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Supressão do termo “gênero” no atual PNE fomentou censura e perseguição nas escolas

Compreendidas como centrais para promover a democracia, as agendas de gênero, raça e sexualidade devem constar no novo PNE como forma de combater a violência

Divulgação/UBES

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

Dez anos atrás, na fase final da tramitação do atual Plano Nacional de Educação (PNE), uma alteração causou espanto e indignação: todas as menções a “gênero” foram suprimidas do texto. A exclusão do termo, capitaneada por setores conservadores, alterou um texto que vinha sendo construído há anos, com intensa participação social e através de diversas conferências de educação. Esse movimento impactou as discussões escolares nos anos seguintes sobre gênero, raça e outras formas de discriminação. Foram anos até o Judiciário reassegurar a legitimidade de tais debates no ambiente escolar, período em que docentes sofreram perseguições e viram suas condições de trabalho declinarem.

Às vésperas da tramitação do novo Plano Nacional de Educação, a sociedade civil agora age para garantir um PNE sem retrocessos, com ousadia e que reafirme o direito de profissionais da educação e estudantes discutirem  gênero, raça e sexualidade na escola.

Supressão do “gênero”: expressão de um movimento em curso

O texto que chegou à Câmara em 2014 expressava, em seu art. 2º, inciso III, que o PNE tinha como diretriz “a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”. A disputa legislativa sobre a explicitação dessas agendas, especialmente de gênero e diversidade sexual, foi longa e intensa, e no fim prevaleceu uma versão do texto que retirava essas ênfases. Entre os principais opositores do “gênero” (e de uma suposta “ideologia de gênero”) estavam grupos católicos, evangélicos e formações seculares como o Movimento Escola sem Partido.

“Estávamos conscientes do contexto extremamente adverso, marcado pelo crescimento da força política de setores fundamentalistas religiosos como parte do fenômeno de renovação de extrema-direita. Vínhamos enfrentando o avanço desse movimento na educação desde 2009, mas a maioria de nós não esperava a derrota naquela última etapa da tramitação, que revelou uma grande capacidade de articulação desses setores”, relembra Denise Carreira, professora da Faculdade de Educação da USP, fundadora da Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação e uma das lideranças do campo educacional que defendia a inclusão das agendas de gênero, raça e diversidade sexual.  “Vínhamos do processo das Conferências Nacionais de Educação que trouxeram proposições muito assertivas na perspectiva de fortalecimento de uma política educacional comprometida com essas agendas. Num primeiro momento, a derrota foi um baque. Depois compreendemos que a abrangência dessa derrota não era tão grande assim como a extrema-direita queria fazer entender”, avalia.

A lei que entrou em vigor expressa apenas a necessidade da “erradicação de todas as formas de discriminação”. Um “conteúdo genérico, suficientemente inclusivo”, nas palavras dos pesquisadores Salomão Ximenes, Fernanda Vick e Márcio Alan Menezes Moreira em capítulo do livro GÊNERO E EDUCAÇÃO: ofensivas reacionárias, resistências democráticas e anúncios pelo direito humano à educação. Salomão, no entanto, enfatiza que isso não significa que a mudança foi banal. Comparando as versões que circularam na Câmara e no Senado, ele ressalta que, além da retirada da menção a discriminações específicas, houve também alteração no inciso 5o. O texto aprovado diz ser uma diretriz do PNE a “formação para o trabalho e para a cidadania, com ênfase nos valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade”. Segundo o professor de Direito e Políticas Educacionais da UFABC, essa redação contém “uma afirmação de que a sociedade se fundamenta em uma única moral pública, o que é uma visão típica do conservadorismo,. A visão democrática presente na Constituição Federal na verdade afirma que a sociedade é baseada em uma pluralidade de concepções que devem conviver e que são igualmente aceitáveis desde que não violem direitos humanos”, completa.

Por outro lado, como lembra Salomão, a supressão do “gênero” e da diversidade sexual no PNE não eliminou o dever do Estado de atuar ativamente contra essas discriminações e desigualdades, já previstas em outras normativas. E nem proibiu a abordagem desses temas, como foi propagado pelos setores conservadores. “A supressão a essas menções no PNE é parte de uma estratégia mais ampla de ataque ao caráter público da educação, às conquistas recentes dos movimentos feministas, negros, LGBT+. Ela só pode ser lida como reação ao processo de democratização da educação, como o ponto mais visível da estratégia que era desenvolvida naquele momento mas que ganhou muito mais destaque nos anos seguintes”, defende.

Na mesma linha Sonia Corrêa e Marco Aurélio Máximo Prado enfatizam, no livro Gênero e Educação, que a educação foi o primeiro alvo robusto das “cruzadas antigênero” que permeariam vários outros setores da sociedade brasileira – e que ocorreram simultaneamente em outros países. No Brasil foram mais de cem projetos de lei proibindo “gênero e/ou ideologia na educação” desde a disputa no PNE.

Saiba mais sobre as ofensivas antigênero na educação no livro GÊNERO E EDUCAÇÃO: ofensivas reacionárias, resistências democráticas e anúncios pelo direito humano à educação”. O download é gratuito.

Impactos da exclusão do “gênero” no PNE: variação regional e debates ameaçados

O fato do Plano Nacional de Educação não mencionar várias discriminações de forma explícita deu brecha para que planos estaduais e municipais de educação aprovados nos anos seguintes também não o fizessem. Apesar disso, a maior parte das unidades federativas ainda assegurou (em níveis diferentes) o combate a essas discriminações e a abordagem desses temas. Segundo levantamento de Claudia Vianna e Alexandre Bortolini, docentes da USP, mais da metade dos 25 planos estaduais aprovados no país inseriu questões relativas à agenda das mulheres sob uma perspectiva de gênero e quase um terço expressam clareza de que a garantia de acesso e permanência com qualidade passa pelo enfrentamento das desigualdades de gênero. No entanto, vários planos refletem o avanço de pautas conservadoras com a exclusão do gênero, corte ou limitação da agenda LGBT+ e inserção de itens que submetem a abordagem destes temas à concordância das famílias. O exemplo mais extremo é o plano do Ceará, que “impede, sob quaisquer pretextos, a utilização de ideologia de gênero na educação estadual”.

Fonte: artigo “Discurso antigênero e agendas feministas e LGBT nos planos estaduais de educação: tensões e disputas”, disponível em:  https://www.revistas.usp.br/ep/article/view/187136/172900

Na falta de diretriz nacional e em um contexto de crescente conservadorismo e guerra ao “gênero”, muitos municípios também tentaram, em seus planos locais de educação, reproduzir o veto. Essas decisões – muitas acompanhadas de perto pela Iniciativa De Olho nos Planos, como as dos municípios de Cascavel/PR, Ipatinga/MG, Foz do Iguaçu/PR, Nova Gama/GO, Farroupilha/RS, Ipê/RS, Teresina/PI, Recife/PE, Palmas/TO, Santa Bárbara d’Oeste/SP, Viçosa/MG, Varginha/MG, Paranaguá/PR e Mossoró/RN – começaram a ser derrotadas em 2020, quando diversas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) reforçaram que a proibição da abordagem de “gênero” é inconstitucional e que na verdade é um dever do Estado trabalhar para combater todas as discriminações e para reforçar a cultura de paz e a igualdade. Essas decisões só chegaram ao STF após uma grande articulação de entidades da sociedade civil comprometidas com uma educação que combata as discriminações.

Mas a exclusão do “gênero” no PNE teve efeitos no cotidiano escolar também por ter sido instrumentalizada pelos setores conservadores. Como elenca Denise Carreira, professora da Faculdade de Educação da USP, a derrota foi utilizada “na estratégia de desinformação em massa da população, de estímulo à perseguição sistemática de professoras, estudantes e ativistas e foi base de proposições de projetos de leis antigênero municipais; além dos ataques à agenda de gênero e raça nos planos municipais e estaduais de educação”.

Cássia Souza, pedagoga que atua nos municípios de Recife e Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, sentiu isso na pele. Coordenadora de programas do Centro das Mulheres do Cabo (CMC) e parte da rede de ativistas do Fundo Malala, ela não esquece que a derrota legislativa fomentou uma cultura de censura e perseguição: “Na época, eu realizava um projeto sobre direitos sexuais e reprodutivos das meninas, e a retirada deu margem para o fundamentalismo nos proibir de falar de gênero na escola. Sofremos muita repressão, saímos até no jornal local, com uma vereadora dizendo que estimulávamos as adolescentes a fazer sexo”, relembra. Foram necessárias formações com a comunidade escolar para continuar com o projeto, e relembrar a necessidade de discutir abuso e exploração sexual foi chave para prosseguir com o trabalho. “Não podíamos usar a palavra “gênero” para não perder aquele espaço, mas ainda conseguíamos trabalhar na sala de aula, éramos como ‘agentes secretas do gênero”, brinca.

Em ambos os municípios, as discussões sobre gênero não estavam contempladas nos Planos Municipais de Educação, e em Cabo de Santo Agostinho uma portaria chegou a ser publicada prevendo sanções administrativas a docentes que trabalhassem o tema “gênero” nas escolas. Ou seja, houve uma criminalização da agenda. “Nós dávamos aula com medo de dar aula”, resume Cássia. Por isso, reforça ela, a inclusão dos temas nos Planos teria dado mais segurança para o trabalho do dia a dia, apesar de não significar uma mudança imediata de cultura. “Não tenho essa ilusão, mas garantir gênero na lei faz com que a gente não seja criminalizado por trabalhá-lo na escola, além de definir as formas de trabalhar com o tema”

É hora de fazer diferente

Para que essa situação não se repita, é preciso garantir que o próximo PNE – e os planos estaduais e municipais – contemplem as agendas de gênero, raça e diversidade sexual. Nesse contexto, a Ação Educativa lançou a campanha #FiqueDeOlho: para combater a violência, gênero nos Planos já!. Com materiais físicos e digitais, a campanha reforça que garantir igualdade de gênero nos Planos é se comprometer com a melhoria da qualidade na educação, já que educação de qualidade é a que consegue incluir e acolher todas as pessoas.

E garantir igualdade de gênero é mais do que apenas adicionar uma palavra a um texto: é também uma forma de criar espaços de acolhimento e solidariedade nas escolas; de prevenir e combater o assédio, abuso sexual e violência doméstica; de discutir as desigualdades entre homens e mulheres; promover o direito das pessoas viverem livremente sua sexualidade, entre outros.

“A campanha parte do entendimento de que as agendas de gênero e raça promovem o pertencimento nas escolas, a proteção, a gestão democrática”, resume Marcelle Matias, educomunicadora e assistente da área de educação da Ação Educativa. Um dos focos da campanha é pautar a igualdade de gênero nas Conferências de Educação – que são parte da construção do novo PNE -, e outro foco é a mobilização juvenil que reuniu jovens em uma Conferência Livre na Ação Educativa como parte da CONAEE. “Jovens estudantes têm puxado essa agenda. Então a campanha também reforça o papel da juventude enquanto uma juventude ativista, que tem discutido gênero na escola de diferentes formas e que tem pouco a pouco ressignificado seu papel no espaço escolar”, reforça Marcelle.

Assegurar essas agendas nos planos de educação, no entanto, vai ser um desafio, já que o ultraconservadorismo segue forte no Congresso e fora dele. “Precisamos envolver toda a sociedade para fazer pressão no Senado e na Câmara, como fizemos na votação do Fundeb”, opina Cássia Souza, pedagoga e cientista social. “Em 2013, eles conseguiram convencer a população e fazer a pressão social para vetar o gênero, agora temos que ser nós”, defende ela.

Salomão Ximenes e Denise Carreira concordam que, passados anos de investidas ultraconservadoras e liberais na educação e na sociedade, o contexto atual é mais desafiador. Para Denise Carreira, professora da faculdade de Educação da USP, a composição do atual Congresso exige muita cautela para que o novo PNE não seja minimizado em suas metas e estratégias e ocupado por demandas de setores ultraconservadores e privatistas. “Temos que ficar vigilantes e articulados, participando ativamente do processo da Conferência Extraordinária Nacional de Educação, convocada pelo Fórum Nacional de Educação”. Ela, que frisa que mesmo nos contextos adversos surgiram muitas iniciativas positivas, reforça a urgência das agendas de gênero, raça e diversidade sexual pararem de ser vistas como “identitárias”. “É urgente que sejam compreendidas como eixos estruturais das desigualdades, sempre em articulação com renda, e centrais para a sustentação da democracia”, diz.

Na mesma linha, Salomão Ximenes, professor de Direito e Políticas Educacionais da UFABC, também alerta para o perigo do apagamento das agendas antidiscriminatórias. Em sua análise, uma forma de proteger docentes contra tentativas de censura, especialmente após anos de incursões antidemocráticas, é inserir essas agendas nos currículos. “Conseguir reconstruir essa agenda hoje significa respaldar o trabalho com direitos humanos nas escolas”, diz. “É importante lembrar que pela legislação nacional e internacional a educação tem um objetivo, que é promover a democracia e o respeito entre as pessoas, combater o racismo e as discriminações. Precisamos de mais respaldo institucional para poder trazer temáticas que são obrigação das escolas”, completa.

Que Ensino Médio queremos? Com a palavra, as/os jovens estudantes

Acesso ao Ensino Superior e escolha profissional, Infraestrutura e valorização das professoras, discussões sobre raça, gênero e sexualidade, senso crítico e participação estudantil estão entre as principais demandas das/os jovens 

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

Foto: formação projeto Tô No Rumo

Desde que se intensificou a luta pela revogação do Novo Ensino Médio (NEM), muito tem se discutido sobre o que seria um Ensino Médio de qualidade. Uma pergunta que pressupõe que não existe alternativa ao modelo em vigor desde 2017, imposto sem escuta de jovens estudantes e comunidades escolares. Mas não faltam pessoas propondo novos modelos e ideias para a etapa. E, igualmente importante, propondo que essa discussão seja feita coletivamente e não imposta de cima para baixo, e que as e os estudantes – sejam parte fundamental do processo. 

Raramente ouvidas/os, elas e eles sentem na pele os efeitos de uma reforma que precarizou ainda mais as redes públicas, aumentando o abismo dentro do sistema público mas também em relação à rede privada. Estudantes trabalhadoras e trabalhadores, cursando formação técnico-profissional, EJA ou do período noturno são particularmente penalizados. Diretamente afetados e sentindo seu futuro ameaçado pela Reforma, estudantes têm sim muitas propostas de como fazer diferente e onde. E a discussão sobre qualidade do Ensino Médio precisa incluí-los. 

