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Prorrogar a vigência do Plano Nacional de Educação pode enfraquecer suas metas e estratégias

Proposta aprovada pelo Senado prorroga a vigência da lei 13.005/2014 até dezembro de 2025, o que pode abrir perigoso precedente de descumprimento e ter efeito cascata em estados e municípios. 

Foto: CONAE 2024

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira 

O atual Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado pela lei 13.005, de 2014, completa 10 anos de vigência com cerca de 90% de descumprimento de seus dispositivos, 13% em retrocesso e 30% com lacuna de dados segundo o último balanço da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação. Sob a justificativa de não haver vácuo até a aprovação do novo plano, ele pode ter sua vigência prorrogada, o que abriria um sério precedente de descumprimento de políticas públicas e pode enfraquecer suas metas e estratégias. Outra preocupação se refere aos prejuízos com relação à articulação federativa, já que estados e municípios devem elaborar seus planos seguindo as diretrizes nacionais.  

O projeto de lei 5.665/2023 de autoria da senadora Professora Dorinha Seabra (União/TO), foi votado e aprovado em maio pelo Senado e enviado à Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, presidida pelo bolsonarista Nikolas Ferreira (PL-MG). Originalmente, o projeto de lei previa a prorrogação da vigência do atual PNE até 2028, mas o texto acabou mudando após negociação política, incorporando emenda do senador Cid Gomes (PSB-CE) que limita a extensão até dezembro de 2025. A argumentação da autora do PL é que a prorrogação do PNE permite manter o foco na direção anteriormente traçada até que o novo plano – cuja tramitação está atrasada – entre em vigor. Outro argumento corrente é que o novo texto precisa ser discutido com calma, sem estar pressionado pelo fim da vigência da atual lei. 

Heleno Araújo, da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e presidente do Fórum Nacional de Educação (FNE), critica a falta de diálogo com a sociedade na tramitação deste PL, dizendo que não houve estímulo nem de Dorinha e nem do relator (senador Espiridião Amin, do Progressistas-SC) de convocar debates sobre a matéria. “Oficializamos nosso posicionamento contrário e aproveitamos uma sessão sobre Ensino Médio para entregar essa posição por escrito para ela”, diz.  

Segundo a Agência Senado, o Poder Executivo comprometeu-se, por meio do Ministério da Educação (MEC), a trabalhar pela rápida análise da matéria na Câmara. O MEC foi perguntado pela Ação Educativa sobre esse projeto e como se posiciona frente à prorrogação, mas não respondeu até o fechamento da matéria.

Em que passo está o novo PNE? 
A lei do atual PNE completa 10 anos, e portanto termina sua vigência, no dia 25 de junho de 2024. De acordo com a legislação, o Poder Executivo deveria ter enviado um novo texto para análise do Congresso no nono ano de vigência do PNE, o que não ocorreu. Nenhum texto foi enviado até o momento. 
A etapa nacional da CONAE foi realizada em janeiro de 2024, precedida das etapas municipais, regionais e estaduais em 2023. O texto base que saiu da CONAE foi validado pelo Fórum Nacional de Educação (FNE), que o entregou ao MEC em março. Depois disso, não houve movimentação pública sobre a matéria. 
No entanto, segundo uma matéria do Estadão publicada em junho de 2024, o MEC enviou minuta aos ministérios da Fazenda e do Planejamento e aguarda aval para encaminhar à Casa Civil. Só depois deve ser encaminhado ao Congresso para iniciar sua análise e tramitação.
A matéria do Estadão também revelou problemas graves no texto do novo Plano: ele não aborda questões sobre a população LGBTQIA+, e a pauta da “Diversidade” é trabalhada em termos vagos – o oposto do que foi deliberado na CONAE por estudantes, profissionais da educação, entidades e movimentos sociais do campo educacional. 

OS RISCOS DE PRORROGAR A LEI DO PNE 

À primeira vista, pode fazer sentido prorrogar a lei 13.005/2014 para assegurar que o novo Plano seja discutido da forma adequada. No entanto, como afirma Salomão Ximenes, Professor de Direito e Políticas Educacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC) e coordenador do Observatório Regional de Políticas Educacionais do ABC, esse objetivo poderia ser alcançado de outras formas, sem necessidade da extensão do prazo. “O final da vigência da lei do PNE e o final da validade do PNE são coisas diferentes. As metas e estratégias não perdem a validade do ponto de vista jurídico do direito à educação. Um parecer técnico de órgãos como Advocacia Geral da União, MEC, Conselho Nacional de Educação ou Tribunal de Contas da União poderia resolver isso do ponto de vista formal. É que parece que essa não é a opção política, que não há interesse no fortalecimento do peso jurídico das metas do PNE”, diz. 

Salomão reforça que contraditório seria se, passados 10 anos, as metas – um esforço de planejamento que mobiliza diversos órgãos de controle – parassem de valer e os municípios estivessem autorizados a, por exemplo, diminuir números de matrículas ao invés de aumentar. Como resumiu ele em artigo publicado em parceria com Lucas Junqueira Carneiro, “a premissa de uma lacuna jurídica com o final da vigência decenal do PNE é um equívoco”. 

A prorrogação inclusive fere a Constituição Federal, uma vez que o artigo 214 diz explicitamente que o plano nacional de educação deve ter caráter decenal. E esse é um dos motivos pelos quais o PL 5665/23, se aprovado, pode acabar enfraquecendo – e não fortalecendo – a mais importante política educacional brasileira. “O caráter decenal foi inscrito na Constituição justamente pensando na necessidade de um parâmetro fixo para pensar a médio e longo prazo”, destaca o professor da UFABC. Para Heleno Araújo, do FNE, a prorrogação é também uma ideia “delicada e inconveniente” e que gera uma acomodação na obrigação dos poderes Executivo e Legislativo de encaminharem um novo plano. 

Prorrogar a atual lei do PNE, ainda que “só” por um ano, também pode abrir um precedente para outras prorrogações. Ou seja, pode fazer com que os prazos percam sua força. “Nada impede que o prazo 2025 seja prorrogado de novo. Ao abrir esse precedente, ele passa a ser uma possibilidade sempre que um gestor público perceber que o plano não vai ser cumprido”, explica o professor Salomão Ximenes. 

E se o Plano de Educação não foi cumprido ou se o processo de elaboração de seu substituto também não foi feito no prazo adequado, significa que gestores e parlamentares falharam com suas obrigações. E aí entram – ou deveriam entrar – os órgãos de fiscalização  e controle para responsabilizá-los pelo descumprimento de uma política pública constitucionalizada. Mas a prorrogação, ao ampliar esses prazos, também pode afetar esse aspecto. Em artigo publicado no Conjur, a procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo, Élida Graziane, diz que a prorrogação da vigência do PNE equivale a uma  “anistia estratégica” e que “adia o debate do PNE 2024-2034, sem abrir qualquer responsabilização pelo diagnóstico de fracasso do plano educacional vigente”. Nessa mesma linha, Heleno Araújo também cobra os órgãos de monitoramento do PNE. “Temos 4 relatórios [do Inep] prontos, o quinto está prestes a sair. Mas não podemos ficar só no diagnóstico do não cumprimento. Qual o redimensionamento de políticas e as medidas que serão tomadas a partir do diagnóstico?”, questiona. 

Além de todos esses fatores, a prorrogação do Plano Nacional de Educação pode ter efeitos desastrosos para estados e municípios. Tanto porque abre o precedente para a prorrogação nos outros níveis – e essas prorrogações não têm salvaguarda constitucional -, quanto porque impacta a elaboração dos planos estaduais, distrital e municipais, em geral construídos após o nacional para que suas metas e estratégias estejam em consonância com o PNE. É o que Salomão Ximenes chamou de “descoordenação federativa”. “Os planos estaduais e municipais também serão prorrogados? Se não, qual será o efeito? O atual sistema já é muito falho em termos de coordenação, e em vez de enfrentar o problema daríamos vários passos atrás ao criar temporalidades diferentes no processo”. 

MAS O BRASIL FICARIA SEM UM PNE VIGENTE? 

Segundo explica Salomão Ximenes, coordenador do Observatório Regional de Políticas Educacionais do ABC, ainda que a vigência da lei 13.005/14 termine, o Brasil não entraria em um vácuo legislativo. Isto é, as metas e estratégias pactuadas não desaparecem e deixam de valer no dia 26 de junho de 2024. Na verdade, ficam ainda mais urgentes. “O PNE estabelece um padrão para estabelecimento do direito à educação. Passados 10 anos, esse padrão é obrigatório, e quem não cumpriu está indo contra essa norma”, resume ele. Por isso, na avaliação das pessoas ouvidas na reportagem o efeito prático da aprovação do PL 5665/23 seria normalizar uma situação gravíssima de descumprimento dos prazos estabelecidos. “É uma banalização do processo de planejamento vinculante, cujo efeito é muito desproporcional à preocupação levantada”, complementa Salomão. 

O Fórum Nacional de Educação também se pronunciou nesse sentido. Em nota pública contrária à prorrogação, o órgão defende que o projeto de lei tem “potencial de desorganizar o planejamento comum articulado no país”, tanto por ferir a periodicidade prevista na Constituição como por interferir no alinhamento com estados e municípios. 

A procuradora do MP-SP Élida Graziane também é categórica ao dizer que “todas as propostas de prorrogação da vigência da Lei 13.005/2014 em tramitação no Congresso Nacional tendem a perdoar o descumprimento das metas e estratégias do PNE em curso”, contextualizando que “como tem sido muito fácil ignorar e descumprir os comandos do PNE 2014-2024, nunca foi necessário alterá-lo. Pelo mesmo motivo, agora tende a ser igualmente fácil prorrogá-lo nominalmente”.  

PARTICIPAÇÃO E GESTÃO DEMOCRÁTICA

Um outro argumento contrário à prorrogação da lei do atual PNE destaca os esforços já realizados no sentido da construção do novo Plano. Por exemplo, o Grupo de Trabalho do Novo PNE (GTPNE) do MEC, que buscou analisar os problemas da educação nacional como subsídio ao Projeto de Lei para o PNE 2024-2034. Mas, principalmente, os esforços e recursos mobilizados para a realização de debates, audiências e a CONAE. Nesse contexto, vale destacar a Conferência Livre “Gênero nos Planos já!”, realizada em outubro de 2023 pela Ação Educativa que contou com jovens estudantes da região metropolitana de São Paulo e do interior debatendo a importância de garantir equidade de gênero e raça no Plano Nacional de Educação.

Esses esforços já resultaram num documento final – entregue pelo FNE ao Ministério da Educação e sob análise do Executivo. Para Salomão Ximenes, a prorrogação colocaria em risco todo o processo participativo da CONAE 2024. “Especificamente porque a depender do prazo e da mudança de conjuntura, esse ciclo pode perder relevância e sentido. E tudo isso pode ser transportado para os níveis estaduais e municipais”, diz. 

A nota do Fórum Nacional de Educação também toca nesse ponto, ressaltando que o projeto de lei 5665/23 não considera as deliberações dos processos participativos e que “se mostra inoportuno e macula o processo participativo e dialogado em curso que, ademais, está protegido pela Lei, que consagra conferências e instâncias de monitoramento e avaliação do PNE com legítimos papéis propositivos em relação à Política Nacional de Educação”. 

O coordenador do FNE, Heleno Araújo, ressalta justamente o respeito ao esforço que envolveu mais de 4 mil municípios. “Política educacional tem que ser feita com participação e colaboração da sociedade. Por isso a CONAE cumpriu seu papel e entregou seu produto final”, diz. Para Heleno, é estratégico debater fortemente não apenas o novo PNE mas também o financiamento adequado para de fato implementar e cumprir o PNE. “Já aprendemos que lei do PNE sem financiamento adequado não adianta, então temos que enfrentar esse debate de forma séria e manter a pressão sobre as ausências de políticas e leis que prejudicaram o atual plano, como lei do Sistema Nacional de Educação e do Custo Aluno-Qualidade”, diz. 

