálogo com uma política econômica de redistribuição de renda e com as Leis Orçamentárias (LDO e LOA). 
  • Aprimorar na regulamentação do FUNDEB os Fatores de Ponderação para que correspondam ao custo real das diferentes etapas e modalidades da educação básica e possam ser utilizados como mecanismos de ação afirmativa racial e social. 
  • Democratizar o debate econômico nas unidades educacionais, comunidades escolares e territórios, promovendo a compreensão da relação da economia com o cotidiano das escolas e da população.
  • Aprimorar os mecanismos de gestão democrática e controle social do PNE e das políticas educacionais, ampliando a roda e a participação efetiva das comunidades escolares e das juventudes na construção e monitoramento das políticas educacionais. 

Sobre esses aspectos e sua incorporação no PNE, nos planos estaduais e municipais e no planejamento educacional, conversamos com algumas pessoas de referência nas diferentes áreas. Confira: 

FINANCIAMENTO

Eduardo Januário, Professor na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), atuando na linha de pesquisa de Políticas Públicas, Financiamento Educacional e Gestão Democrática da Escola Pública, com ênfase nas escolas de periferias. 

Ação Educativa: Como o financiamento do PNE pode ser adequado para diminuir as desigualdades educacionais, especialmente das populações negras?

Eduardo Januário: A única possibilidade de diminuir a desigualdade racial é com investimento. Não conseguimos atingir a meta 20, que é assegurar 10% do PIB para educação. Então claro que sem dinheiro não dá para fazer aquilo que está previsto nas metas 3, 4, 8, enfim, metas que visam combater desigualdades entre negros e brancos. Por quê? Porque as escolas necessitam modificar o seu dia a dia, a sua realidade, as estruturas. Isso precisa de dinheiro. Então ficamos na perspectiva de acreditar que vai haver um aprimoramento de mecanismos, mas não há outra saída enquanto a gente não tiver 10% do PIB na educação. 

Ação Educativa:  Especificamente sobre o Fundeb e os fatores de ponderação, as propostas atuais de regulamentação contemplam esse horizonte? Os valores são suficientes para corrigir as distorções históricas?

Eduardo Januário: Quando falamos em mecanismos de distribuição, vamos lembrar que a Emenda Constitucional 59 já pensa nessas questões de tratar os desiguais conforme as suas desigualdades. E quando a gente pensa em educação quilombola, educação do campo, educação indígena, há uma defasagem de investimento. Por que defasagem de investimento? Porque essas escolas não estão, ao meu ver e ao ver do movimento, adaptadas o suficiente, não têm qualidade suficiente (até em termos de formação de professor, de estrutura). Uma pesquisa recente da Faculdade (FEUSP) mostra que inúmeras escolas de educação quilombola e educação indígena não têm livros didáticos para estudar. Então há uma proposta de educação quilombola, de educação indígena, de educação do campo, mas não há estrutura. Então tem que ter dinheiro, não tem jeito. Sobre os mecanismos de ponderação, 1.4 para educação quilombola e indígena eu acho que é o suficiente no sentido de priorizar essas medidas. Mas como fazer sem dinheiro? Tem que ter um montante maior, porque com o montante que temos vamos continuar com políticas que reparam a desigualdade de maneira superficial. Elas não mudam a estrutura da escola, não garantem livros didáticos, não possibilitam formação de professores que estejam levando em consideração outras epistemologias. Conseguimos, pelos fatores de ponderação, levar um pouco mais de dinheiro, mas a gente não consegue ampliar de fato aquilo que precisaria, que é essa estrutura que eu acabo de citar. Uma outra questão é da discussão do VAAR do Fundeb, que o movimento negro tem disputado. Num determinado momento, o VAAR ficou preso à ideia do resultado, mas nossa conversa é que ele deveria ser um dinheiro específico para reparação, não para resultado. A ideia seria que as escolas que estão nas periferias, que têm uma maior quantidade de pessoas negras, as escolas quilombolas, receberiam uma parte desse dinheiro. Assim, é possível impulsionar a leitura de livros, a formação de professores, modificar a escola. Outras perspectivas poderiam ser incluídas na sala de aula se tivéssemos dinheiro específico para isso. 

GESTÃO DEMOCRÁTICA E PROCESSOS PARTICIPATIVOS

Juliane Cintra, Coordenadora Institucional (Comunicação, Eventos e TI) da Ação Educativa.

Ação Educativa: Como e onde é possível aprimorar os mecanismos de gestão democrática e controle social do PNE e das políticas educacionais, de forma a ampliar a participação efetiva das comunidades escolares e das juventudes na construção e monitoramento das políticas educacionais? 

Juliane Cintra: Há uma dimensão de fortalecer os Fóruns e os Conselhos de Educação, mas também é preciso repensá-los do ponto de vista do quão abertos e preparados estão para receber a diversidade que é constituinte do que são as comunidades escolares e do que são os diferentes grupos que integram o que chamamos de juventude. Esses espaços não são organismos estatais. Na verdade são espaços de abertura, de acolhimento da sociedade, e portanto devem representar e dialogar com a demanda desses grupos e com as suas próprias dinâmicas de funcionamento. Repensá-los metodologicamente é fundamental para assegurar que o descumprimento naturalizado dos planos decenais não seja perpetuado. Então acredito que o foco deveria ser nessas instâncias, mas sobretudo nesse repensar metodologicamente. É importante que a gente olhe para esses espaços também considerando como fundamental que a gente descentralize os processos deliberativos. Os processos decisórios devem ser descentralizados a partir da instância e com uma reformulação metodológica do que compreendemos como participação nessas esferas. Assim, conseguiremos avançar efetivamente para a construção da legitimidade popular e social dos planos de educação, porque é somente a partir da participação social que construímos pertencimento às políticas públicas. É fundamental ir além do nível consultivo. 


GÊNERO, RAÇA E SEXUALIDADE

Suelaine Carneiro, socióloga, mestre em educação, coordenadora de educação e pesquisa de Geledés – Instituto da Mulher Negra e compõe a rede de ativistas do Fundo Malala. 

Ação Educativa: Qual a importância de explicitarmos as agendas de gênero, raça e diversidade sexual no PNE, bem como incorporar a laicidade na educação pública como princípio do PNE e incluir no texto o enfrentamento às desigualdades e discriminações? 

Suelaine Carneiro: Esse PNE tem que não só resgatar a educação com um direito humano, como uma etapa fundamental para a formação da concepção de cidadania, mas retirar o aprender sobre raça e gênero do lugar de “questão menor” na educação. 

Por exemplo, na questão do financiamento: é necessário sempre defender mais recursos para a educação. As escolas mais fragilizadas, com estudantes com mais dificuldades de aprendizado, de conseguir um desempenho razoável em relação a notas e progressão de ensino, essas escolas via de regra têm grande participação de estudantes negras e negros, então é preciso que tenham também um aporte diferenciado no que diz respeito a recursos, a ter um corpo docente completo. É o que temos procurado nesse tempo todo de resistência: pautar gênero e raça em todo o âmbito da educação, dizer que gênero e raça também são questões essenciais na educação – para além daqueles que são considerados “eixos duros” – financiamento, formação de profissionais da educação, livro didático. São temas que possibilitam interferir nos resultados de desempenho, na compreensão, na aprendizagem e principalmente no convívio escolar. Portanto, ter gênero e raça dentro de todos os eixos que forem constituídos no novo PNE é fundamental para que a educação como direito se realize. 

Além disso, temos também o desafio de pensar a laicidade. A Educação hoje está muito contaminada por uma concepção de religiosidade cristã de forma muito fundamentalista que interdita direitos, interdita falar sobre raça, sobre questões raciais, sobre cultura e história afro-brasileira e africana e que reafirma uma concepção de superioridade a partir da cor da pele. Temos que atuar nessas questões de maneira muito explícita, por isso o debate tem que perpassar todos os eixos. Ou seja, são muitos desafios e são esses os compromissos que devem estar em discussão durante o novo PNE. O ano de 2024 será decisivo para podermos recuperar a Educação depois de tantos anos de desmonte.

COMBATE AO RACISMO

Catarina de Almeida Santos, professora na Faculdade de Educação da UnB, do comitê da Campanha Nacional pelo Direito à Educação do DF. 

Ação Educativa: Como podemos, na formulação do novo PNE, reafirmar e defender a implementação da LDB alterada pelas Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008 como instrumento essencial para a construção de uma educação antirracista? 

Catarina de Almeida Santos: Fazer com que esse país conheça e respeite a cultura afro-brasileira, africana e indígena não é algo que dê pra fazer com um ou outro programa, é preciso que seja uma ação sistêmica na escola, da educação infantil à pós graduação e isso significa passar pela formação inicial e continuada dos nossos professores e professoras, dos processos de gestão. Precisa estar presente em todas as metas e estratégias do PNE como ação sistêmica nos programas implementados, nas políticas desenhadas para o alcance dessas metas e objetivos. Do contrário, a gente não vai fazer funcionar. Se a cultura, história e força dos povos originários e dos povos que vieram pra cá escravizados não estiverem em cada uma das ações que desenvolvermos, a gente não reverte essa situação e não vamos conseguir fazer uma escola antirracista. 

São precisos mecanismos políticos, jurídicos e legais que permitam que as escolas e suas professoras e professores não sejam punidos por trabalharem essas questões, que isso esteja na literatura, no livro didático, na história das diferentes áreas do conhecimento. Mas também precisamos ter mecanismos de proteção pra reverter a demonização que se faz da cultura desses grupos. Isso significa metas e estratégias no PNE voltadas para o combate à intolerância religiosa e a todas as formas de violência. Isso também vale para questões de gênero, homolesbotransfobia, capacitismo, todos os elementos que são marcadores de diversidade nos corpos que compõem as diferenças nesse país. 

Ação Educativa: Qual a importância de garantir a manutenção de escolas quilombolas e indígenas em seus territórios? 

Manter as escolas quilombolas e indígenas em seus territórios não é questão de ser importante, é uma questão de sobrevivência. É uma questão de direito essencial, fundamental à manutenção dessas escolas. Pela sua existência, pela sua identidade, porque é direito desses grupos. Ou de sobrevivência da sociedade brasileira,  se um dia ela se quer civilizada, capaz de fazer as pazes com a sua história. A sobrevivência da população negra dependeu da sua organização em Quilombos, e até hoje os aquilombamentos são fundamentais para a nossa sobrevivência. Se não os aquilombamentos na perspectiva territorial, os aquilombamentos de nós enquanto povo preto, enquanto cultura. É de fundamental sobrevivência para nossa vida física e para nossa existência histórica e cultural. E isso serve também para os povos indígenas, que eram os povos originários desse país e que foram dizimados. A sobrevivência dessa cultura depende de nós mantermos as escolas nos territórios, e não a partir da lógica brancocêntrica e eurocêntrica, mas a partir da lógica dos povos dos territórios. Quem vai transmitir essa cultura e quem vai ensinar esses saberes senão aqueles que são detentores dos saberes tradicionais?


Indicadores da Qualidade na Educação – Relações Raciais na Escola – Antirracismo em Movimento

Os Indicadores da Qualidade na Educação – Relações Raciais na Escola: antirracismo em movimento integram a coleção de materiais Educação e Relações Raciais: apostando na participação da comunidade escolar, lançada em 2013, desenvolvida pela Ação Educativa.

O material integra também a Coleção Indicadores da Qualidade na Educação, metodologia de autoavaliação da escola fundamental para a construção e monitoramento participativos de Planos de Educação e políticas educacionais.

Em 2023 celebramos os 20 anos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), alterada pelo Lei 10.639/2003, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino da história e das culturas africanas e afro-brasileiras em toda a educação (pública e privada). O lançamento da nova edição dos Indicadores Relações Raciais na Escola vem se somar a retomada dos esforços nas políticas públicas nacionais comprometidas com a institucionalização da lei.

