Gestão Tarcísio/Feder é marcada pela precarização da educação na rede estadual paulista

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

Ato pela revogação do Novo Ensino Médio em São Paulo

Falta de diálogo, perda de autonomia e desvalorização de profissionais da educação dão o tom da gestão da educação em SP

A Secretaria de Educação de São Paulo na gestão de Tarcísio de Freitas, atualmente sob o comando de Renato Feder, não dialoga com as comunidades escolares, além de cercear a autonomia docente e os trabalhos com ênfase nos territórios. É o que denunciam gestores e docentes ao projeto Tô no Rumo, enfatizando que as condições de trabalho declinaram muito desde o início dessa nova gestão. 

As trabalhadoras e trabalhadores da educação reclamam de decisões tomadas de cima para baixo, sem participação ou escuta das comunidades escolares e desarticuladas em relação à própria rede de ensino e às diretrizes nacionais. Denunciam ainda que a falta de participação social, articulada à implementação de uma série de avaliações em larga escala, têm dificultado trabalhar questões específicas a cada contexto, ferindo a autonomia docente e prejudicando o direito à educação de todas e todos estudantes da rede pública. 

“Estamos vivendo um momento de turbulência”, é como resume Jorge*, diretor de uma escola estadual na região metropolitana de São Paulo. Jorge pontua ainda que os desafios se intensificaram com a pandemia e, especialmente, desde a implementação do Novo Ensino Médio, que gerou uma “precariedade fora do comum”, e que o trabalho mudou com a nova gestão. “Foi uma ruptura. Inclusive pela própria história do secretário, sua experiência no Paraná e vínculo com o setor privado. É natural que ele vá priorizar plataformas e tecnologias e uma leitura acrítica delas. Para ele, enquanto empresário, é um mercado extraordinário”. 

Feder é sócio da Multi, empresa de produtos digitais que tem contratos com o governo estadual firmados na gestão anterior e que poderia vir a se beneficiar, por exemplo, de mudanças no material pedagógico. Antes de comandar a Seduc de São Paulo, Feder era o chefe da pasta no Paraná, no governo de Ratinho Junior. Em sua gestão, avançou a militarização das escolas e, como aponta uma reportagem da Revista Piauí, também houve dificuldade de diálogo e muitas mudanças repentinas. “Entre elas, a implantação do Presente na Escola, aplicativo para controlar a frequência dos alunos, e da Prova Paraná, feita de modo digital a cada três meses para obter um ‘raio X de aprendizagem na rede’”, diz a matéria. 

Mudanças no material pedagógico: a tentativa de não adesão ao PNLD e introdução dos slides digitais

Uma das primeiras “polêmicas” da gestão foi o comunicado de que a rede estadual paulista não iria aderir ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) nos anos seguintes. Isso significava que o estado iria abrir mão, pela primeira vez, dos livros selecionados pelo programa, que seguem uma série de critérios e que são totalmente custeados pelo governo federal. Conforme a reportagem da Piauí aponta, Feder também tentou fazer isso no Paraná, mas a medida não foi para a frente. Em São Paulo o governo também acabou recuando, mas somente após pressão da sociedade civil e dos órgãos do judiciário, que se movimentaram após o anúncio. 

Quando a decisão foi anunciada – e já na época criticada por ter sido tomada unilateralmente, sem qualquer consulta às comunidades escolares ou a especialistas em educação –  o governo Tarcísio disse que o material didático passaria a ser próprio e 100% digital. Apesar de ter recuado e pedido ao MEC para receber os livros do PNLD, o governo do estado de SP continuou priorizando esse material próprio. Os slides também foram rapidamente denunciados por conter erros graves de conteúdo, destoarem do que pregam diretrizes nacionais, além de receberem outras críticas de inadequação à sala de aula. 