O professor Sérgio Stocco, do Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES) e do FNE, vai ainda mais além, ressaltando os efeitos do controle social e gestão democrática – contemplados no atual PNE através da meta 19 –  ainda insuficientes. Em seminário na Ação Educativa sobre os 10 anos do PNE, ele reforçou: “Seria fundamental que essa meta tivesse sido implementada como está disposto, mas o caminho da gestão democrática não foi assentado para gerar o processo de mobilização social que exatamente geraria uma disposição da sociedade para cumprir as outras 19 metas”. Ele elenca os bloqueios e restrições à formação de conselhos escolares, grêmios estudantis e outros processos no sentido de assegurar a autonomia da escola. “Sem isso não conseguiremos a base social necessária para fazer o que tem que fazer. Só haverá formação política permanente com a autonomia das escolas”. 

Militarização crescente, fechamento de escolas por (in)segurança: como a segurança pública afeta a Educação

Lógica punitivista e de obediência tem se refletido no aumento das escolas militarizadas, enquanto operações policiais desarticuladas nas periferias deixam milhares sem escola

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Texto: Nana Soares // Edição: Claudia Bandeira

Tanto educação quanto segurança pública são direitos da população e obrigações do Estado, assegurados pela Constituição Federal. Assim como outros direitos, como saúde e moradia, devem estar articulados e caminhar no mesmo sentido: o de construir uma sociedade cada vez mais democrática, inclusiva e participativa, sem deixar ninguém para trás, segundo os princípios dessa mesma Constituição. Mas essa lógica tem sido cada vez mais ignorada, com políticas de segurança pública interferindo de maneira negativa na garantia do direito à educação. 

A concretização dessa interferência é o crescimento exponencial das escolas militarizadas no país, que aumentaram mais de 20 vezes em apenas uma década, expansão que persiste mesmo após o fim do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM). O exemplo mais recente é o estado de São Paulo, que acaba de aprovar um programa nesse sentido. Mas a segurança pública – ou justamente a falha na garantia dela – também afeta a educação de jovens em todo o país pelo crescente de violência e conflitos territoriais, que fazem com que as escolas fiquem fechadas por vários dias do ano. Essas interrupções cada vez mais frequentes trazem prejuízos para toda a comunidade escolar e somam-se a outros problemas estruturais da Educação. 

Militarização segue em expansão, e melhora de avaliação das escolas não corresponde à realidade

Até o governo Bolsonaro, não havia um esforço nacional para a militarização das escolas – quando a gestão passa parcial ou totalmente para a responsabilidade de forças de segurança. Os estados ou mesmo municípios criavam suas próprias iniciativas – Goiás e Bahia são dois dos locais onde esse modelo está presente há mais tempo. Em 2019, com a criação do PECIM, o cenário mudou: em um contexto de avanço do ultraconservadorismo e do pensamento militarizado e punitivista como um todo, passou a haver um estímulo, inclusive financeiro, para a militarização de escolas em todo o país. Um exemplo é o estado do Paraná, que hoje talvez seja onde o modelo de escolas militarizadas se expande mais rápido e abertamente. 

“O PECIM deixou um lastro de nacionalização em um processo que até então estava em várias unidades da federação, mas não era nacional. Sua criação em alguma medida endossou as narrativas localizadas”, diz a professora Miriam Fabia Alves, da Universidade Federal de Goiás (UFG), e que estuda militarização. 

Alguns dados ilustram esse avanço: o orçamento destinado às escolas cívico-militares mais que triplicou entre 2020 e 2022 (de 18 para 64 milhões de reais). Segundo a Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação (RePME), eram 39 escolas militarizadas no país em 2013, número que passou para 122 em 2018 (ainda antes do PECIM) e saltou para ao menos 816 escolas em 2023. Vale comentar que esse número pode ser ainda maior, uma vez que os modelos de militarização são múltiplos. 

Neste cenário desafiador, o novo governo Lula ainda demorou a revogar o PECIM, fazendo-o somente em julho de 2023, apesar de ter sido orientado a fazer isso desde a fase de transição. A revogação, no entanto, não veio acompanhada da “desmilitarização” das escolas que aderiram ao modelo. Assim, embora não exista mais um programa nacional, a militarização da educação está fortalecida após 4 anos de aportes financeiros e estímulos de todas as ordens. E agora os estados e municípios já têm – e seguem criando – seus próprios programas. 

“A tendência é de regionalização”, explica Amarilis Costa, advogada e diretora Executiva da Rede Liberdade, uma articulação que atua juridicamente em casos de violação de direitos e liberdades individuais, onde se inclui a militarização. Ela reforça que o movimento das escolas cívico-militares hoje acompanha a reorganização do bolsonarismo, e há especialmente duas estratégias: o sucateamento da educação pública e o remodelamento e regionalização da militarização. O remodelamento dos projetos de lei é descrito por Amarilis como uma espécie de “fatiamento” do projeto de militarização, ou a construção da viabilidade dessas escolas a partir de outras dinâmicas do direito administrativo. “Por exemplo, em alguns estados, militares ou ex-militares são colocados como secretários de cultura, educação ou gestores escolares”, explica. Já o sucateamento da escola pública “é mais discreto e parece dissociado da militarização, mas está super conectado uma vez que reforça o argumento da escola cívico-militar [ECM] como uma melhoria”, diz. Nessa linha entrariam ações tomadas pelo governo Tarcísio em São Paulo ainda antes do anúncio do programa de militarização, como a restrição da liberdade de cátedra dos professores e o que é ofertado nos conteúdos e atividades a estudantes. Não por acaso, a gestão não demorou a anunciar a adesão às escolas cívico-militares. 

Por que militarizar vai contra o direito à Educação 

A militarização das escolas vai contra diretrizes constitucionais para a educação, acirra desigualdades e reforça o racismo, o machismo e a LGBTfobia nas escolas. Para a pesquisadora Catarina de Almeida Santos, a padronização de corpos e sujeitos é a contramão do que deveria ser o papel da escola. A lógica de obediência e de modelo único, em contrapartida ao reforço e valorização das diversidades, pode enfraquecer também a gestão democrática e o próprio papel das escolas públicas. 

“A militarização se apresenta como ‘neutra’, uma contranarrativa e um combate ao que seria uma escola ‘doutrinadora’. Essa narrativa ganhou muita força no Brasil, um país que flerta com muita frequência com esse super poder dos militares”, diz a professora da UFG, Miriam Fabia Alves. Ela concorda que a supervalorização desse modelo faz parte de um projeto de extrema desvalorização da escola pública, e por isso localiza a disputa também no campo narrativo. “Nós temos dificuldades em todo o país com a atuação das forças de segurança pública, mas ao mesmo tempo supervalorizamos sua atuação dentro da escola. Como as mesmas forças que assassinam podem educar?”, questiona. Vale lembrar que na votação que aprovou o programa de escolas cívico-militares no estado de São Paulo, forças de segurança foram chamadas à sessão justamente para reprimir estudantes que protestavam contra a medida

Além disso, as escolas militarizadas tendem a iniciar, manter ou aprofundar uma lógica de exclusão em relação a quem são os e as estudantes que podem estudar ali. Em Goiás, por exemplo, algumas escolas, apesar de públicas, têm uma taxa de contribuição voluntária. Além disso, alunos que não “se adequam”, seja pelo desempenho escolar ou por outros motivos, podem ser transferidos. “É uma lógica que dificulta o acesso e a permanência, porque nem todas as exigências – de uniforme, contribuição, questão corporal, etc – podem ser cumpridas por todas as pessoas”, reforça a professora Miriam Alves.

Segundo um relatório apresentado pela sociedade civil brasileira a um comitê da ONU em 2023, o investimento público feito nas escolas militarizadas tem sido significativamente maior que o direcionado às escolas públicas comuns, o que tem como efeito ampliar a segregação étnicorracial e de classe no sistema de ensino. As exigências/exclusões e o maior investimento podem, portanto, justificar porquê as ECMs são frequentemente exaltadas como um “modelo vencedor”, tendo como base o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). 

Mas essa ideia não é sustentada pelos dados. A geógrafa Rafaela Miyake mapeou o perfil das primeiras escolas a aderirem ao PECIM e observou que muitas das unidades já tinham infraestrutura e nota do Ideb acima da média antes do PECIM. Isto é, não foi a militarização que elevou sua qualidade. Outros estudos e levantamentos já tinham percebido esse mesmo padrão, e também ressaltam o maior orçamento destinado às ECMs. 

“A conclusão do mapeamento, e o choque, foi perceber que o projeto piloto [do PECIM] na verdade foi uma tentativa de convencimento da opinião pública de que a militarização melhora a escola. Mas elas já eram boas antes”, explica Rafaela, que continua o mapeamento em seu mestrado no Departamento de Geografia da USP. Das 54 escolas do projeto piloto: 49 já tinham biblioteca quando aderiram ao PECIM (90%); 45 já tinham laboratório de informática (83%); 41 já tinham salas de atendimento especial (76%); 36 já tinham quadra coberta (67%) e 27 já tinham laboratório de ciências (50%). As informações foram enviadas a Rafaela pelo INEP através da Lei de Acesso à Informação. E 20 das 54 escolas já tinham alcançado a meta projetada no Ideb (dados extraídos do Censo Escolar). Em relação à situação de vulnerabilidade social, Rafaela também observou que boa parte dos alunos já figurava em índices diferenciados segundo o INSE-INEP (índices 3 e 4). “Pensando na realidade da escola pública, já era um quadro de exceção”, reforça a pesquisadora. 

A adesão ao PECIM, conforme observado pelo mapeamento, tornou as escolas mais excludentes, já que muitas delas tiveram que fechar turmas para poder se adequar ao Programa. As escolas que aderiram ao projeto piloto não poderiam, por exemplo, ter turmas noturnas, de Educação de Jovens e Adultos (EJA), entre outros requisitos. Mas no momento da adesão eram cerca de 300 turmas de EJA, com quase 8 mil matrículas. “O que aconteceu com essas pessoas após a adesão?”, questiona a pesquisadora. “[Com a militarização], a avaliação pode até aumentar, mas a prestação de serviços para a população piora: as vagas diminuem, além das escolas – sem noturno e sem EJA – passarem a ter menor complexidade na gestão e menor evasão”, reitera Rafaela. A pesquisadora segue seu mapeamento, agora focada nos programas estaduais de Goiás e Paraná – neste último, que é fruto do PECIM, já se notam os mesmos padrões de exclusão.

Operações policiais e conflitos territoriais: fechamento de escolas cada vez mais comum

Os dados sobre a militarização mostram que ela não é uma solução para a educação pública. Mas além disso, há outra complexidade na relação entre educação e segurança: no Brasil, as ações, estratégias e políticas de segurança pública têm reforçado exclusões e desigualdades educacionais e negado o direito à educação a estudantes mais pobres, de periferias, negras e negros. 

O exemplo mais flagrante dessas violações é a quantidade de dias letivos perdidos por alunas e alunos por conta de conflitos territoriais ou operações policiais. No Rio de Janeiro, em 2023, 257 escolas não abriram ou precisaram fechar por conta da violência urbana – isso apenas nos primeiros 45 dias letivos do ano. Foram mais de 85 mil  estudantes sem aulas, ou 13.5% da rede municipal. Outra pesquisa, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), analisou dados de 2019 e aferiu que nada menos do que 74% das escolas cariocas tiveram pelo menos um tiroteio em seu entorno naquele ano. E a estimativa de redução de aprendizado chegou a 64% em português e em perda completa em matemática. 

O Complexo da Maré sempre figura entre as regiões mais afetadas por esse fenômeno. Lá, onde moram 160 mil pessoas, estudam cerca de 20 mil alunas e alunos em 50 escolas. Segundo dados compilados pela organização Redes da Maré, foram 146 dias sem aula de 2016 a 2023, e em 2024 já eram 10 dias de escolas fechadas apenas nos 4 primeiros meses do ano. Uma média de 25 dias sem aulas a cada ano. Isso significa que nos 11 anos de escolarização obrigatória de uma estudante da Maré, a violência pode ter deixado sua escola fechada por mais de um ano letivo completo. 

“Quando penso na relação entre educação e segurança pública, penso em violação de vários direitos: do direito à educação, do direito de ir e vir, do próprio direito à segurança pública”, resume Andreia Martins, pesquisadora da Redes da Maré e ativista do Fundo Malala. “O mesmo estado que propõe ações truculentas de combate ao crime organizado é o que deveria estar fornecendo educação, mas as operações violam esse direito ao fechar escolas”, completa ela. 