A publicação conta com parceria do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) do Ministério da Educação (MEC), do Ministério de Igualdade Racial (MIR), do Projeto SETA (Sistema Educacional Transformador Antirracista, desenvolvido por um grupo de entidades antirracistas), além do apoio técnico da Faculdade de Educação da USP e da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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Gestão Tarcísio/Feder é marcada pela precarização da educação na rede estadual paulista

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

Ato pela revogação do Novo Ensino Médio em São Paulo

Falta de diálogo, perda de autonomia e desvalorização de profissionais da educação dão o tom da gestão da educação em SP

A Secretaria de Educação de São Paulo na gestão de Tarcísio de Freitas, atualmente sob o comando de Renato Feder, não dialoga com as comunidades escolares, além de cercear a autonomia docente e os trabalhos com ênfase nos territórios. É o que denunciam gestores e docentes ao projeto Tô no Rumo, enfatizando que as condições de trabalho declinaram muito desde o início dessa nova gestão. 

As trabalhadoras e trabalhadores da educação reclamam de decisões tomadas de cima para baixo, sem participação ou escuta das comunidades escolares e desarticuladas em relação à própria rede de ensino e às diretrizes nacionais. Denunciam ainda que a falta de participação social, articulada à implementação de uma série de avaliações em larga escala, têm dificultado trabalhar questões específicas a cada contexto, ferindo a autonomia docente e prejudicando o direito à educação de todas e todos estudantes da rede pública. 

“Estamos vivendo um momento de turbulência”, é como resume Jorge*, diretor de uma escola estadual na região metropolitana de São Paulo. Jorge pontua ainda que os desafios se intensificaram com a pandemia e, especialmente, desde a implementação do Novo Ensino Médio, que gerou uma “precariedade fora do comum”, e que o trabalho mudou com a nova gestão. “Foi uma ruptura. Inclusive pela própria história do secretário, sua experiência no Paraná e vínculo com o setor privado. É natural que ele vá priorizar plataformas e tecnologias e uma leitura acrítica delas. Para ele, enquanto empresário, é um mercado extraordinário”. 

Feder é sócio da Multi, empresa de produtos digitais que tem contratos com o governo estadual firmados na gestão anterior e que poderia vir a se beneficiar, por exemplo, de mudanças no material pedagógico. Antes de comandar a Seduc de São Paulo, Feder era o chefe da pasta no Paraná, no governo de Ratinho Junior. Em sua gestão, avançou a militarização das escolas e, como aponta uma reportagem da Revista Piauí, também houve dificuldade de diálogo e muitas mudanças repentinas. “Entre elas, a implantação do Presente na Escola, aplicativo para controlar a frequência dos alunos, e da Prova Paraná, feita de modo digital a cada três meses para obter um ‘raio X de aprendizagem na rede’”, diz a matéria. 

Mudanças no material pedagógico: a tentativa de não adesão ao PNLD e introdução dos slides digitais

Uma das primeiras “polêmicas” da gestão foi o comunicado de que a rede estadual paulista não iria aderir ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) nos anos seguintes. Isso significava que o estado iria abrir mão, pela primeira vez, dos livros selecionados pelo programa, que seguem uma série de critérios e que são totalmente custeados pelo governo federal. Conforme a reportagem da Piauí aponta, Feder também tentou fazer isso no Paraná, mas a medida não foi para a frente. Em São Paulo o governo também acabou recuando, mas somente após pressão da sociedade civil e dos órgãos do judiciário, que se movimentaram após o anúncio. 

Quando a decisão foi anunciada – e já na época criticada por ter sido tomada unilateralmente, sem qualquer consulta às comunidades escolares ou a especialistas em educação –  o governo Tarcísio disse que o material didático passaria a ser próprio e 100% digital. Apesar de ter recuado e pedido ao MEC para receber os livros do PNLD, o governo do estado de SP continuou priorizando esse material próprio. Os slides também foram rapidamente denunciados por conter erros graves de conteúdo, destoarem do que pregam diretrizes nacionais, além de receberem outras críticas de inadequação à sala de aula. 

Clara*, professora de história de uma escola de tempo integral (PEI) de São Paulo, dá um exemplo: “Uma aula sobre discriminação racial, de 45 minutos, tinha 36 slides, sendo 3 deles exercícios. Com que qualidade vou passar um conteúdo tão extenso?”, questiona. Segundo ela, são cerca de 30 a 36 slides para cada aula de 45 minutos. “E isso em um bimestre com avaliações como Saeb, Saresp e Prova Paulista. Só pode ter sido formulado por pessoas que não têm experiência de sala de aula, porque só assim para propor 36 slides em 45 minutos e de assuntos totalmente diferentes”, diz ela. A professora critica também a qualidade dos slides, reforçando que, ao deixar para docentes corrigirem e adaptarem o que for necessário, a Seduc sobrecarrega ainda mais os profissionais. “E isso sem falar nas dificuldades de acesso a internet. Como é possível ficar refém de um material digital se não tem internet? Se o Youtube, por exemplo, é bloqueado em toda a rede paulista – mas é indicado nos slides?”. 

A Rede Escola Pública e Universidade (REPU), publicou, em agosto, nota técnica criticando esse movimento da Seduc de substituição dos livros do PNLD pelos slides digitais. A análise conclui que o material único apresenta inúmeros problemas metodológicos, erros conceituais e má contextualização e que a substituição é insustentável dos pontos de vista educacional, pedagógico, administrativo e econômico. 

“A adoção de material didático único fere os princípios constitucionais da pluralidade de ideias e de concepções pedagógicas e da gestão escolar democrática, estreitando o processo formativo e prejudicando as aprendizagens dos/as estudantes na rede estadual. Os custos exorbitantes com a possível impressão em larga escala de slides de baixa qualidade são injustificáveis e contrariam o princípio da eficiência na administração pública. Assim, a medida anunciada pelo governo paulista é insustentável dos pontos de vista educacional, pedagógico, administrativo e econômico-financeiro, e acarreta prejuízos à qualidade do ensino na rede estadual em todas as etapas da educação básica”, diz o documento.

Segundo o diretor Jorge, “mais uma vez as escolas têm que se reinventar”, especialmente porque esses conteúdos são cobrados nas avaliações. “os professores não podem simplesmente reproduzir o slide. É preciso contextualizar, acrescentar, suprimir, etc. É um trabalho que exige uma autoria e uma autonomia em sala de aula, mas não há tempo para se organizar. Assim, é um sufoco para o docente e também para a gestão responder à Seduc”, diz.

 Perda de autonomia

O debate e a revolta ao uso dos slides digitais na rede estadual de São Paulo tem também relação direta com um outro problema: o da perda de autonomia docente. Isso porque as avaliações de larga escala aumentaram e ganharam centralidade no estado, sendo inclusive uma forma de ingresso no ensino superior. E muitas delas são baseadas nos slides. Ou seja, eles tornam-se base para que as escolas possam preparar suas e seus estudantes para essas avaliações. Por sua vez, há muito menos margem para as e os gestores trabalharem questões específicas a suas comunidades e/ou territórios, promovendo saberes locais, enfrentando problemas importantes para aquele grupo ou sequer atuando sob uma lógica outra que não a das avaliações de larga escala, que reforçam uma perspectiva meritocrática e não consideram outras questões centrais quando se discute qualidade na educação, como: insumos, valorização das profissionais da educação, processos pedagógicos e gestão democrática . 

“No momento, isso é nossa principal questão junto à Seduc”, conta Jorge, diretor de escola da rede estadual. “Atualmente, só temos respondido às demandas de cima para baixo, respondido às plataformas. Não conseguimos pensar projetos a partir da nossa realidade”, descreve. Por outro lado, Helena*, da equipe de uma Etec, critica a dificuldade de comunicação com o governo estadual e a falta de planejamento de acordo com as características das diferentes redes. “Ter duas redes paralelas – a das Etecs e o ensino regular – é um grande desafio, e não é de agora. No Provão Paulista, por exemplo, vemos que não há muito cuidado em pensar uma proposta integrada que inclua também a rede das ETECs, recebemos pouca informação e em cima da hora, e então não conseguimos responder as famílias e estudantes sobre o que esperar”, reclama Helena. 

Para a professora Clara, trabalhar sob a nova gestão tem sido “exaustivo”, impactando a saúde mental das profissionais. “As estruturas de assédio já estão internalizadas, principalmente por conta da atuação do governador e do secretário. Isso nos causa instabilidades mentais”, diz. Ela destaca como mais graves a perda de autonomia docente e de incertezas sobre o futuro, como regimes de contratação e benefícios. “Se nós não apresentamos o material os estudantes é quem perdem, já que têm muitas provas definidoras de futuro na frente. Isso quebra o compromisso docente de apresentar outras visões de mundo e deixar o educando escolher. Se não posso apresentar nenhuma visão exceto a que vai cair na prova, então pra que serve tudo isso?”, resume.  

Outra face do problema foi escancarada em um episódio de violação de privacidade em agosto: da noite para o dia, estudantes, suas famílias e trabalhadores da rede estadual paulista viram um aplicativo (“Minha Escola”) ser instalado em seus celulares, sem qualquer pedido prévio de autorização. O episódio levantou questões sobre violação de privacidade e proteção dos dados pessoais e segurança das comunidades escolares. “Às 7h da manhã vi um aplicativo contendo todos os meus dados pessoais”, conta Clara, professora, que disse que ficou a cargo de cada pessoa remover o aplicativo. “Com esse episódio, ficou a dúvida de até que ponto nós temos liberdade no nosso aparelho pessoal”, diz ela, que lembra que o estado fornece apenas o chip para fins profissionais. 

O governo estadual disse, em nota enviada ao UOL, que abriu um processo administrativo para apurar o caso, afirmando que “a falha ocorreu durante um teste promovido pela área técnica da pasta em dispositivos específicos da Seduc”. O que chamou a atenção é que o mesmo episódio aconteceu no estado do Paraná, em 2022, quando a Seduc também estava sob a gestão de Renato Feder. Naquela ocasião, a pasta também disse que foi um erro. 

Falta de diálogo

Todos esses problemas são potencializados pela falta de diálogo, escuta e participação das comunidades escolares. Todas e todos os profissionais com quem entramos em contato são unânimes nesse ponto: as decisões têm sido comunicadas (e mal comunicadas), nunca discutidas. “A relação que deveríamos construir na comunidade escolar – horizontal, do planejamento, do diálogo com docência, gestão e comunidade – está podada. Não estamos tendo voz a partir do território, e isso também está valendo em âmbito municipal. Buscamos atender a todas as demandas, mas elas nunca chegam a partir da escola, é sempre de cima pra baixo”, protesta o diretor Jorge. Ele vê semelhanças do atual modelo com a gestão de uma empresa privada, focada em produção e métricas. “Isso não combina com a concepção de educação pública de qualidade”, diz. 

Na perspectiva das ETECs, a professora Helena destaca a comunicação desencontrada, com anúncios importantes sendo comunicados informalmente, sem acesso à informação de forma oficial. “Isso tem gerado uma série de insatisfações. Por exemplo, soubemos por meio de um vídeo enviado a um professor da escola que a rede de ensino regular também receberia cursos profissionalizantes. E que eles não seriam oferecidos por ETECs, que são referência. Por que oferecer esses cursos sem ser em parceria? Não temos informação de como isso está sendo construído, e não envolver as ETECs nos dá uma sensação de descaso e desvalorização”, conta ela. No caso das ETECs e FATECs, os docentes fizeram greve pela primeira vez esse ano justamente demandando melhores condições de trabalho e contra o desmonte da rede e privatização. “Por diversos fatores, inclusive o modo que a comunicação com o governo estadual tem se dado, o clima geral é de insegurança”, diz ela. 

A greve das ETECs e FATECs é um bom exemplo de como as e os profissionais têm resistido em uma gestão que não dá sinais de que vai mudar seu modo de operar. Através da organização coletiva conseguiram, por exemplo, assegurar o pagamento de alguns benefícios que estavam incertos até o momento, apesar de ser direito. Também frisa a importância da organização coletiva o diretor Jorge, que trabalha em uma escola da rede regular: “Nós educadores devemos nos organizar para resistir e isso só se dá coletivamente. Se cada um ficar apenas em sua escola tentando responder às demandas, todos vamos perder. O caminho é trabalhar pelas beiradas, frestas, é resistir, pegar as brechas que o sistema sempre deixa. Eles controlam muito, mas não controlam tudo”. 

