Lacunas históricas, como o subfinanciamento da EJA, educação indígena e quilombola traduzem-se em queda de matrículas e piores condições de infraestrutura. PNE é oportunidade de enfrentar essas desigualdades

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira
O Ministério da Educação (MEC) divulgou, em abril, os resultados do Censo Escolar 2024, levantamento que anualmente reúne dados sobre escolas, professoras e professores, gestoras e gestores, turmas e estudantes de todas as etapas e modalidades de ensino da educação básica. E, se o cenário indicado pelo Censo não traz grandes surpresas em relação à série histórica e a outras pesquisas, ele evidencia negligências e desmontes históricos, bem como as múltiplas desigualdades educacionais brasileiras a serem enfrentadas pelas políticas públicas.
Em 2024, segundo dados do Censo, o Brasil tinha 47,1 milhões de estudantes na educação básica, 0,4% a menos do que no ano anterior. No período, também houve redução nas matrículas da rede pública e expansão nas da rede privada.
Desagregando as matrículas por etapas da educação básica, o Censo apontou que houve uma expansão na creche – cujas matrículas superaram os números pré-pandemia. Nesta etapa, 33,1% do total de matrículas é da rede privada, maior participação em toda a educação básica, e 52,8% são em instituições conveniadas com o poder público. Apesar da expansão, o acesso à creche ainda não está no nível esperado pelo Plano Nacional de Educação – para cumprir a meta de atendimento, seria preciso 1,2 milhão de matrículas a mais.
Na pré-escola houve estabilidade nas matrículas gerais, mas queda de 0,9% na rede pública e crescimento de 0,4% na rede privada. No ensino fundamental, houve queda de matrícula tanto nos anos iniciais como nos anos finais, assim como aumento da participação da rede privada. Nos anos iniciais, o Censo indicou redução na participação da rede estadual e, nos anos finais, redução nas redes municipal e estadual.
Já o Ensino Médio registrou aumento de 2023 para 2024: são 7,8 milhões de matrículas, um acréscimo de 1,5% no último ano. A análise da série histórica entre 2020-2024 mostra que também nessa etapa aumenta a participação da rede privada, bem como a participação federal.
“A queda no número de matrículas gerais é notória no Brasil e se relaciona com a transição demográfica pela qual o país passa – mas a creche é uma exceção porque, ao contrário de etapas como a pré-escola e o ensino fundamental, ainda não está próxima da universalização, havendo grande margem para expansão”, avalia o pesquisador Adriano Senkevics, técnico de planejamento e pesquisa no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Raciocínio similar pode explicar a expansão de matrículas no Ensino Médio: “O Ensino Médio também ainda tem espaço para expansão por conta das menores taxas de matrícula e da elevada evasão. A ruptura com a série histórica vem na contramão de anos anteriores e pode estar relacionada a políticas de incentivo [à permanência], como o Pé de Meia, mas essa hipótese precisaria ser confirmada por outros estudos”, explica ele.
O Ensino Fundamental – maior etapa da educação básica, com 26 milhões de alunos – apresenta-se, na visão do pesquisador, como um gargalo ainda a ser devidamente adereçado pelas políticas públicas. É uma etapa que vem registrando queda de matrículas (especialmente nos anos finais) e onde as desigualdades étnico-raciais e econômicas se aprofundam, o que explicaria, ao menos parcialmente, a evasão observada até e durante o Ensino Médio. “É um ponto para o qual, em termos de política pública, temos olhado pouco, o maior foco tem sido nas políticas de alfabetização e no Ensino Médio. Mas o meio também tem questões muito sensíveis, como a transição etária e as possibilidades de ingresso precoce no mundo do trabalho”, destaca. “O que acontece é que os problemas educacionais vão se acumulando e se aprofundando ao longo da trajetória de tal modo que no Ensino Médio fica mais difícil garantir um nível adequado de aprendizado se essas competências não foram construídas ao longo da escolarização”, alerta Senkevics.
No entanto, apesar do aumento de matrículas no Ensino Médio no último ano, o levantamento mostra a persistência de desigualdades educacionais, especialmente as étnico-raciais, de classe e regionais. A região Norte, por exemplo, seguida da região Nordeste, é a que registra os piores índices em relação à infraestrutura das escolas de ensino fundamental e ensino médio (esse item avalia itens como a presença de quadra de esportes, de biblioteca, área verde e acesso à internet). Estão na região norte os estados com os menores percentuais de matrículas na rede privada (Acre, Roraima e Amazonas), além do protagonismo de estados nortistas em matrículas de localização diferenciada (educação indígena, quilombola e em áreas de assentamento).