Os problemas causados pela violência se acumulam, uma vez que têm impactos na saúde física e mental de toda a comunidade escolar, além de apresentar um desafio logístico e até trabalhista para repor as aulas perdidas. “No dia seguinte não é uma aula normal, as aulas não têm como ser as mesmas quando a escola ficou fechada por tiroteio, quando pessoas foram baleadas. Além da violação do dia a dia, as pessoas ficam fragilizadas e adoecem. É muito difícil criar um ambiente propício para o desenvolvimento cognitivo, para a produção de conhecimento entre estudantes e docentes com tantas fragilidades”, pontua Andreia. “A Secretaria de Educação do município, que diz ter um plano de mitigação desses efeitos, propõe, para o dia não ser ‘perdido’, aulas remotas ou envio de atividades remotas. Mas pesquisas que nós mesmos já conduzimos durante a pandemia já mostraram que os estudantes não têm condição de acompanhar essa aula”, reforça a pesquisadora, destacando desafios como o acesso às tecnologias e conexões adequadas para as aulas remotas. 

Esse ponto, comum a outras escolas do Brasil, especialmente de periferias, merece destaque. Andreia faz questão de lembrar que, quando o assunto é educação, há outros problemas na Maré que não só a violência, agenda que acaba ganhando destaque enquanto há outras fragilidades no território, como a falta de infraestrutura das escolas, a dificuldade de vagas para todas e todos estudantes do Complexo e a ausência de outros órgãos de assistência à população. “É perigoso porque o discurso do Estado para justificar a precariedade dos serviços oferecidos é muito pautado na violência, sendo que há muitas coisas que independem disso. É preciso superar esse discurso”, resume. “O problema não é só a violência, mas o olhar do Estado na implementação de políticas para esse território, que passa também, mas não só, pela política de segurança pública”. 

Articulações para reverter esse cenário: mobilização social e investidas no judiciário

Nesse contexto de crescente militarização, a mobilização social é cada vez mais importante, e tem encontrado, no Judiciário, um caminho para conseguir frear ou reverter alguns desses retrocessos. “Se por um lado a regionalização e desmantelamento dos programas são um desafio e dificultam seu mapeamento, o fato de não virem mais de cima [nível federal] também nos dá melhores argumentos e articulações no sentido jurídico”, avalia Amarilis Costa, diretora executiva da Rede Liberdade, organização que atua fortemente nessa pauta. A Rede tem insistido muito na inconstitucionalidade das escolas cívico-militares, citando especialmente – mas não só – os artigos 37 e 206 da Constituição Federal, que versam sobre a pluralidade de saberes, gestão democrática, valorização de profissionais, entre outros. 

Por isso, inclusive, a “facilitação” à militarização por meio do sucateamento da escola pública pode ser mais desafiadora, já que não há menções diretas à militarização. Da mesma maneira, as muitas maneiras de implementar escolas cívico-militares no país também são um desafio a mais para o litígio no âmbito jurídico. “São políticas sempre em curso e em constante alteração”, diz Amarilis, explicando que novas estratégias de implementação de escolas cívico-militares são utilizadas tão logo se consegue construir os argumentos jurídicos para desmobilizá-las. 

Daí a importância da sociedade civil articulada e mobilizada na pressão social e na disputa de narrativas. “Com todos os desafios, temos tido avanços consideráveis no repúdio a esse modelo, mas sabemos que o imaginário de violência e retrocesso vai se enraizando e afeta especialmente territórios do sul global. Por isso, a mobilização da sociedade civil é fundamental, já que as respostas institucionais e do judiciário nem sempre alcançam o tempo da resposta política”, diz Amarilis. 

No caso de São Paulo, a Articulação Contra o Ultraconservadorismo na Educação, ao lado de mais de 100 organizações que atuam na defesa dos direitos humanos e pelo direito à educação de qualidade, lançou uma Carta de Repúdio ao Programa de Escola Cívico-Militar, promovido pelo governador, Tarcísio de Freitas, alertando que escolas militares acirram desigualdades educacionais, coíbem a expressão da diversidade de gênero e sexualidade e incentivam abusos por parte dos militares. Além disso, elas também reproduzem o racismo estrutural e institucional, impondo padrões estéticos baseados na branquitude e violam a liberdade de crença.

>> Baixe o Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas>

> Informe-se sobre as mobilizações da União Brasileira de Estudantes Secundaristas




SEMANA DE AÇÃO MUNDIAL 2024

PNE na boca do povo: pelo direito a uma educação com justiça e transformação socioambiental! Vamos construir um Plano novo!

Semana de Ação Mundial 2024 vai reforçar a mobilização em defesa do novo Plano Nacional de Educação (PNE 2024-2034)!

Nossa luta é pela renovação do PNE, tendo como base o documento final da Conferência Nacional de Educação (Conae) 2024, sem retrocessos e com ousadia, para garantir uma educação pública de qualidade a todas as pessoas no território brasileiro.

Use sempre as hashtags #SAM2024, #PNEpraValer e #SemRetrocessoComOusadia nas suas redes sociais!

Novo PNE e a Conae 2024

O atual PNE (2014-2024) termina neste ano com grande parte da legislação descumprida – veja mais no Balanço do PNE 2023, produzido pela Campanha. Em breve, publicaremos o Balanço 2024.

Justamente para efetivar as metas ainda a serem alcançadas, o novo Plano Nacional de Educação (2024-2034) deve ser construído sem retrocessos em relação ao atual e ousando em suas metas e estratégias, seguindo a deliberação da Conae 2024. Isso é o que a grande maioria dos segmentos da educação defende, incluindo a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, entidade que realiza a SAM.

A Conae promoveu conferências municipais, intermunicipais, estaduais e distrital que discutiram  o Documento de Referência publicado pelo FNE. Na etapa nacional, em Brasília (DF) – evento que reuniu no início de 2024 mais de 2.500 pessoas, entre delegadas/os, observadores e palestrantes –, o documento final foi referendado, sendo condizente com o direito à educação.

O texto final da Conae tem caráter deliberativo e espera-se que o Ministério da Educação (MEC) siga este conjunto de propostas para formular um Projeto de Lei do novo PNE – legislação que deve passar a tramitar no Congresso Nacional ainda neste ano.

Para garantir que cheguemos à tramitação no Congresso Nacional fortalecidos, precisamos aumentar cada vez mais a mobilização nas redes sociais e também nas ruas, e não aceitar recuos do governo federal ou do Congresso Nacional.

A perspectiva do direito à educação a todas as pessoas deve prevalecer e estar refletida nas metas e estratégias da nova legislação.

Semana de Ação Mundial 2024

A Semana de Ação Mundial (SAM) é uma iniciativa realizada simultaneamente em mais de 120 países, desde 2003, com o objetivo de informar e engajar a população em prol do direito à educação, de diversas maneiras. De 2003 a 2023, a Semana já mobilizou mais de 100 milhões de pessoas em todo o mundo, sendo cerca de 2,4 milhões de pessoas apenas no Brasil.

A SAM acontece por meio de atividades autogestionadas (ou seja, cada um faz a sua, de acordo com seu contexto!) em praças, escolas, centros comunitários, nas ruas, em audiências públicas e nos mais diversos locais. 

Qualquer pessoa que queira refletir e se engajar pelo direito à educação pode participar.

Os inscritos vão receber o um resumo do Manual da SAM 2024 impresso. O Manual, na íntegra, ficará disponível online gratuitamente.

O Manual da Semana de Ação Mundial (SAM) 2024 já está disponível gratuitamente no site!

Acesse e compartilhe o Manual da SAM 2024: semanadeacaomundial.org

Use sempre a hashtag #SAM2024 nas suas redes sociais!

A Semana de Ação Mundial é a maior atividade de mobilização pela educação no mundo!

A SAM brasileira é dedicada, desde 2014, ao monitoramento da implementação do Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024), previsto na Lei 13.005/2014, que é o principal caminho para que toda a população brasileira possa ter acesso a uma educação de qualidade da creche à universidade.

Consideramos que a garantia plena do direito à educação é condição para atingirmos, de fato, a justiça social no país. Seguiremos monitorando os indicadores da educação, de forma a exigir que as políticas públicas tenham por base o que está previsto na Lei, possibilitando o cumprimento do artigo 205 de nossa Constituição Federal de 1988:

“Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”

Vamos aprofundar esses assuntos nesta SAM, para que você também faça parte dessa roda!

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Novo projeto de lei para o Ensino Médio deixa brechas para privatização e precarização da etapa

Pautas como a educação profissional, a educação à distância, os itinerários e o notório saber devem mobilizar as disputas mais acirradas no Congresso Nacional

Ato pela Revogação do Novo Ensino Médio
Agência Brasil /EBC

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

Em 2023, admitindo as muitas limitações do Novo Ensino Médio (NEM), em especial o aprofundamento das desigualdades educacionais, o Ministério da Educação (MEC) realizou uma consulta pública para avaliar e reestruturar a política para essa etapa em todo o país. A Consulta não deixou dúvidas que a sociedade brasileira quer um outro Ensino Médio, e foram feitas várias propostas para reverter os retrocessos trazidos pela lei atualmente em vigor. No entanto, o que deveria resultar em aprimoramento pode vir a ter o efeito contrário caso seja aprovada a versão em tramitação no Congresso. 

O substitutivo do PL 5.230/2023, elaborado pelo deputado Mendonça Filho (União-PE) – ministro da Educação no Governo Temer, que estabeleceu o Novo Ensino Médio -, fragiliza ainda mais a modalidade, abrindo brechas para o ensino à distância (EaD), a privatização e a desescolarização. “Esse projeto fraciona o sistema de tal maneira, sem regulamentar e sem dar garantias, que a partir dele não é possível ter um desenho de como será o Ensino Médio no futuro. Podemos intuir, mas não dá para saber”, resume Debora Goulart, professora da Unifesp e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU).

O projeto em tramitação – aprovado pela Câmara dia 20 de março, o que foi considerada uma vitória para o governo – estabelece a garantia de 2.400 horas na formação geral básica (FGB) dos estudantes, mas mantém vários outros pontos problemáticos. Até mesmo a carga de 2.400 horas não é uma vitória em todos os aspectos, porque não determina como essas horas serão distribuídas entre as disciplinas científicas obrigatórias, e também porque os cursos técnico-profissionais podem ter carga da FGB reduzida. 

Além disso, o texto em sua forma atual abre portas para a precarização da educação pública de várias maneiras. Por exemplo, mantém uma brecha para a oferta de ensino à distância na educação básica. As precarizações ficam ainda mais evidentes na regulação do ensino técnico profissionalizante, modalidade em que fica permitida a contratação de docentes por “notório saber” – isto é, sem necessidade de formação em docência e em suas áreas específicas. Também no ensino técnico permanece a possibilidade de que organizações privadas ofertem ou assessorem cursos dos itinerários – um aceno aos interesses privatistas. Ainda, no que talvez seja o retrocesso mais flagrante do texto aprovado, “experiências extraescolares” podem ser validadas como carga horária para o Ensino Médio. Ou seja, até trabalho pode passar a contar como aula. 

“É uma precarização na medida em que não há mais obrigação em fornecer aquela carga horária, já que ela pode ser compensada de outra maneira”, explica Débora Goulart. Assim, em vez de garantir as condições necessárias para a oferta de uma educação de qualidade que atenda as necessidades de estudantes trabalhadoras e trabalhadores que têm maiores índices de evasão, a solução para “resolver” o problema é fazer horas de trabalho contarem como carga horária da educação formal. Por isso, para vozes críticas como as do Coletivo em Defesa do Ensino Médio de Qualidade, esse projeto incentiva a desescolarização. 

EaD e notório saber: espaço para privatização e precarização

O texto aprovado na Câmara deixa brechas para a privatização em diversos momentos. No ensino técnico profissionalizante, estabelece que a oferta de cursos deve ser dada por instituições “preferencialmente públicas”. Quanto à EaD, fica estabelecido que a carga horária deve ser ofertada de forma presencial “ressalvadas as exceções previstas em regulamento”. Esses casos excepcionais – ainda não descritos -, não apenas preocupam pela possibilidade de precarização, mas também de privatização, uma vez que grande parte da estrutura de EaD vem de instituições privadas. 