*Nomes alterados pela segurança dos/as entrevistados/as. 




Supressão do termo “gênero” no atual PNE fomentou censura e perseguição nas escolas

Compreendidas como centrais para promover a democracia, as agendas de gênero, raça e sexualidade devem constar no novo PNE como forma de combater a violência

Divulgação/UBES

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

Dez anos atrás, na fase final da tramitação do atual Plano Nacional de Educação (PNE), uma alteração causou espanto e indignação: todas as menções a “gênero” foram suprimidas do texto. A exclusão do termo, capitaneada por setores conservadores, alterou um texto que vinha sendo construído há anos, com intensa participação social e através de diversas conferências de educação. Esse movimento impactou as discussões escolares nos anos seguintes sobre gênero, raça e outras formas de discriminação. Foram anos até o Judiciário reassegurar a legitimidade de tais debates no ambiente escolar, período em que docentes sofreram perseguições e viram suas condições de trabalho declinarem.

Às vésperas da tramitação do novo Plano Nacional de Educação, a sociedade civil agora age para garantir um PNE sem retrocessos, com ousadia e que reafirme o direito de profissionais da educação e estudantes discutirem  gênero, raça e sexualidade na escola.

Supressão do “gênero”: expressão de um movimento em curso

O texto que chegou à Câmara em 2014 expressava, em seu art. 2º, inciso III, que o PNE tinha como diretriz “a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”. A disputa legislativa sobre a explicitação dessas agendas, especialmente de gênero e diversidade sexual, foi longa e intensa, e no fim prevaleceu uma versão do texto que retirava essas ênfases. Entre os principais opositores do “gênero” (e de uma suposta “ideologia de gênero”) estavam grupos católicos, evangélicos e formações seculares como o Movimento Escola sem Partido.

“Estávamos conscientes do contexto extremamente adverso, marcado pelo crescimento da força política de setores fundamentalistas religiosos como parte do fenômeno de renovação de extrema-direita. Vínhamos enfrentando o avanço desse movimento na educação desde 2009, mas a maioria de nós não esperava a derrota naquela última etapa da tramitação, que revelou uma grande capacidade de articulação desses setores”, relembra Denise Carreira, professora da Faculdade de Educação da USP, fundadora da Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação e uma das lideranças do campo educacional que defendia a inclusão das agendas de gênero, raça e diversidade sexual.  “Vínhamos do processo das Conferências Nacionais de Educação que trouxeram proposições muito assertivas na perspectiva de fortalecimento de uma política educacional comprometida com essas agendas. Num primeiro momento, a derrota foi um baque. Depois compreendemos que a abrangência dessa derrota não era tão grande assim como a extrema-direita queria fazer entender”, avalia.

A lei que entrou em vigor expressa apenas a necessidade da “erradicação de todas as formas de discriminação”. Um “conteúdo genérico, suficientemente inclusivo”, nas palavras dos pesquisadores Salomão Ximenes, Fernanda Vick e Márcio Alan Menezes Moreira em capítulo do livro GÊNERO E EDUCAÇÃO: ofensivas reacionárias, resistências democráticas e anúncios pelo direito humano à educação. Salomão, no entanto, enfatiza que isso não significa que a mudança foi banal. Comparando as versões que circularam na Câmara e no Senado, ele ressalta que, além da retirada da menção a discriminações específicas, houve também alteração no inciso 5o. O texto aprovado diz ser uma diretriz do PNE a “formação para o trabalho e para a cidadania, com ênfase nos valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade”. Segundo o professor de Direito e Políticas Educacionais da UFABC, essa redação contém “uma afirmação de que a sociedade se fundamenta em uma única moral pública, o que é uma visão típica do conservadorismo,. A visão democrática presente na Constituição Federal na verdade afirma que a sociedade é baseada em uma pluralidade de concepções que devem conviver e que são igualmente aceitáveis desde que não violem direitos humanos”, completa.

Por outro lado, como lembra Salomão, a supressão do “gênero” e da diversidade sexual no PNE não eliminou o dever do Estado de atuar ativamente contra essas discriminações e desigualdades, já previstas em outras normativas. E nem proibiu a abordagem desses temas, como foi propagado pelos setores conservadores. “A supressão a essas menções no PNE é parte de uma estratégia mais ampla de ataque ao caráter público da educação, às conquistas recentes dos movimentos feministas, negros, LGBT+. Ela só pode ser lida como reação ao processo de democratização da educação, como o ponto mais visível da estratégia que era desenvolvida naquele momento mas que ganhou muito mais destaque nos anos seguintes”, defende.

Na mesma linha Sonia Corrêa e Marco Aurélio Máximo Prado enfatizam, no livro Gênero e Educação, que a educação foi o primeiro alvo robusto das “cruzadas antigênero” que permeariam vários outros setores da sociedade brasileira – e que ocorreram simultaneamente em outros países. No Brasil foram mais de cem projetos de lei proibindo “gênero e/ou ideologia na educação” desde a disputa no PNE.

Saiba mais sobre as ofensivas antigênero na educação no livro GÊNERO E EDUCAÇÃO: ofensivas reacionárias, resistências democráticas e anúncios pelo direito humano à educação”. O download é gratuito.

Impactos da exclusão do “gênero” no PNE: variação regional e debates ameaçados

O fato do Plano Nacional de Educação não mencionar várias discriminações de forma explícita deu brecha para que planos estaduais e municipais de educação aprovados nos anos seguintes também não o fizessem. Apesar disso, a maior parte das unidades federativas ainda assegurou (em níveis diferentes) o combate a essas discriminações e a abordagem desses temas. Segundo levantamento de Claudia Vianna e Alexandre Bortolini, docentes da USP, mais da metade dos 25 planos estaduais aprovados no país inseriu questões relativas à agenda das mulheres sob uma perspectiva de gênero e quase um terço expressam clareza de que a garantia de acesso e permanência com qualidade passa pelo enfrentamento das desigualdades de gênero. No entanto, vários planos refletem o avanço de pautas conservadoras com a exclusão do gênero, corte ou limitação da agenda LGBT+ e inserção de itens que submetem a abordagem destes temas à concordância das famílias. O exemplo mais extremo é o plano do Ceará, que “impede, sob quaisquer pretextos, a utilização de ideologia de gênero na educação estadual”.

Fonte: artigo “Discurso antigênero e agendas feministas e LGBT nos planos estaduais de educação: tensões e disputas”, disponível em:  https://www.revistas.usp.br/ep/article/view/187136/172900

Na falta de diretriz nacional e em um contexto de crescente conservadorismo e guerra ao “gênero”, muitos municípios também tentaram, em seus planos locais de educação, reproduzir o veto. Essas decisões – muitas acompanhadas de perto pela Iniciativa De Olho nos Planos, como as dos municípios de Cascavel/PR, Ipatinga/MG, Foz do Iguaçu/PR, Nova Gama/GO, Farroupilha/RS, Ipê/RS, Teresina/PI, Recife/PE, Palmas/TO, Santa Bárbara d’Oeste/SP, Viçosa/MG, Varginha/MG, Paranaguá/PR e Mossoró/RN – começaram a ser derrotadas em 2020, quando diversas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) reforçaram que a proibição da abordagem de “gênero” é inconstitucional e que na verdade é um dever do Estado trabalhar para combater todas as discriminações e para reforçar a cultura de paz e a igualdade. Essas decisões só chegaram ao STF após uma grande articulação de entidades da sociedade civil comprometidas com uma educação que combata as discriminações.

Mas a exclusão do “gênero” no PNE teve efeitos no cotidiano escolar também por ter sido instrumentalizada pelos setores conservadores. Como elenca Denise Carreira, professora da Faculdade de Educação da USP, a derrota foi utilizada “na estratégia de desinformação em massa da população, de estímulo à perseguição sistemática de professoras, estudantes e ativistas e foi base de proposições de projetos de leis antigênero municipais; além dos ataques à agenda de gênero e raça nos planos municipais e estaduais de educação”.

Cássia Souza, pedagoga que atua nos municípios de Recife e Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, sentiu isso na pele. Coordenadora de programas do Centro das Mulheres do Cabo (CMC) e parte da rede de ativistas do Fundo Malala, ela não esquece que a derrota legislativa fomentou uma cultura de censura e perseguição: “Na época, eu realizava um projeto sobre direitos sexuais e reprodutivos das meninas, e a retirada deu margem para o fundamentalismo nos proibir de falar de gênero na escola. Sofremos muita repressão, saímos até no jornal local, com uma vereadora dizendo que estimulávamos as adolescentes a fazer sexo”, relembra. Foram necessárias formações com a comunidade escolar para continuar com o projeto, e relembrar a necessidade de discutir abuso e exploração sexual foi chave para prosseguir com o trabalho. “Não podíamos usar a palavra “gênero” para não perder aquele espaço, mas ainda conseguíamos trabalhar na sala de aula, éramos como ‘agentes secretas do gênero”, brinca.

Em ambos os municípios, as discussões sobre gênero não estavam contempladas nos Planos Municipais de Educação, e em Cabo de Santo Agostinho uma portaria chegou a ser publicada prevendo sanções administrativas a docentes que trabalhassem o tema “gênero” nas escolas. Ou seja, houve uma criminalização da agenda. “Nós dávamos aula com medo de dar aula”, resume Cássia. Por isso, reforça ela, a inclusão dos temas nos Planos teria dado mais segurança para o trabalho do dia a dia, apesar de não significar uma mudança imediata de cultura. “Não tenho essa ilusão, mas garantir gênero na lei faz com que a gente não seja criminalizado por trabalhá-lo na escola, além de definir as formas de trabalhar com o tema”

É hora de fazer diferente

Para que essa situação não se repita, é preciso garantir que o próximo PNE – e os planos estaduais e municipais – contemplem as agendas de gênero, raça e diversidade sexual. Nesse contexto, a Ação Educativa lançou a campanha #FiqueDeOlho: para combater a violência, gênero nos Planos já!. Com materiais físicos e digitais, a campanha reforça que garantir igualdade de gênero nos Planos é se comprometer com a melhoria da qualidade na educação, já que educação de qualidade é a que consegue incluir e acolher todas as pessoas.

E garantir igualdade de gênero é mais do que apenas adicionar uma palavra a um texto: é também uma forma de criar espaços de acolhimento e solidariedade nas escolas; de prevenir e combater o assédio, abuso sexual e violência doméstica; de discutir as desigualdades entre homens e mulheres; promover o direito das pessoas viverem livremente sua sexualidade, entre outros.

“A campanha parte do entendimento de que as agendas de gênero e raça promovem o pertencimento nas escolas, a proteção, a gestão democrática”, resume Marcelle Matias, educomunicadora e assistente da área de educação da Ação Educativa. Um dos focos da campanha é pautar a igualdade de gênero nas Conferências de Educação – que são parte da construção do novo PNE -, e outro foco é a mobilização juvenil que reuniu jovens em uma Conferência Livre na Ação Educativa como parte da CONAEE. “Jovens estudantes têm puxado essa agenda. Então a campanha também reforça o papel da juventude enquanto uma juventude ativista, que tem discutido gênero na escola de diferentes formas e que tem pouco a pouco ressignificado seu papel no espaço escolar”, reforça Marcelle.

Assegurar essas agendas nos planos de educação, no entanto, vai ser um desafio, já que o ultraconservadorismo segue forte no Congresso e fora dele. “Precisamos envolver toda a sociedade para fazer pressão no Senado e na Câmara, como fizemos na votação do Fundeb”, opina Cássia Souza, pedagoga e cientista social. “Em 2013, eles conseguiram convencer a população e fazer a pressão social para vetar o gênero, agora temos que ser nós”, defende ela.

Salomão Ximenes e Denise Carreira concordam que, passados anos de investidas ultraconservadoras e liberais na educação e na sociedade, o contexto atual é mais desafiador. Para Denise Carreira, professora da faculdade de Educação da USP, a composição do atual Congresso exige muita cautela para que o novo PNE não seja minimizado em suas metas e estratégias e ocupado por demandas de setores ultraconservadores e privatistas. “Temos que ficar vigilantes e articulados, participando ativamente do processo da Conferência Extraordinária Nacional de Educação, convocada pelo Fórum Nacional de Educação”. Ela, que frisa que mesmo nos contextos adversos surgiram muitas iniciativas positivas, reforça a urgência das agendas de gênero, raça e diversidade sexual pararem de ser vistas como “identitárias”. “É urgente que sejam compreendidas como eixos estruturais das desigualdades, sempre em articulação com renda, e centrais para a sustentação da democracia”, diz.

