Descumprimento do PNE afeta mais as juventudes negras, indígenas e periféricas e aumenta a urgência da construção de um novo Plano

Com poucos avanços em uma década, desafio é construir novo PNE que diminua desigualdades e não deixe ninguém para trás

Crédito: Fernando Frazão / Agência Brasil

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira 

O Brasil de 2023 é bem diferente do Brasil de 2014, quando entrou em vigor o atual Plano Nacional de Educação (PNE). Mas passada quase uma década, foram poucos os avanços na Educação brasileira: quase 90% dos dispositivos e metas do PNE não vão ser alcançados até o final do prazo, segundo o último balanço da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, prejudicando especialmente a população negra, indígena e dos estados do Norte do país. E não apenas os avanços não são suficientes como mais da metade das metas estão em retrocesso. Este cenário torna mais urgente a construção de um novo Plano que permita superar desigualdades históricas e que seja, de fato, implementado. 

O que é o PNE

O Plano Nacional de Educação (PNE, Lei 13.005/14) é a mais importante política educacional brasileira, fruto de anos de debates com intensa participação social. Aprovado em 2014 após acirrada tramitação no Congresso, foi uma vitória da sociedade civil e dos movimentos sociais da área da Educação, sublinhando a importância do planejamento educacional, orientando o investimento e a gestão, além de referenciar o controle social e a participação cidadã.

O atual PNE tem 20 metas e 254 estratégias a serem cumpridas até junho de 2024. Essas metas dispõem sobre acesso e permanência desde a creche até a pós-graduação, mas também abarcam temas como participação social, valorização de profissionais da educação, combate às desigualdades educacionais e financiamento da educação. O PNE é uma política pública e seu cumprimento deve se dar independente de quem está no governo ou do contexto social, político ou econômico. 

Como está sua implementação

O PNE começou a ser esvaziado já em 2015, um ano após sua aprovação, por medidas de ajuste fiscal do segundo governo Dilma. Em 2016, a Emenda Constitucional 95 (EC 95, ou o “Teto de Gastos”) foi aprovada, constitucionalizando cortes orçamentários por 20 anos e inviabilizando de vez qualquer progresso real, já que sem novos recursos é impossível cumprir várias das metas do PNE (por exemplo, aumentar matrículas em diferentes etapas). Fora a meta 20, que prevê a ampliação do investimento público em educação pública e que, se não é cumprida, afeta todas as outras. 

Depois veio o governo Bolsonaro, que nunca norteou a política educacional pelo PNE. Ao contrário, sua gestão aprofundou as políticas de austeridade que inviabilizam o cumprimento do plano e dificultou de diversas maneiras a participação social, a gestão democrática, a transparência e o acesso a dados. Além do subfinanciamento da Educação que inviabiliza o PNE como um todo, em seu governo avançaram medidas que o impactam negativamente, como a Reforma do Ensino Médio. Outro fator de impacto negativo no PNE foi a pandemia, que interrompeu alguns avanços, como o acesso e permanência no Ensino Fundamental. Agora, na avaliação de Marcele Frossard, assessora de programas e políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, embora o novo governo esteja mais permeável à reconstrução e reorganização de políticas sociais, ainda há dificuldades em relação ao cumprimento do orçamento para a Educação

Todos os anos, a Campanha faz um monitoramento do cumprimento de todas as metas e estratégias do PNE, com resultados cada vez mais preocupantes. Em 2023, o balanço verificou que 13 das 20 metas estão em retrocesso e que mais de 90% dos objetivos não serão cumpridos a tempo. “Até metas que estavam estagnadas ou que caminhavam de alguma maneira passaram ao retrocesso no governo Bolsonaro”, destaca Marcelle. Fora as várias metas que não podem ser totalmente avaliadas porque não há informações públicas atualizadas (há lacuna de dados em cerca de 35% dos dispositivos). A Campanha classifica 3 metas como parcialmente cumpridas, mas entende que elas já estavam avançadas em 2014 e que não há, portanto, exatamente um progresso. 

As metas em retrocesso referem-se a: universalização do atendimento à Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio; oferta da Educação em tempo integral na educação básica; erradicação do analfabetismo; valorização dos profissionais do magistério; acesso ao Ensino Superior; e ampliação do investimento público na educação. 

Ao olhar os dados mais de perto fica evidente que o descumprimento não afeta todos os grupos igualmente. Populações indígenas e quilombolas, do campo, bem como estudantes negras e negros e de estados do Norte e Nordeste têm os piores índices educacionais. Ou seja, a educação brasileira continua profundamente desigual.