“As ressalvas, ou excepcionalidades, serão dadas por legislação posterior, e portanto poderão ser qualquer coisa. Mas o ponto é que não há sistema público de oferta de EaD. Por exemplo, no estado de São Paulo, todas as plataformas conectadas ao Centro de Mídias são compradas”, acrescenta a professora Débora Goulart. “E não há interesse [em ter sistema público de EaD], uma vez que é um campo altamente lucrativo e que se expandiu sobretudo na pandemia”, diz ela, ressaltando as péssimas avaliações do ensino ofertado à distância. Em audiência pública realizada no dia 16/04, o próprio MEC admite que as “excepcionalidades” podem ser uma brecha para a oferta de baixa qualidade. 

Por exemplo, uma pesquisa realizada por UNESCO, UNICEF, Banco Mundial e OCDE em 2021 mostrou altos índices de exclusão durante a pandemia. Nesse mesmo período, a pesquisa “A Educação de Meninas Negras em Tempos de Pandemia: O aprofundamento das desigualdades”, realizada pelo Geledés, também atestou o aprofundamento das desigualdades, sendo as dificuldades de acesso ao ensino remoto um dos fatores primordiais. 

“A privatização no ensino público hoje se dá de forma combinada. Vem pela tecnologia, pelo conteúdo e, sobretudo, pela organização do currículo escolar. Por exemplo, um itinerário formativo tem a liberdade de descrever quais são as disciplinas que o compõem, o que permite assessorias privadas, ou que o material seja produzido por empresas privadas, além da formação dos professores. É possível ter uma cadeia de entidades privadas na construção da relação pedagógica” – Débora Goulart 

E essa precarização também afetará as profissionais da educação, uma vez que no substitutivo de Mendonça Filho fica regulada a contratação por notório saber na educação técnico profissionalizante – prática que, como ressalta Débora Goulart, da Rede Escola Pública e Universidade, já é largamente utilizada na rede pública, salvo poucas exceções, para sanar falta de professores. Uma vez autorizada na legislação, não há qualquer incentivo para resolver esse problema ou para assegurar condições dignas de trabalho às professoras e professores concursados. 

Descumprimento de legislações, falta de participação social e tramitação acelerada

Não bastasse o texto insuficiente para enfrentar os problemas do Ensino Médio no Brasil, o substitutivo do PL 5.230/2023 tem ainda o agravante de desrespeitar os processos participativos de escuta das demandas de estudantes e profissionais da educação para esta etapa da educação básica. O documento final da Conferência Nacional de Educação (CONAE) de 2024, por exemplo, é explícito sobre a necessidade e urgência de revogar o Novo Ensino Médio e de construir um novo Plano Nacional de Educação com mais investimento em educação pública. E a Consulta Pública realizada pelo MEC em 2023 não tem impactado de maneira efetiva o projeto que tramita no Congresso Nacional.  

Em 2024, as decisões da plenária da CONAE tiveram caráter vinculante reconhecido pelo MEC. Isto é, o que foi acordado na conferência não é meramente consultivo mas sim uma decisão a ser respeitada pelo Estado. E vai na direção oposta do que foi aprovado no Congresso até agora. 

Fora isso, o PL 5230/2023 tramitou em regime de urgência, sem passar pelas devidas avaliações e votações das Comissões da Câmara, indo direto a plenário, o que reduziu significativamente o debate sobre a matéria. Uma tramitação que, nas palavras de Tânia Dornellas, assessora de advocacy da Campanha Nacional pelo Direito à Educação,  “reproduziu as mesmas condições de criação da reforma do novo Ensino Médio, pela MP 746/2016: sem o tempo necessário para um debate aprofundado e responsável sobre os impactos na vida de  aproximadamente 8 milhões de estudantes matriculados na última etapa da Educação Básica”. Não é a única semelhança entre os dois períodos, já que Mendonça Filho, relator do PL, é ex-Ministro da Educação do governo Temer, o próprio criador do atual modelo da reforma do Ensino Médio. “Sem o prazo adequado para o debate e a efetiva participação social, o texto do substitutivo aprovado na Câmara é insuficiente e ruim”, avalia Tânia. 

Agora o texto será apreciado no Senado, onde espera-se que seja modificado – é para isso que se mobilizam dezenas de movimentos sociais comprometidos com uma educação pública de qualidade., “Embora o Ministro da Educação, Camilo Santana, já tenha deixado claro em entrevistas, que a expectativa do MEC seja aprovar rapidamente o texto no Senado, entendemos que o texto pode e deve ser aprimorado”, enfatiza Tânia Dornelles. Para a assessora da Campanha, temas como a educação profissional, a educação à distância, os itinerários e o notório saber são as pautas que devem mobilizar as disputas mais acirradas. 

Apesar do contexto desfavorável, a própria recomposição das 2.400 horas na formação geral básica, bem como o adiamento da votação do PL para março deste ano são resultados da mobilização popular. Ou seja, por mais que interesses privatistas estejam atuantes para aprovar um Novo Ensino Médio condizente com o que acreditam, as juventudes, profissionais da educação, comunidades escolares também estão. E também têm impacto no Congresso.



Construção do primeiro Observatório Regional de Políticas Públicas no Brasil foi iniciada no Grande ABC

Implementação está prevista no Plano Regional de Educação e contará com a parceria da Iniciativa De Olho nos Planos, da Ação Educativa

O Observatório Regional de Políticas Educacionais do Grande ABC realizou sua primeira atividade pública no dia 10 de abril, no campus de Santo André da Universidade Federal do ABC. O projeto que está em fase de implementação é uma iniciativa da UFABC com o Consórcio Intermunicipal do Grande ABC. O projeto recebe apoio  do Programa de Pesquisa em Políticas Públicas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (PPPP/Fapesp) e conta com uma rede de pesquisadoras/es e instituições parceiras, da qual a Ação Educativa faz parte.

“A construção, implementação e monitoramento participativo do Plano Regional de Educação no Grande ABC é uma experiência inovadora de articulação das políticas educacionais no território. Nossa aposta é que por meio da gestão democrática e do estímulo à participação popular, as escolas e suas comunidades possam ser ouvidas sobre as principais demandas educacionais da região”, ressalta Claudia Bandeira coordenadora da Iniciativa De Olho Nos Planos e assessora da Ação Educativa.

A mesa de abertura contou com a participação do professor da UFABC e coordenador do Observatório Salomão Barros Ximenes, Juliana Cavasini da Silva, coordenadora de Programas e Projetos do Consórcio ABC; Ana Clara Carneiro, secretaria Municipal de Educação de Diadema; Karen Aparecida Silveira, do Fórum Regional de Educação do Grande ABC (FRE); Sérgio Stoco, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); e Claudia Bandeira, da Ação Educativa.

Em sua apresentação o professor Salomão Ximenes destacou que a implementação do Observatório de Políticas Educacionais do ABC está prevista no Plano Regional de Educação do Grande ABC (PRE 2016-2026) aprovado pelos 7 municípios que compõe a região para ser uma política pública de planejamento, monitoramento e avaliação orientada com foco na melhoria da qualidade, democratização de oportunidades educacionais e gestão democrática, mediante a articulação territorial das políticas educacionais. O professor ainda apresentou a equipe de bolsistas selecionadas para atuar na implementação do Observatório.

Após a apresentação, os participantes se dividiram em 12 grupos temáticos para organizar e pensar em uma agenda de trabalho e pesquisa sobre temas como Educação Infantil, Ensinos Fundamental, Médio e Superior; Educação de Jovens e Adultos (EJA), financiamento da Educação, gênero e relações étnico raciais, entre outros.

Articulações das ações

As equipes do Observatório Regional de Políticas Educacionais do ABC e da Ação Educativa estiveram na Secretaria Municipal de Educação de Diadema (SME Diadema) no último dia 23 de abril. O município já possui o Observatório da Educação de Diadema e por isso foi escolhido como projeto-piloto para a implementação do Observatório Regional, primeira experiência do tipo em todo o país, um projeto coordenado pela UFABC e pelo Consórcio Intermunicipal Grande ABC com o apoio da FAPESP.

Na visita, o Observatório Regional foi apresentado aos distintos setores da SME Diadema, todos envolvidos nos processos participativos de monitoramento e avaliação dos planos de educação.  Em reuniões de trabalho foram pensadas demandas da educação na Cidade e na Região, bem como as próximas etapas para implementação do Observatório Regional. Um possível cronograma de trabalho foi apresentado durante o encontro, que também discutiu como se dará o funcionamento do Observatório Regional e sua relação com o Observatório municipal. Também foi pontuada a necessidade de aprofundar o diagnóstico sobre a educação municipal e de colaborar nos processos formativos, sobretudo voltados à autoavaliação participativa das escolas e à gestão democrática.

Estiveram presentes Salomão Ximenes, professor da UFABC que coordena o Observatório Regional, e a equipe de bolsistas da Fundação de Amparo á Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), a secretária de educação da cidade Ana Lucia Sanches, a equipe de servidores da secretaria, além de Cláudia Bandeira coordenadora da Iniciativa De Olho Nos Planos e assessora da Ação Educativa.

Aumento de ensino à distância na EJA agravou ainda mais crise na modalidade

Além do subfinanciamento e abandono, Resolução 01/2021 autorizou que até 80% do conteúdo da EJA para Ensino Médio fosse dado de forma remota. 

Estudante faz anotações em caderno enquanto assiste aula de matemática pelo celular
Foto: Agência Brasil / EBC

Texto: Nana Soares / Edição: Claudia Bandeira

No Brasil, há mais de 50 milhões de pessoas que não concluíram o Ensino Fundamental e outras 22 milhões que não concluíram o Ensino Médio, além de cerca de 9 milhões de pessoas não alfabetizadas. Todas elas têm direito à escolarização na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA), mas mesmo que, em um cenário de fechamento de turmas, consigam fazer suas matrículas, será um desafio continuar estudando. E quem conseguir provavelmente vai ter acesso a um ensino precário e de baixa qualidade, não pensado para suas realidades e que pode ser realizado quase todo à distância. Esse é o cenário da modalidade, talvez a mais abandonada do país nos últimos anos e que luta para se recompor.

Cronicamente subfinanciada e muito distante de conseguir atingir as metas previstas para 2024 no atual Plano Nacional de Educação (PNE), a EJA sofreu mais um baque em 2021 com a aprovação da Resolução CNE/CEB  nº 1. Essa resolução, ainda em vigor, flexibilizou a oferta de ensino à distância para a modalidade, permitindo que chegasse até 80% no Ensino Médio. O resultado foi o sucateamento ainda maior da EJA, com a explosão de oferta de baixa qualidade.

“Com a resolução, o que vimos foi uma invasão de oferta de Ensino à Distância (EaD) sem muito critério, uma oferta gigante a baixo preço. Isso tanto em redes privadas, como faculdades que abriram plataformas à distância, e em redes públicas, com o desmonte de redes de ensino para ampliar a oferta EaD”, destaca Roberto Catelli, coordenador da unidade de educação de jovens e adultos da Ação Educativa. Fenômeno preocupante pois, como explica Catelli, as e os estudantes da EJA são pessoas para quem a figura da professora ou professor faz muita diferença, uma vez que têm uma trajetória de exclusão escolar. “Não é de EaD que precisam quem nunca foi à escola ou passou muitos anos fora. Em certos casos [ensino à distância] pode ser útil, como em locais onde não há acesso à escola ou a situações muito particulares de trabalho, mas transformar o EaD na principal oferta é muito ruim”, diz. 

E esse não é o único ponto da Resolução 01/2021 questionado por entidades e movimentos sociais que lutam por uma educação pública e de qualidade para todas e todos. O alinhamento à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que não foi pensada para escolarização de jovens e adultos, também preocupa. “O documento propor que a BNCC seja a principal referência da EJA é muito grave e não funciona, uma vez que a BNCC pensa as séries iniciais para crianças de 6 e 7 anos de idade em escolas convencionais”, resume. 