Na mesma linha, Salomão Ximenes, professor de Direito e Políticas Educacionais da UFABC, também alerta para o perigo do apagamento das agendas antidiscriminatórias. Em sua análise, uma forma de proteger docentes contra tentativas de censura, especialmente após anos de incursões antidemocráticas, é inserir essas agendas nos currículos. “Conseguir reconstruir essa agenda hoje significa respaldar o trabalho com direitos humanos nas escolas”, diz. “É importante lembrar que pela legislação nacional e internacional a educação tem um objetivo, que é promover a democracia e o respeito entre as pessoas, combater o racismo e as discriminações. Precisamos de mais respaldo institucional para poder trazer temáticas que são obrigação das escolas”, completa.

Que Ensino Médio queremos? Com a palavra, as/os jovens estudantes

Acesso ao Ensino Superior e escolha profissional, Infraestrutura e valorização das professoras, discussões sobre raça, gênero e sexualidade, senso crítico e participação estudantil estão entre as principais demandas das/os jovens 

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

Foto: formação projeto Tô No Rumo

Desde que se intensificou a luta pela revogação do Novo Ensino Médio (NEM), muito tem se discutido sobre o que seria um Ensino Médio de qualidade. Uma pergunta que pressupõe que não existe alternativa ao modelo em vigor desde 2017, imposto sem escuta de jovens estudantes e comunidades escolares. Mas não faltam pessoas propondo novos modelos e ideias para a etapa. E, igualmente importante, propondo que essa discussão seja feita coletivamente e não imposta de cima para baixo, e que as e os estudantes – sejam parte fundamental do processo. 

Raramente ouvidas/os, elas e eles sentem na pele os efeitos de uma reforma que precarizou ainda mais as redes públicas, aumentando o abismo dentro do sistema público mas também em relação à rede privada. Estudantes trabalhadoras e trabalhadores, cursando formação técnico-profissional, EJA ou do período noturno são particularmente penalizados. Diretamente afetados e sentindo seu futuro ameaçado pela Reforma, estudantes têm sim muitas propostas de como fazer diferente e onde. E a discussão sobre qualidade do Ensino Médio precisa incluí-los. 

Coletamos algumas dessas vozes nos últimos meses em atividades e formações do projeto Tô no Rumo, da Ação Educativa, em manifestações #RevogaNEM e no diálogo direto com jovens. Perguntados sobre que Ensino Médio querem, além da revogação do NEM e o fim dos itinerários formativos, alguns temas são mais prevalentes: que as escolas possam prepará-los melhor para o ENEM para que tenham melhores chances de ingressar em universidades públicas; debates e formação crítica sobre temas como política e democracia, além de saúde mental, gênero, raça, sexualidade, violências e discriminações; maior participação estudantil; escolas com melhor infraestrutura e que valorize docentes e todas as profissionais. 

Compartilhamos abaixo algumas das respostas e reflexões. 

Acesso ao Ensino Superior, escolha profissional e jovens trabalhadoras/es

As jovens e os jovens com quem conversamos compartilham uma frustração: a insegurança em prestar o ENEM e demais vestibulares. Além de serem sequestradas/os pelos chamados itinerários formativos, soma-se a isso, segundo elas/es, a falta de informações e de incentivo ao acesso ao Ensino Superior. E os problemas se agravam para estudantes que trabalham e do noturno, ainda mais afetadas/os pelo enxugamento da carga horária. 

Elas e eles sentem falta de uma escola que oriente questões mais amplas ou mais básicas, como o próprio processo de inscrição nos vestibulares, de isenção das taxas, de escolha de carreiras, a possibilidade de auxílio financeiro através do Prouni e do Fies. Uma educação que mostre mais possibilidades de futuro. 

“Queria que o Ensino Médio focasse nos alunos entrarem nas universidades públicas, porque é exatamente o que as escolas particulares fazem. Eu nunca tive um simulado da Fuvest, por exemplo. Se a gente soubesse que tem as mesmas oportunidades para entrar nas universidades públicas, seria uma motivação a mais. As feiras de profissões que eu fui, fui por conta própria, nunca foi a escola, porque o sistema quer mais é por a gente como operário, trabalhador. Acaba que para algumas pessoas [o acesso à universidade] é uma escada rolante, para outras é um muro que precisa ser escalado” (Esther, 3º ano do EM).

“Um bom Ensino Médio precisa melhorar a qualidade do ensino e realmente preparar os alunos para o vestibular. Eu achava que estava arrasando, mas quando prestei vi que não sabia o básico. Tem que melhorar, mas não só sobre o que cai no vestibular mas também informações sobre o próprio processo, sabe? Eu não sabia que algumas questões valiam mais, que eu podia entrar na USP com a minha nota do ENEM, não sabia muita coisa. Também seria legal uma orientação vocacional, porque saí da escola sem saber o que eu queria fazer na faculdade, não sinto que minha escola me ajudou (Carlos Eduardo, concluiu o Ensino Médio em 2022).

“O Ensino Médio que eu queria era com uma preparação baseada no perfil dos alunos. Por exemplo, os alunos do noturno em geral trabalham, a escola tem que se basear nisso. Nossa carga horária já é muito reduzida, vai ter aluno do terceiro ano que não sabe fazer uma redação, uma conta de divisão. Como ele vai continuar no emprego ou procurar uma oportunidade melhor se não tem a oportunidade de evoluir e aprender no lugar de evoluir e aprender, que é a escola? Hoje, marketing ocupa metade da minha grade, eu vou para a escola aprender a subir um vídeo no Youtube. Isso talvez funcionasse no ensino integral, mas não no noturno com carga horária reduzida. Quando eu confrontei o diretor da escola sobre isso, ouvi que a proposta era o aluno entrar no mercado de trabalho e não necessariamente no ensino superior. Ou seja, como vou conseguir ingressar por minha escolha se não tenho a oportunidade de aprender o básico? Se não dá nem para ter uma oportunidade de emprego melhor, quem dirá ingressar no ensino superior.
Muitos amigos nem foram prestar vestibular para universidades públicas porque eles acham que não vão passar, aí nem vão prestar, preferem trabalhar e pagar uma particular. E também vários alunos da minha escola vão ficar sem fazer ENEM porque não sabiam do prazo de isenção. Se a gente não tem orientação é muito difícil. Por outro lado, uma das melhores coisas que me aconteceu foi uma professora trazer ex-alunos da mesma origem que a gente e que fizeram universidade e estão em diversas carreiras. Decidi fazer ENEM por causa disso, eu consegui me visualizar na carreira das pessoas que foram na escola” (Josué, 3º ano do EM).

Além do acesso ao Ensino Superior, estudantes também ressaltaram a importância do Ensino Médio tratar dos caminhos existentes para a formação profissional.


“Em um olhar mais esperançoso, acho que toda escola deveria ter apoio para caminhos diferentes, não só a universidade. Não é todo mundo que quer seguir esse caminho e seria importante apresentar as opções para escolhermos algo que gostamos e que possamos contribuir para a comunidade. Tipo aulas de teatro.” (Biah, 3º ano do EM)

“Um Ensino Médio de qualidade, é o que me proporciona diversas experiências, me dá um bom ensino e me prepara bem para vida adulta e para o mercado de trabalho” (Pamela, 2º ano do EM).

Outras conversas com estudantes que participaram das oficinas de formação do projeto Tô No Rumo evidenciaram que o técnico profissionalizante ofertado pelas escolas de ensino médio regular não atendem às suas expectativas de formação profissional:

“O ensino médio que eu quero é que essas aulas adicionais “profissionalizantes” não interfiram no ensino básico” (estudante EM). (leia mais aqui)

Senso crítico, participação e mobilização estudantil 

Outro ponto fundamental da discussão sobre qualidade do Ensino Médio na visão de estudantes é a participação e mobilização estudantil, além de uma formação crítica sobre a realidade.

“Não vejo muita participação dos alunos e professores na escola, acho que mesmo que os alunos concordem com uma causa, como quando protestamos contra a PEI, ainda não tem mobilização. Os pais achavam que era coisa de aluno preguiçoso que queria menos aula. Acho que o Ensino Médio tem que fomentar o pensamento crítico dos alunos. (Biah, 3º ano do EM). 

“Nosso movimento precisa mobilizar estudantes de escolas públicas e particulares, mobilizar estudantes universitários, pois isso vai afetar nosso futuro” (Bruna, 2º ano do EM).

“Queremos um ensino médio combativo, popular no qual os estudantes possam ser o que quiserem. Um Ensino Médio que ensine pensamento crítico, ciências humanas e que as matérias que caem no vestibular sejam ensinadas nas aulas”. (Mateus, 1º ano do EM).

Há relatos sobre a realidade e precarização do ensino noturno que atende, em sua maioria, estudantes trabalhadoras e trabalhadores. E de como é importante o apoio e incentivo por parte da gestão para que a participação aconteça independentemente do turno que estudam.

“Acredito que estudantes iam ter mais tempo para mobilizações e ações tipo participar do grêmio se tivessem apoio da diretoria e não que tivessem que fazer tudo por iniciativa própria. Poderíamos desenvolver mais, mas como fazer se os alunos do noturno já trabalham, chegam na escola cansados do trabalho? No noturno está todo mundo cansado, professor e alunos trabalharam o dia inteiro. Então sinto também que não tem a mesma preocupação e o mesmo apoio do que nos outros horários, a carga horária é menor..não tem tanto tempo de conversar com os alunos, vai ser passado o que é preciso para passar de ano” (Esther, 3º ano do EM).

A escuta de jovens para a construção de uma proposta que faça sentido e gere transformação na vida de estudantes também foi colocada como uma demanda do grupo durante os encontros de formação do projeto Tô No Rumo:

“Queremos ser ouvidos”

“Um ensino que leva em conta o saber e opiniões dos alunos”

“Precisamos que o Grêmio seja mais ouvido e realmente lutem com os alunos”

“Ensino médio com mais escuta, menos violência e mais acolhimento”

“Queremos debates para construirmos uma mudança”

Na perspectiva da formação crítica e do desenvolvimento, inclusive em processos de formação profissional, estudantes ressaltaram durante o encontro a cultura como um campo de possibilidades a ser trabalho pela escola:  

“A escola mata artistas. Queremos mais cultura e arte!”

“Valorização da criatividade, respeito, desenvolvimento de todos”

Gênero, raça e sexualidade

Muitas iniciativas juvenis, como as selecionadas pelo Edital EM LUTA – Estudantes por um Ensino Médio de Qualidade!, promovido pelo projeto Tô no Rumo, em 2022, têm como eixos estruturantes de suas propostas as agendas de gênero, raça e sexualidade. Essas são agendas que, para estudantes, se relacionam com inclusão, respeito, combate à violência e educação de qualidade.

“Acho que discussões de gênero, raça e sexualidade precisam fazer parte da escola porque isso abre a nossa mente para incluir pessoas” (Esther, 3º ano do EM).

“Os debates na escola também não aconteciam nunca no noturno. Sobre racismo, palestras de Dia Internacional da Mulher, essas coisas. É complicado porque o aluno já chega sem vontade de estudar e ainda não tem incentivo”. (Carlos Eduardo, concluiu o Ensino Médio em 2022). 

Relatos durante a formação do projeto Tô No Rumo:

“Menos bullying nas escolas”

“Uma escola sem preconceito em que todos sejam respeitados”

“Mais pautas  LGBTQIAPN+, raciais e educação de qualidade.”

Infraestrutura, alimentação e valorização das profissionais da educação 

Sobre os insumos necessários para uma boa escola, estudantes ressaltaram a importância da existência e utilização de laboratórios e bibliotecas, alimentação e materiais de qualidade e internet. 

