Novo Ensino Médio, desemprego e racismo: quais os impactos da precarização da vida e da educação na saúde mental da juventude?

Desde a pandemia, jovens relatam piora na saúde mental e demandam atenção para essa questão também na escola. Pesquisas confirmam relação entre precarização da vida e adoecimento psicológico. 

Texto: Nana Soares / Edição: Claudia Bandeira

Oficina sobre Saúde Mental realizada pelo projeto Tô No Rumo, em março de 2023.

“Quando começou a pandemia, fomos pegos de surpresa. Fomos para casa achando que ia passar rápido e logo voltaríamos à rotina, mas acabamos passando 2020 inteiro em casa, com convívio limitado, e percebemos que ia ser difícil recuperar tudo depois. Depois voltamos um dia por semana para a escola e ainda assim percebemos que estava fraco. Quando cheguei ao segundo ano [do ensino médio] veio a bomba do Novo Ensino Médio no nosso colo, no dos professores e de toda a escola. Todo mundo precisou trabalhar com o que tinha. E esse ano, além de ter que correr atrás de tudo que a gente perdeu e ainda se adaptar ao novo ensino médio, tem ENEM. A verdade é que estamos tendo que estudar duas vezes mais porque estamos defasados.”

O relato acima é de Stella Barbosa, estudante do terceiro ano do Ensino Médio de uma escola pública da cidade de São Paulo, e ilustra bem como as e os estudantes brasileiras/os têm sentido os impactos de anos de políticas de austeridade e precarização na educação e nos serviços públicos. Essa piora em condições estruturais tem afetado diretamente a saúde mental das juventudes, que demandam mais atenção e cuidado nessa esfera. 

A pauta da saúde mental tem, de maneira geral, ganhado mais visibilidade nos últimos anos. Mas, além da visibilidade, também tem de fato se tornado mais urgente para jovens que vivem na pele os efeitos de macropolíticas que causam piora na qualidade de vida. Uma pesquisa recente da Plan International realizada com adolescentes meninas de diversos países do sul global atestou que os principais problemas de saúde mental nessa faixa etária têm origem na pobreza, violências e desigualdades de gênero. E que uso abusivo de álcool, tabagismo e sedentarismo são mecanismos acionados para tentar contornar sentimentos de estresse, tédio, ansiedade e depressão. Outra pesquisa, do Instituto Datafolha, também aferiu um cenário preocupante na saúde mental de jovens brasileiras/os, especialmente em meninas e jovens LGBTQIA+, evidenciando a relação entre contextos macropolíticos desfavoráveis e o adoecimento a nível individual. 

“Esse processo foi intensificado pela pandemia e pelo projeto político genocida do governo anterior, que dificultou ainda mais o acesso das juventudes em diversas áreas”, diz Bruno Mota, ​​psicólogo do Instituto Afro Amparo e Saúde e doutorando em Psicologia na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Bruno reforça os impactos das desigualdades raciais na saúde mental da população negra, lembrando que “a precarização e o desmonte dos serviços públicos, além da iniquidade em saúde, fazem com que populações negras e periféricas continuem excluídas de um programa de saúde integral”. O psicólogo reforça que este fenômeno não é novo, bem como não são a violência estatal, a letalidade policial, o desemprego e o racismo, alguns dos principais fatores de adoecimento. 

No Brasil, o instituto AMMA – Psique e Negritude, é pioneiro em abordar essa relação, defendendo que o enfrentamento ao racismo se faz tanto política quanto psiquicamente. “O racismo, além de violar direitos sociais, prejudica a saúde psíquica dos indivíduos: podendo fazê-los desenvolver sintomas psicossomáticos, inibições, impedimentos (de acesso, de participação), especialmente na experiência de negritude; e/ou desenvolver uma autoimagem distorcida, descolada da própria realidade e racialidade, como ocorre principalmente na experiência de branquitude”, como definem em seu site. Por isso, o instituto realiza ações como grupos temáticos de discussão, ciclos formativos sobre efeitos psicossociais do racismo e oficinas de identificação e abordagem do racismo institucional.