Coletamos algumas dessas vozes nos últimos meses em atividades e formações do projeto Tô no Rumo, da Ação Educativa, em manifestações #RevogaNEM e no diálogo direto com jovens. Perguntados sobre que Ensino Médio querem, além da revogação do NEM e o fim dos itinerários formativos, alguns temas são mais prevalentes: que as escolas possam prepará-los melhor para o ENEM para que tenham melhores chances de ingressar em universidades públicas; debates e formação crítica sobre temas como política e democracia, além de saúde mental, gênero, raça, sexualidade, violências e discriminações; maior participação estudantil; escolas com melhor infraestrutura e que valorize docentes e todas as profissionais. 

Compartilhamos abaixo algumas das respostas e reflexões. 

Acesso ao Ensino Superior, escolha profissional e jovens trabalhadoras/es

As jovens e os jovens com quem conversamos compartilham uma frustração: a insegurança em prestar o ENEM e demais vestibulares. Além de serem sequestradas/os pelos chamados itinerários formativos, soma-se a isso, segundo elas/es, a falta de informações e de incentivo ao acesso ao Ensino Superior. E os problemas se agravam para estudantes que trabalham e do noturno, ainda mais afetadas/os pelo enxugamento da carga horária. 

Elas e eles sentem falta de uma escola que oriente questões mais amplas ou mais básicas, como o próprio processo de inscrição nos vestibulares, de isenção das taxas, de escolha de carreiras, a possibilidade de auxílio financeiro através do Prouni e do Fies. Uma educação que mostre mais possibilidades de futuro. 

“Queria que o Ensino Médio focasse nos alunos entrarem nas universidades públicas, porque é exatamente o que as escolas particulares fazem. Eu nunca tive um simulado da Fuvest, por exemplo. Se a gente soubesse que tem as mesmas oportunidades para entrar nas universidades públicas, seria uma motivação a mais. As feiras de profissões que eu fui, fui por conta própria, nunca foi a escola, porque o sistema quer mais é por a gente como operário, trabalhador. Acaba que para algumas pessoas [o acesso à universidade] é uma escada rolante, para outras é um muro que precisa ser escalado” (Esther, 3º ano do EM).

“Um bom Ensino Médio precisa melhorar a qualidade do ensino e realmente preparar os alunos para o vestibular. Eu achava que estava arrasando, mas quando prestei vi que não sabia o básico. Tem que melhorar, mas não só sobre o que cai no vestibular mas também informações sobre o próprio processo, sabe? Eu não sabia que algumas questões valiam mais, que eu podia entrar na USP com a minha nota do ENEM, não sabia muita coisa. Também seria legal uma orientação vocacional, porque saí da escola sem saber o que eu queria fazer na faculdade, não sinto que minha escola me ajudou (Carlos Eduardo, concluiu o Ensino Médio em 2022).

“O Ensino Médio que eu queria era com uma preparação baseada no perfil dos alunos. Por exemplo, os alunos do noturno em geral trabalham, a escola tem que se basear nisso. Nossa carga horária já é muito reduzida, vai ter aluno do terceiro ano que não sabe fazer uma redação, uma conta de divisão. Como ele vai continuar no emprego ou procurar uma oportunidade melhor se não tem a oportunidade de evoluir e aprender no lugar de evoluir e aprender, que é a escola? Hoje, marketing ocupa metade da minha grade, eu vou para a escola aprender a subir um vídeo no Youtube. Isso talvez funcionasse no ensino integral, mas não no noturno com carga horária reduzida. Quando eu confrontei o diretor da escola sobre isso, ouvi que a proposta era o aluno entrar no mercado de trabalho e não necessariamente no ensino superior. Ou seja, como vou conseguir ingressar por minha escolha se não tenho a oportunidade de aprender o básico? Se não dá nem para ter uma oportunidade de emprego melhor, quem dirá ingressar no ensino superior.
Muitos amigos nem foram prestar vestibular para universidades públicas porque eles acham que não vão passar, aí nem vão prestar, preferem trabalhar e pagar uma particular. E também vários alunos da minha escola vão ficar sem fazer ENEM porque não sabiam do prazo de isenção. Se a gente não tem orientação é muito difícil. Por outro lado, uma das melhores coisas que me aconteceu foi uma professora trazer ex-alunos da mesma origem que a gente e que fizeram universidade e estão em diversas carreiras. Decidi fazer ENEM por causa disso, eu consegui me visualizar na carreira das pessoas que foram na escola” (Josué, 3º ano do EM).

Além do acesso ao Ensino Superior, estudantes também ressaltaram a importância do Ensino Médio tratar dos caminhos existentes para a formação profissional.


“Em um olhar mais esperançoso, acho que toda escola deveria ter apoio para caminhos diferentes, não só a universidade. Não é todo mundo que quer seguir esse caminho e seria importante apresentar as opções para escolhermos algo que gostamos e que possamos contribuir para a comunidade. Tipo aulas de teatro.” (Biah, 3º ano do EM)

“Um Ensino Médio de qualidade, é o que me proporciona diversas experiências, me dá um bom ensino e me prepara bem para vida adulta e para o mercado de trabalho” (Pamela, 2º ano do EM).

Outras conversas com estudantes que participaram das oficinas de formação do projeto Tô No Rumo evidenciaram que o técnico profissionalizante ofertado pelas escolas de ensino médio regular não atendem às suas expectativas de formação profissional:

“O ensino médio que eu quero é que essas aulas adicionais “profissionalizantes” não interfiram no ensino básico” (estudante EM). (leia mais aqui)

Senso crítico, participação e mobilização estudantil 

Outro ponto fundamental da discussão sobre qualidade do Ensino Médio na visão de estudantes é a participação e mobilização estudantil, além de uma formação crítica sobre a realidade.

“Não vejo muita participação dos alunos e professores na escola, acho que mesmo que os alunos concordem com uma causa, como quando protestamos contra a PEI, ainda não tem mobilização. Os pais achavam que era coisa de aluno preguiçoso que queria menos aula. Acho que o Ensino Médio tem que fomentar o pensamento crítico dos alunos. (Biah, 3º ano do EM). 

“Nosso movimento precisa mobilizar estudantes de escolas públicas e particulares, mobilizar estudantes universitários, pois isso vai afetar nosso futuro” (Bruna, 2º ano do EM).

“Queremos um ensino médio combativo, popular no qual os estudantes possam ser o que quiserem. Um Ensino Médio que ensine pensamento crítico, ciências humanas e que as matérias que caem no vestibular sejam ensinadas nas aulas”. (Mateus, 1º ano do EM).

Há relatos sobre a realidade e precarização do ensino noturno que atende, em sua maioria, estudantes trabalhadoras e trabalhadores. E de como é importante o apoio e incentivo por parte da gestão para que a participação aconteça independentemente do turno que estudam.

“Acredito que estudantes iam ter mais tempo para mobilizações e ações tipo participar do grêmio se tivessem apoio da diretoria e não que tivessem que fazer tudo por iniciativa própria. Poderíamos desenvolver mais, mas como fazer se os alunos do noturno já trabalham, chegam na escola cansados do trabalho? No noturno está todo mundo cansado, professor e alunos trabalharam o dia inteiro. Então sinto também que não tem a mesma preocupação e o mesmo apoio do que nos outros horários, a carga horária é menor..não tem tanto tempo de conversar com os alunos, vai ser passado o que é preciso para passar de ano” (Esther, 3º ano do EM).

A escuta de jovens para a construção de uma proposta que faça sentido e gere transformação na vida de estudantes também foi colocada como uma demanda do grupo durante os encontros de formação do projeto Tô No Rumo:

“Queremos ser ouvidos”

“Um ensino que leva em conta o saber e opiniões dos alunos”

“Precisamos que o Grêmio seja mais ouvido e realmente lutem com os alunos”

“Ensino médio com mais escuta, menos violência e mais acolhimento”

“Queremos debates para construirmos uma mudança”

Na perspectiva da formação crítica e do desenvolvimento, inclusive em processos de formação profissional, estudantes ressaltaram durante o encontro a cultura como um campo de possibilidades a ser trabalho pela escola:  

“A escola mata artistas. Queremos mais cultura e arte!”

“Valorização da criatividade, respeito, desenvolvimento de todos”

Gênero, raça e sexualidade

Muitas iniciativas juvenis, como as selecionadas pelo Edital EM LUTA – Estudantes por um Ensino Médio de Qualidade!, promovido pelo projeto Tô no Rumo, em 2022, têm como eixos estruturantes de suas propostas as agendas de gênero, raça e sexualidade. Essas são agendas que, para estudantes, se relacionam com inclusão, respeito, combate à violência e educação de qualidade.

“Acho que discussões de gênero, raça e sexualidade precisam fazer parte da escola porque isso abre a nossa mente para incluir pessoas” (Esther, 3º ano do EM).

“Os debates na escola também não aconteciam nunca no noturno. Sobre racismo, palestras de Dia Internacional da Mulher, essas coisas. É complicado porque o aluno já chega sem vontade de estudar e ainda não tem incentivo”. (Carlos Eduardo, concluiu o Ensino Médio em 2022). 

Relatos durante a formação do projeto Tô No Rumo:

“Menos bullying nas escolas”

“Uma escola sem preconceito em que todos sejam respeitados”

“Mais pautas  LGBTQIAPN+, raciais e educação de qualidade.”

Infraestrutura, alimentação e valorização das profissionais da educação 

Sobre os insumos necessários para uma boa escola, estudantes ressaltaram a importância da existência e utilização de laboratórios e bibliotecas, alimentação e materiais de qualidade e internet. 

“O Ensino Médio precisa de mais investimento para os alunos se interessarem mais pelas aulas. Na minha escola tem laboratório, sala de informática, vários locais, mas não são usados. A biblioteca está fechada há anos. Isso faz a gente perder a vontade de estudar, tanto que muitos alunos vão para a escola pela parte social e não pelo estudo” (Esther, 3º ano do EM).

“Mais biblioteca nas escolas” (depoimento de estudante durante encontro de formação do projeto TNR).

“Ensino de forma digna todos os dias. Que possamos ter almoço para estar na escola, precisamos do passe-livre e de ônibus de qualidade para acessar outros lugares” (Maria Helena, 3º ano do EM com ensino técnico).

“Refeições saudáveis” (depoimento de estudante durante encontro de formação do projeto TNR).

“Quero um Ensino Médio que não tenha somente material digital porque não é todo mundo que tem acesso e isso só dificulta a educação e o ingresso às universidades” (Duda, 2º ano do EM)

Chama atenção o depoimento de um estudante que relatou falta de água no período noturno, além da falta de professoras/es. Vale comentar que a escola que ele estudava está situada na região central de um município da Região Metropolitana de São Paulo. 

“(…) cheguei a ter aulas eletivas, sobre tecnologia, ter projeto de vida. Mas quando mudei para o noturno não tinha nada disso, achei totalmente negligenciado. Chegamos a ter período em que só faltava água no noturno e só o noturno ficava sem aula” (Carlos Eduardo, concluiu o Ensino Médio em 2022). 

A valorização das profissionais da educação também é uma demanda de jovens estudantes.

“Eu adoro minha professora de artes porque é quem consegue despertar senso crítico nos alunos (…) Se o Novo Ensino Médio fosse com professores assim seria muito melhor, por que onde mais construir debates políticos de forma certa se não na escola? Se for deixar para o mundo, vai ter problema, porque tem muito preconceito e ignorância. A escola que deveria preparar a gente pro mundo, ensinar o pensamento crítico” (Biah, 3º ano do EM). 

“Profissionais qualificados e preparados” (depoimento de estudante durante encontro de formação do projeto TNR).

E mais: que EM queremos? 

Vale destacar ainda outras agendas que aparecem como demandas para jovens,  como a da Saúde Mental. O grupo de jovens do Edital “EM LUTA – Estudantes por um Ensino Médio de Qualidade!” elegeu essa uma agenda comum a todos os projetos e demandaram um encontro específico para discuti-la. 

“O Ensino Médio de qualidade é aquele que prioriza a saúde mental do aluno e que traz oportunidade para todo mundo” (Rafaela, 3º ano do EM).

Outro ponto que tem sido muito discutido com a implantação do Novo Ensino Médio é contra a privatização da educação. 

“A educação pública atual está num processo de privatização e o Novo Ensino Médio é uma tentativa deliberada de aumentar essa distância e assim justificar a privatização das escolas. Por exemplo, vão dificultar e piorar o ensino público, menos pessoas vão entrar nas universidades vindo de escolas públicas e vão usar esses dados para dizer que escolas públicas não funcionam e que é preciso privatizar, o que vai piorar ainda mais o Brasil” (Gustavo, 3º ano do EM).

Por fim, vale destacar a fala de um estudante que relaciona a oferta de um Ensino Médio de qualidade com a garantia do direito humano à educação para todes. 

O Ensino Médio que eu quero é um Ensino Médio para todas, todos e todes. A educação não é para ser um luxo, é uma coisa que todas as pessoas precisam ter, é um direito de nascença como alimentação, moradia. É o mínimo para a pessoa ter liberdade para pensar” (Antonio, 2º ano do EM).



Campanha #FiqueDeOlho: para combater a violência, gênero nos Planos já!

Iniciativa De Olho Nos Planos e Projeto Gênero e Educação lançam campanha #GêneroNosPlanosJá

Texto: Claudia Bandeira

No Brasil milhões de crianças, adolescentes, jovens e pessoas adultas são excluídas das escolas públicas ou têm suas trajetórias educacionais comprometidas em decorrência das desigualdades, discriminações e violências presentes na sociedade e no ambiente escolar. Estudos mostram que no Brasil os meninos negros são os que mais repetem de ano e abandonam a escola e as meninas e mulheres, principalmente negras, utilizam grande parte de seu tempo em trabalhos domésticos e de apoio familiar. Meninas e meninos homossexuais e transexuais, ainda hoje, sofrem na escola agressões verbais e físicas, que resultam em baixo desempenho, faltas, desistências e evasões. Sem falar da violência contra meninas e mulheres: o Brasil bateu recorde de feminicídio em 2022, com uma mulher morta a cada 6 horas!!

Por isso garantir igualdade de gênero nos Planos é se comprometer com a melhoria da qualidade na educação. Uma educação de qualidade é aquela que consegue incluir e acolher todas as pessoas. Como falar de qualidade na educação se não estamos garantindo a todos e todas o direito de acesso, permanência e sucesso escolar?

Nos últimos anos, manifestações de intolerância, ódio e preconceito vêm crescendo em diversas escolas brasileiras. Essas manifestações têm gerado violência e visam eliminar a possibilidade de que a igualdade, assegurada pela Constituição Federal e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, seja trabalhada nas escolas do país.