Essas modalidades, como mostram os dados do Censo, são as mais precárias em termos de infraestrutura, principalmente quando se trata da educação indígena. Cerca de 3 em cada 4 escolas de ensino fundamental da educação indígena não têm computador para as e os alunos e menos da metade tem acesso à internet. Também é a educação indígena, seguida da educação inclusiva, quilombola e rural que apresenta a maior distorção idade-série no 6º ano do ensino fundamental, mais que o dobro do índice geral do país.
Adriano Senkevics, especialista em educação e desigualdades socioeconômicas, ressalta que as disparidades que atingem a região Norte vão além da educação, mas que esse campo permanece desafiador. Por exemplo, a baixa densidade populacional faz com que a região tenha um número maior de turmas multisseriadas, além de outros desafios crônicos, como a dificuldade em compor uma rede de profissionais com formação adequada – sejam docentes especialistas em suas disciplinas, sejam docentes com formação para educação indígena ou quilombola. “Mas temos, em linhas gerais, observado uma lenta redução das desigualdades regionais, com o Nordeste, por exemplo, tendo resultados muito positivos em relação ao que apresentava no passado”, avalia o pesquisador, também reforçando que reduções de desigualdades são mudanças de longo prazo, não se refletindo em um único ano.
“No Brasil, temos mudado o paradigma do financiamento educacional, que está cada vez mais progressivo e redistributivo, posicionando a redução de desigualdades no coração dos principais mecanismos de financiamento da educação pública. Isso significa distribuir melhor os recursos entre as redes de ensino – o que implica destinar mais recursos para Norte e Nordeste – e incidir em desigualdades socioeconômicas e étnico-raciais. Claro que ainda é necessário cuidar e monitorar para que isso seja consolidado, mas acredito que políticas dos últimos anos já têm mudado o rumo para qual o Brasil caminhava”, defende o pesquisador do Ipea.
Educação de Jovens e Adultos: abandono evidenciado em dados
Uma modalidade educacional, no entanto, se destaca quando o assunto é redução de desigualdades: a educação de Jovens e Adultos (EJA). Cronicamente subfinanciada e muito distante das metas previstas no atual Plano Nacional de Educação, a EJA vem consistentemente diminuindo sua oferta. O Censo Escolar 2024 mostrou uma redução de 27% nas matrículas em relação a 2020 – cerca de 810 mil estudantes a menos. A queda é observada tanto no Ensino Fundamental como no Ensino Médio, e em ambas etapas a maior parte da população atendida é negra (cerca de 60% dos respondentes do Censo, sendo que outros 23% não declararam raça/cor).
Na avaliação de Roberto Catelli, coordenador da unidade de educação de jovens e adultos da Ação Educativa, esses dados estão longe de representar uma surpresa. Ao contrário, refletem a histórica falta de prioridade para a modalidade, traduzida em subfinanciamento, fechamento de turmas e falta de políticas específicas. O Pacto Nacional pela Superação do Analfabetismo e Qualificação na Educação de Jovens e Adultos, por exemplo, principal ação do MEC para a modalidade, foi lançado há apenas um ano. “Com ele, a tendência é que haja um esforço nas redes estaduais e municipais para abrir vagas e estimular estudantes a vir para a EJA, então quem sabe tenhamos notícias melhores no próximo Censo, mas ainda assim insuficientes para mudar o rumo da história – até porque, para isso, as medidas devem ir além da abertura de vagas”, explica Catelli. Ele se refere à necessidade de ação em outras variáveis que dificultam a presença de jovens, adultos e idosos na escola, como o mundo do trabalho, segurança alimentar, relações familiares, acesso à saúde, formação de professoras e professores e alterações curriculares para a EJA. “Ainda é preciso muito esforço para dar conta da dívida social brasileira”, diz.
O Censo Escolar 2024 também evidencia uma mudança gradual no perfil de estudantes da EJA. Hoje, como mostra o levantamento, a educação de jovens e adultos recebe muitos alunos provenientes do ensino regular. Por exemplo, de 2021 para 2022, cerca de 180 mil estudantes dos anos finais do ensino fundamental e 140 mil do ensino médio migraram para a EJA. São, segundo o INEP, alunos com histórico de retenção e que buscam meios para conclusão dos estudos. Essa mudança fica visível na idade mediana de estudantes da EJA a cada etapa de ensino: 49 anos para os anos iniciais do ensino fundamental; 27 anos para os anos finais do ensino fundamental e 23 anos para o Ensino Médio.