“O Ensino Médio precisa de mais investimento para os alunos se interessarem mais pelas aulas. Na minha escola tem laboratório, sala de informática, vários locais, mas não são usados. A biblioteca está fechada há anos. Isso faz a gente perder a vontade de estudar, tanto que muitos alunos vão para a escola pela parte social e não pelo estudo” (Esther, 3º ano do EM).

“Mais biblioteca nas escolas” (depoimento de estudante durante encontro de formação do projeto TNR).

“Ensino de forma digna todos os dias. Que possamos ter almoço para estar na escola, precisamos do passe-livre e de ônibus de qualidade para acessar outros lugares” (Maria Helena, 3º ano do EM com ensino técnico).

“Refeições saudáveis” (depoimento de estudante durante encontro de formação do projeto TNR).

“Quero um Ensino Médio que não tenha somente material digital porque não é todo mundo que tem acesso e isso só dificulta a educação e o ingresso às universidades” (Duda, 2º ano do EM)

Chama atenção o depoimento de um estudante que relatou falta de água no período noturno, além da falta de professoras/es. Vale comentar que a escola que ele estudava está situada na região central de um município da Região Metropolitana de São Paulo. 

“(…) cheguei a ter aulas eletivas, sobre tecnologia, ter projeto de vida. Mas quando mudei para o noturno não tinha nada disso, achei totalmente negligenciado. Chegamos a ter período em que só faltava água no noturno e só o noturno ficava sem aula” (Carlos Eduardo, concluiu o Ensino Médio em 2022). 

A valorização das profissionais da educação também é uma demanda de jovens estudantes.

“Eu adoro minha professora de artes porque é quem consegue despertar senso crítico nos alunos (…) Se o Novo Ensino Médio fosse com professores assim seria muito melhor, por que onde mais construir debates políticos de forma certa se não na escola? Se for deixar para o mundo, vai ter problema, porque tem muito preconceito e ignorância. A escola que deveria preparar a gente pro mundo, ensinar o pensamento crítico” (Biah, 3º ano do EM). 

“Profissionais qualificados e preparados” (depoimento de estudante durante encontro de formação do projeto TNR).

E mais: que EM queremos? 

Vale destacar ainda outras agendas que aparecem como demandas para jovens,  como a da Saúde Mental. O grupo de jovens do Edital “EM LUTA – Estudantes por um Ensino Médio de Qualidade!” elegeu essa uma agenda comum a todos os projetos e demandaram um encontro específico para discuti-la. 

“O Ensino Médio de qualidade é aquele que prioriza a saúde mental do aluno e que traz oportunidade para todo mundo” (Rafaela, 3º ano do EM).

Outro ponto que tem sido muito discutido com a implantação do Novo Ensino Médio é contra a privatização da educação. 

“A educação pública atual está num processo de privatização e o Novo Ensino Médio é uma tentativa deliberada de aumentar essa distância e assim justificar a privatização das escolas. Por exemplo, vão dificultar e piorar o ensino público, menos pessoas vão entrar nas universidades vindo de escolas públicas e vão usar esses dados para dizer que escolas públicas não funcionam e que é preciso privatizar, o que vai piorar ainda mais o Brasil” (Gustavo, 3º ano do EM).

Por fim, vale destacar a fala de um estudante que relaciona a oferta de um Ensino Médio de qualidade com a garantia do direito humano à educação para todes. 

O Ensino Médio que eu quero é um Ensino Médio para todas, todos e todes. A educação não é para ser um luxo, é uma coisa que todas as pessoas precisam ter, é um direito de nascença como alimentação, moradia. É o mínimo para a pessoa ter liberdade para pensar” (Antonio, 2º ano do EM).



Campanha #FiqueDeOlho: para combater a violência, gênero nos Planos já!

Iniciativa De Olho Nos Planos e Projeto Gênero e Educação lançam campanha #GêneroNosPlanosJá

Texto: Claudia Bandeira

No Brasil milhões de crianças, adolescentes, jovens e pessoas adultas são excluídas das escolas públicas ou têm suas trajetórias educacionais comprometidas em decorrência das desigualdades, discriminações e violências presentes na sociedade e no ambiente escolar. Estudos mostram que no Brasil os meninos negros são os que mais repetem de ano e abandonam a escola e as meninas e mulheres, principalmente negras, utilizam grande parte de seu tempo em trabalhos domésticos e de apoio familiar. Meninas e meninos homossexuais e transexuais, ainda hoje, sofrem na escola agressões verbais e físicas, que resultam em baixo desempenho, faltas, desistências e evasões. Sem falar da violência contra meninas e mulheres: o Brasil bateu recorde de feminicídio em 2022, com uma mulher morta a cada 6 horas!!

Por isso garantir igualdade de gênero nos Planos é se comprometer com a melhoria da qualidade na educação. Uma educação de qualidade é aquela que consegue incluir e acolher todas as pessoas. Como falar de qualidade na educação se não estamos garantindo a todos e todas o direito de acesso, permanência e sucesso escolar?

Nos últimos anos, manifestações de intolerância, ódio e preconceito vêm crescendo em diversas escolas brasileiras. Essas manifestações têm gerado violência e visam eliminar a possibilidade de que a igualdade, assegurada pela Constituição Federal e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, seja trabalhada nas escolas do país.

Leis que visavam proibir a abordagem de gênero foram consideradas inconstitucionais pelo STF em 2020, mas o efeito de perseguição e autocensura continua sendo sentido. Censurar o debate é acirrar ainda mais a violência, o preconceito, a segregação, o racismo, o sexismo e a LGBTQIAP+fobia.

Mas, afinal, o que é garantir igualdade de gênero nos Planos de Educação?

  • uma forma de criar espaços de acolhimento e solidariedade nas escolas;
  • prevenir e combater o assédio, abuso sexual e violência doméstica;
  • ajudar as crianças e adolescentes a se prevenirem contra o abuso sexual;
  • disponibilizar aos estudantes, na escola, informações sobre as leis que punem a violência contra mulheres;
  • possibilitar nas escolas o debate de temas como puberdade e sexualidade;
  • ensinar os meninos a dividirem com as meninas e mulheres as tarefas de casa;
  • discutir as desigualdades entre homens e mulheres;
  • promover o direito das pessoas viverem livremente sua sexualidade, sejam heterossexuais ou LGBTsQIAP+;
  • debater as desigualdades entre homens e mulheres;
  • ensinar e aprender quais são os direitos das populações LGBTQIAP+.

Estamos diante de um grande desafio: fazer com que o novo Plano Nacional de Educação possibilite a melhoria da qualidade da educação e a redução das desigualdades educacionais em nosso país!

Para isso convidamos todas e todos a somarem na Campanha #FiqueDeOlho: para combater a violência, gênero nos Planos já! acessando nossos materiais e estimulando o debate nas escolas, praças, casas legislativas, territórios e conferências…Vem com a gente!

Para saber mais: https://generoeeducacao.org.br/mude-sua-escola/campanha-fiquedeolho-para-combater-a-violencia-genero-nos-planos-ja/

Após Consulta Pública, MEC propõe alterações no Novo Ensino Médio que abrem brecha para a revogação da reforma

Apesar de reconhecer as limitações da Lei 13.415/2017, a proposta ainda precisa ser aprimorada, principalmente com relação ao Ensino Técnico Profissionalizante  

Foto: Agência Brasil

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira 

Alvo de inúmeras críticas por acirrar desigualdades educacionais, o Novo Ensino Médio (NEM) vai voltar ao Congresso Nacional em breve, podendo sofrer alterações e inclusive ser revogado. Esse importante passo para a garantia do direito à educação vem após mudanças sugeridas pelo próprio Ministério da Educação (MEC), realizadas após consulta pública sobre o NEM. 

A nova versão sugerida pelo governo – e que será novamente analisada no Legislativo -, apesar de incorporar várias demandas da sociedade civil, continua insuficiente ou vaga demais em alguns pontos, especialmente nas propostas para o Ensino Técnico Profissionalizante, modalidade que permite várias exceções no ensino e na carga horária, potencialmente piorando a qualidade do que é ofertado aos estudantes se comparado ao modelo de educação integrada, a exemplo de Escolas Técnicas Estaduais e Institutos Federais de Educação. 

Consulta Pública: a sociedade quer outro Ensino Médio

Entre 9 de março e 6 de julho de 2023, o MEC realizou Consulta Pública para Avaliação e Reestruturação da Política Nacional de Ensino Médio, ouvindo diferentes atores da sociedade. Com base nas informações colhidas nessa consulta pública, a Pasta divulgou, no início de agosto, sugestões de alterações na Lei 13.415/2017, que instituiu o Novo Ensino Médio. O Ministério, que não divulgou os dados coletados mas sim um resumo deles, apresentou 12 áreas críticas e propôs sugestões em seis delas. Com base nisso, vai construir um texto que precisará passar pelo Congresso. Órgãos e entidades da área da Educação – como a Campanha, a CNTE e o Fórum Nacional de Educação – puderam enviar suas considerações sobre a proposta para ajudar a construir a essa versão final a ser enviada ao Legislativo. 

Como apontou a CNTE em sua análise, a consulta pública expôs críticas a praticamente todos os pontos do Novo Ensino Médio, como os itinerários formativos, a diminuição da carga horária, a organização curricular, a possibilidade de ensino à distância (EaD), a falta de infraestrutura nas escolas brasileiras para cumprir com a lei e o consequente aumento nas desigualdades educacionais causado por esse processo. 

A partir desse diagnóstico, o MEC propôs recompor a carga horária destinada à Formação Geral Básica (FGB) para 2.400 horas; reduzir o número de itinerários formativos – que passam a se chamar “percursos de aprofundamento e integração de estudos” – de cinco para três; e o fim do uso de EAD na Formação Geral Básica. No entanto, essas mudanças não se aplicam a estudantes que estejam cursando o Ensino Técnico Profissionalizante, pois para elas e eles ainda é possível que a carga horária da FGB seja menor (de 2.200 horas, as quais se somariam 800 a 1000 horas de cursos técnicos) e que até 20% da oferta de Educação Profissional Técnica seja ofertada via EAD. Além disso, a proposta do Ministério mantém a possibilidade de contratação via notório saber na formação técnica profissional, o que não apenas pode trazer problemas para a qualidade do ensino como é um retrocesso para a valorização docente. 

Ainda em relação ao currículo, o MEC sugere que passem a compor a formação básica geral (FGB): arte, educação física, literatura, história, sociologia, filosofia, geografia, química, física, biologia, educação digital e espanhol como alternativa ao inglês. Já os itinerários formativos seriam nas áreas de: Linguagens, matemática e ciências da natureza; Linguagens, matemática e ciências humanas e sociais; Formação técnica e profissional. Em relação ao ENEM, o governo propõe que a edição de 2024 permaneça atrelada à FGB e que seu formato para os anos seguintes seja objeto de debate no contexto da elaboração do novo Plano Nacional de Educação (PNE). 

Para diferentes representantes do campo comprometido com a educação pública, laica e de qualidade para todas e todos, as propostas apresentadas pelo governo são uma boa notícia ao reconhecer as limitações do modelo instituído pela Lei 13.415/2017 – tanto é que requerem uma nova análise legislativa. As propostas também incorporam sugestões do campo progressista, como o aumento da carga horária da FGB, o que a Campanha Nacional pelo Direito à Educação chamou de “passo crucial para a garantia de uma formação sólida de nossos estudantes”. A entidade – que participou ativamente do processo da Consulta Pública, inclusive criticando sua metodologia em nota – destacou também o recuo no uso de Educação a Distância, mas defende que ainda é necessário “avançar para a garantia de educação 100% presencial, em todas as suas variantes, sem exceção”. Quanto à organização curricular, a Campanha vê avanços, mas acredita que  a proposta ainda possa ser aperfeiçoada – a entidade, bem como a CNTE, por exemplo, defendem que o Espanhol não seja uma alternativa ao inglês mas sim complementar. A Campanha Nacional pelo Direito à Educação também mantém a crítica aos itinerários formativos, ainda que ganhem outro nome, defendendo que eles constem como “parte diversificada dos currículos”.