Leis que visavam proibir a abordagem de gênero foram consideradas inconstitucionais pelo STF em 2020, mas o efeito de perseguição e autocensura continua sendo sentido. Censurar o debate é acirrar ainda mais a violência, o preconceito, a segregação, o racismo, o sexismo e a LGBTQIAP+fobia.

Mas, afinal, o que é garantir igualdade de gênero nos Planos de Educação?

  • uma forma de criar espaços de acolhimento e solidariedade nas escolas;
  • prevenir e combater o assédio, abuso sexual e violência doméstica;
  • ajudar as crianças e adolescentes a se prevenirem contra o abuso sexual;
  • disponibilizar aos estudantes, na escola, informações sobre as leis que punem a violência contra mulheres;
  • possibilitar nas escolas o debate de temas como puberdade e sexualidade;
  • ensinar os meninos a dividirem com as meninas e mulheres as tarefas de casa;
  • discutir as desigualdades entre homens e mulheres;
  • promover o direito das pessoas viverem livremente sua sexualidade, sejam heterossexuais ou LGBTsQIAP+;
  • debater as desigualdades entre homens e mulheres;
  • ensinar e aprender quais são os direitos das populações LGBTQIAP+.

Estamos diante de um grande desafio: fazer com que o novo Plano Nacional de Educação possibilite a melhoria da qualidade da educação e a redução das desigualdades educacionais em nosso país!

Para isso convidamos todas e todos a somarem na Campanha #FiqueDeOlho: para combater a violência, gênero nos Planos já! acessando nossos materiais e estimulando o debate nas escolas, praças, casas legislativas, territórios e conferências…Vem com a gente!

Para saber mais: https://generoeeducacao.org.br/mude-sua-escola/campanha-fiquedeolho-para-combater-a-violencia-genero-nos-planos-ja/

Após Consulta Pública, MEC propõe alterações no Novo Ensino Médio que abrem brecha para a revogação da reforma

Apesar de reconhecer as limitações da Lei 13.415/2017, a proposta ainda precisa ser aprimorada, principalmente com relação ao Ensino Técnico Profissionalizante  

Foto: Agência Brasil

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira 

Alvo de inúmeras críticas por acirrar desigualdades educacionais, o Novo Ensino Médio (NEM) vai voltar ao Congresso Nacional em breve, podendo sofrer alterações e inclusive ser revogado. Esse importante passo para a garantia do direito à educação vem após mudanças sugeridas pelo próprio Ministério da Educação (MEC), realizadas após consulta pública sobre o NEM. 

A nova versão sugerida pelo governo – e que será novamente analisada no Legislativo -, apesar de incorporar várias demandas da sociedade civil, continua insuficiente ou vaga demais em alguns pontos, especialmente nas propostas para o Ensino Técnico Profissionalizante, modalidade que permite várias exceções no ensino e na carga horária, potencialmente piorando a qualidade do que é ofertado aos estudantes se comparado ao modelo de educação integrada, a exemplo de Escolas Técnicas Estaduais e Institutos Federais de Educação. 

Consulta Pública: a sociedade quer outro Ensino Médio

Entre 9 de março e 6 de julho de 2023, o MEC realizou Consulta Pública para Avaliação e Reestruturação da Política Nacional de Ensino Médio, ouvindo diferentes atores da sociedade. Com base nas informações colhidas nessa consulta pública, a Pasta divulgou, no início de agosto, sugestões de alterações na Lei 13.415/2017, que instituiu o Novo Ensino Médio. O Ministério, que não divulgou os dados coletados mas sim um resumo deles, apresentou 12 áreas críticas e propôs sugestões em seis delas. Com base nisso, vai construir um texto que precisará passar pelo Congresso. Órgãos e entidades da área da Educação – como a Campanha, a CNTE e o Fórum Nacional de Educação – puderam enviar suas considerações sobre a proposta para ajudar a construir a essa versão final a ser enviada ao Legislativo. 

Como apontou a CNTE em sua análise, a consulta pública expôs críticas a praticamente todos os pontos do Novo Ensino Médio, como os itinerários formativos, a diminuição da carga horária, a organização curricular, a possibilidade de ensino à distância (EaD), a falta de infraestrutura nas escolas brasileiras para cumprir com a lei e o consequente aumento nas desigualdades educacionais causado por esse processo. 

A partir desse diagnóstico, o MEC propôs recompor a carga horária destinada à Formação Geral Básica (FGB) para 2.400 horas; reduzir o número de itinerários formativos – que passam a se chamar “percursos de aprofundamento e integração de estudos” – de cinco para três; e o fim do uso de EAD na Formação Geral Básica. No entanto, essas mudanças não se aplicam a estudantes que estejam cursando o Ensino Técnico Profissionalizante, pois para elas e eles ainda é possível que a carga horária da FGB seja menor (de 2.200 horas, as quais se somariam 800 a 1000 horas de cursos técnicos) e que até 20% da oferta de Educação Profissional Técnica seja ofertada via EAD. Além disso, a proposta do Ministério mantém a possibilidade de contratação via notório saber na formação técnica profissional, o que não apenas pode trazer problemas para a qualidade do ensino como é um retrocesso para a valorização docente. 

Ainda em relação ao currículo, o MEC sugere que passem a compor a formação básica geral (FGB): arte, educação física, literatura, história, sociologia, filosofia, geografia, química, física, biologia, educação digital e espanhol como alternativa ao inglês. Já os itinerários formativos seriam nas áreas de: Linguagens, matemática e ciências da natureza; Linguagens, matemática e ciências humanas e sociais; Formação técnica e profissional. Em relação ao ENEM, o governo propõe que a edição de 2024 permaneça atrelada à FGB e que seu formato para os anos seguintes seja objeto de debate no contexto da elaboração do novo Plano Nacional de Educação (PNE). 

Para diferentes representantes do campo comprometido com a educação pública, laica e de qualidade para todas e todos, as propostas apresentadas pelo governo são uma boa notícia ao reconhecer as limitações do modelo instituído pela Lei 13.415/2017 – tanto é que requerem uma nova análise legislativa. As propostas também incorporam sugestões do campo progressista, como o aumento da carga horária da FGB, o que a Campanha Nacional pelo Direito à Educação chamou de “passo crucial para a garantia de uma formação sólida de nossos estudantes”. A entidade – que participou ativamente do processo da Consulta Pública, inclusive criticando sua metodologia em nota – destacou também o recuo no uso de Educação a Distância, mas defende que ainda é necessário “avançar para a garantia de educação 100% presencial, em todas as suas variantes, sem exceção”. Quanto à organização curricular, a Campanha vê avanços, mas acredita que  a proposta ainda possa ser aperfeiçoada – a entidade, bem como a CNTE, por exemplo, defendem que o Espanhol não seja uma alternativa ao inglês mas sim complementar. A Campanha Nacional pelo Direito à Educação também mantém a crítica aos itinerários formativos, ainda que ganhem outro nome, defendendo que eles constem como “parte diversificada dos currículos”.

Para Andressa Pellanda, Coordenadora-Geral da Campanha, é necessário implementar “uma política abrangente a nível nacional que confronte e se esforce para eliminar as vastas disparidades no âmbito educacional que marcam a disponibilidade do ensino médio. Isso vai além das meras alterações no currículo, requerendo também o encerramento da insuficiência de recursos financeiros”. Visão compartilhada por Sérgio Stoco, professor de Políticas Públicas na Unifesp, membro do Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES) e do Fórum Nacional de Educação (FNE), para quem a consulta foi um processo de mediação importante com a sociedade e com os movimentos sociais da Educação, mas ainda com muitas limitações conceituais quanto a que Ensino Médio se quer e como construí-lo. Ele defende que uma política para o Ensino Médio deve ser construída com um Sistema Nacional de Educação (SNE) definido, com um novo PNE em vigor, bem como com ampla escuta e participação da sociedade e, principalmente, com novos investimentos nesta etapa de ensino. 

A falta de novos recursos para o Ensino Médio é um dos pontos mais criticados da Reforma, já que tende a aumentar as desigualdades entre as redes pública e privada e mesmo entre as redes públicas. As flexibilizações – como da formação geral básica e dos modelos de contratação docente – também são muito criticadas por precarizar essa etapa. “A Reforma não pretende trazer mudanças efetivas ou dar direcionamento político à educação nacional, mas sim tenta regulamentar a flexibilização. Seu objetivo não é propor nada, e sim deixar abertas as portas pra fazer qualquer coisa”, resume Sérgio Stoco, enfatizando que mesmo possíveis pontos positivos da Reforma já estavam contemplados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), não necessitando de lei específica.

Ensino Técnico profissionalizante: pouca definição e propostas aquém do necessário

Se mesmo após as mudanças sugeridas pelo MEC a Lei 13.415 ainda tem problemas, a situação se agrava quando olhamos especificamente para o Ensino Técnico e Profissionalizante. A respeito dessa modalidade, vários pontos ainda estão pouco definidos. E os que estão mais desenhados mantêm retrocessos, como a menor carga horária na formação geral básica (2200h, ante as 2400h da formação geral) e a possibilidade de até 20% do ensino à distância, além da contratação de profissionais via notório saber. Ainda, no desenho proposto, a formação profissional pode ser extremamente precarizada e de baixa qualidade, pois pode ser validada através do acúmulo de vários cursos menores.

“Infelizmente, do jeito que está sendo proposta, a Educação Técnico Profissional só pode levar a um caminho de precarização”, resume o professor Sérgio Stoco, da Unifesp e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU). “Uma leitura atenta do que é proposto percebe que há uma espécie de ‘vale-tudo’: qualquer coisa que der uma certificação conta como carga horária do ensino médio, o que é um jeito simples do setor privado vender seus serviços”, explica, alertando que até mesmo palestras podem contar como certificação profissional. Soma-se a isso a permissão para o ensino à distância, ferramenta que tem sérias denúncias quanto a sua baixa qualidade e já deu margem até para aulas por televisão, sem a presença de professoras ou professores. Fora isso, ainda pode aumentar a exclusão e as desigualdades educacionais, pois exige acesso e disponibilidade de um aparelho com conexão estável à internet, além de letramento digital. Fatores que, como visto durante a pandemia, estão longe de ser uma realidade no país. 

Há ainda outra importante fonte de preocupação: a contratação de profissionais via notório saber. Como explica Sérgio Stoco, este conceito, em sua concepção, é importante para reconhecer outros saberes além do científico, mas no contexto do NEM tem sido uma forma de desvalorizar a carreira docente. “A alteração nos artigos 61 e 62 da LDB flexibilizou para, no fundo, dizer: ‘qualquer um pode virar professor’”. Para os governadores é ótimo, pois os desobriga de várias legislações criadas para proteger a carreira docente”, diz.  

A nota técnica da Campanha Nacional pelo Direito à Educação defende ser “essencial eliminar da legislação a permissão para que pessoas com “notório saber” atuem como professoras/es no Ensino Médio, pois reconhecer o valor dos conhecimentos no campo pedagógico é fundamental para valorizar a profissão docente. A aceitação de tal possibilidade em cursos de Educação Profissional Técnica de Nível Médio também desconsidera a importância do conhecimento científico subjacente às técnicas e tecnologias, uma vez que a formação para o trabalho não pode prescindir desse aspecto”. 

Os problemas e limitações do modelo técnico profissionalizante no contexto do NEM já são sentidos pelas comunidades escolares do estado de São Paulo. No estado, onde a implementação do Novo Ensino Médio dá-se de forma acelerada, está em vigor um programa chamado Novotec, que “oferta cursos técnicos e profissionalizantes gratuitos, orientação vocacional e oportunidades de estágio para jovens dentro do Ensino Médio da rede pública”. O Novotec tem quatro modalidades de cursos profissionalizantes, ministrados por profissionais externos à escola, entre eles o Novotec Expresso, que certifica as e os estudantes semestralmente. A qualidade dessa certificação, no entanto, é bastante questionável. 

A professora Lívia L* é testemunha disso. Formada em história e lecionando na rede pública da região metropolitana de SP, desde que sua escola aderiu ao Novotec, ela também acompanha as aulas de um dos itinerários integrados do programa. E não poupa críticas: “Descobrimos que os professores externos foram contratados à distância, sem falar com ninguém, e claramente muitos nunca haviam dado aula antes”, diz. 

Ela, como docente da unidade, fica na sala enquanto o profissional contratado via notório saber ministra o itinerário – em seu caso, de Marketing Digital, escolhido em uma votação com baixo quórum de alunos. “É adoecedor. São trabalhadores precarizados com formação e consequente visão neoliberal rasa dando aula para nossos alunos. Nós professores temos que ficar dentro da sala acompanhando a aula de outro professor, sem diálogo com nossa formação e sem clareza se devemos interferir ou não. Me colocando no lugar do outro profissional, escolho não fazer isso”, conta. Uma decisão difícil, considerando que de acordo com o programa os contratados e contratadas sequer precisam ter formação em licenciatura ou pedagogia. “Você percebe que têm dificuldade de reger a sala, de acessar os alunos e de administrar a aula”. Na primeira aula, no entanto, Lívia interferiu para explicar como funcionava o Novotec. Isso porque o docente perguntou à turma porque havia escolhido aquela formação, ao que ouviu de muitos que “não escolheram nada”. 

Um artigo de Evaldo Piolli e Mauro Sala sobre o programa concluiu que o Novotec “e esse conjunto de programas irão criar uma maior estratificação hierárquica no Ensino Médio do estado, contribuindo para uma formação desigual da força de trabalho para um mercado de trabalho cada vez mais precarizado”. Por vários motivos: cursos curtos para a qualificação profissional, majoritariamente de baixo custo, “que não demandam grandes laboratórios e equipamentos, e [com] alta taxa de inculcação ideológica, já que diretamente ligados à gestão e negócios capitalistas. (…) Trata-se de convencer a juventude que a precariedade das suas próprias vidas faz parte da racionalidade do modo de produção capitalista.”, segundo os autores. 

O modelo do Novotec é restrito ao estado de São Paulo, mas seus princípios podem ser replicados em outras redes, mesmo com a nova proposta do MEC para o Ensino Médio. Como resume o professor Sérgio Stoco: “do ponto de vista do que está colocado [pelo MEC], essa formação específica [técnico profissionalizante] é uma enganação absoluta, não tem como remendar. No fim do processo, tudo vai virar mais desigualdade”. 