Clara*, professora de história de uma escola de tempo integral (PEI) de São Paulo, dá um exemplo: “Uma aula sobre discriminação racial, de 45 minutos, tinha 36 slides, sendo 3 deles exercícios. Com que qualidade vou passar um conteúdo tão extenso?”, questiona. Segundo ela, são cerca de 30 a 36 slides para cada aula de 45 minutos. “E isso em um bimestre com avaliações como Saeb, Saresp e Prova Paulista. Só pode ter sido formulado por pessoas que não têm experiência de sala de aula, porque só assim para propor 36 slides em 45 minutos e de assuntos totalmente diferentes”, diz ela. A professora critica também a qualidade dos slides, reforçando que, ao deixar para docentes corrigirem e adaptarem o que for necessário, a Seduc sobrecarrega ainda mais os profissionais. “E isso sem falar nas dificuldades de acesso a internet. Como é possível ficar refém de um material digital se não tem internet? Se o Youtube, por exemplo, é bloqueado em toda a rede paulista – mas é indicado nos slides?”. 

A Rede Escola Pública e Universidade (REPU), publicou, em agosto, nota técnica criticando esse movimento da Seduc de substituição dos livros do PNLD pelos slides digitais. A análise conclui que o material único apresenta inúmeros problemas metodológicos, erros conceituais e má contextualização e que a substituição é insustentável dos pontos de vista educacional, pedagógico, administrativo e econômico. 

“A adoção de material didático único fere os princípios constitucionais da pluralidade de ideias e de concepções pedagógicas e da gestão escolar democrática, estreitando o processo formativo e prejudicando as aprendizagens dos/as estudantes na rede estadual. Os custos exorbitantes com a possível impressão em larga escala de slides de baixa qualidade são injustificáveis e contrariam o princípio da eficiência na administração pública. Assim, a medida anunciada pelo governo paulista é insustentável dos pontos de vista educacional, pedagógico, administrativo e econômico-financeiro, e acarreta prejuízos à qualidade do ensino na rede estadual em todas as etapas da educação básica”, diz o documento.

Segundo o diretor Jorge, “mais uma vez as escolas têm que se reinventar”, especialmente porque esses conteúdos são cobrados nas avaliações. “os professores não podem simplesmente reproduzir o slide. É preciso contextualizar, acrescentar, suprimir, etc. É um trabalho que exige uma autoria e uma autonomia em sala de aula, mas não há tempo para se organizar. Assim, é um sufoco para o docente e também para a gestão responder à Seduc”, diz.

 Perda de autonomia

O debate e a revolta ao uso dos slides digitais na rede estadual de São Paulo tem também relação direta com um outro problema: o da perda de autonomia docente. Isso porque as avaliações de larga escala aumentaram e ganharam centralidade no estado, sendo inclusive uma forma de ingresso no ensino superior. E muitas delas são baseadas nos slides. Ou seja, eles tornam-se base para que as escolas possam preparar suas e seus estudantes para essas avaliações. Por sua vez, há muito menos margem para as e os gestores trabalharem questões específicas a suas comunidades e/ou territórios, promovendo saberes locais, enfrentando problemas importantes para aquele grupo ou sequer atuando sob uma lógica outra que não a das avaliações de larga escala, que reforçam uma perspectiva meritocrática e não consideram outras questões centrais quando se discute qualidade na educação, como: insumos, valorização das profissionais da educação, processos pedagógicos e gestão democrática . 

“No momento, isso é nossa principal questão junto à Seduc”, conta Jorge, diretor de escola da rede estadual. “Atualmente, só temos respondido às demandas de cima para baixo, respondido às plataformas. Não conseguimos pensar projetos a partir da nossa realidade”, descreve. Por outro lado, Helena*, da equipe de uma Etec, critica a dificuldade de comunicação com o governo estadual e a falta de planejamento de acordo com as características das diferentes redes. “Ter duas redes paralelas – a das Etecs e o ensino regular – é um grande desafio, e não é de agora. No Provão Paulista, por exemplo, vemos que não há muito cuidado em pensar uma proposta integrada que inclua também a rede das ETECs, recebemos pouca informação e em cima da hora, e então não conseguimos responder as famílias e estudantes sobre o que esperar”, reclama Helena. 