Para Andressa Pellanda, Coordenadora-Geral da Campanha, é necessário implementar “uma política abrangente a nível nacional que confronte e se esforce para eliminar as vastas disparidades no âmbito educacional que marcam a disponibilidade do ensino médio. Isso vai além das meras alterações no currículo, requerendo também o encerramento da insuficiência de recursos financeiros”. Visão compartilhada por Sérgio Stoco, professor de Políticas Públicas na Unifesp, membro do Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES) e do Fórum Nacional de Educação (FNE), para quem a consulta foi um processo de mediação importante com a sociedade e com os movimentos sociais da Educação, mas ainda com muitas limitações conceituais quanto a que Ensino Médio se quer e como construí-lo. Ele defende que uma política para o Ensino Médio deve ser construída com um Sistema Nacional de Educação (SNE) definido, com um novo PNE em vigor, bem como com ampla escuta e participação da sociedade e, principalmente, com novos investimentos nesta etapa de ensino. 

A falta de novos recursos para o Ensino Médio é um dos pontos mais criticados da Reforma, já que tende a aumentar as desigualdades entre as redes pública e privada e mesmo entre as redes públicas. As flexibilizações – como da formação geral básica e dos modelos de contratação docente – também são muito criticadas por precarizar essa etapa. “A Reforma não pretende trazer mudanças efetivas ou dar direcionamento político à educação nacional, mas sim tenta regulamentar a flexibilização. Seu objetivo não é propor nada, e sim deixar abertas as portas pra fazer qualquer coisa”, resume Sérgio Stoco, enfatizando que mesmo possíveis pontos positivos da Reforma já estavam contemplados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), não necessitando de lei específica.

Ensino Técnico profissionalizante: pouca definição e propostas aquém do necessário

Se mesmo após as mudanças sugeridas pelo MEC a Lei 13.415 ainda tem problemas, a situação se agrava quando olhamos especificamente para o Ensino Técnico e Profissionalizante. A respeito dessa modalidade, vários pontos ainda estão pouco definidos. E os que estão mais desenhados mantêm retrocessos, como a menor carga horária na formação geral básica (2200h, ante as 2400h da formação geral) e a possibilidade de até 20% do ensino à distância, além da contratação de profissionais via notório saber. Ainda, no desenho proposto, a formação profissional pode ser extremamente precarizada e de baixa qualidade, pois pode ser validada através do acúmulo de vários cursos menores.

“Infelizmente, do jeito que está sendo proposta, a Educação Técnico Profissional só pode levar a um caminho de precarização”, resume o professor Sérgio Stoco, da Unifesp e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU). “Uma leitura atenta do que é proposto percebe que há uma espécie de ‘vale-tudo’: qualquer coisa que der uma certificação conta como carga horária do ensino médio, o que é um jeito simples do setor privado vender seus serviços”, explica, alertando que até mesmo palestras podem contar como certificação profissional. Soma-se a isso a permissão para o ensino à distância, ferramenta que tem sérias denúncias quanto a sua baixa qualidade e já deu margem até para aulas por televisão, sem a presença de professoras ou professores. Fora isso, ainda pode aumentar a exclusão e as desigualdades educacionais, pois exige acesso e disponibilidade de um aparelho com conexão estável à internet, além de letramento digital. Fatores que, como visto durante a pandemia, estão longe de ser uma realidade no país. 

Há ainda outra importante fonte de preocupação: a contratação de profissionais via notório saber. Como explica Sérgio Stoco, este conceito, em sua concepção, é importante para reconhecer outros saberes além do científico, mas no contexto do NEM tem sido uma forma de desvalorizar a carreira docente. “A alteração nos artigos 61 e 62 da LDB flexibilizou para, no fundo, dizer: ‘qualquer um pode virar professor’”. Para os governadores é ótimo, pois os desobriga de várias legislações criadas para proteger a carreira docente”, diz.  

A nota técnica da Campanha Nacional pelo Direito à Educação defende ser “essencial eliminar da legislação a permissão para que pessoas com “notório saber” atuem como professoras/es no Ensino Médio, pois reconhecer o valor dos conhecimentos no campo pedagógico é fundamental para valorizar a profissão docente. A aceitação de tal possibilidade em cursos de Educação Profissional Técnica de Nível Médio também desconsidera a importância do conhecimento científico subjacente às técnicas e tecnologias, uma vez que a formação para o trabalho não pode prescindir desse aspecto”. 

Os problemas e limitações do modelo técnico profissionalizante no contexto do NEM já são sentidos pelas comunidades escolares do estado de São Paulo. No estado, onde a implementação do Novo Ensino Médio dá-se de forma acelerada, está em vigor um programa chamado Novotec, que “oferta cursos técnicos e profissionalizantes gratuitos, orientação vocacional e oportunidades de estágio para jovens dentro do Ensino Médio da rede pública”. O Novotec tem quatro modalidades de cursos profissionalizantes, ministrados por profissionais externos à escola, entre eles o Novotec Expresso, que certifica as e os estudantes semestralmente. A qualidade dessa certificação, no entanto, é bastante questionável. 

A professora Lívia L* é testemunha disso. Formada em história e lecionando na rede pública da região metropolitana de SP, desde que sua escola aderiu ao Novotec, ela também acompanha as aulas de um dos itinerários integrados do programa. E não poupa críticas: “Descobrimos que os professores externos foram contratados à distância, sem falar com ninguém, e claramente muitos nunca haviam dado aula antes”, diz. 

Ela, como docente da unidade, fica na sala enquanto o profissional contratado via notório saber ministra o itinerário – em seu caso, de Marketing Digital, escolhido em uma votação com baixo quórum de alunos. “É adoecedor. São trabalhadores precarizados com formação e consequente visão neoliberal rasa dando aula para nossos alunos. Nós professores temos que ficar dentro da sala acompanhando a aula de outro professor, sem diálogo com nossa formação e sem clareza se devemos interferir ou não. Me colocando no lugar do outro profissional, escolho não fazer isso”, conta. Uma decisão difícil, considerando que de acordo com o programa os contratados e contratadas sequer precisam ter formação em licenciatura ou pedagogia. “Você percebe que têm dificuldade de reger a sala, de acessar os alunos e de administrar a aula”. Na primeira aula, no entanto, Lívia interferiu para explicar como funcionava o Novotec. Isso porque o docente perguntou à turma porque havia escolhido aquela formação, ao que ouviu de muitos que “não escolheram nada”. 

Um artigo de Evaldo Piolli e Mauro Sala sobre o programa concluiu que o Novotec “e esse conjunto de programas irão criar uma maior estratificação hierárquica no Ensino Médio do estado, contribuindo para uma formação desigual da força de trabalho para um mercado de trabalho cada vez mais precarizado”. Por vários motivos: cursos curtos para a qualificação profissional, majoritariamente de baixo custo, “que não demandam grandes laboratórios e equipamentos, e [com] alta taxa de inculcação ideológica, já que diretamente ligados à gestão e negócios capitalistas. (…) Trata-se de convencer a juventude que a precariedade das suas próprias vidas faz parte da racionalidade do modo de produção capitalista.”, segundo os autores. 

O modelo do Novotec é restrito ao estado de São Paulo, mas seus princípios podem ser replicados em outras redes, mesmo com a nova proposta do MEC para o Ensino Médio. Como resume o professor Sérgio Stoco: “do ponto de vista do que está colocado [pelo MEC], essa formação específica [técnico profissionalizante] é uma enganação absoluta, não tem como remendar. No fim do processo, tudo vai virar mais desigualdade”. 

Batalhas legislativas pela frente

A volta do projeto do Novo Ensino Médio ao legislativo, que deve acontecer neste segundo semestre, representa uma excelente oportunidade para tentar reverter os retrocessos trazidos pela “Reforma irreformável”. Em um processo que até agora foi conduzido por decretos e marcado por pouca ou nenhuma transparência e diálogo com a sociedade, levar o assunto para debate amplo já é, de certa maneira, uma derrota para os defensores do NEM. “Tudo que avançamos até aqui foi por conta da pressão nas ruas e junto aos organismos do poder público, assim como do trabalho – que tem sido muito intenso e árduo – no Fórum Nacional de Educação, recomposto. Isso mostra como a participação social precisa ser fortalecida e institucionalizada, para garantir políticas melhores para a educação”, resume Andressa Pellanda, coordenadora-geral da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação.

Mas o caminho não será trilhado sem desafios, já que a atual composição do Congresso é bastante conservadora, e que os setores empresariais e de interesses privatistas na Educação também estarão pressionando para que suas agendas sejam contempladas. Ou seja, a disputa está posta. Por isso o professor Sérgio Stoco, também membro do FNE, reforça a necessidade da articulação social e política para que quem se opõe ao NEM consiga pressionar o Congresso e fazer valer sua voz. “É preciso que o governo não tenha dúvida que a única coisa que deve fazer é revogar a 13.415”. Para o professor, revogar significa voltar à legislação anterior para que se possa, sem afobação, construir os novos mecanismos para uma nova política para o Ensino Médio. “O ideal é revogarmos a 13.415 e já encaminharmos outros pontos para avançarmos, porque não dá para fazer tudo agora. Para ter um novo Ensino Médio precisa ter um novo PNE, um SNE, que não vão sair agora. E temos que, primordialmente, ter o Custo Aluno Qualidade. Só com todas as escolas e todos os professores com estruturas e condições podemos pensar em reforma”. 

A Coordenadora-Geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, está otimista com os próximos passos. Pois se é verdade que o Congresso Nacional pode levar questões retrógradas ao texto, “ele também reage a pressões da sociedade, em que já avançamos e já estamos com o recado dado sobre o NEM”. A própria volta ao Congresso mostra que a mobilização já está surtindo efeito. 

*Nome alterado para preservar a identidade da docente


Descumprimento do PNE afeta mais as juventudes negras, indígenas e periféricas e aumenta a urgência da construção de um novo Plano

Com poucos avanços em uma década, desafio é construir novo PNE que diminua desigualdades e não deixe ninguém para trás

Crédito: Fernando Frazão / Agência Brasil

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira 

O Brasil de 2023 é bem diferente do Brasil de 2014, quando entrou em vigor o atual Plano Nacional de Educação (PNE). Mas passada quase uma década, foram poucos os avanços na Educação brasileira: quase 90% dos dispositivos e metas do PNE não vão ser alcançados até o final do prazo, segundo o último balanço da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, prejudicando especialmente a população negra, indígena e dos estados do Norte do país. E não apenas os avanços não são suficientes como mais da metade das metas estão em retrocesso. Este cenário torna mais urgente a construção de um novo Plano que permita superar desigualdades históricas e que seja, de fato, implementado. 

O que é o PNE

O Plano Nacional de Educação (PNE, Lei 13.005/14) é a mais importante política educacional brasileira, fruto de anos de debates com intensa participação social. Aprovado em 2014 após acirrada tramitação no Congresso, foi uma vitória da sociedade civil e dos movimentos sociais da área da Educação, sublinhando a importância do planejamento educacional, orientando o investimento e a gestão, além de referenciar o controle social e a participação cidadã.

O atual PNE tem 20 metas e 254 estratégias a serem cumpridas até junho de 2024. Essas metas dispõem sobre acesso e permanência desde a creche até a pós-graduação, mas também abarcam temas como participação social, valorização de profissionais da educação, combate às desigualdades educacionais e financiamento da educação. O PNE é uma política pública e seu cumprimento deve se dar independente de quem está no governo ou do contexto social, político ou econômico. 

Como está sua implementação

O PNE começou a ser esvaziado já em 2015, um ano após sua aprovação, por medidas de ajuste fiscal do segundo governo Dilma. Em 2016, a Emenda Constitucional 95 (EC 95, ou o “Teto de Gastos”) foi aprovada, constitucionalizando cortes orçamentários por 20 anos e inviabilizando de vez qualquer progresso real, já que sem novos recursos é impossível cumprir várias das metas do PNE (por exemplo, aumentar matrículas em diferentes etapas). Fora a meta 20, que prevê a ampliação do investimento público em educação pública e que, se não é cumprida, afeta todas as outras. 