Batalhas legislativas pela frente

A volta do projeto do Novo Ensino Médio ao legislativo, que deve acontecer neste segundo semestre, representa uma excelente oportunidade para tentar reverter os retrocessos trazidos pela “Reforma irreformável”. Em um processo que até agora foi conduzido por decretos e marcado por pouca ou nenhuma transparência e diálogo com a sociedade, levar o assunto para debate amplo já é, de certa maneira, uma derrota para os defensores do NEM. “Tudo que avançamos até aqui foi por conta da pressão nas ruas e junto aos organismos do poder público, assim como do trabalho – que tem sido muito intenso e árduo – no Fórum Nacional de Educação, recomposto. Isso mostra como a participação social precisa ser fortalecida e institucionalizada, para garantir políticas melhores para a educação”, resume Andressa Pellanda, coordenadora-geral da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação.

Mas o caminho não será trilhado sem desafios, já que a atual composição do Congresso é bastante conservadora, e que os setores empresariais e de interesses privatistas na Educação também estarão pressionando para que suas agendas sejam contempladas. Ou seja, a disputa está posta. Por isso o professor Sérgio Stoco, também membro do FNE, reforça a necessidade da articulação social e política para que quem se opõe ao NEM consiga pressionar o Congresso e fazer valer sua voz. “É preciso que o governo não tenha dúvida que a única coisa que deve fazer é revogar a 13.415”. Para o professor, revogar significa voltar à legislação anterior para que se possa, sem afobação, construir os novos mecanismos para uma nova política para o Ensino Médio. “O ideal é revogarmos a 13.415 e já encaminharmos outros pontos para avançarmos, porque não dá para fazer tudo agora. Para ter um novo Ensino Médio precisa ter um novo PNE, um SNE, que não vão sair agora. E temos que, primordialmente, ter o Custo Aluno Qualidade. Só com todas as escolas e todos os professores com estruturas e condições podemos pensar em reforma”. 

A Coordenadora-Geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, está otimista com os próximos passos. Pois se é verdade que o Congresso Nacional pode levar questões retrógradas ao texto, “ele também reage a pressões da sociedade, em que já avançamos e já estamos com o recado dado sobre o NEM”. A própria volta ao Congresso mostra que a mobilização já está surtindo efeito. 

*Nome alterado para preservar a identidade da docente


Descumprimento do PNE afeta mais as juventudes negras, indígenas e periféricas e aumenta a urgência da construção de um novo Plano

Com poucos avanços em uma década, desafio é construir novo PNE que diminua desigualdades e não deixe ninguém para trás

Crédito: Fernando Frazão / Agência Brasil

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira 

O Brasil de 2023 é bem diferente do Brasil de 2014, quando entrou em vigor o atual Plano Nacional de Educação (PNE). Mas passada quase uma década, foram poucos os avanços na Educação brasileira: quase 90% dos dispositivos e metas do PNE não vão ser alcançados até o final do prazo, segundo o último balanço da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, prejudicando especialmente a população negra, indígena e dos estados do Norte do país. E não apenas os avanços não são suficientes como mais da metade das metas estão em retrocesso. Este cenário torna mais urgente a construção de um novo Plano que permita superar desigualdades históricas e que seja, de fato, implementado. 

O que é o PNE

O Plano Nacional de Educação (PNE, Lei 13.005/14) é a mais importante política educacional brasileira, fruto de anos de debates com intensa participação social. Aprovado em 2014 após acirrada tramitação no Congresso, foi uma vitória da sociedade civil e dos movimentos sociais da área da Educação, sublinhando a importância do planejamento educacional, orientando o investimento e a gestão, além de referenciar o controle social e a participação cidadã.

O atual PNE tem 20 metas e 254 estratégias a serem cumpridas até junho de 2024. Essas metas dispõem sobre acesso e permanência desde a creche até a pós-graduação, mas também abarcam temas como participação social, valorização de profissionais da educação, combate às desigualdades educacionais e financiamento da educação. O PNE é uma política pública e seu cumprimento deve se dar independente de quem está no governo ou do contexto social, político ou econômico. 

Como está sua implementação

O PNE começou a ser esvaziado já em 2015, um ano após sua aprovação, por medidas de ajuste fiscal do segundo governo Dilma. Em 2016, a Emenda Constitucional 95 (EC 95, ou o “Teto de Gastos”) foi aprovada, constitucionalizando cortes orçamentários por 20 anos e inviabilizando de vez qualquer progresso real, já que sem novos recursos é impossível cumprir várias das metas do PNE (por exemplo, aumentar matrículas em diferentes etapas). Fora a meta 20, que prevê a ampliação do investimento público em educação pública e que, se não é cumprida, afeta todas as outras. 

Depois veio o governo Bolsonaro, que nunca norteou a política educacional pelo PNE. Ao contrário, sua gestão aprofundou as políticas de austeridade que inviabilizam o cumprimento do plano e dificultou de diversas maneiras a participação social, a gestão democrática, a transparência e o acesso a dados. Além do subfinanciamento da Educação que inviabiliza o PNE como um todo, em seu governo avançaram medidas que o impactam negativamente, como a Reforma do Ensino Médio. Outro fator de impacto negativo no PNE foi a pandemia, que interrompeu alguns avanços, como o acesso e permanência no Ensino Fundamental. Agora, na avaliação de Marcele Frossard, assessora de programas e políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, embora o novo governo esteja mais permeável à reconstrução e reorganização de políticas sociais, ainda há dificuldades em relação ao cumprimento do orçamento para a Educação

Todos os anos, a Campanha faz um monitoramento do cumprimento de todas as metas e estratégias do PNE, com resultados cada vez mais preocupantes. Em 2023, o balanço verificou que 13 das 20 metas estão em retrocesso e que mais de 90% dos objetivos não serão cumpridos a tempo. “Até metas que estavam estagnadas ou que caminhavam de alguma maneira passaram ao retrocesso no governo Bolsonaro”, destaca Marcelle. Fora as várias metas que não podem ser totalmente avaliadas porque não há informações públicas atualizadas (há lacuna de dados em cerca de 35% dos dispositivos). A Campanha classifica 3 metas como parcialmente cumpridas, mas entende que elas já estavam avançadas em 2014 e que não há, portanto, exatamente um progresso. 

As metas em retrocesso referem-se a: universalização do atendimento à Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio; oferta da Educação em tempo integral na educação básica; erradicação do analfabetismo; valorização dos profissionais do magistério; acesso ao Ensino Superior; e ampliação do investimento público na educação. 

Ao olhar os dados mais de perto fica evidente que o descumprimento não afeta todos os grupos igualmente. Populações indígenas e quilombolas, do campo, bem como estudantes negras e negros e de estados do Norte e Nordeste têm os piores índices educacionais. Ou seja, a educação brasileira continua profundamente desigual.

Um exemplo é a Meta 12 que se refere às matrículas na Educação Superior, especialmente entre a população de 18 a 24 anos. Os dados evidenciam que as desigualdades entre os mais ricos e os mais pobres persistem, bem como as desigualdades regionais (a taxa de matrícula no Nordeste é quase 20 pontos abaixo da do Sudeste). Essa foi uma meta que piorou na pandemia, quando diminuiu o percentual de pessoas de 18-24 anos que frequentam ou já concluíram cursos de graduação – e persistiu a desigualdade étnico-racial: pretos e pardos acessam a graduação em proporção aproximadamente 50% menor do que a população branca. Ainda,  a expansão das matrículas tem se dado de forma excessivamente concentrada na rede privada, o que também se agravou durante a pandemia.

Quais são os pontos mais problemáticos?

Tudo é preocupante em um cenário de descumprimento generalizado, mas podemos resumir a causa e a consequência: boa parte do PNE foi e é inviabilizado pela falta de investimento público em educação, e o resultado do descumprimento do Plano é o agravamento das muitas desigualdades sociais e educacionais. 

Para Marcelle Frossard, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o cenário não é negligência ou descaso, mas sim “uma escolha política de onde investir ou não e quais áreas são prioritárias”. Opinião compartilhada pela professora Analise da Silva, da UFMG, que diz que o Brasil faz “políticas públicas a conta gotas”, sem real desejo de incorporar a população negra na cidadania, e pelo professor Eduardo Januario, da Faculdade de Educação da USP, para quem as discussões sobre o combate às desigualdades, especialmente as étnico-raciais, ainda estão longe do chão da escola

A falta de investimento deveria ter sido sanada pela Meta 20, que prevê ampliar o investimento público em Educação pública de forma a atingir no mínimo 10% do PIB ao final do decênio. No entanto, hoje o investimento não passa de cerca de 5% do PIB – metade do nível desejado e estabelecido em lei. “Isso, é preciso lembrar, vem desde 1995, no governo Fernando Henrique Cardoso”, lembra Januário, especialista na área de financiamento educacional. “Mesmo quando, no governo Lula, conseguimos concordar na meta de 10%, não conseguimos colocar em prática”. Para o professor, é inconcebível falar de qualquer avanço em PNE e em combate a desigualdades sem caminhar para um financiamento mais robusto. “E o MEC precisa assegurar que as verbas destinadas ao financiamento educacional sejam cumpridas”, acrescenta. Na mesma linha, ele defende ser impossível pensar no PNE e, mais especificamente, na ampliação do Ensino Médio sem investimento maciço na etapa – o que o Novo Ensino Médio não se propõe a fazer. 

O descumprimento das metas do PNE agrava as desigualdades existentes por conta da ausência ou abandono de políticas específicas para combater essas desigualdades. No caso da Educação Integral (EI) e da Educação de Jovens e Adultos (EJA) o cenário foi especialmente dramático: O Mais Educação, de EI, foi descontinuado, e a EJA foi completamente desfinanciada, tendo em 2022 um orçamento que representava apenas 0.44% do orçamento de 2012. 

A EJA abarca uma população (majoritariamente negra) que, por inúmeros motivos, não pôde iniciar ou concluir a Educação Básica. No PNE, as metas 8 e 9 se referem à situação da EJA e das desigualdades e, não por acaso, mostram um cenário desastroso. Em 2022, a Meta 8, focada em reduzir desigualdades, apresentou retrocesso pela primeira vez. A escolaridade média do Nordeste e da população na zona rural caiu, e as populações negra e não-negra continuam com índices inaceitavelmente desiguais (a população negra de 18 a 29 anos tem cerca de 91% da escolaridade da população branca da mesma faixa etária) . Já a meta 9 mostra que o analfabetismo funcional avançou quando deveria ter regredido (era 27.1% em 2014 e agora está em 29.4%, quando deveria estar em cerca de 15%). Ainda, o analfabetismo absoluto é um problema especialmente importante no Nordeste, embora todos os estados da região tenham progredido a níveis acima da média nacional.

Analise da Silva, professora da Faculdade de Educação da UFMG e especialista em EJA, classifica o cenário brasileiro como deprimente. Ela reforça, por exemplo, o vácuo para adolescentes e jovens que têm direito à EJA. “Se o problema fosse apenas o Ensino Médio seria menos pior, mas não temos nem mesmo a alfabetização garantida”, diz. A professora reforça que a ideia de que a Educação de Jovens e Adultos atinge apenas adultos e idosos não é verdadeira – ela deveria abarcar também os jovens que iniciaram a escolarização mas que estão muito longe do chamado “período ideal”. Para ela, esse grupo está abandonado pelo poder público – basta lembrar que a EJA viu o encolhimento de vagas nos últimos anos.

Marcelle Frossard enfatiza que o PNE reverbera as desigualdades sociais, econômicas e populacionais existentes no país. Nesse contexto, destaca ela, a região Norte também merece atenção. “É uma região reconhecida pela forte presença de populações de comunidades tradicionais, povos indígenas e quilombolas, além de questões migratórias. No entanto, ainda faltam muitas informações sobre essas realidades. É uma região com muitas especificidades, o que exige participação conjunta para uma educação contextualizada que é direito dessas populações”. 

E o próximo PNE?

O atual PNE deixa de valer em junho de 2024. Isso significa que um novo projeto para substituí-lo já deveria ter sido enviado para análise do Legislativo em junho deste ano, o que ainda não ocorreu. No momento, os Fóruns, Conselhos e Secretarias de Educação se organizam para a realização da CONAE 2024 que terá como tema “Plano Nacional de Educação (2024-2034): Política de Estado para a garantia de educação como direito humano, com justiça social e desenvolvimento socioambiental sustentável”. As etapas municipais e estaduais estão previstas para ocorrer no segundo semestre de 2023 e a nacional no início de 2024. 

São muitas as tarefas: não apenas construir um novo PNE que responda à altura os desafios da educação brasileira, como construí-lo em um prazo apertado garantindo as vozes da sociedade e das comunidades escolares. “O novo PNE, para ser novo, tem que vir associado à revogação do NEM, à construção de outro Ensino Médio, e não pode ser produzido a toque de caixa sem refletir os interesses da sociedade e das comunidades escolares”, defende Marcele Frossard, assessora de programa e políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. 

Além disso, a promulgação de um novo Plano é só o começo do processo, já que a implementação e o cumprimento das metas têm se mostrado a etapa mais desafiadora dos últimos anos, especialmente em relação ao financiamento educacional. “É comum que o Estado brasileiro incorpore objetivos na lei, mas não os execute de fato. Foi o caso do atual PNE, um Plano que avançou ao incorporar novas perspectivas de combate às desigualdades, mas que não conseguiu avançar no cumprimento dessas metas”, argumenta o professor Eduardo Januário, que defende que o próximo PNE precisa seguir almejando os objetivos ainda não alcançados. “Como criar novas metas sem cumprir as que não foram cumpridas?”, questiona, acrescentando que “não há outra possibilidade senão insistir na destinação de 10% do valor do PIB para a Educação, senão insistir nas discussões de financiamento e equidade”. Para Januário, igualmente importante é garantir o fortalecimento das instâncias de participação social, como Conselhos e Fóruns Municipais e estaduais de Educação, justamente por serem agentes chave no monitoramento das metas. 

Na mesma linha, a professora da UFMG Analise da Silva defende que se as novas metas precisam ser as mesmas ou no mínimo parecidas com as atuais, dado o estado de descumprimento do Plano, as táticas e estratégias de monitoramento e pressão social precisam ser mais ousadas. Ela destaca o contexto extremamente adverso para o cumprimento do Plano, pois é preciso vontade política para “efetivar a EJA como ação afirmativa que seja garantidora do rompimento das desigualdades sociais e para um novo PNE que leve em consideração sujeitos que o Estado brasileiro invisibiliza desde 1500”. “Não podemos ficar parados esperando a política pública”, reforça Analise. 

