Novo Fundeb pode garantir maior equidade na educação

Após importante vitória na Câmara dos Deputados, resultado da mobilização de profissionais, entidades e movimentos do campo educacional, PEC segue para o Senado Federal  

Aluno negro utiliza computador na escola estadual Raymundo Sá, no município de Autazes.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Se a educação pública brasileira não é tão desigual quanto há 13 anos, muito se deve à implementação de um mecanismo: o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que hoje subsidia cerca de 40 milhões de matrículas. Ele diminuiu algumas desigualdades educacionais brasileiras tanto ao aumentar os recursos vindos da União como ao ampliar o alcance desses recursos.

Avanços

O Fundef, que o precedia, cobria apenas o ensino fundamental. O Fundeb incorporou outras etapas e modalidades. Entre elas, a educação infantil, ensino médio e educação de jovens e adultos (EJA). Assim, diminuiu em parte o abismo no valor investido na educação básica por aluno nos estados mais e menos ricos do país. E pode diminuir ainda mais, a depender do texto aprovado pelo Legislativo até o fim do ano. A PEC 26/20, que torna o Fundeb permanente, já passou pela Câmara e agora segue para votação no Senado – e pontos de disputa não faltam.

Em vigor desde 2007, o atual Fundeb se encerra em 2020. Por isso, a urgência em aprovar um novo texto. O fundo utiliza como fonte de financiamento impostos como o IPVA e, principalmente, o ICMS. Ou seja, quanto mais se consome, mais se arrecada e mais dinheiro é destinado ao fundo. Dessa maneira, em 13 anos o Fundeb se consolidou como o principal responsável pelo financiamento da educação básica no país. E aumentou o investimento em educação – em parte, porque o valor total arrecadado com impostos também aumentou. 

Municípios, estados e a União contribuem, mas não na mesma proporção. A participação da União é , na verdade, um ponto de debate importante. Isso porque cabe ao governo federal complementar o recurso para estados que não conseguem atingir o investimento mínimo por matrícula. Esse mecanismo foi um dos responsáveis por diminuir as desigualdades – ao menos em relação a quanto se gasta por aluno em cada estado.

A participação da União

No Pará, dois terços dos municípios aumentaram suas receitas do Fundeb graças a essa complementação. Isso também acarretou em menor desigualdade entre os municípios mais e menos ricos. Em 2008, a diferença entre o maior e o menor gasto por aluno da Educação Básica no estado era de 2.31 vezes. Em 2018, caiu para 0.85. Ou seja, o fundo avançou no combate às desigualdades, mas não as eliminou.

“No Pará, o crescimento no gasto por aluno beneficiou sobretudo os municípios com IDH baixo e muito baixo. No entanto, a redistribuição não foi suficiente para atender as necessidades locais. Também não garantiu condições adequadas em muitas escolas, especialmente as do campo”, segundo Rosana Gemaque. Rosana é coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Financiamento da Educação da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Superar as desigualdades, como explica a professora Rosana, exige maior participação da União. Atualmente, a contribuição é de 10% e o texto aprovado na Câmara mais que dobra a complementação, que vai para 23%. Motivo de comemoração, mas ainda insuficiente, de acordo com os especialistas ouvidos nesta reportagem. 

“Para assegurar o direito constitucional à educação de qualidade, entendendo a educação como ferramenta de emancipação social e considerando todas as dimensões do ser humano, os 23% não bastam”. É o que afirma a pedagoga e doutora em educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Analise da Silva. Ela lembra que os atuais 10% representaram um salto importante em relação ao 1% do Fundef e foram implementados justamente para reduzir desigualdades. No entanto, 14 anos depois, precisa de atualização. A demanda inicial dos movimentos da área, como a Campanha Nacional Pelo Direito à Educação (Campanha), era de 40%. Esse valor é considerado necessário para atingir o Custo Aluno-Qualidade (CaQ), outro ponto importante da atual tramitação.

O papel do Custo Aluno-Qualidade 

O Custo Aluno-Qualidade (CaQ) e o Custo Aluno-Qualidade Inicial (CaQi) são índices previstos no Plano Nacional de Educação (PNE). Eles traduzem quanto custa garantir educação pública de qualidade no Brasil. Isto é, quanto deveria ser investido por estudante (considerando sua etapa de ensino, localidade e outros fatores) para garantir as condições adequadas de ensino e aprendizagem. Os valores (que podem ser simulados no SimCaQ) consideram uma série de fatores. Entre eles, uma remuneração mais justa dos e das profissionais da educação (e mais de 80% das professoras da educação básica são mulheres), o número de estudantes por turma, e outros insumos necessários, como bibliotecas e laboratórios. A Proposta de Emenda Constitucional do novo Fundeb também discute o CaQ.