Depois veio o governo Bolsonaro, que nunca norteou a política educacional pelo PNE. Ao contrário, sua gestão aprofundou as políticas de austeridade que inviabilizam o cumprimento do plano e dificultou de diversas maneiras a participação social, a gestão democrática, a transparência e o acesso a dados. Além do subfinanciamento da Educação que inviabiliza o PNE como um todo, em seu governo avançaram medidas que o impactam negativamente, como a Reforma do Ensino Médio. Outro fator de impacto negativo no PNE foi a pandemia, que interrompeu alguns avanços, como o acesso e permanência no Ensino Fundamental. Agora, na avaliação de Marcele Frossard, assessora de programas e políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, embora o novo governo esteja mais permeável à reconstrução e reorganização de políticas sociais, ainda há dificuldades em relação ao cumprimento do orçamento para a Educação

Todos os anos, a Campanha faz um monitoramento do cumprimento de todas as metas e estratégias do PNE, com resultados cada vez mais preocupantes. Em 2023, o balanço verificou que 13 das 20 metas estão em retrocesso e que mais de 90% dos objetivos não serão cumpridos a tempo. “Até metas que estavam estagnadas ou que caminhavam de alguma maneira passaram ao retrocesso no governo Bolsonaro”, destaca Marcelle. Fora as várias metas que não podem ser totalmente avaliadas porque não há informações públicas atualizadas (há lacuna de dados em cerca de 35% dos dispositivos). A Campanha classifica 3 metas como parcialmente cumpridas, mas entende que elas já estavam avançadas em 2014 e que não há, portanto, exatamente um progresso. 

As metas em retrocesso referem-se a: universalização do atendimento à Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio; oferta da Educação em tempo integral na educação básica; erradicação do analfabetismo; valorização dos profissionais do magistério; acesso ao Ensino Superior; e ampliação do investimento público na educação. 

Ao olhar os dados mais de perto fica evidente que o descumprimento não afeta todos os grupos igualmente. Populações indígenas e quilombolas, do campo, bem como estudantes negras e negros e de estados do Norte e Nordeste têm os piores índices educacionais. Ou seja, a educação brasileira continua profundamente desigual.

Um exemplo é a Meta 12 que se refere às matrículas na Educação Superior, especialmente entre a população de 18 a 24 anos. Os dados evidenciam que as desigualdades entre os mais ricos e os mais pobres persistem, bem como as desigualdades regionais (a taxa de matrícula no Nordeste é quase 20 pontos abaixo da do Sudeste). Essa foi uma meta que piorou na pandemia, quando diminuiu o percentual de pessoas de 18-24 anos que frequentam ou já concluíram cursos de graduação – e persistiu a desigualdade étnico-racial: pretos e pardos acessam a graduação em proporção aproximadamente 50% menor do que a população branca. Ainda,  a expansão das matrículas tem se dado de forma excessivamente concentrada na rede privada, o que também se agravou durante a pandemia.

Quais são os pontos mais problemáticos?

Tudo é preocupante em um cenário de descumprimento generalizado, mas podemos resumir a causa e a consequência: boa parte do PNE foi e é inviabilizado pela falta de investimento público em educação, e o resultado do descumprimento do Plano é o agravamento das muitas desigualdades sociais e educacionais. 

Para Marcelle Frossard, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o cenário não é negligência ou descaso, mas sim “uma escolha política de onde investir ou não e quais áreas são prioritárias”. Opinião compartilhada pela professora Analise da Silva, da UFMG, que diz que o Brasil faz “políticas públicas a conta gotas”, sem real desejo de incorporar a população negra na cidadania, e pelo professor Eduardo Januario, da Faculdade de Educação da USP, para quem as discussões sobre o combate às desigualdades, especialmente as étnico-raciais, ainda estão longe do chão da escola

A falta de investimento deveria ter sido sanada pela Meta 20, que prevê ampliar o investimento público em Educação pública de forma a atingir no mínimo 10% do PIB ao final do decênio. No entanto, hoje o investimento não passa de cerca de 5% do PIB – metade do nível desejado e estabelecido em lei. “Isso, é preciso lembrar, vem desde 1995, no governo Fernando Henrique Cardoso”, lembra Januário, especialista na área de financiamento educacional. “Mesmo quando, no governo Lula, conseguimos concordar na meta de 10%, não conseguimos colocar em prática”. Para o professor, é inconcebível falar de qualquer avanço em PNE e em combate a desigualdades sem caminhar para um financiamento mais robusto. “E o MEC precisa assegurar que as verbas destinadas ao financiamento educacional sejam cumpridas”, acrescenta. Na mesma linha, ele defende ser impossível pensar no PNE e, mais especificamente, na ampliação do Ensino Médio sem investimento maciço na etapa – o que o Novo Ensino Médio não se propõe a fazer. 

O descumprimento das metas do PNE agrava as desigualdades existentes por conta da ausência ou abandono de políticas específicas para combater essas desigualdades. No caso da Educação Integral (EI) e da Educação de Jovens e Adultos (EJA) o cenário foi especialmente dramático: O Mais Educação, de EI, foi descontinuado, e a EJA foi completamente desfinanciada, tendo em 2022 um orçamento que representava apenas 0.44% do orçamento de 2012. 

A EJA abarca uma população (majoritariamente negra) que, por inúmeros motivos, não pôde iniciar ou concluir a Educação Básica. No PNE, as metas 8 e 9 se referem à situação da EJA e das desigualdades e, não por acaso, mostram um cenário desastroso. Em 2022, a Meta 8, focada em reduzir desigualdades, apresentou retrocesso pela primeira vez. A escolaridade média do Nordeste e da população na zona rural caiu, e as populações negra e não-negra continuam com índices inaceitavelmente desiguais (a população negra de 18 a 29 anos tem cerca de 91% da escolaridade da população branca da mesma faixa etária) . Já a meta 9 mostra que o analfabetismo funcional avançou quando deveria ter regredido (era 27.1% em 2014 e agora está em 29.4%, quando deveria estar em cerca de 15%). Ainda, o analfabetismo absoluto é um problema especialmente importante no Nordeste, embora todos os estados da região tenham progredido a níveis acima da média nacional.

Analise da Silva, professora da Faculdade de Educação da UFMG e especialista em EJA, classifica o cenário brasileiro como deprimente. Ela reforça, por exemplo, o vácuo para adolescentes e jovens que têm direito à EJA. “Se o problema fosse apenas o Ensino Médio seria menos pior, mas não temos nem mesmo a alfabetização garantida”, diz. A professora reforça que a ideia de que a Educação de Jovens e Adultos atinge apenas adultos e idosos não é verdadeira – ela deveria abarcar também os jovens que iniciaram a escolarização mas que estão muito longe do chamado “período ideal”. Para ela, esse grupo está abandonado pelo poder público – basta lembrar que a EJA viu o encolhimento de vagas nos últimos anos.

Marcelle Frossard enfatiza que o PNE reverbera as desigualdades sociais, econômicas e populacionais existentes no país. Nesse contexto, destaca ela, a região Norte também merece atenção. “É uma região reconhecida pela forte presença de populações de comunidades tradicionais, povos indígenas e quilombolas, além de questões migratórias. No entanto, ainda faltam muitas informações sobre essas realidades. É uma região com muitas especificidades, o que exige participação conjunta para uma educação contextualizada que é direito dessas populações”. 

E o próximo PNE?

O atual PNE deixa de valer em junho de 2024. Isso significa que um novo projeto para substituí-lo já deveria ter sido enviado para análise do Legislativo em junho deste ano, o que ainda não ocorreu. No momento, os Fóruns, Conselhos e Secretarias de Educação se organizam para a realização da CONAE 2024 que terá como tema “Plano Nacional de Educação (2024-2034): Política de Estado para a garantia de educação como direito humano, com justiça social e desenvolvimento socioambiental sustentável”. As etapas municipais e estaduais estão previstas para ocorrer no segundo semestre de 2023 e a nacional no início de 2024. 

São muitas as tarefas: não apenas construir um novo PNE que responda à altura os desafios da educação brasileira, como construí-lo em um prazo apertado garantindo as vozes da sociedade e das comunidades escolares. “O novo PNE, para ser novo, tem que vir associado à revogação do NEM, à construção de outro Ensino Médio, e não pode ser produzido a toque de caixa sem refletir os interesses da sociedade e das comunidades escolares”, defende Marcele Frossard, assessora de programa e políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. 

Além disso, a promulgação de um novo Plano é só o começo do processo, já que a implementação e o cumprimento das metas têm se mostrado a etapa mais desafiadora dos últimos anos, especialmente em relação ao financiamento educacional. “É comum que o Estado brasileiro incorpore objetivos na lei, mas não os execute de fato. Foi o caso do atual PNE, um Plano que avançou ao incorporar novas perspectivas de combate às desigualdades, mas que não conseguiu avançar no cumprimento dessas metas”, argumenta o professor Eduardo Januário, que defende que o próximo PNE precisa seguir almejando os objetivos ainda não alcançados. “Como criar novas metas sem cumprir as que não foram cumpridas?”, questiona, acrescentando que “não há outra possibilidade senão insistir na destinação de 10% do valor do PIB para a Educação, senão insistir nas discussões de financiamento e equidade”. Para Januário, igualmente importante é garantir o fortalecimento das instâncias de participação social, como Conselhos e Fóruns Municipais e estaduais de Educação, justamente por serem agentes chave no monitoramento das metas. 

Na mesma linha, a professora da UFMG Analise da Silva defende que se as novas metas precisam ser as mesmas ou no mínimo parecidas com as atuais, dado o estado de descumprimento do Plano, as táticas e estratégias de monitoramento e pressão social precisam ser mais ousadas. Ela destaca o contexto extremamente adverso para o cumprimento do Plano, pois é preciso vontade política para “efetivar a EJA como ação afirmativa que seja garantidora do rompimento das desigualdades sociais e para um novo PNE que leve em consideração sujeitos que o Estado brasileiro invisibiliza desde 1500”. “Não podemos ficar parados esperando a política pública”, reforça Analise. 

A falta de compromisso político com o atual PNE nos desafia a aprimorar as formas de participação e de controle social das políticas educacionais para que governos se comprometam com a implementação e com o fortalecimento de Políticas de Estado. Não resta dúvida que, se queremos imaginar e realizar um outro horizonte para a Educação brasileira, é preciso construir o próximo PNE com ampla participação popular, principalmente das comunidades escolares e das/os jovens estudantes e com a garantia de um financiamento adequado, incluindo 10% do PIB, a regulamentação do Custo Aluno Qualidade (CAQ) e de um Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SINAEB) que garanta equidade na distribuição dos recursos. Não há mais tempo a perder.





Novo arcabouço fiscal pode diminuir repasses para Universidades e Institutos Federais de Educação, além da merenda, transporte e livros didáticos

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

Jovens do Edital Em Luta: estudantes por um Ensino Médio de qualidade!

O Congresso brasileiro está analisando o projeto de lei complementar (PLP) 93/2023, o arcabouço fiscal, que nada mais é do que as novas regras de gastos do dinheiro público. A proposta foi enviada pelo Executivo e, após tramitação e aprovação na Câmara e no Senado, vai para sanção presidencial. Como o arcabouço fiscal dita as regras dos gastos públicos inclusive em áreas sociais, impacta diretamente a educação e seu financiamento e pode afetar estudantes desde a creche ao ensino superior. Por isso, é tão importante monitorar este projeto e pressionar para que seu desenho esteja sintonizado com as metas do Plano Nacional de Educação (PNE) que, às vésperas do final de sua vigência, tem uma taxa de descumprimento de 90% de acordo com o último balanço da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Qual a diferença entre arcabouço fiscal e Teto de Gastos (EC 95)?

O novo arcabouço fiscal é um projeto para substituir a Emenda Constitucional 95 (EC 95, que ficou conhecida como o Teto de Gastos), promulgada em 2016. Ou seja, a EC 95 deixará de valer quando o novo arcabouço for aprovado, o que é uma boa notícia para as áreas sociais, já que o Teto congelou os gastos públicos por 20 anos. Segundo a EC 95, os gastos em áreas como saúde e educação só podem subir de acordo com a inflação, não havendo nenhum aumento real no investimento. O governo Bolsonaro descumpriu muitas vezes o Teto de Gastos, mas nunca para investir nas áreas sociais. O arcabouço fiscal proposto pela nova gestão prevê que as despesas podem sim aumentar além da inflação, mas que este aumento deve ser compatível com o aumento do que é arrecadado pelo governo. Ou seja, ainda impõe um limite, mas é mais flexível. 