A falta de compromisso político com o atual PNE nos desafia a aprimorar as formas de participação e de controle social das políticas educacionais para que governos se comprometam com a implementação e com o fortalecimento de Políticas de Estado. Não resta dúvida que, se queremos imaginar e realizar um outro horizonte para a Educação brasileira, é preciso construir o próximo PNE com ampla participação popular, principalmente das comunidades escolares e das/os jovens estudantes e com a garantia de um financiamento adequado, incluindo 10% do PIB, a regulamentação do Custo Aluno Qualidade (CAQ) e de um Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SINAEB) que garanta equidade na distribuição dos recursos. Não há mais tempo a perder.





Novo arcabouço fiscal pode diminuir repasses para Universidades e Institutos Federais de Educação, além da merenda, transporte e livros didáticos

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

Jovens do Edital Em Luta: estudantes por um Ensino Médio de qualidade!

O Congresso brasileiro está analisando o projeto de lei complementar (PLP) 93/2023, o arcabouço fiscal, que nada mais é do que as novas regras de gastos do dinheiro público. A proposta foi enviada pelo Executivo e, após tramitação e aprovação na Câmara e no Senado, vai para sanção presidencial. Como o arcabouço fiscal dita as regras dos gastos públicos inclusive em áreas sociais, impacta diretamente a educação e seu financiamento e pode afetar estudantes desde a creche ao ensino superior. Por isso, é tão importante monitorar este projeto e pressionar para que seu desenho esteja sintonizado com as metas do Plano Nacional de Educação (PNE) que, às vésperas do final de sua vigência, tem uma taxa de descumprimento de 90% de acordo com o último balanço da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Qual a diferença entre arcabouço fiscal e Teto de Gastos (EC 95)?

O novo arcabouço fiscal é um projeto para substituir a Emenda Constitucional 95 (EC 95, que ficou conhecida como o Teto de Gastos), promulgada em 2016. Ou seja, a EC 95 deixará de valer quando o novo arcabouço for aprovado, o que é uma boa notícia para as áreas sociais, já que o Teto congelou os gastos públicos por 20 anos. Segundo a EC 95, os gastos em áreas como saúde e educação só podem subir de acordo com a inflação, não havendo nenhum aumento real no investimento. O governo Bolsonaro descumpriu muitas vezes o Teto de Gastos, mas nunca para investir nas áreas sociais. O arcabouço fiscal proposto pela nova gestão prevê que as despesas podem sim aumentar além da inflação, mas que este aumento deve ser compatível com o aumento do que é arrecadado pelo governo. Ou seja, ainda impõe um limite, mas é mais flexível. 

Uma diferença importante é que o Teto de Gastos em vigor é uma Emenda Constitucional e o novo arcabouço fiscal, se aprovado, será uma lei complementar. Ou seja, a EC 95 está na Constituição, e portanto tem muito peso e preponderância sobre outras leis. Já as leis complementares não estão na Constituição, mas devem obedecê-la. Isso significa que qualquer que seja o desenho do arcabouço fiscal, ele precisa cumprir todas as obrigações constitucionais. Por exemplo, a União deve sempre repassar para a Educação no mínimo 18% do que foi arrecadado em impostos. Com o modelo do Teto de Gastos de 2016 isso podia ser burlado, porque a EC 95 partia de um valor de investimento inicial (do ano que foi promulgada) e autorizava apenas a correção da inflação desse mesmo valor.

O que diz o arcabouço fiscal?

O mecanismo básico da proposta enviada pelo governo Lula é que o crescimento das despesas deve se limitar a 70% do crescimento da arrecadação. Por exemplo, se o governo arrecada R$ 1 trilhão, pode gastar até 70% disso, ou 700 bilhões de reais. Há também um mecanismo para que épocas de maior ou menor arrecadação tenham também limites de gastos diferentes (saiba mais sobre o arcabouço fiscal aqui). 

A proposta original do novo arcabouço fiscal, enviada pelo Executivo, abria exceções para os gastos instituídos na Constituição, como o piso nacional da enfermagem e o Fundeb, principal mecanismo de financiamento da educação pública brasileira e que foi incorporado à Constituição em 2020. A Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos, de 2016) também abria uma exceção para o Fundeb. 

No entanto, o projeto do arcabouço fiscal está sofrendo alterações durante sua tramitação no Congresso Nacional. A exceção para o Fundeb, assim como a garantia dos pisos constitucionais para educação e saúde, ainda são pontos de disputa. 

Como está a tramitação do arcabouço fiscal? Ele será aprovado?  

O PLP 93/2023 do arcabouço fiscal está sob análise no Congresso. Na Câmara, sofreu alterações, como a inclusão do Fundeb dentro de seu escopo. As mudanças foram aprovadas pela casa e o projeto foi então encaminhado ao Senado que retirou as despesas da União com o Fundeb. 

Agora o projeto volta para a Câmara dos Deputados. Quando o Congresso chegar a um acordo sobre o texto, ele vai para a sanção presidencial – etapa em que também pode ser modificado. Por exemplo, ter trechos vetados. 

Como o novo arcabouço fiscal vai guiar os investimentos do novo governo, há pressa para sua aprovação. Ele está tramitando no Legislativo em regime de urgência, o que significa uma tramitação simplificada e mais acelerada. 

IMPACTOS DO ARCABOUÇO FISCAL NA EDUCAÇÃO

A Educação é uma área que tem sofrido muito com cortes orçamentários na última década. Revogar a EC 95 é o que entidades e movimentos comprometidos com a educação pública e de qualidade vêm demandando desde 2016, mas discutir a proposta substituta é igualmente importante, para que o resultado não seja igualmente prejudicial para a Educação. E o desenho do novo arcabouço fiscal segue tendo problemas e armadilhas a longo prazo. 

Quando o Fundeb foi incorporado no texto do relator da Câmara, o deputado Cláudio Cajado (PP-BA), em maio, causou muita preocupação, já que o fundo é o principal mecanismo de financiamento da Educação básica brasileira. Mas também entraram no arcabouço os mínimos constitucionais da educação e da saúde. Essas adições foram severamente criticadas por parlamentares, entidades da Educação, como a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e comunidades escolares. “O relatório piora ainda mais o programa de Temer e amplia a dificuldade de investimentos no ensino público e a execução do Plano Nacional de Educação (PNE)”, disse a CNTE em comunicado sobre o tema.

Por que a inclusão do Fundeb no arcabouço fiscal impacta a Educação? Quais os impactos? 

O Fundeb é um fundo composto por recursos dos municípios, estados e da União. É uma obrigação constitucional e é de onde vem boa parte dos recursos que financiam a educação básica do país, que hoje atende cerca de 50 milhões de estudantes. Em 2020, quando se discutiu um novo modelo de Fundeb, foi aprovado que o governo federal iria, de maneira gradual, contribuir com cada vez mais recursos, diminuindo assim o peso para estados e municípios, que arrecadam menos. É o que chamamos de “complementação da União”, que deve chegar a 23% em 2026. 

O grande e principal problema do Fundeb ser incluído no arcabouço fiscal é que, por ser um repasse obrigatório e de uma quantia significativa, pode diminuir o que sobra para outras despesas, principalmente aqueles investimentos que não são obrigatórios, como programas de transporte escolar, merenda ou livro didático. Programas que afetam majoritariamente as e os estudantes mais pobres. Foi justamente com o argumento de que o Fundeb é uma contribuição obrigatória que o deputado Claudio Cajado justificou a inclusão do fundo no arcabouço, mas a Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados e os especialistas em financiamento ouvidos para esta reportagem alertam que a medida é mesmo uma ameaça ao aumento do investimento em educação. 

Se o novo arcabouço incluir o Fundeb, o governo federal teria no mínimo duas grandes obrigações: permaneceria obrigado a cumprir os mínimos constitucionais para Educação e saúde – ou seja, de investir [na Educação] no mínimo 18% de tudo que é arrecadado – ; e teria de arcar com a complementação de 23% ao Fundeb. “O que as análises têm mostrado é que é muito provável que manter esses compromissos afete outras despesas, tanto da Educação quanto de outras áreas sociais”, resume Nalu Farenzena, da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca). E mesmo o Fundeb, apesar de ser protegido constitucionalmente, pode ser afetado, já que a complementação de 23% por parte da União é um valor mínimo, e não fixo ou máximo. Ou seja, se o fundo permanece dentro da nova regra fiscal, é muito improvável que a União repasse para ele mais do que o mínimo obrigatório, já que existem outras despesas em Educação. 

Além dessas duas grandes obrigações, a União também precisa pagar todas as trabalhadoras e trabalhadores da administração pública federal da área da educação, como as/os profissionais que atuam nas universidades e institutos federais. E há as despesas não obrigatórias (também chamadas de discricionárias), que incluem programas de alfabetização, alimentação escolar, livros didáticos, transporte escolar, entre outros. “É onde entra a assistência estudantil, os recursos para a manutenção cotidiana das instituições, e que já foram duramente afetados no governo anterior por conta do Teto de Gastos”, explica Nalu. Estes recursos, segundo ela, ficariam pressionados, limitando a possibilidade de serem expandidos. “Ou seja, [a inclusão do Fundeb] compromete como um todo a agenda redistributiva, o que inclui a educação. Não é o Fundeb que está sob ataque, mas todo o setor público federal”, nas palavras de Nalu Farenzena. 

Salomão Ximenes, Professor de Direito e Políticas Públicas da UFABC e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU), destaca também que as universidades e Institutos Federais, que são responsabilidade da União, podem ser muito impactados pela inclusão do Fundeb no mesmo bolo de recursos. “Os institutos são a principal e a melhor experiência que temos de rede pública gratuita de ensino médio de qualidade e integrado à educação profissional. Nossa grande expectativa, inclusive pelo plano de governo do presidente Lula, é que essa rede fosse ampliada. Isso sim mereceria um nome de reforma do ensino médio”, diz. “Mas a inclusão do Fundeb no arcabouço inviabiliza muito rapidamente qualquer margem orçamentária para pensar a ampliação da presença da União no ensino médio profissionalizante”, resume. 

 Para Guelda Andrade, secretária de assuntos educacionais da CNTE, é preciso um olhar progressista na construção de um necessário ajuste fiscal para que ele reflita o projeto de uma nação soberana. “O Brasil tem esse potencial, mas para isso é preciso investir em educação, e investir em educação é também tirar o Fundeb do arcabouço. Ainda estamos construindo um debate sobre democratizar o acesso a educação básica, além da permanência e da qualidade”, ressalta. Ela destaca que a inclusão do Fundeb no arcabouço pode impactar também a valorização das e dos profissionais de educação, pois são necessários mais recursos para construção de planos de carreira. 

É verdade que, sob o desenho do novo arcabouço fiscal, os recursos aumentam (e consequentemente os investimentos também) em épocas de aumento na arrecadação, mas como Nalu Farenzena destaca, “isso é um cenário incerto e não é uma política estratégica de priorização da educação”, porque cria uma dependência das receitas aumentarem para que se possa aumentar os investimentos em Educação. “Não é uma política efetiva de longo prazo do Estado”, resume. E isso afeta ainda mais negativamente o atual e o novo Plano Nacional de Educação (PNE) – que deve ser construído por meio de processos participativos liderados pelo Fórum Nacional de Educação (FNE). 

“Não basta só construir um plano, é preciso pensar estratégias de financiamento para que ele seja exequível, para que consigamos executar as metas que tanto desejamos”, reforça Guelda Andrade, que diz que o Fórum Nacional de Educação está “correndo contra o tempo” para avançar nessa discussão, já que o PNE determina as diretrizes do país para a educação na próxima década. 

E sem o Fundeb, o arcabouço fiscal ainda é ruim para a Educação?

Para Salomão Ximenes, sim. O professor da UFABC e membro da REPU destaca que o novo arcabouço fiscal pode levar a uma alteração regressiva na legislação daqui alguns anos. Isso basicamente porque o texto aprovado até o momento acaba agregando regras diferentes de crescimento de gastos em educação. Assim, uma delas teria que se ajustar. 

As duas regras diferentes são as seguintes: a vinculação mínima constitucional e a própria regra do arcabouço fiscal. A vinculação mínima exige que no mínimo 18% do total arrecadado em impostos vá para a educação, e permite que esse valor cresça 100% de um ano para o outro. Ou seja, se as receitas crescem 100%, a destinação também cresce. Já o arcabouço fiscal, como vimos, limita esse crescimento a 70%. É como se fossem dois carros em uma mesma pista, mas a velocidades diferentes – em algum momento o carro a 100 km/h vai colidir com o que vai a 70. “O principal risco geral do arcabouço é que ele até agora não está prevendo uma regra de adaptação entre esses dois sistemas. Então mesmo que seja aprovado sem o Fundeb, há conflito”, explica. Este conflito não é direto – porque há uma hierarquia a ser cumprida: se um dispositivo é Constitucional, a lei complementar não pode descumprí-lo -, mas acaba sendo um conflito de objetivos. São dois carros que vão se chocar – não por falhas mecânicas, mas pelas velocidades diferentes. Para que não se choquem, o carro que vai mais rápido (100% de crescimento) precisaria se ajustar à velocidade do outro (70% de crescimento). 

“Isso obrigatoriamente traz a necessidade de revisar os repasses mínimos para saúde e educação”, resume Salomão. Se não, para não descumprir a Constituição, todo o recurso arrecadado no país teria que ser destinado apenas para essas áreas. “Ou seja, é possível que este arcabouço esteja encomendando o fim da vinculação como conhecemos”. Seria um “cavalo de troia” embutido no atual projeto. “Mas um cavalo de troia de cabeça para baixo, é uma lei complementar que poderia obrigar uma mudança na Constituição”, ressalta. E essa mudança, na prática, daria menos prioridade orçamentária para saúde e educação, além do possível efeito cascata que isso se reproduza também a nível de estados e municípios. 

Com esse horizonte em vista, é preciso pressionar ainda mais as e os parlamentares e o Executivo e mobilizar as comunidades escolares, jovens e seus coletivos para o debate sobre como a economia impacta a qualidade da escola e das políticas educacionais. O aumento das desigualdades educacionais certamente será o maior impacto da aprovação de um arcabouço fiscal que coloca em risco investimentos essenciais para o avanço, por exemplo, de institutos e universidades federais, alimentação e transporte escolar. 






Novo Ensino Médio, desemprego e racismo: quais os impactos da precarização da vida e da educação na saúde mental da juventude?

Desde a pandemia, jovens relatam piora na saúde mental e demandam atenção para essa questão também na escola. Pesquisas confirmam relação entre precarização da vida e adoecimento psicológico. 

Texto: Nana Soares / Edição: Claudia Bandeira

Oficina sobre Saúde Mental realizada pelo projeto Tô No Rumo, em março de 2023.