Em março de 2023, o Projeto Tô No Rumo, da Ação Educativa, realizou um encontro sobre o tema com jovens do ensino médio – demanda que partiu das e dos estudantes. Cinthia Gomes, jornalista, e integrante da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial e da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, foi uma das facilitadoras dessa formação e reforça que é importante destacar a atitude dos estudantes que reivindicam sua qualidade de vida. “Mas percebo principalmente dois aspectos afligindo a saúde mental das juventudes: as redes sociais e a afirmação das identidades”, diz ela. As redes sociais por conta da comparação com outras vidas e contextos “e a grande angústia de não conseguir atingir padrões – sejam eles de beleza, financeiros, ou de popularidade, ainda que muitas vezes esses não sejam tão verdadeiros assim, mas construídos midiaticamente, para as redes”, lembra. Além disso, há grupos que têm dificuldade de se afirmar plenamente e de viver livremente suas identidades em seus meios ou na sociedade em geral, como mulheres, juventudes negras, LGBTQIA+, pessoas fora do padrão de magreza. “Vivem em meio a essa não aceitação de quem se é é uma grande fonte de sofrimento mental”, enfatiza Cinthia. 

Precarização da Educação

A educação pública brasileira vem há anos sofrendo com o subfinanciamento, a precarização, a influência do setor privado, a austeridade e o acirramento das desigualdades regionais, raciais e de gênero. Além disso, um projeto ultraconservador fez avançar a militarização das escolas, que desencoraja as e os estudantes a expressarem suas identidades e opiniões. Para completar, o Novo Ensino Médio (NEM) entrou em vigor, aumentando ainda mais o abismo entre as escolas públicas e privadas, já que a maior parte da rede pública não consegue ofertar o que o NEM exige, e alunos mais pobres e trabalhadores são os mais prejudicados. Na pandemia, a falta de acesso à internet ou a celulares/computadores para assistir as aulas remotas também prejudicou estudantes da rede pública, que não tiveram a infraestrutura garantida pelo Estado. O resultado é que disparou a evasão escolar e o ENEM de 2021 foi o mais branco de sua história. 

Este contexto, é claro, impacta negativamente na saúde mental dos estudantes diretamente afetados. “Desde o ano passado, o grêmio da escola começou a apontar sobre isso, porque a pandemia defasou muito os alunos, e isso fez com que pesasse muito, além da surpresa do novo ensino médio”, relata Stella Barbosa, do terceiro ano do EM. “Percebemos esse baque quando voltamos ao presencial, foi quando vimos a defasagem e ficamos preocupados, porque é o nosso futuro. Foi uma coisa nova pra todo mundo. A escola chegou a colocar uma psicóloga para atender grupos de estudantes, mas não deu certo porque as pessoas queriam privacidade”, conta ela. Adelmo Vitóryo, aluno de escola pública e que ingressou este ano no curso de Ciências Sociais na USP, participou de um desses encontros com psicólogos e criticou a medida. “Foi apenas uma sessão e depois nunca continuaram, como se isso fosse resolver o problema dos alunos”, diz. Ele, que quando estava no ensino médio foi presidente do grêmio estudantil, também entende que a urgência do atendimento em saúde mental aumentou durante a pandemia, e que os governos ainda não olham para isso com a seriedade que o tema pede. “E acredito que pessoas trans e jovens negros são especialmente afetados. Todo mundo merece cuidado, mas acho que esses dois grupos estão ainda mais tensionados e não recebendo o acolhimento necessário”. 

A pesquisa “A educação de meninas negras em tempos de pandemia: o aprofundamento das desigualdade”, realizada pelo Geledés em 2021 de fato constata a situação de vulnerabilidade das meninas negras no município de São Paulo no período. Como mostrou o estudo, são elas que menos receberam material didático/recursos pedagógicos durante o ensino remoto, o que afetou a realização das atividades escolares. Ainda, tanto docentes como organizações da sociedade civil ouvidos pela pesquisa consideram que gênero e raça incidiram sobre o impacto da pandemia na vida de estudantes, e os dados apresentados pelas famílias participantes da pesquisa reafirmam esta hipótese. E alguns dos principais motivos elencados foram trabalho precário, incluindo o aumento de tarefas domésticas; vulnerabilidade social; desigualdades; baixa autoestima; violência; racismo; e sexismo.