Uma diferença importante é que o Teto de Gastos em vigor é uma Emenda Constitucional e o novo arcabouço fiscal, se aprovado, será uma lei complementar. Ou seja, a EC 95 está na Constituição, e portanto tem muito peso e preponderância sobre outras leis. Já as leis complementares não estão na Constituição, mas devem obedecê-la. Isso significa que qualquer que seja o desenho do arcabouço fiscal, ele precisa cumprir todas as obrigações constitucionais. Por exemplo, a União deve sempre repassar para a Educação no mínimo 18% do que foi arrecadado em impostos. Com o modelo do Teto de Gastos de 2016 isso podia ser burlado, porque a EC 95 partia de um valor de investimento inicial (do ano que foi promulgada) e autorizava apenas a correção da inflação desse mesmo valor.

O que diz o arcabouço fiscal?

O mecanismo básico da proposta enviada pelo governo Lula é que o crescimento das despesas deve se limitar a 70% do crescimento da arrecadação. Por exemplo, se o governo arrecada R$ 1 trilhão, pode gastar até 70% disso, ou 700 bilhões de reais. Há também um mecanismo para que épocas de maior ou menor arrecadação tenham também limites de gastos diferentes (saiba mais sobre o arcabouço fiscal aqui). 

A proposta original do novo arcabouço fiscal, enviada pelo Executivo, abria exceções para os gastos instituídos na Constituição, como o piso nacional da enfermagem e o Fundeb, principal mecanismo de financiamento da educação pública brasileira e que foi incorporado à Constituição em 2020. A Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos, de 2016) também abria uma exceção para o Fundeb. 

No entanto, o projeto do arcabouço fiscal está sofrendo alterações durante sua tramitação no Congresso Nacional. A exceção para o Fundeb, assim como a garantia dos pisos constitucionais para educação e saúde, ainda são pontos de disputa. 

Como está a tramitação do arcabouço fiscal? Ele será aprovado?  

O PLP 93/2023 do arcabouço fiscal está sob análise no Congresso. Na Câmara, sofreu alterações, como a inclusão do Fundeb dentro de seu escopo. As mudanças foram aprovadas pela casa e o projeto foi então encaminhado ao Senado que retirou as despesas da União com o Fundeb. 

Agora o projeto volta para a Câmara dos Deputados. Quando o Congresso chegar a um acordo sobre o texto, ele vai para a sanção presidencial – etapa em que também pode ser modificado. Por exemplo, ter trechos vetados. 

Como o novo arcabouço fiscal vai guiar os investimentos do novo governo, há pressa para sua aprovação. Ele está tramitando no Legislativo em regime de urgência, o que significa uma tramitação simplificada e mais acelerada. 

IMPACTOS DO ARCABOUÇO FISCAL NA EDUCAÇÃO

A Educação é uma área que tem sofrido muito com cortes orçamentários na última década. Revogar a EC 95 é o que entidades e movimentos comprometidos com a educação pública e de qualidade vêm demandando desde 2016, mas discutir a proposta substituta é igualmente importante, para que o resultado não seja igualmente prejudicial para a Educação. E o desenho do novo arcabouço fiscal segue tendo problemas e armadilhas a longo prazo. 

Quando o Fundeb foi incorporado no texto do relator da Câmara, o deputado Cláudio Cajado (PP-BA), em maio, causou muita preocupação, já que o fundo é o principal mecanismo de financiamento da Educação básica brasileira. Mas também entraram no arcabouço os mínimos constitucionais da educação e da saúde. Essas adições foram severamente criticadas por parlamentares, entidades da Educação, como a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e comunidades escolares. “O relatório piora ainda mais o programa de Temer e amplia a dificuldade de investimentos no ensino público e a execução do Plano Nacional de Educação (PNE)”, disse a CNTE em comunicado sobre o tema.

Por que a inclusão do Fundeb no arcabouço fiscal impacta a Educação? Quais os impactos? 

O Fundeb é um fundo composto por recursos dos municípios, estados e da União. É uma obrigação constitucional e é de onde vem boa parte dos recursos que financiam a educação básica do país, que hoje atende cerca de 50 milhões de estudantes. Em 2020, quando se discutiu um novo modelo de Fundeb, foi aprovado que o governo federal iria, de maneira gradual, contribuir com cada vez mais recursos, diminuindo assim o peso para estados e municípios, que arrecadam menos. É o que chamamos de “complementação da União”, que deve chegar a 23% em 2026. 

O grande e principal problema do Fundeb ser incluído no arcabouço fiscal é que, por ser um repasse obrigatório e de uma quantia significativa, pode diminuir o que sobra para outras despesas, principalmente aqueles investimentos que não são obrigatórios, como programas de transporte escolar, merenda ou livro didático. Programas que afetam majoritariamente as e os estudantes mais pobres. Foi justamente com o argumento de que o Fundeb é uma contribuição obrigatória que o deputado Claudio Cajado justificou a inclusão do fundo no arcabouço, mas a Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados e os especialistas em financiamento ouvidos para esta reportagem alertam que a medida é mesmo uma ameaça ao aumento do investimento em educação. 

Se o novo arcabouço incluir o Fundeb, o governo federal teria no mínimo duas grandes obrigações: permaneceria obrigado a cumprir os mínimos constitucionais para Educação e saúde – ou seja, de investir [na Educação] no mínimo 18% de tudo que é arrecadado – ; e teria de arcar com a complementação de 23% ao Fundeb. “O que as análises têm mostrado é que é muito provável que manter esses compromissos afete outras despesas, tanto da Educação quanto de outras áreas sociais”, resume Nalu Farenzena, da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca). E mesmo o Fundeb, apesar de ser protegido constitucionalmente, pode ser afetado, já que a complementação de 23% por parte da União é um valor mínimo, e não fixo ou máximo. Ou seja, se o fundo permanece dentro da nova regra fiscal, é muito improvável que a União repasse para ele mais do que o mínimo obrigatório, já que existem outras despesas em Educação. 

Além dessas duas grandes obrigações, a União também precisa pagar todas as trabalhadoras e trabalhadores da administração pública federal da área da educação, como as/os profissionais que atuam nas universidades e institutos federais. E há as despesas não obrigatórias (também chamadas de discricionárias), que incluem programas de alfabetização, alimentação escolar, livros didáticos, transporte escolar, entre outros. “É onde entra a assistência estudantil, os recursos para a manutenção cotidiana das instituições, e que já foram duramente afetados no governo anterior por conta do Teto de Gastos”, explica Nalu. Estes recursos, segundo ela, ficariam pressionados, limitando a possibilidade de serem expandidos. “Ou seja, [a inclusão do Fundeb] compromete como um todo a agenda redistributiva, o que inclui a educação. Não é o Fundeb que está sob ataque, mas todo o setor público federal”, nas palavras de Nalu Farenzena. 

Salomão Ximenes, Professor de Direito e Políticas Públicas da UFABC e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU), destaca também que as universidades e Institutos Federais, que são responsabilidade da União, podem ser muito impactados pela inclusão do Fundeb no mesmo bolo de recursos. “Os institutos são a principal e a melhor experiência que temos de rede pública gratuita de ensino médio de qualidade e integrado à educação profissional. Nossa grande expectativa, inclusive pelo plano de governo do presidente Lula, é que essa rede fosse ampliada. Isso sim mereceria um nome de reforma do ensino médio”, diz. “Mas a inclusão do Fundeb no arcabouço inviabiliza muito rapidamente qualquer margem orçamentária para pensar a ampliação da presença da União no ensino médio profissionalizante”, resume. 

 Para Guelda Andrade, secretária de assuntos educacionais da CNTE, é preciso um olhar progressista na construção de um necessário ajuste fiscal para que ele reflita o projeto de uma nação soberana. “O Brasil tem esse potencial, mas para isso é preciso investir em educação, e investir em educação é também tirar o Fundeb do arcabouço. Ainda estamos construindo um debate sobre democratizar o acesso a educação básica, além da permanência e da qualidade”, ressalta. Ela destaca que a inclusão do Fundeb no arcabouço pode impactar também a valorização das e dos profissionais de educação, pois são necessários mais recursos para construção de planos de carreira. 

É verdade que, sob o desenho do novo arcabouço fiscal, os recursos aumentam (e consequentemente os investimentos também) em épocas de aumento na arrecadação, mas como Nalu Farenzena destaca, “isso é um cenário incerto e não é uma política estratégica de priorização da educação”, porque cria uma dependência das receitas aumentarem para que se possa aumentar os investimentos em Educação. “Não é uma política efetiva de longo prazo do Estado”, resume. E isso afeta ainda mais negativamente o atual e o novo Plano Nacional de Educação (PNE) – que deve ser construído por meio de processos participativos liderados pelo Fórum Nacional de Educação (FNE). 

“Não basta só construir um plano, é preciso pensar estratégias de financiamento para que ele seja exequível, para que consigamos executar as metas que tanto desejamos”, reforça Guelda Andrade, que diz que o Fórum Nacional de Educação está “correndo contra o tempo” para avançar nessa discussão, já que o PNE determina as diretrizes do país para a educação na próxima década. 

E sem o Fundeb, o arcabouço fiscal ainda é ruim para a Educação?

Para Salomão Ximenes, sim. O professor da UFABC e membro da REPU destaca que o novo arcabouço fiscal pode levar a uma alteração regressiva na legislação daqui alguns anos. Isso basicamente porque o texto aprovado até o momento acaba agregando regras diferentes de crescimento de gastos em educação. Assim, uma delas teria que se ajustar. 

As duas regras diferentes são as seguintes: a vinculação mínima constitucional e a própria regra do arcabouço fiscal. A vinculação mínima exige que no mínimo 18% do total arrecadado em impostos vá para a educação, e permite que esse valor cresça 100% de um ano para o outro. Ou seja, se as receitas crescem 100%, a destinação também cresce. Já o arcabouço fiscal, como vimos, limita esse crescimento a 70%. É como se fossem dois carros em uma mesma pista, mas a velocidades diferentes – em algum momento o carro a 100 km/h vai colidir com o que vai a 70. “O principal risco geral do arcabouço é que ele até agora não está prevendo uma regra de adaptação entre esses dois sistemas. Então mesmo que seja aprovado sem o Fundeb, há conflito”, explica. Este conflito não é direto – porque há uma hierarquia a ser cumprida: se um dispositivo é Constitucional, a lei complementar não pode descumprí-lo -, mas acaba sendo um conflito de objetivos. São dois carros que vão se chocar – não por falhas mecânicas, mas pelas velocidades diferentes. Para que não se choquem, o carro que vai mais rápido (100% de crescimento) precisaria se ajustar à velocidade do outro (70% de crescimento). 

“Isso obrigatoriamente traz a necessidade de revisar os repasses mínimos para saúde e educação”, resume Salomão. Se não, para não descumprir a Constituição, todo o recurso arrecadado no país teria que ser destinado apenas para essas áreas. “Ou seja, é possível que este arcabouço esteja encomendando o fim da vinculação como conhecemos”. Seria um “cavalo de troia” embutido no atual projeto. “Mas um cavalo de troia de cabeça para baixo, é uma lei complementar que poderia obrigar uma mudança na Constituição”, ressalta. E essa mudança, na prática, daria menos prioridade orçamentária para saúde e educação, além do possível efeito cascata que isso se reproduza também a nível de estados e municípios. 

Com esse horizonte em vista, é preciso pressionar ainda mais as e os parlamentares e o Executivo e mobilizar as comunidades escolares, jovens e seus coletivos para o debate sobre como a economia impacta a qualidade da escola e das políticas educacionais. O aumento das desigualdades educacionais certamente será o maior impacto da aprovação de um arcabouço fiscal que coloca em risco investimentos essenciais para o avanço, por exemplo, de institutos e universidades federais, alimentação e transporte escolar.