“Quando começou a pandemia, fomos pegos de surpresa. Fomos para casa achando que ia passar rápido e logo voltaríamos à rotina, mas acabamos passando 2020 inteiro em casa, com convívio limitado, e percebemos que ia ser difícil recuperar tudo depois. Depois voltamos um dia por semana para a escola e ainda assim percebemos que estava fraco. Quando cheguei ao segundo ano [do ensino médio] veio a bomba do Novo Ensino Médio no nosso colo, no dos professores e de toda a escola. Todo mundo precisou trabalhar com o que tinha. E esse ano, além de ter que correr atrás de tudo que a gente perdeu e ainda se adaptar ao novo ensino médio, tem ENEM. A verdade é que estamos tendo que estudar duas vezes mais porque estamos defasados.”

O relato acima é de Stella Barbosa, estudante do terceiro ano do Ensino Médio de uma escola pública da cidade de São Paulo, e ilustra bem como as e os estudantes brasileiras/os têm sentido os impactos de anos de políticas de austeridade e precarização na educação e nos serviços públicos. Essa piora em condições estruturais tem afetado diretamente a saúde mental das juventudes, que demandam mais atenção e cuidado nessa esfera. 

A pauta da saúde mental tem, de maneira geral, ganhado mais visibilidade nos últimos anos. Mas, além da visibilidade, também tem de fato se tornado mais urgente para jovens que vivem na pele os efeitos de macropolíticas que causam piora na qualidade de vida. Uma pesquisa recente da Plan International realizada com adolescentes meninas de diversos países do sul global atestou que os principais problemas de saúde mental nessa faixa etária têm origem na pobreza, violências e desigualdades de gênero. E que uso abusivo de álcool, tabagismo e sedentarismo são mecanismos acionados para tentar contornar sentimentos de estresse, tédio, ansiedade e depressão. Outra pesquisa, do Instituto Datafolha, também aferiu um cenário preocupante na saúde mental de jovens brasileiras/os, especialmente em meninas e jovens LGBTQIA+, evidenciando a relação entre contextos macropolíticos desfavoráveis e o adoecimento a nível individual. 

“Esse processo foi intensificado pela pandemia e pelo projeto político genocida do governo anterior, que dificultou ainda mais o acesso das juventudes em diversas áreas”, diz Bruno Mota, ​​psicólogo do Instituto Afro Amparo e Saúde e doutorando em Psicologia na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Bruno reforça os impactos das desigualdades raciais na saúde mental da população negra, lembrando que “a precarização e o desmonte dos serviços públicos, além da iniquidade em saúde, fazem com que populações negras e periféricas continuem excluídas de um programa de saúde integral”. O psicólogo reforça que este fenômeno não é novo, bem como não são a violência estatal, a letalidade policial, o desemprego e o racismo, alguns dos principais fatores de adoecimento. 

No Brasil, o instituto AMMA – Psique e Negritude, é pioneiro em abordar essa relação, defendendo que o enfrentamento ao racismo se faz tanto política quanto psiquicamente. “O racismo, além de violar direitos sociais, prejudica a saúde psíquica dos indivíduos: podendo fazê-los desenvolver sintomas psicossomáticos, inibições, impedimentos (de acesso, de participação), especialmente na experiência de negritude; e/ou desenvolver uma autoimagem distorcida, descolada da própria realidade e racialidade, como ocorre principalmente na experiência de branquitude”, como definem em seu site. Por isso, o instituto realiza ações como grupos temáticos de discussão, ciclos formativos sobre efeitos psicossociais do racismo e oficinas de identificação e abordagem do racismo institucional.

Em março de 2023, o Projeto Tô No Rumo, da Ação Educativa, realizou um encontro sobre o tema com jovens do ensino médio – demanda que partiu das e dos estudantes. Cinthia Gomes, jornalista, e integrante da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial e da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, foi uma das facilitadoras dessa formação e reforça que é importante destacar a atitude dos estudantes que reivindicam sua qualidade de vida. “Mas percebo principalmente dois aspectos afligindo a saúde mental das juventudes: as redes sociais e a afirmação das identidades”, diz ela. As redes sociais por conta da comparação com outras vidas e contextos “e a grande angústia de não conseguir atingir padrões – sejam eles de beleza, financeiros, ou de popularidade, ainda que muitas vezes esses não sejam tão verdadeiros assim, mas construídos midiaticamente, para as redes”, lembra. Além disso, há grupos que têm dificuldade de se afirmar plenamente e de viver livremente suas identidades em seus meios ou na sociedade em geral, como mulheres, juventudes negras, LGBTQIA+, pessoas fora do padrão de magreza. “Vivem em meio a essa não aceitação de quem se é é uma grande fonte de sofrimento mental”, enfatiza Cinthia. 

Precarização da Educação

A educação pública brasileira vem há anos sofrendo com o subfinanciamento, a precarização, a influência do setor privado, a austeridade e o acirramento das desigualdades regionais, raciais e de gênero. Além disso, um projeto ultraconservador fez avançar a militarização das escolas, que desencoraja as e os estudantes a expressarem suas identidades e opiniões. Para completar, o Novo Ensino Médio (NEM) entrou em vigor, aumentando ainda mais o abismo entre as escolas públicas e privadas, já que a maior parte da rede pública não consegue ofertar o que o NEM exige, e alunos mais pobres e trabalhadores são os mais prejudicados. Na pandemia, a falta de acesso à internet ou a celulares/computadores para assistir as aulas remotas também prejudicou estudantes da rede pública, que não tiveram a infraestrutura garantida pelo Estado. O resultado é que disparou a evasão escolar e o ENEM de 2021 foi o mais branco de sua história. 

Este contexto, é claro, impacta negativamente na saúde mental dos estudantes diretamente afetados. “Desde o ano passado, o grêmio da escola começou a apontar sobre isso, porque a pandemia defasou muito os alunos, e isso fez com que pesasse muito, além da surpresa do novo ensino médio”, relata Stella Barbosa, do terceiro ano do EM. “Percebemos esse baque quando voltamos ao presencial, foi quando vimos a defasagem e ficamos preocupados, porque é o nosso futuro. Foi uma coisa nova pra todo mundo. A escola chegou a colocar uma psicóloga para atender grupos de estudantes, mas não deu certo porque as pessoas queriam privacidade”, conta ela. Adelmo Vitóryo, aluno de escola pública e que ingressou este ano no curso de Ciências Sociais na USP, participou de um desses encontros com psicólogos e criticou a medida. “Foi apenas uma sessão e depois nunca continuaram, como se isso fosse resolver o problema dos alunos”, diz. Ele, que quando estava no ensino médio foi presidente do grêmio estudantil, também entende que a urgência do atendimento em saúde mental aumentou durante a pandemia, e que os governos ainda não olham para isso com a seriedade que o tema pede. “E acredito que pessoas trans e jovens negros são especialmente afetados. Todo mundo merece cuidado, mas acho que esses dois grupos estão ainda mais tensionados e não recebendo o acolhimento necessário”. 

A pesquisa “A educação de meninas negras em tempos de pandemia: o aprofundamento das desigualdade”, realizada pelo Geledés em 2021 de fato constata a situação de vulnerabilidade das meninas negras no município de São Paulo no período. Como mostrou o estudo, são elas que menos receberam material didático/recursos pedagógicos durante o ensino remoto, o que afetou a realização das atividades escolares. Ainda, tanto docentes como organizações da sociedade civil ouvidos pela pesquisa consideram que gênero e raça incidiram sobre o impacto da pandemia na vida de estudantes, e os dados apresentados pelas famílias participantes da pesquisa reafirmam esta hipótese. E alguns dos principais motivos elencados foram trabalho precário, incluindo o aumento de tarefas domésticas; vulnerabilidade social; desigualdades; baixa autoestima; violência; racismo; e sexismo.

O psicólogo e professor Bruno Mota ressalta que a sequência de precarizações causa um processo de “desesperançar”, ou “a falta de esperança por conta da impossibilidade de acessar o ensino público de qualidade, especialmente com o Novo Ensino Médio. Essa precarização prejudica e interrompe os sonhos da juventude, mina seus horizontes. Como pensar um projeto de vida?”, questiona. “Qual o amanhã possível com o sufocamento de um projeto profissional?”. 

“Os dados desta pesquisa, que representa diferentes regiões do município de São Paulo, demonstram que, se considerarmos as variáveis de raça, gênero e renda, as consequências da pandemia atingem de forma desigual os diferentes grupos sociais. Por exemplo, nenhuma das famílias brancas aponta como dificuldade “aumento dos conflitos e/ ou situações de violência intrafamiliares”, “diminuição do número de refeições realizadas pelos membros da família”, “mudança ou perda de residência/território”, “membros da família contaminados e/ou falecidos pela Covid-19”, problemáticas estas que afetaram apenas as famílias negras e inter-raciais entrevistadas.” – trecho da pesquisa “A educação de meninas negras em tempos de pandemia: o aprofundamento das desigualdade”. 

Possíveis saídas

A já citada pesquisa da Plan International que constatou a relação entre pobreza, desigualdades e piora da saúde mental traz a necessidade das discussões abertas sobre saúde mental e bem estar. Além disso, é importante acessar serviços de apoio – que precisam incluir uma ampla gama de serviços, não apenas atendimento psicológico. No entanto, uma pesquisa realizada pelo UNICEF sobre saúde mental de adolescentes e jovens constatou que mais da metade das e dos jovens sente necessidade de pedir ajuda, mas que também cerca de metade não conhece serviços ou profissionais dedicados a apoiá-las/os. Há, portanto, a necessidade de ampla divulgação e disseminação em espaços escolares e não-escolares de serviços e redes existentes nos territórios para que  jovens possam conhecer e acessar. 

Estratégias de autocuidado a nível individual existem e são muito importantes, mas também estão conectadas a uma dimensão coletiva, como explica o psicólogo Bruno Mota.  Não adianta, por exemplo, sobrecarregar-se mentalmente em sua atuação política a tal ponto que não seja possível cuidar de você e de suas redes. “É preciso reconhecer limites, reconhecer até onde o indivíduo consegue ir, priorizar o que promove vida e afetividade”, recomenda ele. Ele também lembra que o descanso e o lazer são atitudes políticas. “Retome o que te faz bem: um baile funk, roda samba, show de hip hop, um rolezinho no shopping. Tudo isso é promover vida”, diz. 

Por outro lado, se os processos que levaram à precarização da vida e da educação e colaboraram para um adoecimento são estruturais, eles não serão resolvidos apenas com ação individual. Envolvem organização e luta coletiva – e estas estratégias também acabam fortalecendo pessoas de grupos discriminados a nível psíquico. “Organizações coletivas são espaços de fortalecimentos de identidades individuais, de lutas que passam a ser coletivas. É de fato um instrumento para aliviar a alma”, lembra Cinthia Gomes, jornalista e parte da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo. “É claro que, por organizações e coletivos serem compostos por pessoas, não são perfeitos e eventualmente podem ter situações prejudiciais, mas isso é pelas imperfeições humanas. O potencial é da organização ter uma força transformadora. Vale a pena a gente tentar, a gente se aquilombar, estarmos juntos”, defende. 

Na mesma linha, o psicólogo Bruno Mota reforça: “cada um pega a mão do outro e da outra. A violência – racial, misógina, classista, etc – continua existindo, mas os arranhões não se direcionam a um só corpo e sim são diluídos para um coletivo. E também são nesses espaços de comunidade que nos permitimos redesenhar estratégias e rotas políticas”. E finaliza: “A situação estar ruim não significa que vamos esmorecer. As juventudes negras periféricas são e sempre foram pólos de resistência e enfrentamento às violencias. Produzem vida nesse cenário catastrófico. Nossa comunidade não sucumbe”.  

Para quem quiser ler mais sobre a relação entre racismo e saúde mental, recomendamos a biblioteca do Instituto AMMA: http://www.ammapsique.org.br/biblioteca.html 



Governo Lula ainda não revogou Programa de Escolas Cívico-Militares; projeto acirra ainda mais a violência nas escolas

Prioridade de Bolsonaro, a militarização das escolas, ainda não foi freada pelo MEC e o modelo avança em diversas regiões do país. 

Primeiro dia de aulas no CED 01 da Estrutural, uma das escolas públicas do DF onde foi implementado o modelo cívico-militar. Modelo impulsionado no governo Bolsonaro intensifica exclusões no ambiente escolar

Texto: Nana Soares / Edição: Claudia Bandeira

Uma das principais agendas do governo Bolsonaro na Educação, a militarização das escolas, instituída pelo decreto 10.004, de 2019, que trata do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM) ainda não foi revogado no governo Lula, apesar de pressão da sociedade civil e movimentos estudantis. A ausência de posicionamento do MEC não interrompe a expansão do modelo, que vai contra diretrizes constitucionais para a educação, acirra desigualdades e reforça o racismo, o machismo e a LGBTfobia nas escolas. 

O PECIM

O Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM) foi instituído por decreto presidencial em 2019, logo no início do governo Bolsonaro. Ele não é a única forma de militarizar escolas e nem inaugurou este processo, mas o impulsionou fortemente, mais que triplicando o orçamento destinado às escolas cívico-militares – R$64 milhões em 2022, ante R$18 milhões em 2020. As unidades que aderiram a este programa também foram de 120 (2018) para 215 (2022), embora este número seja apenas uma parcela do total, porque há também os programas instalados em âmbito estadual ou municipal. Há, por exemplo, ao menos 199 escolas públicas militarizadas na rede estadual do Paraná e outras 98 na Bahia

GLOSSÁRIO 
Militarização das escolas é a transferência do processo de gestão das escolas civis públicas para diferentes forças de segurança, como a Polícia Militar, Bombeiros, Guarda Municipal, Exército, Aeronáutica, Marinha e Polícia Rodoviária Federal. 

O PECIM é uma parceria com o Ministério da Defesa, e parte dos recursos da educação é destinada a pagar os militares da reserva que passam a atuar nas escolas. Entre as muitas críticas ao programa está justamente o desvio de função dos militares e a desvalorização, inclusive salarial, das e dos profissionais da educação que decorre deste processo. Além disso, as escolas cívico-militares funcionam sob uma lógica de obediência a um único modelo, de rígida hierarquia e padronização. 