O CaQi estabelece o valor de investimento mínimo. Isto é, “abaixo desse padrão mínimo o direito à educação não pode ser efetivamente garantido”, como explica o site da Campanha. Já o CaQ indica o valor que deveria ser gasto para alcançar um padrão similar aos de países mais avançados em termos educacionais. Isso porque o Brasil, quando comparado a outros países, investe muito pouco por aluno. A cada 100 dólares investidos em um estudante de 1° a 5° ano, 229 dólares são destinados aos estudantes de países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico ou Econômico (OCDE).

“O CaQ inverte a lógica de financiamento. Hoje o recurso é distribuído pelo número de alunos. Porém, não se faz a pergunta anterior: quanto é necessário para assegurar a educação de qualidade?”, explica Salomão Ximenes, professor de políticas educacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC). “O CaQ tem o potencial de extinguir desigualdades inaceitáveis no financiamento da educação brasileira. Essas desigualdades fazem com que uma parcela importante dos municípios invista um valor abaixo do ideal”, complementa.

Mecanismo de controle

Além disso, como explica o especialista em financiamento da educação, José Marcelino Rezende Pinto, o CaQ também é um poderoso instrumento de controle. E o é porque estabelece claramente quanto deveria estar sendo gasto e onde. Assim, tem um potencial imenso para reduzir a desigualdade entre as redes de ensino público e privada. Para exemplificar, o valor mínimo previsto para 2020 por cada aluno de séries iniciais urbanas do Ensino Fundamental é de R$ 3.643,16/ano. Cerca de R$304/mês, valor muito inferior à média de uma mensalidade na rede privada. “O CaQ mostra que o Brasil gasta pouco em educação. Para fazer escola de qualidade não há outro jeito que não gastar”, acrescenta Marcelino. 

Na mesma linha, Rosana Gemaque acredita que um novo Fundeb sem o CaQ perderia a efetividade. Isso porque o índice “parte do que é necessário distribuir e não do que a União se propõe a gastar”. Em outras palavras, um mero aumento na participação da União melhoraria a distribuição dos recursos, mas manteria a mesma lógica de distribuição. Já o CaQ especifica as condições adequadas de qualidade a serem cumpridas. E baseia-se em normativas já estabelecidas ,como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).

Para Rosana, é possível investir o que o CaQ determina, basta priorizar a destinação dos recursos. O Fundeb repassou cerca de R$166 bilhões em 2019, com cerca de R$15 bi provenientes da União. No mesmo ano, foram mais de R$300 bilhões gastos no pagamento de juros da dívida pública. “A disputa em torno do CaQ se dá justamente por seu potencial de fortalecer o projeto de educação pública de qualidade”, diz a professora.

Limitações e desafios

Ainda há outros pontos incertos na tramitação – e cruciais para a redução de desigualdades. Por exemplo, está aberto se parte do repasse da União será atrelado ao desempenho escolar. Além disso, a votação da regulamentação do Fundeb é central pois detalha a destinação dos recursos. Essa votação acontece depois da aprovação do novo texto.

Também serão discutidos os fatores de ponderação, que definem o valor/aluno/ano em cada etapa e modalidade de ensino. É onde modalidades como educação escolar indígena e quilombola e a educação no campo podem receber valores adicionais.

Educação de Jovens e Adultos (EJA)

A EJA tem fator de ponderação 0.8. Isso significa que, se para estudantes crianças e adolescentes é investido R$1,00 para os estudantes da EJA apenas 80% deste valor são investidos na modalidade. Para a professora Analise da Silva, da UFMG, isso alerta que “a lógica do Estado, inclusive no Fundeb, é tratar a modalidade como ‘o bagaço da laranja’. Como um favor, negando que as pessoas são sujeitos de direito que merecem ter seu direito à Educação garantido”, diz ela, especialista em EJA.

Analise defende que o investimento na modalidade deveria ser mais alto dadas suas especificidades. São 88 milhões de pessoas que não concluíram seus estudos. Isso exige políticas de acesso, permanência e o fim de contratos precários para docentes. Também exige que os materiais de apoio dialoguem com a realidade da população atendida. Isso apenas para elencar alguns dos desafios. Essas tensões demonstram o impacto do Fundeb na educação brasileira. E reforçam a importância da organização e pressão social para que o texto e sua regulamentação continuem a reduzir as desigualdades educacionais, mirando sua eliminação. Se há algo que os 14 anos de Fundeb mostraram, é que é possível avançarmos na garantia do direito à educação para todas e todos no país.

Reportagem: Nana Soares | Edição: Claudia Bandeira

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