O psicólogo e professor Bruno Mota ressalta que a sequência de precarizações causa um processo de “desesperançar”, ou “a falta de esperança por conta da impossibilidade de acessar o ensino público de qualidade, especialmente com o Novo Ensino Médio. Essa precarização prejudica e interrompe os sonhos da juventude, mina seus horizontes. Como pensar um projeto de vida?”, questiona. “Qual o amanhã possível com o sufocamento de um projeto profissional?”. 

“Os dados desta pesquisa, que representa diferentes regiões do município de São Paulo, demonstram que, se considerarmos as variáveis de raça, gênero e renda, as consequências da pandemia atingem de forma desigual os diferentes grupos sociais. Por exemplo, nenhuma das famílias brancas aponta como dificuldade “aumento dos conflitos e/ ou situações de violência intrafamiliares”, “diminuição do número de refeições realizadas pelos membros da família”, “mudança ou perda de residência/território”, “membros da família contaminados e/ou falecidos pela Covid-19”, problemáticas estas que afetaram apenas as famílias negras e inter-raciais entrevistadas.” – trecho da pesquisa “A educação de meninas negras em tempos de pandemia: o aprofundamento das desigualdade”. 

Possíveis saídas

A já citada pesquisa da Plan International que constatou a relação entre pobreza, desigualdades e piora da saúde mental traz a necessidade das discussões abertas sobre saúde mental e bem estar. Além disso, é importante acessar serviços de apoio – que precisam incluir uma ampla gama de serviços, não apenas atendimento psicológico. No entanto, uma pesquisa realizada pelo UNICEF sobre saúde mental de adolescentes e jovens constatou que mais da metade das e dos jovens sente necessidade de pedir ajuda, mas que também cerca de metade não conhece serviços ou profissionais dedicados a apoiá-las/os. Há, portanto, a necessidade de ampla divulgação e disseminação em espaços escolares e não-escolares de serviços e redes existentes nos territórios para que  jovens possam conhecer e acessar. 

Estratégias de autocuidado a nível individual existem e são muito importantes, mas também estão conectadas a uma dimensão coletiva, como explica o psicólogo Bruno Mota.  Não adianta, por exemplo, sobrecarregar-se mentalmente em sua atuação política a tal ponto que não seja possível cuidar de você e de suas redes. “É preciso reconhecer limites, reconhecer até onde o indivíduo consegue ir, priorizar o que promove vida e afetividade”, recomenda ele. Ele também lembra que o descanso e o lazer são atitudes políticas. “Retome o que te faz bem: um baile funk, roda samba, show de hip hop, um rolezinho no shopping. Tudo isso é promover vida”, diz. 

Por outro lado, se os processos que levaram à precarização da vida e da educação e colaboraram para um adoecimento são estruturais, eles não serão resolvidos apenas com ação individual. Envolvem organização e luta coletiva – e estas estratégias também acabam fortalecendo pessoas de grupos discriminados a nível psíquico. “Organizações coletivas são espaços de fortalecimentos de identidades individuais, de lutas que passam a ser coletivas. É de fato um instrumento para aliviar a alma”, lembra Cinthia Gomes, jornalista e parte da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo. “É claro que, por organizações e coletivos serem compostos por pessoas, não são perfeitos e eventualmente podem ter situações prejudiciais, mas isso é pelas imperfeições humanas. O potencial é da organização ter uma força transformadora. Vale a pena a gente tentar, a gente se aquilombar, estarmos juntos”, defende. 

Na mesma linha, o psicólogo Bruno Mota reforça: “cada um pega a mão do outro e da outra. A violência – racial, misógina, classista, etc – continua existindo, mas os arranhões não se direcionam a um só corpo e sim são diluídos para um coletivo. E também são nesses espaços de comunidade que nos permitimos redesenhar estratégias e rotas políticas”. E finaliza: “A situação estar ruim não significa que vamos esmorecer. As juventudes negras periféricas são e sempre foram pólos de resistência e enfrentamento às violencias. Produzem vida nesse cenário catastrófico. Nossa comunidade não sucumbe”.  

Para quem quiser ler mais sobre a relação entre racismo e saúde mental, recomendamos a biblioteca do Instituto AMMA: http://www.ammapsique.org.br/biblioteca.html 



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