Não olhar a Educação de Jovens e Adultos como uma modalidade em si mesma, com suas especificidades, e sim como uma adaptação do ensino regular para crianças e adolescentes, é um grande problema para quem está na base. Franciele Busico, diretora do Cieja Perus e integrante do Fórum Estadual EJA de São Paulo, defende que a modalidade tenha carga horária própria, material escolar e didático próprio, e até professoras próprias. “Nosso jovem – porque temos recebido cada vez mais jovens – não está na mesma condição que o do ensino regular”, diz ela. “E as diretrizes nacionais já indicam que é possível flexibilizar tempos e espaços, o erro tem sido fazer a EJA como um ‘puxadinho’ do ensino regular”, defende. A diretora também reforça a necessidade do contato e mediação de docentes para estudantes da EJA, entendendo como absurda a oferta da modalidade à distância, inclusive por questões de acesso à tecnologia. “Estamos falando de pessoas em alta vulnerabilidade que frequentemente não têm equipamento para acessar EaD. Além disso, o acesso a mídias digitais requer um certo letramento. Acreditamos em flexibilização de carga horária e em um currículo adequado ao público, nunca à distância. Quem não teve escolarização tem direito de frequentar a escola, a viver a cultura escolar”, completa ela.

Felizmente, após muita pressão da sociedade civil e diversas entidades e movimentos educacionais, essa regra pode estar com os dias contados. A Resolução 01/2021, que flexibilizou o aumento da oferta de ensino à distância para EJA, é alvo de protestos desde que entrou em vigor – e ainda não foi possível substituí-la mesmo quase dois anos depois do governo Bolsonaro. Tratando-se de uma resolução aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), para deixar de valer ela não deve ser revogada e sim substituída por outra que a invalide. Esse processo pode entrar na agenda em breve, pois o Ministério da Educação (MEC), por meio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi), construiu um novo texto, que já chegou ao CNE para apreciação. 

O MEC informou que, após análise da Resolução pela Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA), a recomendação foi a “necessidade, urgente, de elaboração de novas diretrizes operacionais para a EJA, que atendam as orientações das políticas formuladas na atual gestão, que têm como eixo central a garantia da equidade nas condições de acesso e permanência à escola, e garantia dos direitos de aprendizagem”. Agora, de acordo com Mariângela Graciano, Coordenadora-Geral de Educação de Jovens e Adultos na SECADI, a expectativa é que a proposta “seja aprimorada quando submetida a audiências e consultas públicas, organizadas pelo CNE, e que o Conselho, nosso parceiro na elaboração da proposta construída na CNAEJA, proceda o ciclo de audiências e consultas públicas o mais rapidamente possível”. 

O Conselho reúne representantes de diversos segmentos – inclusive aqueles beneficiados pelo aumento da oferta de EaD. Ou seja, há uma batalha técnica e política pela frente. “EaD é uma pauta que envolve muita gente e muitos atores que investiram dinheiro para montar a estrutura”, adianta Roberto Catelli, coordenador da Ação Educativa, prevendo possíveis embates políticos na discussão dessa agenda. “Deve haver disputas sobre o quanto é possível restringir o ensino à distância, porque não é possível impedir 100%, e nem seria recomendável, mas é preciso restringir para que não desmonte o atendimento e crie situações distorcidas, como acabou acontecendo”, completa. Além disso, a desvinculação da EJA da BNCC também deve entrar em pauta. 

EJA nas políticas educacionais

O atual Plano Nacional de Educação (PNE) termina sua vigência nos próximos meses, com descumprimento quase total de suas Metas e Estratégias. Naquelas que versam sobre a Educação de Jovens e Adultos, o cenário é desolador: a EJA foi completamente desfinanciada na última década, tendo um orçamento em 2022 que representava apenas 0.44% do que foi o orçamento de 2012. A Meta 8, focada em reduzir desigualdades, foi do crescimento insuficiente, estagnação até chegar ao retrocesso em 2022. E a meta 9 mostra que o analfabetismo funcional avançou quando deveria ter regredido, resultado do desmonte de programas como o Brasil Alfabetizado. O número de matrículas na EJA caiu muito na última década, não chegando nem perto de atender toda a população que tem direito a continuar os estudos. 

 

EJA no ATUAL PNE: 

A meta 8 do PNE tem como objetivo diminuir desigualdades educacionais ao aumentar a escolaridade de grupos como a população de 18 a 29 anos, dos 25% mais pobres do país e a educação do campo, bem como igualar a escolaridade média entre pessoas negras e não-negras. A Meta 9 fala sobre erradicar o analfabetismo absoluto e reduzir o analfabetismo funcional pela metade. A Meta 10, por sua vez, diz que o Brasil deve oferecer ao menos 25% das matrículas de Educação de Jovens e Adultos (EJA) integradas à educação profissional. 


Para coroar, o subfinanciamento é crônico. Até mesmo no Fundeb, principal mecanismo de financiamento da Educação Pública, um aluno da modalidade recebia menos repasses do que um aluno da rede regular – distorção que só começou a ser corrigida com os novos fatores de ponderação, vigentes a partir de 2024. Ainda longe do ideal, mas uma melhora em relação ao repasse anterior. 

“A EJA é historicamente abandonada por não ser escolarização obrigatória, mas nossa luta é para que isso mude, que tenhamos uma política de fato, articulada com os sistemas de ensino, que a EJA seja considerada em toda sua singularidade e importância, inclusive como política antirracista. Fechar salas de EJA é o contrário de combater o racismo”, afirma Franciele Busico. A diretora do CIEJA Perus e ativista da EJA é enfática ao afirmar que, como resultado desse desmonte, o maior desafio para a modalidade hoje é a permanência estudantil. “Nós até temos conseguido matrículas, mas a permanência é muito difícil para o trabalhador que estuda, seja ele jovem, adulto ou idoso. A condição não é nada favorável para permanecer na escola, a EJA hoje não atende as necessidades da classe trabalhadora”, reforça ela, referindo-se às limitações de oferta, material didático e currículo próprio a essas e esses estudantes e acrescentando que a pandemia piorou esse cenário, com o empobrecimento de uma população já mais vulnerável economicamente.

Para Mariângela Graciano, Coordenadora-Geral de Educação de Jovens e Adultos na SECADI/MEC, o maior desafio da modalidade é a constante queda do número de matrículas, uma realidade que vem se afirmando há mais de uma década, “impondo a necessidade de implementar ações para estancar a perda de estudantes e, ao mesmo tempo, estimular a busca pela escolarização na EJA”. Nesse sentido, a Pasta informa que “o conjunto de estratégias previstas no âmbito do Pacto Nacional pela Superação do Analfabetismo e Qualificação da EJA está sendo construído para responder a este desafio”. O Pacto, que prevê políticas intersetoriais, deve contar com a participação de diversos Ministérios e da sociedade civil, mas também do setor privado. Especificamente em relação à permanência, ela destaca o programa Pé de Meia, que também contempla estudantes na faixa dos 18 aos 24 anos das famílias que recebem o Bolsa Família. 

O princípio do Programa Pé de Meia, de auxílio financeiro para estimular a permanência, é elogiado pela diretora Franciele Busico, mas ela reforça que ainda é insuficiente pois só contempla estudantes do Ensino Médio, defendendo uma política de auxílio que contemple todas e todos que têm direito à EJA. Franciele defende que tais políticas podem ser a virada de página da EJA – e devem ser necessariamente intersetoriais, uma vez que a permanência escolar depende também de moradia, renda, transporte público, alimentação etc. 

E na próxima década? 

No fim de fevereiro, o Ministro da Educação, Camilo Santana, recebeu a Coordenação Executiva Nacional dos Fóruns de Educação de Jovens e Adultos (EJA), que reivindicou a Política Nacional para a Educação de Jovens e Adultos. Segundo ativistas, na ocasião o ministro foi receptivo a essa ideia e confirmou a  substituição da Resolução 01/21. 

O encontro do movimento social da EJA com o ministro Camilo Santana foi realizado algumas semanas após a Conferência Nacional de Educação (CONAE), que nesse ano debateu as bases do próximo PNE. No documento referência da CONAE, a EJA é contemplada em vários pontos e tem destacada a necessidade de se constituir, nas políticas públicas, como uma modalidade própria, que exige medidas específicas. Entre os pontos levantados estão a reabertura de turmas, a manutenção e o fortalecimento de programas como o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem), o respeito a especificidades dos diferentes públicos, adaptando horários, calendário escolar e garantindo transporte noturno; a integração da EJA com setores da saúde, do trabalho, meio ambiente, cultura e lazer, entre outros, na perspectiva da formação integral dos cidadãos e cidadãs. O documento faz referência ainda à descontinuidade da educação à distância (EaD) na EJA, “já que o seu uso na educação básica deve ser de maneira excepcional, de acordo com a legislação vigente”, destaca o documento. 

Há também a preocupação com uma política de educação de jovens, adultos e idosos (EJA) para as pessoas em situação de privação de liberdade. Segundo dados que constam no documento referência da CONAE, 82,24% das pessoas nessa situação têm essa necessidade, mas apenas 15% da demanda potencial está matriculada. Segundo o MEC, há em curso um Acordo de Cooperação Técnica em parceria com o Ministério da Justiça e Segurança Pública para, em 36 meses, ampliar a oferta de vagas da EJA para o ensino fundamental e o ensino médio nas unidades prisionais, priorizando a oferta de maneira integrada à Educação Profissional Tecnológica (EPT).

Para Franciele Busico, as demandas do movimento social por uma EJA de qualidade foram contempladas no texto final da CONAE, que reflete uma discussão progressista e necessária para o próximo decênio. “O temor é o que vai acontecer quando o texto chegar no Congresso”, diz. “Provavelmente não vamos conseguir passar tudo que conseguimos colocar, mas se conseguirmos, serão muitos avanços. Conseguimos fazer um texto que contempla as necessidades da EJA pensando no país”, resume a diretora. 


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Conferência Nacional de Educação defende equidade de gênero, raça e combate a todas as discriminações: o que isso significa?

Documento referência também contempla a revogação do Novo Ensino Médio. Texto deve ser a base do novo PNE

Conferência Nacional de Educação, Brasília 2024.

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira 

Entre os dias 28 e 30 de janeiro, milhares de pessoas de diversos segmentos educacionais – como educadoras e educadores, estudantes, pais, gestão escolar, movimentos sociais e sociedade civil organizada – reuniram-se em Brasília para a Conferência Nacional de Educação (CONAE). Com o tema “Plano Nacional de Educação 2024-2034: Política de Estado para garantia da educação como direito humano com justiça social e desenvolvimento socioambiental sustentável”, a CONAE teve como objetivo construir as diretrizes, metas e estratégias que devem guiar o novo Plano Nacional de Educação (PNE), documento que orientará as políticas em Educação na próxima década. 

Movimentos, entidades e ativistas comprometidos com a educação pública, laica, de qualidade para todas e todos participaram ativamente da Conferência – apesar dos desafios históricos para efetivar a gestão democrática em espaços como esse. As discussões dos três dias de evento resultaram num documento referência, que só foi consolidado após aprovação de cada um dos seus pontos pelos participantes. Esse texto, que é a base do novo PNE, contempla várias agendas importantes, como: o aumento do investimento em educação pública, a revogação do Novo Ensino Médio (NEM) e a necessidade das discussões sobre gênero, raça e combate a todas as formas de discriminação

O documento referência agora será entregue formalmente pelo Fórum Nacional de Educação (FNE) – que também reúne diversos segmentos educacionais – ao Ministério da Educação/Presidência da República. O governo, por sua vez, analisará o texto construído coletivamente à luz da Constituição e demais legislações em vigor, fazendo possíveis adaptações e o apresentará como projeto de lei ao Congresso para que enfim inicie sua tramitação no Legislativo. O novo PNE só vira lei após aprovação na Câmara, no Senado e posterior sanção presidencial, podendo sofrer alterações em cada uma dessas etapas. Embora o atual PNE termine sua vigência ainda em 2024, este processo não tem data para ser finalizado – o ministro da Educação, Camilo Santana, manifestou interesse de apresentar o texto ao Congresso neste primeiro semestre

Com tantos passos – e poucas garantias – até a aprovação do novo PNE, por que é importante que a CONAE tenha defendido a revogação do NEM? O que significa ter uma agenda validada pela Conferência? É uma vitória apenas simbólica? Como podemos usar isso em nossa luta por uma educação de qualidade para todas e todos? 