Efeitos da militarização

Não são poucas as denúncias de assédio ou repressão a estudantes quando manifestam individualidades que fogem do rígido e estrito padrão imposto pela escola militarizada. Padrão esse que se baseia em ideais brancos, heteronormativos e privilegia apenas um tipo de masculinidade e feminilidade. Somente meninas podem usar brincos, por exemplo. Em março de 2022, uma estudante baiana negra foi impedida de entrar em sua escola [militarizada] por conta do cabelo crespo, recebendo a ordem de alisá-lo. No mesmo mês, em Santa Catarina, alunas receberam advertência por levar uma bandeira LGBT para a escola. “[A militarização] é um retrocesso porque põe a escola a serviço de uma lógica racista de perseguição, de vigilância permanente e de contenção da juventude negra compreendida como uma ameaça à sociedade”, resume Denise Carreira, professora da Faculdade de Educação da USP e parte da Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação. “São impostos comportamentos rígidos, valorizadas masculinidades autoritárias, silenciados os espaços de crítica ao modelo disciplinar militar, esvaziada completamente a gestão democrática e reprimida a atuação de coletivos juvenis, de grupos culturais e de produções que manifestem posições de denúncia contra o racismo, a LGBTQIA+fobia e o autoritarismo”, completa. 

No Paraná, um dos estados onde esse processo foi impulsionado com mais vigor nos últimos anos sob a gestão de Ratinho Junior (PSD), 18 entidades organizaram-se para criar o Observatório de Escolas Militarizadas (OEM) a fim de monitorar, receber denúncias e combater as violações de direitos contra as comunidades escolares. Segundo Vanda Bandeira Santana, integrante do OEM, um dos efeitos da militarização no estado é o enfraquecimento da gestão democrática nas escolas. Isso porque as unidades que aderiram ao processo de militarização a âmbito estadual (cerca de 200, ou 10% da rede) passaram a funcionar sob outro regimento, onde diretoras e diretores não são mais eleitos pela comunidade escolar mas sim nomeados. “E isso está atrelado a um outro movimento do governador de implementar metas para as escolas tendo o Ideb como referência”, explica Vania. 

De fato, um dos argumentos do governador é que as escolas cívico-militares são um “modelo vencedor”, com o Ideb maior do que nas escolas regulares. Um argumento contestado por Catarina de Almeida Santos, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) e referência na temática de militarização. Ela defende que militarizar uma escola é na verdade transformá-la em lugar de privilégio e exclusão: “Essas escolas transferem aqueles e aquelas que não se adequam ao projeto, o que inclui o ‘não concordar’ mas também tem a ver com o rendimento do aluno. Então quem em geral tem problemas de rendimento, o que sabemos ser influenciado por fatores sociais, será excluído”. 

No próprio Paraná, como denuncia Vanda Santana, as escolas que passaram pela militarização foram majoritariamente as que já tinham melhor estrutura física e pedagógica. Ainda segundo Catarina de Almeida Santos (leia a entrevista completa aqui), “os dados das primeiras escolas públicas militarizadas de Goiás mostram que estudantes que já tinham rendimento médio continuaram tendo rendimento médio após a militarização, e a mesma coisa para o de rendimento alto, mas os alunos de baixo rendimento são transferidos. Há ainda muitas escolas que exigem a compra de farda, traje de gala, ou até mesmo cobram uma pequena mensalidade para que a escola fique mais bonita”. 

Outro efeito narrado por Vanda, que é professora de história do Ensino Fundamental e secretária educacional da APP Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras em Educação Pública do Paraná, é a intensificação do monitoramento do comportamento de estudantes paranaenses. “Começamos a receber denúncias de que, sob o regimento militar, expressividades como piercing, cortes de cabelo, comprimento de cabelo, entre outros, estão sendo perseguidas. De que estudantes que ‘não se enquadram’ são transferidos para outra escola”, conta. Tendência que só piora se o processo de militarização no Paraná continuar se expandindo – o que é o plano do atual governador

Continuidade ou revogação?

Sendo parte crucial do projeto ultraconservador de Bolsonaro para a educação, a expectativa era que o novo governo Lula prontamente revogasse o decreto do PECIM e, ainda mais importante, que a gestão liderasse um processo de desmilitarização das escolas já militarizadas. Até o momento, nenhuma dessas coisas aconteceu. 

“Já passou – e muito – da hora da revogação do PECIM”, defende Catarina de Almeida Santos, professora da UnB, que não vê justificativas para a demora. “Quanto mais tempo leva, mais as unidades federativas se sentem tranquilas para continuar militarizando as escolas, porque a não revogação também dá esse recado”, complementa.

Durante o processo de transição, a equipe de Lula descartou novos acordos para escolas cívico-militares, mas não mencionou a reversão do processo em curso. O relatório final da equipe de transição também incluiu o PECIM na seção de medidas para revogação e revisão, mais especificamente na sugestão de revogações e revisões de “atos contrários aos direitos de crianças, adolescentes e da juventude”. Apesar do relatório reconhecer que nos anos Bolsonaro a Educação foi “tratada como instrumento para a guerra cultural e com aparelhamento ideológico” e que o MEC “implementou diversas ações educacionais alinhadas a uma pauta atrasada e com uma visão divergente das políticas que, comprovadamente, asseguram uma educação pública de qualidade a todas e todos”, o documento, quando fala especificamente do PECIM, sugere avaliar o “custo-benefício” do programa para então decidir sobre seu orçamento e continuidade. Não menciona os impactos da militarização nas agendas racial , de gênero, sexualidade e gestão democrática, por exemplo. 

“Nossa hipótese para a demora na revogação é que o governo – apesar de ter se manifestado pela interrupção do programa –  esteja evitando acabar com o PECIM  para não aumentar o tensionamento com os militares, considerando o contexto de responsabilização dos envolvidos na tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro.  Somam-se a isso os ataques às escolas no último período, que mobilizaram o pânico nas famílias e junto aos profissionais de educação e reaqueceram o debate sobre o papel das forças de segurança pública nas instituições educativas”, explica Denise Carreira. 

Logo nos primeiros dias da gestão, o Ministério da Educação acabou com a diretoria responsável pelas escolas cívico-militares, vinculada à Secretaria de Educação Básica. Mas não revogou o PECIM, que continua vigente. Contatado pela reportagem, o MEC, via equipe de Coordenação Geral do Ensino Fundamental, informou que o PECIM “está em análise pela equipe técnica da Secretaria de Educação Básica, que apresentará ao Ministro de Estado da Educação suas conclusões a fim de subsidiar sua decisão a respeito da continuidade, revisão, reestruturação ou extinção do referido Programa”. No entanto, a Pasta não informou nenhum prazo para as próximas etapas. Também não houve nenhum movimento nesse sentido nas ações comemorativas dos 100 dias da gestão. A pergunta que fica é: qual o plano do MEC para o PECIM?

Como reverter a militarização?

No contexto dos recentes ataques às escolas brasileiras, algumas unidades da federação têm recorrido justamente à militarização como resposta ao crescente de violência. No estado de São Paulo, tramita um projeto de lei que permite que policiais militares de folga possam fazer a segurança armada das escolas públicas estaduais. No mesmo mês de abril, proposta similar foi apresentada pelo governador de Santa Catarina. Em nota, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação alerta que é preciso analisar a questão de forma mais profunda e que o debate sobre a falta de segurança e a violência nas escolas não pode se limitar a uma questão de segurança pública, devendo passar “pela discussão sobre o fim da militarização das escolas, sobre o desarmamento da sociedade, sobre a ausência do Estado na promoção de uma cultura de paz, de políticas públicas da saúde mental para sua população”. A Campanha também recomenda que as escolas criem parcerias com instituições que atuam na rede de proteção de crianças, adolescentes e jovens. 

Na avaliação de Vanda Santana, do Observatório de Escolas Militarizadas (OEM) do Paraná, a resposta pela via da militarização – o “caminho mais fácil” –  apenas reforça a raiz do problema:  “É justamente o movimento de impor regras comportamentais, da repressão, que leva a atos violentos. Aumentar a repressão vai fazê-los diminuir?”, questiona. “O processo da desmilitarização não é fácil, mas é necessário”. Denise Carreira, da Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação, reforça ainda que a segurança pública é um direito humano e constitucional, mas que não pode ser “a” resposta ao problema da violência nas escolas através de cerceamento e controle dos corpos. Ela aponta que, entre as muitas ações necessárias para enfrentar este problema, está a valorização das profissionais da educação para que tenham condições de vida e de trabalho adequadas e que sejam então estimuladas a se fixarem a uma única escola, superando a alta rotatividade, especialmente em territórios de extrema vulnerabilidade.  “Precisamos fortalecer as escolas garantindo menos estudantes por turma, mais professores concursados, equipes que consigam conhecer os estudantes, suas famílias e o território no qual a escola está inserida. Precisamos de um programa nacional de saúde mental robusto voltado para estudantes, famílias e profissionais de educação”, elenca ela. 

Mais de 200 entidades da sociedade civil compartilham do horizonte da desmilitarização da educação e a favor da vida e vêm pressionando o governo a tomar medidas concretas neste sentido. Em março, elas lançaram um manifesto conjunto demandando a revogação do PECIM e indicando uma série de propostas para dar fim ao processo de militarização. Entre a extensa lista de razões pela revogação do decreto do PECIM, estão: o programa não estar amparado pelo Plano Nacional de Educação (PNE); as inúmeras violações de liberdades de expressão, de organização e de associação sindical dos professores; o fato de que militares não estão no rol de profissionais autorizados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional a atuar na gestão das escolas ou em qualquer outra função típica dos trabalhadores da educação; e de que a militarização fere princípios constitucionais do ensino, como a liberdade de aprender e ensinar, o pluralismo de ideias, a valorização de profissionais da educação e a gestão democrática, além de ferir o respeito à identidade e à diversidade individual e coletiva da juventude (Estatuto da Juventude, art. 2º, inciso VI).

Por outro lado, as ações propostas para reverter a desmilitarização incluem: Elaborar políticas públicas nas áreas da convivência e gestão democrática na escola; Retomar planos e programas para educação em direitos humanos; mobilizar campanhas de estímulo à mudança de nomes de escolas públicas vinculadas a personagens das ditaduras militares e da colonização violenta do país; propor medidas de justiça de transição para superação do legado autoritário do Brasil; convocar o CNE a se manifestar sobre a incompatibilidade entre os processos de militarização da escola pública e as diretrizes da educação básica do país. 

A professora Catarina de Almeida Santos ressalta que este processo deve ser liderado pelo Ministério da Educação, embora em articulação com outros órgãos e ministérios. “Este papel [de capitanear a agenda de desmilitarização] é da União. Ainda que estados e municípios continuem, o governo federal mostra ação e pode tomar uma série de medidas jurídicas e orçamentárias. Se Bolsonaro pode impulsionar a agenda, Lula pode reverter”, resume. 


Semana de Ação Mundial 2023 abre inscrições para a maior atividade pela educação do planeta

Inscrições para a Semana de Ação Mundial 2023 são prorrogadas até 28 de maio

A 20ª Semana de Ação Mundial, maior ação coletiva em prol da educação do planeta, vai acontecer entre os dias 19 e 26 de junho e está com as inscrições abertas até 28 de maio!

De 2003 a 2022, a Semana já mobilizou mais de 90 milhões de pessoas em todo o mundo, sendo cerca de 2 milhões de pessoas apenas no Brasil.

Como acontece a cada edição, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, como realizadora da SAM, fará o envio gratuito de materiais e certificados para as/os participantes.

INSCREVA SUA ATIVIDADE JÁ: A DISTRIBUIÇÃO DE MATERIAIS IMPRESSOS É LIMITADA ÀS 1.000 PRIMEIRAS INSCRIÇÕES!

As inscrições para realizar uma atividade da SAM 2023 e para receber os materiais impressos gratuitamente pelos correios podem ser feitas neste link. Haverá certificado de participação mediante envio de relatório das atividades realizadas. Veja mais informações abaixo.

A 20ª Semana de Ação Mundial, maior ação coletiva em prol da educação do planeta, vai acontecer entre os dias 19 e 26 de junho e está com as inscrições abertas até 28 de maio!

Novo PNE e descolonização do financiamento da educação!

Com o tema Descolonização do financiamento da educação e o último ano do Plano Nacional de Educação (2014-2024), a SAM 2023 vai promover a participação democrática e a mobilização popular em torno da renovação do PNE, mostrando a importância da atualização da Lei do PNE sem retrocessos, com ousadia para a garantia de uma educação pública de qualidade a todas as pessoas. 

Descolonizar o financiamento significa que os Estados devem financiar a educação, e devem fazê-lo usando o máximo de recursos disponíveis, sejam eles recursos internos contínuos (PIB, impostos, empréstimos) como externos (cooperação internacional), bem como aquelas que possivelmente poderiam ser mobilizados (através de uma reforma tributária progressiva e outras reformas). Saiba mais na página “O que defendemos?”.

Com uma série de materiais disponíveis no site, como o Manual da SAM 2023 (a ser disponível em breve), a SAM propõe temas a serem trabalhados em atividades autogestionadas realizadas por professores, famílias e responsáveis, e estudantes, toda a comunidade educacional, gestores, conselheiros, tomadores de decisão e todas as pessoas preocupadas com a garantia do direito à educação. 

Plano Nacional de Educação

Os dias de evento também incluem a data de aniversário do Plano Nacional de Educação (PNE), dia 25 de junho de 2014, quando foi sancionado (Lei 13.005/2014). Assim, a SAM brasileira continua dedicada ao monitoramento da implementação do PNE, que é o nosso principal caminho para que toda a população brasileira possa ter acesso a uma educação pública de qualidade, da creche à universidade.

Este é o último ano do PNE. É também neste ano que o governo federal terá de enviar ao Congresso Nacional um novo Projeto de Lei com o PNE para o próximo decênio — o atual finda sua vigência em junho de 2024. 

Junto com os materiais disponibilizados no site da SAM, haverá a divulgação de uma série de cartelas do Balanço do PNE, que atualiza diversos dados educacionais e aponta patamares de cumprimento e, infeliz e especialmente, de descumprimento de cada uma das 20 metas do PNE. É também um valioso material para as atividades realizadas. Estamos na reta final do período para o cumprimento das metas (2014-2024) e ainda nenhuma delas foi integralmente cumprida.

Inscreva-se na SAM 2023

Para participar, acesse o portal da SAM 2023 e baixe os materiais digitais de divulgação virtual para já começar a mobilização para suas atividades. Basta acessar a aba “Materiais”. Em breve, disponibilizaremos também o Manual da SAM 2023 e mais subsídios.

Assim que realizar as atividades, o participante deve postar as fotos, vídeos e relatos! Assim como divulgar nas redes sociais usando as hashtags #SAM2023, #DescolonizaFinanciamento, #PNEpraValer e #SemRetrocessoComOusadia.