Um exemplo é a Meta 12 que se refere às matrículas na Educação Superior, especialmente entre a população de 18 a 24 anos. Os dados evidenciam que as desigualdades entre os mais ricos e os mais pobres persistem, bem como as desigualdades regionais (a taxa de matrícula no Nordeste é quase 20 pontos abaixo da do Sudeste). Essa foi uma meta que piorou na pandemia, quando diminuiu o percentual de pessoas de 18-24 anos que frequentam ou já concluíram cursos de graduação – e persistiu a desigualdade étnico-racial: pretos e pardos acessam a graduação em proporção aproximadamente 50% menor do que a população branca. Ainda,  a expansão das matrículas tem se dado de forma excessivamente concentrada na rede privada, o que também se agravou durante a pandemia.

Quais são os pontos mais problemáticos?

Tudo é preocupante em um cenário de descumprimento generalizado, mas podemos resumir a causa e a consequência: boa parte do PNE foi e é inviabilizado pela falta de investimento público em educação, e o resultado do descumprimento do Plano é o agravamento das muitas desigualdades sociais e educacionais. 

Para Marcelle Frossard, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o cenário não é negligência ou descaso, mas sim “uma escolha política de onde investir ou não e quais áreas são prioritárias”. Opinião compartilhada pela professora Analise da Silva, da UFMG, que diz que o Brasil faz “políticas públicas a conta gotas”, sem real desejo de incorporar a população negra na cidadania, e pelo professor Eduardo Januario, da Faculdade de Educação da USP, para quem as discussões sobre o combate às desigualdades, especialmente as étnico-raciais, ainda estão longe do chão da escola

A falta de investimento deveria ter sido sanada pela Meta 20, que prevê ampliar o investimento público em Educação pública de forma a atingir no mínimo 10% do PIB ao final do decênio. No entanto, hoje o investimento não passa de cerca de 5% do PIB – metade do nível desejado e estabelecido em lei. “Isso, é preciso lembrar, vem desde 1995, no governo Fernando Henrique Cardoso”, lembra Januário, especialista na área de financiamento educacional. “Mesmo quando, no governo Lula, conseguimos concordar na meta de 10%, não conseguimos colocar em prática”. Para o professor, é inconcebível falar de qualquer avanço em PNE e em combate a desigualdades sem caminhar para um financiamento mais robusto. “E o MEC precisa assegurar que as verbas destinadas ao financiamento educacional sejam cumpridas”, acrescenta. Na mesma linha, ele defende ser impossível pensar no PNE e, mais especificamente, na ampliação do Ensino Médio sem investimento maciço na etapa – o que o Novo Ensino Médio não se propõe a fazer. 

O descumprimento das metas do PNE agrava as desigualdades existentes por conta da ausência ou abandono de políticas específicas para combater essas desigualdades. No caso da Educação Integral (EI) e da Educação de Jovens e Adultos (EJA) o cenário foi especialmente dramático: O Mais Educação, de EI, foi descontinuado, e a EJA foi completamente desfinanciada, tendo em 2022 um orçamento que representava apenas 0.44% do orçamento de 2012. 

A EJA abarca uma população (majoritariamente negra) que, por inúmeros motivos, não pôde iniciar ou concluir a Educação Básica. No PNE, as metas 8 e 9 se referem à situação da EJA e das desigualdades e, não por acaso, mostram um cenário desastroso. Em 2022, a Meta 8, focada em reduzir desigualdades, apresentou retrocesso pela primeira vez. A escolaridade média do Nordeste e da população na zona rural caiu, e as populações negra e não-negra continuam com índices inaceitavelmente desiguais (a população negra de 18 a 29 anos tem cerca de 91% da escolaridade da população branca da mesma faixa etária) . Já a meta 9 mostra que o analfabetismo funcional avançou quando deveria ter regredido (era 27.1% em 2014 e agora está em 29.4%, quando deveria estar em cerca de 15%). Ainda, o analfabetismo absoluto é um problema especialmente importante no Nordeste, embora todos os estados da região tenham progredido a níveis acima da média nacional.