Documento referência: validação de peso

O papel de uma Conferência Nacional de Educação é influenciar a elaboração, reformulação e implementação das políticas educacionais, o que se complementa ao papel de monitoramento e avaliação dos planos nacionais, estaduais e municipais, por seus respectivos fóruns (FNE, FEEs e FMEs). Por isso, ela precisa assegurar a maior representatividade geográfica e de segmentos possível. Na CONAE de 2014, foram mais de 4 mil delegados (com direito a voto), e neste ano cerca de 2.500 pessoas participaram e 1847 delegadas e delegados foram eleitos em etapas anteriores, nas conferências municipais, regionais e estaduais, além das indicações nacionais feitas conforme regimento aprovado pelo FNE. 

“A CONAE é o principal processo participativo nacional que visa vocalizar as demandas da sociedade civil para o campo das políticas educacionais, legitimando proposições, diagnósticos e denúncias. Logo, é muito importante termos aprovadas na Conae propostas e moções que manifestam desafios a serem priorizados pelas políticas educacionais”, destaca  Denise Carreira, Professora da FEUSP, integrante da coordenação da Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação e sócia-educadora da Ação Educativa. 

O texto-referência que chega na CONAE é resultado do que foi trabalhado nos níveis estadual e municipal. Ou seja, quando uma agenda é aprovada na etapa nacional, ela foi validada pela sociedade civil em um processo amplo, complexo e representativo – ainda que não seja perfeito. Neste ano foram 8.651 emendas aos 1.134 parágrafos que compunham o texto inicial. O texto final aprovado propõe, entre outras agendas, a revogação da Reforma do Ensino Médio e da Base Comum Curricular; a universalização da pré-escola a partir dos quatro anos e do ensino fundamental de nove anos, educação em tempo integral para pelo menos metade dos estudantes e investimento de 10% do PIB para a educação.

“Em termos gerais, temos conquistas importantes, porém a fragilidade das condições das crianças, adolescentes e jovens negras (os), indígenas e migrantes no sistema de ensino nacional é flagrante, de maneira que a equidade racial deve ocupar papel central na construção da agenda por direitos educacionais. Entendemos que é preciso um olhar para a equidade racial mais profundo e em vários temas”, ressalta a representante da Uneafro, Adriana Moreira, destacando que o novo PNE não será de fato democrático se não contemplar o combate ao racismo de forma estrutural.  

A Uneafro, organização que há 15 anos luta por uma educação antirracista e anticolonial, participou de todas as etapas e elegeu delegados/as para a Conferência Nacional. Em 2024 optou por também levar uma comitiva de 30 estudantes negras/os, indígenas e periféricos para uma incidência mais direta e crítica ao modelo atual.  Foram cartazes, faixas, panfletagem, música, além da ação política mais tradicional. “Entendemos que há hoje um dilema no processo da construção das Conferências, que poderiam significar muito mais para as demandas históricas da população brasileira, sobretudo para a população negra. Ainda que se reconheça a relevância das construções e sistematizações do universo acadêmico e da fundamentação teórica das políticas públicas, é fundamental a escuta qualificada das demandas dos grupos populacionais ainda excluídos do direito à educação. Sem essas características fundamentais, a conferência pode padecer por se tornar uma espaço estéril em virtude de seu caráter tecnocrata e suas resoluções não corresponderem às demandas objetivas dos grupos mais fragilizados da sociedade brasileira”, avalia Adriana Moreira, representante da organização. A crítica da Uneafro é que espaços como as conferências de educação têm tido cada vez mais dificuldade de dialogar com as bases. Por isso o esforço de levar estudantes para conhecerem esse espaço e fortalecer a agenda da equidade racial como eixo estruturante do PNE.

Processos como as Conferências buscam assegurar que o Plano Nacional de Educação – a mais importante política pública de planejamento educacional – não seja construído apenas com a visão do governo. Nessa linha, segundo as regras aprovadas nesta edição, as decisões têm caráter vinculante. Isto é: o governo não pode apresentar ao Congresso um texto que contrarie as diretrizes construídas na CONAE com participação da sociedade. “A CONAE é um esforço de muitas pessoas e que gera um documento que tem um caminho árido até a aprovação. Precisamos defendê-lo, porque se não estivermos atentos, a tendência é que existam alterações significativas em relação ao que foi pensado”, diz Sérgio Stoco, professor de Políticas Públicas na Unifesp e membro do Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES), que compõe o Fórum Nacional de Educação (FNE).

Isso pode ser muito estratégico em temas como a revogação do Novo Ensino Médio (NEM), até agora abordada com certa resistência pelo Ministério da Educação, mas explicitamente defendida no texto da CONAE. O documento referência, por ter um olhar integral sobre a Educação brasileira, não fala apenas na revogação mas sim da construção de uma nova política para o Ensino Médio [e outras etapas], uma vez que se trata de uma política para a próxima década. Ou seja, o governo federal tem a obrigação de defender um PNE nesse sentido. 

Moções: explicitando posicionamentos

Além do documento referência, na CONAE há ainda outra possibilidade de marcar posicionamento sobre diferentes agendas: aprovando moções favoráveis ou desfavoráveis em relação a quaisquer temas relevantes. As moções podem ser propostas por qualquer pessoa ou segmento, devem ser endossadas por um número mínimo de entidades ou delegadas/os e então votadas na plenária final, podendo ser aceitas ou rejeitadas. As moções aprovadas expressam o posicionamento ou sentimento daquela audiência – mas não são parte do texto-base do novo PNE. “O texto da moção é a representação explícita, direta e enunciada daquilo que se está pensando, ao passo que o que vai para o documento referência é fruto de um processo de negociação. Por isso, várias questões que aparecem em ambos os processos não aparecem no documento referência com os mesmos termos que aparecem nas moções aprovadas”, explica Sergio Stoco, membro do FNE e coordenador de um dos eixos da CONAE 2024. 

Mas legitimar certas agendas por moções é importantíssimo, como ressalta a professora Denise Carreira, porque elas podem ser utilizadas como instrumento de pressão política durante a tramitação do novo PNE ao demandar políticas e programas que enfrentem os desafios colocados nas moções e demais deliberações. Elas também podem ser utilizadas em ações junto ao Sistema de Justiça, em iniciativas no Congresso Nacional e em relatórios e denúncias às instâncias de direitos humanos, como às vinculadas à Organização dos Estados Americanos (OEA) e à Organização das Nações Unidas (ONU).

Foram 57 moções aprovadas na edição de 2024, sendo quatro delas propostas pela Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação: pelo direito à educação e contra a censura nas escolas: “NÃO AO SILÊNCIO E AO MEDO: por uma política de promoção da igualdade de gênero, raça e diversidade sexual na educação – promovendo direitos e enfrentando violências e discriminações contra meninas, mulheres e população LGBTQIA+”; “Inclusão de movimentos sociais e organizações da sociedade civil como segmento da próxima CONAE”; “Moção pela desmilitarização da educação básica e em defesa da educação democrática”; e “Moção contra a liberação da educação domiciliar e em defesa do investimento nas escolas públicas”. “Pela Revogação do Novo Ensino Médio | O Novo Ensino Médio aprofunda Desigualdades e é Retrocesso para Educação Pública, por isso Defendemos sua Revogação. Não Podemos Retroceder!” foi uma moção submetida pela Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS), Campanha Nacional pelo Direito à Educação e Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES/UNICAMP).

A desmilitarização urgente de escolas públicas é uma demanda já antiga de diversas entidades e coletivos do campo da educação. “Somente o fim do decreto do Programa de Escolas Cívico-militares pelo governo federal em 2023 – fruto da pressão da sociedade civil – não deu conta desse desafio, já que muitas escolas públicas seguem militarizadas e governos estaduais anunciaram a expansão de programas de militarização”, justifica Denise Carreira. Já a moção contra a liberação da educação domiciliar, tema que está no Senado, será mobilizada pela Articulação no convencimento de parlamentares contra a medida. 

A moção que reforça a urgência de uma política de promoção da igualdade de gênero, raça e diversidade sexual na educação é, por sua vez, chave para pressionar o Ministério da Educação e o governo federal a enfrentar o desafio de construir e implementar políticas robustas e urgentes, inclusive no enfrentamento da violência contra meninas, mulheres e população LGBTQIA+. “É importante ter essa moção aprovada para enfrentar o silêncio e o medo de forças progressistas com relação a essas agendas, sequestradas nos últimos anos por grupos de extrema-direita que promovem pânico moral, desinformação e perseguições às escolas, visando atacar políticas públicas comprometidas com o enfrentamento das desigualdades e à própria democracia”, reforça Denise. 

Por sua vez, a inclusão dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil como segmento da CONAE é fundamental para ampliar a participação de sujeitos que foram decisivos na resistência ao desmonte das políticas e programas educacionais dos últimos anos e na formulação de propostas para as políticas públicas. “Essa moção traz uma provocação ao Fórum Nacional de Educação quanto à importância de maior radicalização dos processos de participação social comprometidos com o fortalecimento da democracia e a concretização de direitos constitucionais”, reforça a integrante da coordenação da Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação e sócia-educadora da Ação Educativa. 

A luta por um PNE que enfrente as desigualdades educacionais nunca para 

As demandas que constam no documento referência da CONAE e que vão servir de base para o novo texto do PNE não vêm de agora. Foram construídas ao longo de anos, senão décadas. Da mesma forma, a luta não se encerra com o fim da CONAE. O PNE ainda tem um longo caminho até sua aprovação, podendo sofrer alterações substanciais. Por isso, a sociedade civil e os movimentos comprometidos com a educação pública e de qualidade precisam continuar vigilantes para que essas demandas históricas sigam contempladas no texto que vai virar lei. 

“É importantíssimo ter um documento, mas precisamos ter pessoas lutando pelo documento, senão ele de nada serve”, diz Sergio Stoco, destacando a importância da sociedade civil em todas as próximas etapas – do texto do MEC até a tramitação legislativa. “As pessoas que participaram [da CONAE] têm que estar conscientes de que continuam sendo pessoas responsáveis por esse processo”, completa. Até porque, depois da aprovação do PNE, seguem as construções dos planos de educação estaduais e municipais. E as batalhas em torno do termo “gênero” na tramitação do atual PNE, dez anos atrás, ilustram bem a importância de seguir na luta: apesar de inicialmente constar no texto apresentado pelo governo, a intensa campanha de grupos conservadores à época conseguiu retirar todas as menções à gênero do texto final, o que deu brecha para que planos abertamente antigênero fossem aprovados em outros níveis, e fomentou uma onda de censura e perseguição nas escolas de todo o país

Por isso, como a Uneafro reforça, o esforço é para assegurar o que foi contemplado, mas também para melhorar onde for possível. Por exemplo, trazendo a agenda da equidade racial de forma mais estrutural. “Já estamos pensando em toda uma agenda em torno do PNE, com um plano de acompanhamento do processo, além de ações mais pontuais. Independente do texto final apresentado, temos que nos preparar para a luta”, resume a ativista Adriana Moreira.


Os desafios para efetivar gestão democrática em Conferências de Educação no Brasil

Um PNE Pra Valer requer o fortalecimento da participação de movimentos sociais e sociedade civil organizada nas instâncias e processos de gestão democrática em educação 

II Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena
II Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena/ Divulgação

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

A Conferência Nacional de Educação (Conae), que acontece de 28 a 30 de janeiro em Brasília, tem uma missão nada simples: formular as diretrizes, metas e estratégias que irão construir o novo Plano Nacional de Educação (PNE). Com o tema “Plano Nacional de Educação 2024-2034: Política de Estado para garantia da educação como direito humano com justiça social e desenvolvimento socioambiental sustentável”, a Conferência foi convocada em caráter extraordinário, assegurando a presença da sociedade na construção do novo PNE, que ainda não tem texto consolidado. 