“Existem notícias, por exemplo, no estado de São Paulo, de negativa de vagas para alunos com mais de 15 anos no Ensino Fundamental e de 18 no Ensino Médio. Ou seja, de redes públicas empurrando jovens para fora da escola ou para a EJA, e isso é um dos motivos do crescimento da base de jovens, a exclusão escolar baseada na ideia de não querer na escola convencional estudantes com mais de dois anos de defasagem”, explica Roberto Catelli.
A exclusão escolar, somada a um contexto de redução de oferta de EJA no país, pode impactar diretamente os níveis de alfabetismo/analfabetismo, como mostra a última edição do INAF – estudo que mede os níveis de analfabetismo funcional da população brasileira de 15 a 64 anos. Os dados do INAF evidenciam a relação entre alfabetismo e escolaridade. Isto é, quanto maior a escolaridade, maior a chance da pessoa atingir níveis plenos de alfabetismo. A boa notícia é que desde 2001 a proporção de analfabetos funcionais no Brasil caiu de 39% para 29%, mas isso ainda representa cerca de 40 milhões de jovens e adultos. Além disso, apesar da melhora nos níveis mais baixos, o índice de proficientes (o nível mais alto de alfabetismo) é constante na série histórica, o que revela que os ganhos se acumulam nos níveis elementar e intermediário, etapas que deveriam ser apenas de transição.
E também aqui as desigualdades raciais se revelam: embora ela tenha diminuído ao longo dos anos, foi apenas marginalmente, e segue existindo grande disparidade nos níveis de alfabetismo das pessoas que se autodeclaram pretas e pardas quando comparadas àquelas que se identificam como brancas. Cinquenta e oito por cento dos analfabetos funcionais são pretos ou pardos, 39% brancos e 3% indígenas ou amarelos. Em 2018, essas proporções eram, respectivamente, de 67%, 24% e 4%.
“Se o principal fator de indução do nível de analfabetismo é escolaridade, então ao reduzir vagas e oferta de EJA estamos caminhando para não alavancar o nível de alfabetismo das pessoas adultas. Melhorar esse nível está diretamente relacionado a um avanço considerável na EJA – e isso significa criar condições objetivas para cidadãs e cidadãos irem à escola, com horários e currículos condizentes com suas rotinas, entre outros fatores”, finaliza Catelli.
Desafios para as políticas públicas
Dar conta de tantas desigualdades educacionais é sem dúvida desafiador para a elaboração de políticas públicas. Em 2025, a principal política pública de planejamento educacional brasileira está em tramitação no Congresso – o Plano Nacional de Educação (PNE). Até o momento, o texto ainda não enfrenta muitos dos problemas já diagnosticados – seja por não contemplar agendas socialmente acordadas na Conferência Nacional de Educação (CONAE 2024), seja pela insuficiência de mecanismos que assegurem o cumprimento das metas e a reversão desse cenário.
A Coordenadora Geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, avalia que, no atual estágio, o texto do novo PNE traz avanços ao incorporar uma perspectiva mais transversal de equidade e igualdade, incluindo acesso e permanência escolar para grupos historicamente marginalizados, mas ainda deixa lacunas significativas. “Especialmente em relação à especificidade de gênero e LGBTQIA+, ausentes no texto, além da falta de estratégias robustas para reverter a queda na EJA e reduzir as desigualdades regionais. Embora o PL do MEC avance em relação ao PNE anterior, a ausência de mecanismos claros para recuperar metas não cumpridas e a fragilidade na articulação federativa podem comprometer a efetividade do plano”, avalia. Além disso, a Coordenadora da Campanha preocupa-se com a abordagem da Educação Profissional e Tecnológica no projeto – para ela, uma abordagem privatista e na linha do Novo Ensino Médio.
Andressa entende que o texto também não enfrenta com a urgência necessária alguns desafios revelados pelo último Censo Escolar – como a perda de matrículas da EJA e a ausência de infraestrutura adequada em escolas indígenas, quilombolas e do campo -, especialmente pela falta de metas mais a curto prazo e mais ousadas e financiamento específico para essas populações. “A EJA carece de avanços mais profundos, necessários para devolver dignidade nessa modalidade, que foi muito precarizada na última década, com um objetivo tímido no novo PNE”, diz. “Mas nossas emendas tratam dessas agendas com maior rigor”. Ou seja, toda pressão e mobilização social serão necessárias durante a tramitação para assegurar que o novo PNE responda e enfrente as desigualdades educacionais brasileiras reveladas por diversos monitoramentos, incluindo o Censo Escolar.