Analise da Silva, professora da Faculdade de Educação da UFMG e especialista em EJA, classifica o cenário brasileiro como deprimente. Ela reforça, por exemplo, o vácuo para adolescentes e jovens que têm direito à EJA. “Se o problema fosse apenas o Ensino Médio seria menos pior, mas não temos nem mesmo a alfabetização garantida”, diz. A professora reforça que a ideia de que a Educação de Jovens e Adultos atinge apenas adultos e idosos não é verdadeira – ela deveria abarcar também os jovens que iniciaram a escolarização mas que estão muito longe do chamado “período ideal”. Para ela, esse grupo está abandonado pelo poder público – basta lembrar que a EJA viu o encolhimento de vagas nos últimos anos.

Marcelle Frossard enfatiza que o PNE reverbera as desigualdades sociais, econômicas e populacionais existentes no país. Nesse contexto, destaca ela, a região Norte também merece atenção. “É uma região reconhecida pela forte presença de populações de comunidades tradicionais, povos indígenas e quilombolas, além de questões migratórias. No entanto, ainda faltam muitas informações sobre essas realidades. É uma região com muitas especificidades, o que exige participação conjunta para uma educação contextualizada que é direito dessas populações”. 

E o próximo PNE?

O atual PNE deixa de valer em junho de 2024. Isso significa que um novo projeto para substituí-lo já deveria ter sido enviado para análise do Legislativo em junho deste ano, o que ainda não ocorreu. No momento, os Fóruns, Conselhos e Secretarias de Educação se organizam para a realização da CONAE 2024 que terá como tema “Plano Nacional de Educação (2024-2034): Política de Estado para a garantia de educação como direito humano, com justiça social e desenvolvimento socioambiental sustentável”. As etapas municipais e estaduais estão previstas para ocorrer no segundo semestre de 2023 e a nacional no início de 2024. 

São muitas as tarefas: não apenas construir um novo PNE que responda à altura os desafios da educação brasileira, como construí-lo em um prazo apertado garantindo as vozes da sociedade e das comunidades escolares. “O novo PNE, para ser novo, tem que vir associado à revogação do NEM, à construção de outro Ensino Médio, e não pode ser produzido a toque de caixa sem refletir os interesses da sociedade e das comunidades escolares”, defende Marcele Frossard, assessora de programa e políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. 

Além disso, a promulgação de um novo Plano é só o começo do processo, já que a implementação e o cumprimento das metas têm se mostrado a etapa mais desafiadora dos últimos anos, especialmente em relação ao financiamento educacional. “É comum que o Estado brasileiro incorpore objetivos na lei, mas não os execute de fato. Foi o caso do atual PNE, um Plano que avançou ao incorporar novas perspectivas de combate às desigualdades, mas que não conseguiu avançar no cumprimento dessas metas”, argumenta o professor Eduardo Januário, que defende que o próximo PNE precisa seguir almejando os objetivos ainda não alcançados. “Como criar novas metas sem cumprir as que não foram cumpridas?”, questiona, acrescentando que “não há outra possibilidade senão insistir na destinação de 10% do valor do PIB para a Educação, senão insistir nas discussões de financiamento e equidade”. Para Januário, igualmente importante é garantir o fortalecimento das instâncias de participação social, como Conselhos e Fóruns Municipais e estaduais de Educação, justamente por serem agentes chave no monitoramento das metas. 

Na mesma linha, a professora da UFMG Analise da Silva defende que se as novas metas precisam ser as mesmas ou no mínimo parecidas com as atuais, dado o estado de descumprimento do Plano, as táticas e estratégias de monitoramento e pressão social precisam ser mais ousadas. Ela destaca o contexto extremamente adverso para o cumprimento do Plano, pois é preciso vontade política para “efetivar a EJA como ação afirmativa que seja garantidora do rompimento das desigualdades sociais e para um novo PNE que leve em consideração sujeitos que o Estado brasileiro invisibiliza desde 1500”. “Não podemos ficar parados esperando a política pública”, reforça Analise. 

A falta de compromisso político com o atual PNE nos desafia a aprimorar as formas de participação e de controle social das políticas educacionais para que governos se comprometam com a implementação e com o fortalecimento de Políticas de Estado. Não resta dúvida que, se queremos imaginar e realizar um outro horizonte para a Educação brasileira, é preciso construir o próximo PNE com ampla participação popular, principalmente das comunidades escolares e das/os jovens estudantes e com a garantia de um financiamento adequado, incluindo 10% do PIB, a regulamentação do Custo Aluno Qualidade (CAQ) e de um Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SINAEB) que garanta equidade na distribuição dos recursos. Não há mais tempo a perder.





Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.