A ideia é que dessas discussões, que incluem a avaliação dos problemas e necessidades do PNE atual, saia o documento de referência para o próximo Plano – cuja elaboração fica a cargo do Fórum Nacional de Educação para posterior apresentação no Congresso. Serão sete eixos de discussão sobre o PNE. 

“Conferências são tecnologias sociais que representam uma ruptura com a manutenção do status quo dominante, uma vez que a participação social é um direito e, se é um direito, é para todas as pessoas”, resume o co-fundador do Movimento Negro Unificado (MNU), Adão de Oliveira, que ressalta que “se não há participação social efetiva, há continuidade do sistema escravagista, em que uns decidem pelos outros”. 

Rubens Barbosa de Camargo, professor sênior da Faculdade de Educação da USP e membro da diretoria da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca) explica que há vários mecanismos possíveis de participação social para viabilizar a gestão democrática, como Conselhos, fóruns, conferências, consultas públicas, além da eleição de diretores e outros gestores. “Nenhum desses mecanismos foi dado, foram todos forjados numa luta – quem defendeu a gestão democrática sempre foi, historicamente, os movimentos sociais”, diz o professor. 

Seguindo o processo que é comum às Conferências, as etapas municipais e estaduais da CONAE precederam a etapa nacional, sendo realizadas em 2023. Nelas, delegadas e delegados e seus suplentes foram eleitos para a última etapa. 

CONAE 2024: retomada do processo democrático

Em um Brasil que tenta se recuperar de anos de erosão da democracia e da participação social desde o golpe parlamentar de 2016, a efetivação da gestão democrática em espaços institucionais como a CONAE permanece sendo um desafio. “A gestão democrática é um princípio constitucional desde 1988, é relativamente novo comparado a outros princípios como a obrigatoriedade e a gratuidade de serviços como a educação”, explica Rubens, da FEUSP e da Fineduca. 

Esta será a quarta edição da CONAE – as outras foram em 2010, 2014 e 2018 -, e é marcada pela retomada do diálogo entre governo e sociedade civil, relação que foi interrompida na gestão Bolsonaro que esvaziou o sentido da CONAE de promover um debate amplo e democrático sobre os rumos da política educacional do país. Foi quando movimentos sociais e a sociedade civil organizada deixaram de enxergar na CONAE um espaço legítimo de discussão e de avanços democráticos norteados pela Constituição e pelo PNE. E quando diversas entidades do campo educacional se articularam e criaram, em resposta, o Fórum Nacional Popular de Educação (FNPE). O FNPE organizou, em 2018 e 2022, a Conferência Nacional Popular de Educação (Conape), e monitorou e defendeu o PNE paralelamente às instâncias oficiais. 

“Todo o processo de construção democrática, previsto na Constituição e que vinha se concretizando desde o PNE de 2001, foi alterado”, reforça Adão de Oliveira, co-fundador do Movimento Negro Unificado (MNU) de São Paulo e integrante do Fórum Municipal de Educação da capital. “O [atual] PNE teve interferência e influência de todos os setores, da esquerda à ultradireita. Tanto no FNE como no CNE tínhamos o mais próximo possível da democracia. Mas após o impeachment da presidenta Dilma, o FNE foi praticamente extinto em sua finalidade, o MEC passou a ser o mandatário de tudo. Foi um crime”, lembra o ativista. 

Rubens Barbosa de Camargo, professor sênior da FEUSP e membro da diretoria da Fineduca, também posiciona a época do impeachment de Dilma Rousseff como uma ruptura no que vinha sendo construído e implementado pouco a pouco em termos de participação social. “Quando o Fórum Nacional de Educação teve sua composição alterada, ele ainda era entendido como um órgão de Estado com a função de organizar conferências e acompanhar a efetivação do PNE vigente. Mas o Brasil é um país de pouca tradição democrática, onde parte da população não acredita nessa perspectiva. Exemplo foi a extinção dos muitos Conselhos em 2019 [um dos primeiros atos do governo Bolsonaro], o que ilustra a importância do princípio da gestão democrática tornar-se parte das unidades escolares e dos sistemas de educação”, opina. 

Adão, do MNU, vê com preocupação o fato de que mesmo após a derrota da extrema-direita nas urnas e com a retomada do processo democrático nem todas as mudanças tenham sido revertidas. “Esse ataque à participação social prevaleceu até o fim do governo Temer, se agravou no governo Bolsonaro, mas ainda não se reverteu no governo Lula, porque o FNE e o CNE ainda não voltaram totalmente à antiga composição”, explica ele. 

Para o professor Rubens Barbosa de Camargo aprimorar a democracia é um trabalho longo e de aprendizado contínuo. “É um problema que só se resolve quanto mais praticamos a própria democracia. Temos vários Conselhos de Educação que estão tomados por grupos de origem neoliberal, que pouco pensam no interesse público, e precisamos sim debater essas composições, mas são problemas que aprendemos conforme os vivenciamos. Com o próprio PNE que está se encerrando agora já aprendemos muito”. 

Desafios à efetivação da gestão democrática e movimentação conservadora

Coordenada pelo Fórum Nacional de Educação (FNE), a CONAE tem papel fundamental na construção do PNE que, por sua vez, é o principal instrumento da política educacional brasileira. O que é levantado e debatido na Conferência deve ser incorporado no texto do Plano aprovado. Por isso, é vital que estejam representados, na Conferência, os diversos setores da sociedade brasileira e das comunidades escolares: trabalhadoras e trabalhadores da educação, estudantes de diferentes níveis, vozes da educação do campo, quilombola, indígena, dos movimentos negros, LGBTQIA+, de mulheres, da sociedade civil organizada e dos movimentos sociais em geral. É somente com participação efetiva desses grupos que as políticas educacionais podem refletir as reais necessidades do país e caminhar no sentido da redução das desigualdades educacionais. É urgente pautar, por exemplo, a incorporação das perspectivas de gênero e raça de forma articulada em todos os Eixos do Documento Referência que subsidia a CONAE e o novo PNE. 

Mas há desafios para a etapa nacional da CONAE 2024: desde que foi convocada, a CONAE tem recebido críticas pelo curto intervalo entre as etapas, que podem ter simplifcado ou encurtado o debate em uma agenda tão fundamental. Esta edição da conferência conta com uma delegação menor do que a de 2014 – a última antes do rompimento do processo democrático – são cerca de mil delegados a menos. Além disso, os recursos não custeiam as despesas de todas as pessoas participantes, apenas de quem tem status de delegada/o. E movimentos sociais e sociedade civil organizada comprometidos historicamente com as agendas dos Direitos Humanos não foram considerados Setores nas eleições de delegadas e delegados nas etapas municipais e estaduais. 

Esses aspectos podem fazer com que alguns grupos de atuação histórica, como o Movimento Negro Unificado (MNU), fiquem de fora. “O MNU teve indicação como delegado e cheguei a passar meus dados para o Ministério. Recebi informações sobre a emissão da passagem aérea, mas depois fui informado que houve uma ‘revisão’ e que nossa presença seria avaliada. Até o momento, ainda não recebi nenhuma outra mensagem de confirmação ou não”, narra Adão de Oliveira, do MNU. 

São limitações e obstáculos que afetam a efetivação da gestão democrática em educação. “Se isso está acontecendo é porque mudanças em sentido antidemocrático permanecem nesse governo, porque não houve força social suficiente pra alterar isso”, critica o ativista, reforçando que o movimento negro tem propostas concretas para apresentar na CONAE, como um Plano Nacional de Implementação da lei 10.639/03, que prevê recursos específicos para esse fim. 

Somando a esses problemas, matéria recente do Intercept Brasil mostrou que bolsonaristas organizaram força-tarefa para incidir na conferência, tentando pautar temas como Escola Sem Partido e educação domiciliar, além de planejarem fortalecer perspectivas reacionárias, como uma visão reducionista de “família” que teria primazia em relação às políticas  públicas. Segundo a apuração do Intercept, os grupos – que aparentemente não têm representação entre delegadas e delegados eleitos para a Conae – buscam não apenas tumultuar o evento, mas ampliar a influência das frentes ultraconservadoras nos estados e municípios, que também elaborarão seus planos de educação após a aprovação do novo PNE. Para o professor da FEUSP Rubens Barbosa de Camargo, o embate com visões opostas faz parte do processo, desde que em uma perspectiva democrática. “É curiosa a tentativa [da direita] de ocupar espaços institucionais, coisa que não permitem quando são eles que estão no Poder. Por isso sentimos que as forças não estão balanceadas. Mas na Conferência leva a melhor o setor que estiver mais organizado, e acredito que sejam os progressistas”, avalia. No entanto, como ele reitera, é importante não perder de vista que as batalhas por um PNE Pra Valer estão apenas começando. “Embora tudo tenha sido meio apressado, é muito possível que saiamos da CONAE com um bom texto, mas ele vai precisar ser aprovado pelo Congresso, e é lá que a disputa é muito mais incoerente e complicada. A briga que vem depois torna ainda mais crucial sair com um bom texto-base da Conae”, acrescenta. 

Serão muitas as frentes de batalha da Conferência que se inicia nesta semana, e que, embora marcada por muitos desafios e pelo retrocesso democrático que assolou o Brasil na última década, ainda tem o potencial de construir as bases para o retrocesso ser revertido. Nas palavras do professor Rubens: “apesar de todos os percalços na construção da CONAE, não tenho dúvida que o que temos é muito melhor do que se o texto do PNE fosse produzido em um gabinete e sem nenhuma participação. O fato de muitos grupos não verem a perspectiva democrática como fundamental é exatamente o que torna mais importante do que nunca demonstrar que ela é possível, importante, viável e apresenta as melhores soluções para a educação nacional”.

BAIXE A CARTILHA “Em defesa de processos participativos e gestão democrática para a construção de um novo PNE” 


Igualdade de gênero nos planos de educação: uma tarefa urgente

As agendas de “gênero” e “raça” devem se articular a todos os Eixos do Documento Referência da CONAE, como: financiamento, gestão democrática, valorização profissional e qualidade na educação

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

A educação e a sociedade brasileira sentiram os efeitos, na última década, da retirada do “gênero” no texto do atual Plano Nacional de Educação (PNE). A exclusão dessa garantia no mais importante documento de planejamento educacional do país ajudou a fomentar um clima de censura e perseguição nas escolas, impactando discussões sobre gênero, raça e outras formas de discriminação junto às comunidades escolares. Às vésperas da tramitação do novo PNE e da Conferência Nacional de Educação (CONAE), onde será construída uma proposta para o novo Plano,  a sociedade civil agora age para garantir um PNE sem retrocessos, com ousadia e que reafirme o direito de profissionais da educação e estudantes discutirem gênero, raça e sexualidade na escola. 

Nesse contexto, a Ação Educativa lançou a campanha #FiqueDeOlho: para combater a violência, gênero nos Planos já!, reforçando que garantir igualdade de gênero nos Planos é se comprometer com a melhoria da qualidade na educação, já que educação de qualidade é a que consegue incluir e acolher todas as pessoas. É preciso criar espaços de acolhimento e solidariedade nas escolas; prevenir e combater o assédio, abuso sexual e violência doméstica; discutir as desigualdades entre homens e mulheres; promover o direito das pessoas viverem livremente sua sexualidade, entre outras ações. Esses são alguns aspectos que a equipe, por meio da Campanha, tem discutido no processo da CONAE, inclusive com escuta e encaminhamento de demandas de jovens a partir de uma Conferência Livre realizada na Ação Educativa durante a etapa municipal de São Paulo.   