Para a professora Clara, trabalhar sob a nova gestão tem sido “exaustivo”, impactando a saúde mental das profissionais. “As estruturas de assédio já estão internalizadas, principalmente por conta da atuação do governador e do secretário. Isso nos causa instabilidades mentais”, diz. Ela destaca como mais graves a perda de autonomia docente e de incertezas sobre o futuro, como regimes de contratação e benefícios. “Se nós não apresentamos o material os estudantes é quem perdem, já que têm muitas provas definidoras de futuro na frente. Isso quebra o compromisso docente de apresentar outras visões de mundo e deixar o educando escolher. Se não posso apresentar nenhuma visão exceto a que vai cair na prova, então pra que serve tudo isso?”, resume.  

Outra face do problema foi escancarada em um episódio de violação de privacidade em agosto: da noite para o dia, estudantes, suas famílias e trabalhadores da rede estadual paulista viram um aplicativo (“Minha Escola”) ser instalado em seus celulares, sem qualquer pedido prévio de autorização. O episódio levantou questões sobre violação de privacidade e proteção dos dados pessoais e segurança das comunidades escolares. “Às 7h da manhã vi um aplicativo contendo todos os meus dados pessoais”, conta Clara, professora, que disse que ficou a cargo de cada pessoa remover o aplicativo. “Com esse episódio, ficou a dúvida de até que ponto nós temos liberdade no nosso aparelho pessoal”, diz ela, que lembra que o estado fornece apenas o chip para fins profissionais. 

O governo estadual disse, em nota enviada ao UOL, que abriu um processo administrativo para apurar o caso, afirmando que “a falha ocorreu durante um teste promovido pela área técnica da pasta em dispositivos específicos da Seduc”. O que chamou a atenção é que o mesmo episódio aconteceu no estado do Paraná, em 2022, quando a Seduc também estava sob a gestão de Renato Feder. Naquela ocasião, a pasta também disse que foi um erro. 

Falta de diálogo

Todos esses problemas são potencializados pela falta de diálogo, escuta e participação das comunidades escolares. Todas e todos os profissionais com quem entramos em contato são unânimes nesse ponto: as decisões têm sido comunicadas (e mal comunicadas), nunca discutidas. “A relação que deveríamos construir na comunidade escolar – horizontal, do planejamento, do diálogo com docência, gestão e comunidade – está podada. Não estamos tendo voz a partir do território, e isso também está valendo em âmbito municipal. Buscamos atender a todas as demandas, mas elas nunca chegam a partir da escola, é sempre de cima pra baixo”, protesta o diretor Jorge. Ele vê semelhanças do atual modelo com a gestão de uma empresa privada, focada em produção e métricas. “Isso não combina com a concepção de educação pública de qualidade”, diz. 

Na perspectiva das ETECs, a professora Helena destaca a comunicação desencontrada, com anúncios importantes sendo comunicados informalmente, sem acesso à informação de forma oficial. “Isso tem gerado uma série de insatisfações. Por exemplo, soubemos por meio de um vídeo enviado a um professor da escola que a rede de ensino regular também receberia cursos profissionalizantes. E que eles não seriam oferecidos por ETECs, que são referência. Por que oferecer esses cursos sem ser em parceria? Não temos informação de como isso está sendo construído, e não envolver as ETECs nos dá uma sensação de descaso e desvalorização”, conta ela. No caso das ETECs e FATECs, os docentes fizeram greve pela primeira vez esse ano justamente demandando melhores condições de trabalho e contra o desmonte da rede e privatização. “Por diversos fatores, inclusive o modo que a comunicação com o governo estadual tem se dado, o clima geral é de insegurança”, diz ela. 

A greve das ETECs e FATECs é um bom exemplo de como as e os profissionais têm resistido em uma gestão que não dá sinais de que vai mudar seu modo de operar. Através da organização coletiva conseguiram, por exemplo, assegurar o pagamento de alguns benefícios que estavam incertos até o momento, apesar de ser direito. Também frisa a importância da organização coletiva o diretor Jorge, que trabalha em uma escola da rede regular: “Nós educadores devemos nos organizar para resistir e isso só se dá coletivamente. Se cada um ficar apenas em sua escola tentando responder às demandas, todos vamos perder. O caminho é trabalhar pelas beiradas, frestas, é resistir, pegar as brechas que o sistema sempre deixa. Eles controlam muito, mas não controlam tudo”. 

*Nomes alterados pela segurança dos/as entrevistados/as. 




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