Certificado

Para receber um certificado de participação, a/o participante deve preencher o formulário no site semanadeacaomundial.org, indicando as atividades que pretende realizar com os materiais de apoio.

Logo após a Semana de Ação Mundial, a/o participante deve escrever um breve relatório das atividades realizadas, informando também o número de pessoas mobilizadas – anexando fotos e vídeos, autorizando ou negando sua divulgação. Para mais informações, escreva para sam@campanhaeducacao.org.br.

Realização

Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Comitê Técnico da SAM 2023

Claudia Bandeira – Ação Educativa
Ana Paula Brandão – ActionAid
Liz Ramos – Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF)
Nesly Lizarazo – CLADE – Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação
Guelda Andrade – CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação
Liliane Garcez – Coletivxs
Luana Rodrigues  – Escola de Gente – Comunicação em Inclusão
Nelson Cardoso Amaral / Rubens Barbosa de Camargo – Fineduca – Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação
Thais Martins – Mais Diferenças
Ingrid Ribeiro – REPU – Rede Escola Pública e Universidade
Gilvânia Nascimento – UNCME – União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação

Jhonny Echalar – Comitê GO da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Jhonatan Almada – Comitê MA da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação  

Maria Lima – Comitê MS da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação  

Felipe Baunilha – Comitê PB da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação  

Sandra Teresinha  – Comitê PR da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação  

Rita Samuel – Comitê RN da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação  

Walterlina Brasil – Comitê RO da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação  

Angelita Lucas – Comitê RS da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação  

Darli de Amorim Zunino – Comitê SC da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação  Raquel Maria Rodrigues – Comitê SP da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Jhonny Echalar – Comitê GO da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Apoio

Campanha Global pela Educação
CLADE – Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação
Trindade Tecnologia

Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Ação Educativa
ActionAid
Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF)
Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA-CE)
Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE)
Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca)
Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (Mieib)
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Rede Escola Pública e Universidade (Repu)
União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme)
União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime)

ASSESSORIA DE IMPRENSA

Renan Simão – assessor de comunicação da Campanha Nacional pelo Direito à Educação
comunicacao@campanhaeducacao.org.br
(11) 95857-0824 




Uma reforma irreformável: por que o novo Ensino Médio precisa ser revogado

Aprovado no governo Temer e implementado desde o ano passado, modelo acirra as desigualdades educacionais e pode aumentar a evasão escolar

Estudantes protestam desde 2016 contra o Novo Ensino Médio, que acirra desigualdades educacionais. Na foto, protesto em São Paulo em 2016. Deniel Mello/Agência Brasil

Texto: Nana Soares | Edição: Claudia Bandeira

Estudantes com um número ainda maior de disciplinas, mas frequentemente sem aulas porque não há professores para ministrá-las. Estudantes trabalhadoras/es, com mais dificuldade para acompanhar a carga horária, passam a assistir aulas no celular, ou sem professor, ou exibidas em uma televisão. Disciplinas obrigatórias e exigidas nos vestibulares, como Geografia, Sociologia e Física, passam a ser quase uma raridade, substituídas por disciplinas como culinária, empreendedorismo ou mídias sociais. Docentes, para cumprir sua carga horária, são obrigados a lecionar áreas ou temas para os quais não têm formação. O acesso ao Ensino Superior fica ainda mais distante. 

Este é o retrato do Novo Ensino Médio nas escolas públicas brasileiras, que representam 80% das matrículas em todo o país. O “Novo” Ensino Médio (NEM, Lei 13.415/2017, que vem da Medida Provisória 746/2016) começou a ser implementado em 2022 e os retrocessos trazidos por ele ficaram logo evidentes. “O NEM é basicamente uma reforma curricular, e no entanto é vendido como a solução para todos os problemas dessa etapa de ensino. É como se não houvesse historicamente uma dificuldade da universalização da educação básica, do acesso, permanência e qualidade. É uma solução barata e que não mexe nos problemas estruturais. Pelo contrário, devolve esses problemas para as escolas e para as professoras de maneira ainda mais complexa”, argumenta Débora Goulart, professora da Unifesp e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU).

Instituído por Medida Provisória, sem debate com estudantes, professoras e profissionais da educação, o “Novo” Ensino Médio aumenta a carga horária de 800 para 1.400 horas anuais e inclui a oferta de itinerários formativos, dando ênfase na formação técnico-profissional, com itinerário específico para esse fim sob a justificativa de que isso aumentaria o interesse das e dos estudantes pela escola e faria com que caísse a evasão dessa etapa de ensino. Mas, adotada no contexto das medidas de austeridade do governo Temer, a reforma nunca veio acompanhada de aporte de recursos – pelo contrário, já que a Educação sofreu cortes orçamentários sucessivos desde 2015 -, e logo se mostrou incompatível com um projeto de Educação pública de qualidade para todas e todos. 

As novas regras acabam por agravar as desigualdades educacionais, pois não garantem as condições de oferta de todos os itinerários em todas as escolas, dificultam o acesso à educação formal de jovens que trabalham, afasta estudantes de redes públicas do ensino superior, entre outros aspectos. O acirramento das desigualdades ocorre não apenas entre as redes pública e privada, mas também dentro da rede pública, já que a oferta dos conteúdos depende das condições das unidades educacionais e das redes de ensino. 

“Defendo a revogação da Reforma do Ensino Médio porque ela elitiza ainda mais a educação. Os alunos dos colégios privados têm toda a formação básica e ainda têm o privilégio de acessar aulas complementares de tudo que se possa imaginar, enquanto os estudantes das escolas públicas estão tendo defasagens na sua formação, aulas vagas e dificuldades para, por exemplo, utilizar o ENEM como possibilidade de acesso ao ensino superior”, defende a deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP). 

Um estudo da REPU de junho de 2022, por exemplo, já mostrou que no estado de São Paulo a falta de professores para cumprir os itinerários formativos fazia com que os estudantes da rede pública tivessem o equivalente a um dia letivo a menos de aula por semana – ou 1,5 dia no caso de estudantes dos períodos vespertino ou noturno, onde em geral se concentram aqueles/as que trabalham. 

Apesar do curto tempo de implementação, os fracassos do modelo já são evidentes, e até mesmo seus defensores iniciais admitem sua inviabilidade e defendem uma “reforma da reforma”. Por outro lado, estudantes, comunidades escolares, entidades e movimentos comprometidos com a defesa da educação pública de qualidade para todas e todos capitaneiam o crescente movimento pela sua completa revogação. Esse foi um compromisso de campanha do presidente Lula, mas o Ministério da Educação ainda não defendeu a revogação abertamente. Até o momento, a principal pressão vem da sociedade civil e do legislativo

O que mudou com a Reforma e o que isso significa?

No “Novo” Ensino Médio (NEM), as disciplinas passam a ser agrupadas nas quatro áreas do conhecimento previstas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) –  Linguagens, Ciências da natureza, Ciências humanas e sociais, e Matemática -, e as e os estudantes deixam de ter um único itinerário comum no Ensino Médio. Sessenta por cento da carga horária deve ser comum, mas os outros 40% vão depender dos itinerários formativos, que teoricamente ficam à escolha dos jovens com base em seu interesse, e que podem ser das 4 áreas de conhecimento previstas na BNCC, de ensino técnico, ou uma combinação de mais de uma área. O NEM aumenta a carga horária mínima de aulas, mas somente Português e Matemática permanecem obrigatórios em toda a etapa. Além disso, há o “Projeto de Vida”, ferramenta que deve ajudar as e os estudantes a escolher seus itinerários a partir de diálogos com educadores. 

O problema é que as escolas que conseguem de fato ofertar isso aos estudantes e com qualidade são a exceção e não a regra no país. É consenso entre diferentes agentes das comunidades escolares que as alunas e alunos estão tendo menos aula do que antes, apesar do suposto aumento da carga horária. Além disso, o modelo não foi construído ou sequer debatido junto às comunidades escolares, jovens e à população, não injetou novos recursos na educação pública e tem sido implementado sem diálogo e às pressas. O resultado é que o tiro sai pela culatra: se o objetivo é aumentar o interesse pela escola, a evasão pode aumentar justamente entre a população mais pobre. Se é oferecer educação profissionalizante, essa não cumpre a carga horária suficiente para um diploma, mas sua inserção retira as disciplinas que caem em vestibulares. Ou seja, o novo Ensino Médio agrava o cenário já devastador de antes e vai na contramão de suas próprias justificativas. 

Como relata Catherine da Silva Costa, que a partir do segundo ano do EM teve as aulas no novo modelo, “ir embora duas horas mais cedo ou ter o Projeto de Vida era a mesma coisa”. Ela, estudante da rede pública de São Paulo/SP, fez o itinerário formativo na área de Mídias, mas relata que não foi exatamente uma escolha, já que a oferta de opções era restrita. “No itinerário de Tecnologia e Inovação, os professores é que pediam ajuda para os alunos. E não é culpa deles, que não tiveram qualquer preparo para esse modelo”, diz ela. 

Essa experiência é corroborada por Vanessa Cândida, professora de Sociologia da rede estadual de São Paulo. Em sua vivência, o novo Ensino Médio tem desestimulado estudantes e docentes. Professoras e professores porque suas disciplinas de formação tiveram carga reduzida e, para cumprir suas cargas horárias, as e os profissionais acabam tendo que ensinar temas para os quais não têm formação. Vanessa dá como exemplo um caso na escola que leciona: o itinerário formativo de jornalismo ficou sob responsabilidade do professor de Educação Física, que, para poder trabalhar com algo que lhe era familiar, passou a lecionar práticas corporais. Ou seja, estudantes de Jornalismo não tinham, de fato, as aulas que pensaram que iam ter ao fazer essa “escolha”. “E pense que um profissional pode pegar 3 ou 4 disciplinas diferentes, de vários anos diferentes, então a sobrecarga também vem nesse sentido”, diz Vanessa. Situação que pode ser ainda mais grave caso a escola não tenha profissionais suficientes, tendo que deixar os/as alunos/as sem aula. 

Sob a reforma, a estudante Catherine, que estudava no período noturno, tinha apenas uma aula de Geografia por semana, em contraponto às duas de Mídias que, segundo ela conta, limitavam-se a ler e interpretar textos. Mudança de currículo que foi sentida inclusive no ENEM, onde ela avalia que teve prejuízos. “Foi um sentimento generalizado, todos da minha turma sentiram a diferença comparando com o modelo antigo. E não estamos nem falando de escola particular, mas de outras escolas estaduais mesmo, que estavam muito à nossa frente”, alerta. 

Vale lembrar que durante a pandemia o ENEM foi o mais branco e elitista da história, já que muitos estudantes negros, indígenas ou mais pobres se sentiram desencorajados a fazer a prova dada a precariedade do ensino no período. Fator que pode se tornar uma constante com o novo Ensino Médio. “Pense em um contexto que os itinerários não têm professores, o número de matérias se multiplicou, adicionando muita pressão nos alunos, e vindo de um contexto de pandemia. Muitos alunos nem foram fazer o ENEM”, relata a professora Vanessa Cândida, para quem fica evidente o processo de expulsão escolar, especialmente para estudantes pobres, negras e negros, trabalhadoras e trabalhadores dentro e fora do espaço doméstico. “E esse é um outro ponto da reforma: [ao aumentar a carga horária] ela ignora que os e as estudantes têm vida e outras demandas além da escola”.

Mas isso não significa que os conteúdos científicos sejam a prioridade, já que o Novo Ensino Médio diminuiu justamente essas disciplinas em detrimento de outras mais mercadológicas. “O que vemos é uma grande miscelânea de conteúdos voltados para o chamado saber fazer, para a aplicabilidade no mercado. Não há sequer problema em dizer que tudo bem não aprender, por exemplo, Física, porque não vai usar para nada. Ou seja, é ofertar menos conteúdo e menos conhecimento, é deixar a escola mais precarizada e o professor mais enlouquecido por ter que dar aula de algo que não sabe o que é. É uma reforma irreformável”, resume Débora Goulart. 

Mas revogar significa voltar para o que era?

Não. Ao menos não se os Poderes fizerem agora o que não fizeram em 2016/17: fomentar um amplo debate com estudantes, professoras e profissionais da educação e consulta popular para a construção de um novo modelo que, de fato, faça sentido e possa começar a corrigir os problemas existentes nessa etapa de ensino. O ponto é que não é possível fazer isso sem revogar o novo modelo vigente. 

“Se não interrompemos a reforma agora podemos cristalizar um projeto de crueldade de dar menos escola para quem mais precisa”, resume Debora Goulart, da Unifesp e da REPU, que alerta que ainda há tempo sim de revogar o Novo Ensino Médio. “Talvez a mudança do ENEM, isto é, a adaptação da prova a esse modelo, é que seja o ponto de não retorno. Revogar agora significa estancar o processo de deterioração do ensino médio e reconduzi-lo para seu caráter de aprofundamento da ciência e da cultura e que pode sim ter elementos da cultura local e do interesse da comunidade, desde que isso seja construído pela própria comunidade”, complementa. Em suma: a ideia não é voltar para o que estava ruim, mas sim parar, com urgência, o que está ainda pior e então de fato avançar para um novo modelo. 

“A revogação é um ponto de partida, é o mínimo para que a gente consiga debater de fato a qualidade no Ensino Médio no Brasil” – Sâmia Bomfim (PSOL-SP). 

E na prática, é possível revogar? O que posso fazer? 

Sim. Há projetos de lei em tramitação propondo a revogação do NEM, como o PL 10682/2018, do Deputado Bacelar (Podemos-BA) – e um dos caminhos é a aprovação de um desses projetos. Eles podem ser votados em caráter de urgência pelas casas do Congresso e, se aprovados, basta a sanção do Presidente da República. Se seguirem a tramitação tradicional, tramitam antes nas Comissões correspondentes para depois irem à votação no plenário. 

 Neste processo, a pressão da sociedade civil é parte fundamental. Atualmente, há um abaixo-assinado (https://nossaluta.com.br) com mais de 120 mil assinaturas organizado pelo deputado Glauber Braga (PSOL-RJ), e que deve ser utilizado como instrumento de pressão no Congresso e junto ao Ministério da Educação. Quem quiser se envolver nesta luta pode começar assinando e compartilhando este abaixo-assinado, bem como pressionando os parlamentares de seu estado “porque é na ponta que as articulações têm o maior impacto”, lembra a deputada Sâmia Bomfim. 

ASSINE AQUI O ABAIXO-ASSINADO PELA REVOGAÇÃO DO NOVO ENSINO MÉDIO