A incorporação da igualdade de Gênero nos Planos para que o novo PNE avance no combate à violência e na redução das desigualdades educacionais significa, entre outras ações: 

  • Incorporar a laicidade na educação pública como princípio do PNE e incluir no texto o enfrentamento às desigualdades e discriminações de gênero, raça e sexualidade. 
  • Defender a implementação da LDB alterada pelas Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008 como instrumento essencial para a construção de uma educação antirracista. 
  • Garantir a manutenção de escolas quilombolas e indígenas em seus territórios. 
  • Defender as políticas de ações afirmativas com recorte racial e social nas instituições de educação superior. 
  • Atuar por um financiamento adequado com distribuição equitativa dos recursos em diálogo com uma política econômica de redistribuição de renda e com as Leis Orçamentárias (LDO e LOA). 
  • Aprimorar na regulamentação do FUNDEB os Fatores de Ponderação para que correspondam ao custo real das diferentes etapas e modalidades da educação básica e possam ser utilizados como mecanismos de ação afirmativa racial e social. 
  • Democratizar o debate econômico nas unidades educacionais, comunidades escolares e territórios, promovendo a compreensão da relação da economia com o cotidiano das escolas e da população.
  • Aprimorar os mecanismos de gestão democrática e controle social do PNE e das políticas educacionais, ampliando a roda e a participação efetiva das comunidades escolares e das juventudes na construção e monitoramento das políticas educacionais. 

Sobre esses aspectos e sua incorporação no PNE, nos planos estaduais e municipais e no planejamento educacional, conversamos com algumas pessoas de referência nas diferentes áreas. Confira: 

FINANCIAMENTO

Eduardo Januário, Professor na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), atuando na linha de pesquisa de Políticas Públicas, Financiamento Educacional e Gestão Democrática da Escola Pública, com ênfase nas escolas de periferias. 

Ação Educativa: Como o financiamento do PNE pode ser adequado para diminuir as desigualdades educacionais, especialmente das populações negras?

Eduardo Januário: A única possibilidade de diminuir a desigualdade racial é com investimento. Não conseguimos atingir a meta 20, que é assegurar 10% do PIB para educação. Então claro que sem dinheiro não dá para fazer aquilo que está previsto nas metas 3, 4, 8, enfim, metas que visam combater desigualdades entre negros e brancos. Por quê? Porque as escolas necessitam modificar o seu dia a dia, a sua realidade, as estruturas. Isso precisa de dinheiro. Então ficamos na perspectiva de acreditar que vai haver um aprimoramento de mecanismos, mas não há outra saída enquanto a gente não tiver 10% do PIB na educação. 

Ação Educativa:  Especificamente sobre o Fundeb e os fatores de ponderação, as propostas atuais de regulamentação contemplam esse horizonte? Os valores são suficientes para corrigir as distorções históricas?

Eduardo Januário: Quando falamos em mecanismos de distribuição, vamos lembrar que a Emenda Constitucional 59 já pensa nessas questões de tratar os desiguais conforme as suas desigualdades. E quando a gente pensa em educação quilombola, educação do campo, educação indígena, há uma defasagem de investimento. Por que defasagem de investimento? Porque essas escolas não estão, ao meu ver e ao ver do movimento, adaptadas o suficiente, não têm qualidade suficiente (até em termos de formação de professor, de estrutura). Uma pesquisa recente da Faculdade (FEUSP) mostra que inúmeras escolas de educação quilombola e educação indígena não têm livros didáticos para estudar. Então há uma proposta de educação quilombola, de educação indígena, de educação do campo, mas não há estrutura. Então tem que ter dinheiro, não tem jeito. Sobre os mecanismos de ponderação, 1.4 para educação quilombola e indígena eu acho que é o suficiente no sentido de priorizar essas medidas. Mas como fazer sem dinheiro? Tem que ter um montante maior, porque com o montante que temos vamos continuar com políticas que reparam a desigualdade de maneira superficial. Elas não mudam a estrutura da escola, não garantem livros didáticos, não possibilitam formação de professores que estejam levando em consideração outras epistemologias. Conseguimos, pelos fatores de ponderação, levar um pouco mais de dinheiro, mas a gente não consegue ampliar de fato aquilo que precisaria, que é essa estrutura que eu acabo de citar. Uma outra questão é da discussão do VAAR do Fundeb, que o movimento negro tem disputado. Num determinado momento, o VAAR ficou preso à ideia do resultado, mas nossa conversa é que ele deveria ser um dinheiro específico para reparação, não para resultado. A ideia seria que as escolas que estão nas periferias, que têm uma maior quantidade de pessoas negras, as escolas quilombolas, receberiam uma parte desse dinheiro. Assim, é possível impulsionar a leitura de livros, a formação de professores, modificar a escola. Outras perspectivas poderiam ser incluídas na sala de aula se tivéssemos dinheiro específico para isso. 

GESTÃO DEMOCRÁTICA E PROCESSOS PARTICIPATIVOS

Juliane Cintra, Coordenadora Institucional (Comunicação, Eventos e TI) da Ação Educativa.

Ação Educativa: Como e onde é possível aprimorar os mecanismos de gestão democrática e controle social do PNE e das políticas educacionais, de forma a ampliar a participação efetiva das comunidades escolares e das juventudes na construção e monitoramento das políticas educacionais? 

Juliane Cintra: Há uma dimensão de fortalecer os Fóruns e os Conselhos de Educação, mas também é preciso repensá-los do ponto de vista do quão abertos e preparados estão para receber a diversidade que é constituinte do que são as comunidades escolares e do que são os diferentes grupos que integram o que chamamos de juventude. Esses espaços não são organismos estatais. Na verdade são espaços de abertura, de acolhimento da sociedade, e portanto devem representar e dialogar com a demanda desses grupos e com as suas próprias dinâmicas de funcionamento. Repensá-los metodologicamente é fundamental para assegurar que o descumprimento naturalizado dos planos decenais não seja perpetuado. Então acredito que o foco deveria ser nessas instâncias, mas sobretudo nesse repensar metodologicamente. É importante que a gente olhe para esses espaços também considerando como fundamental que a gente descentralize os processos deliberativos. Os processos decisórios devem ser descentralizados a partir da instância e com uma reformulação metodológica do que compreendemos como participação nessas esferas. Assim, conseguiremos avançar efetivamente para a construção da legitimidade popular e social dos planos de educação, porque é somente a partir da participação social que construímos pertencimento às políticas públicas. É fundamental ir além do nível consultivo. 


GÊNERO, RAÇA E SEXUALIDADE

Suelaine Carneiro, socióloga, mestre em educação, coordenadora de educação e pesquisa de Geledés – Instituto da Mulher Negra e compõe a rede de ativistas do Fundo Malala. 

Ação Educativa: Qual a importância de explicitarmos as agendas de gênero, raça e diversidade sexual no PNE, bem como incorporar a laicidade na educação pública como princípio do PNE e incluir no texto o enfrentamento às desigualdades e discriminações? 

Suelaine Carneiro: Esse PNE tem que não só resgatar a educação com um direito humano, como uma etapa fundamental para a formação da concepção de cidadania, mas retirar o aprender sobre raça e gênero do lugar de “questão menor” na educação. 

Por exemplo, na questão do financiamento: é necessário sempre defender mais recursos para a educação. As escolas mais fragilizadas, com estudantes com mais dificuldades de aprendizado, de conseguir um desempenho razoável em relação a notas e progressão de ensino, essas escolas via de regra têm grande participação de estudantes negras e negros, então é preciso que tenham também um aporte diferenciado no que diz respeito a recursos, a ter um corpo docente completo. É o que temos procurado nesse tempo todo de resistência: pautar gênero e raça em todo o âmbito da educação, dizer que gênero e raça também são questões essenciais na educação – para além daqueles que são considerados “eixos duros” – financiamento, formação de profissionais da educação, livro didático. São temas que possibilitam interferir nos resultados de desempenho, na compreensão, na aprendizagem e principalmente no convívio escolar. Portanto, ter gênero e raça dentro de todos os eixos que forem constituídos no novo PNE é fundamental para que a educação como direito se realize. 

Além disso, temos também o desafio de pensar a laicidade. A Educação hoje está muito contaminada por uma concepção de religiosidade cristã de forma muito fundamentalista que interdita direitos, interdita falar sobre raça, sobre questões raciais, sobre cultura e história afro-brasileira e africana e que reafirma uma concepção de superioridade a partir da cor da pele. Temos que atuar nessas questões de maneira muito explícita, por isso o debate tem que perpassar todos os eixos. Ou seja, são muitos desafios e são esses os compromissos que devem estar em discussão durante o novo PNE. O ano de 2024 será decisivo para podermos recuperar a Educação depois de tantos anos de desmonte.

COMBATE AO RACISMO

Catarina de Almeida Santos, professora na Faculdade de Educação da UnB, do comitê da Campanha Nacional pelo Direito à Educação do DF. 

Ação Educativa: Como podemos, na formulação do novo PNE, reafirmar e defender a implementação da LDB alterada pelas Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008 como instrumento essencial para a construção de uma educação antirracista? 

Catarina de Almeida Santos: Fazer com que esse país conheça e respeite a cultura afro-brasileira, africana e indígena não é algo que dê pra fazer com um ou outro programa, é preciso que seja uma ação sistêmica na escola, da educação infantil à pós graduação e isso significa passar pela formação inicial e continuada dos nossos professores e professoras, dos processos de gestão. Precisa estar presente em todas as metas e estratégias do PNE como ação sistêmica nos programas implementados, nas políticas desenhadas para o alcance dessas metas e objetivos. Do contrário, a gente não vai fazer funcionar. Se a cultura, história e força dos povos originários e dos povos que vieram pra cá escravizados não estiverem em cada uma das ações que desenvolvermos, a gente não reverte essa situação e não vamos conseguir fazer uma escola antirracista. 

São precisos mecanismos políticos, jurídicos e legais que permitam que as escolas e suas professoras e professores não sejam punidos por trabalharem essas questões, que isso esteja na literatura, no livro didático, na história das diferentes áreas do conhecimento. Mas também precisamos ter mecanismos de proteção pra reverter a demonização que se faz da cultura desses grupos. Isso significa metas e estratégias no PNE voltadas para o combate à intolerância religiosa e a todas as formas de violência. Isso também vale para questões de gênero, homolesbotransfobia, capacitismo, todos os elementos que são marcadores de diversidade nos corpos que compõem as diferenças nesse país. 

Ação Educativa: Qual a importância de garantir a manutenção de escolas quilombolas e indígenas em seus territórios? 

Manter as escolas quilombolas e indígenas em seus territórios não é questão de ser importante, é uma questão de sobrevivência. É uma questão de direito essencial, fundamental à manutenção dessas escolas. Pela sua existência, pela sua identidade, porque é direito desses grupos. Ou de sobrevivência da sociedade brasileira,  se um dia ela se quer civilizada, capaz de fazer as pazes com a sua história. A sobrevivência da população negra dependeu da sua organização em Quilombos, e até hoje os aquilombamentos são fundamentais para a nossa sobrevivência. Se não os aquilombamentos na perspectiva territorial, os aquilombamentos de nós enquanto povo preto, enquanto cultura. É de fundamental sobrevivência para nossa vida física e para nossa existência histórica e cultural. E isso serve também para os povos indígenas, que eram os povos originários desse país e que foram dizimados. A sobrevivência dessa cultura depende de nós mantermos as escolas nos territórios, e não a partir da lógica brancocêntrica e eurocêntrica, mas a partir da lógica dos povos dos territórios. Quem vai transmitir essa cultura e quem vai ensinar esses saberes senão aqueles que são detentores dos saberes tradicionais?


Indicadores da Qualidade na Educação – Relações Raciais na Escola – Antirracismo em Movimento

Os Indicadores da Qualidade na Educação – Relações Raciais na Escola: antirracismo em movimento integram a coleção de materiais Educação e Relações Raciais: apostando na participação da comunidade escolar, lançada em 2013, desenvolvida pela Ação Educativa.

O material integra também a Coleção Indicadores da Qualidade na Educação, metodologia de autoavaliação da escola fundamental para a construção e monitoramento participativos de Planos de Educação e políticas educacionais.

Em 2023 celebramos os 20 anos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), alterada pelo Lei 10.639/2003, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino da história e das culturas africanas e afro-brasileiras em toda a educação (pública e privada). O lançamento da nova edição dos Indicadores Relações Raciais na Escola vem se somar a retomada dos esforços nas políticas públicas nacionais comprometidas com a institucionalização da lei.

A publicação conta com parceria do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) do Ministério da Educação (MEC), do Ministério de Igualdade Racial (MIR), do Projeto SETA (Sistema Educacional Transformador Antirracista, desenvolvido por um grupo de entidades antirracistas), além do apoio técnico da Faculdade de Educação da USP e da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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