Aprovado no governo Temer e implementado desde o ano passado, modelo acirra as desigualdades educacionais e pode aumentar a evasão escolar
Texto: Nana Soares | Edição: Claudia Bandeira
Estudantes com um número ainda maior de disciplinas, mas frequentemente sem aulas porque não há professores para ministrá-las. Estudantes trabalhadoras/es, com mais dificuldade para acompanhar a carga horária, passam a assistir aulas no celular, ou sem professor, ou exibidas em uma televisão. Disciplinas obrigatórias e exigidas nos vestibulares, como Geografia, Sociologia e Física, passam a ser quase uma raridade, substituídas por disciplinas como culinária, empreendedorismo ou mídias sociais. Docentes, para cumprir sua carga horária, são obrigados a lecionar áreas ou temas para os quais não têm formação. O acesso ao Ensino Superior fica ainda mais distante.
Este é o retrato do Novo Ensino Médio nas escolas públicas brasileiras, que representam 80% das matrículas em todo o país. O “Novo” Ensino Médio (NEM, Lei 13.415/2017, que vem da Medida Provisória 746/2016) começou a ser implementado em 2022 e os retrocessos trazidos por ele ficaram logo evidentes. “O NEM é basicamente uma reforma curricular, e no entanto é vendido como a solução para todos os problemas dessa etapa de ensino. É como se não houvesse historicamente uma dificuldade da universalização da educação básica, do acesso, permanência e qualidade. É uma solução barata e que não mexe nos problemas estruturais. Pelo contrário, devolve esses problemas para as escolas e para as professoras de maneira ainda mais complexa”, argumenta Débora Goulart, professora da Unifesp e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU).
Instituído por Medida Provisória, sem debate com estudantes, professoras e profissionais da educação, o “Novo” Ensino Médio aumenta a carga horária de 800 para 1.400 horas anuais e inclui a oferta de itinerários formativos, dando ênfase na formação técnico-profissional, com itinerário específico para esse fim sob a justificativa de que isso aumentaria o interesse das e dos estudantes pela escola e faria com que caísse a evasão dessa etapa de ensino. Mas, adotada no contexto das medidas de austeridade do governo Temer, a reforma nunca veio acompanhada de aporte de recursos – pelo contrário, já que a Educação sofreu cortes orçamentários sucessivos desde 2015 -, e logo se mostrou incompatível com um projeto de Educação pública de qualidade para todas e todos.
As novas regras acabam por agravar as desigualdades educacionais, pois não garantem as condições de oferta de todos os itinerários em todas as escolas, dificultam o acesso à educação formal de jovens que trabalham, afasta estudantes de redes públicas do ensino superior, entre outros aspectos. O acirramento das desigualdades ocorre não apenas entre as redes pública e privada, mas também dentro da rede pública, já que a oferta dos conteúdos depende das condições das unidades educacionais e das redes de ensino.
“Defendo a revogação da Reforma do Ensino Médio porque ela elitiza ainda mais a educação. Os alunos dos colégios privados têm toda a formação básica e ainda têm o privilégio de acessar aulas complementares de tudo que se possa imaginar, enquanto os estudantes das escolas públicas estão tendo defasagens na sua formação, aulas vagas e dificuldades para, por exemplo, utilizar o ENEM como possibilidade de acesso ao ensino superior”, defende a deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP).
Um estudo da REPU de junho de 2022, por exemplo, já mostrou que no estado de São Paulo a falta de professores para cumprir os itinerários formativos fazia com que os estudantes da rede pública tivessem o equivalente a um dia letivo a menos de aula por semana – ou 1,5 dia no caso de estudantes dos períodos vespertino ou noturno, onde em geral se concentram aqueles/as que trabalham.
Apesar do curto tempo de implementação, os fracassos do modelo já são evidentes, e até mesmo seus defensores iniciais admitem sua inviabilidade e defendem uma “reforma da reforma”. Por outro lado, estudantes, comunidades escolares, entidades e movimentos comprometidos com a defesa da educação pública de qualidade para todas e todos capitaneiam o crescente movimento pela sua completa revogação. Esse foi um compromisso de campanha do presidente Lula, mas o Ministério da Educação ainda não defendeu a revogação abertamente. Até o momento, a principal pressão vem da sociedade civil e do legislativo.
O que mudou com a Reforma e o que isso significa?
No “Novo” Ensino Médio (NEM), as disciplinas passam a ser agrupadas nas quatro áreas do conhecimento previstas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – Linguagens, Ciências da natureza, Ciências humanas e sociais, e Matemática -, e as e os estudantes deixam de ter um único itinerário comum no Ensino Médio. Sessenta por cento da carga horária deve ser comum, mas os outros 40% vão depender dos itinerários formativos, que teoricamente ficam à escolha dos jovens com base em seu interesse, e que podem ser das 4 áreas de conhecimento previstas na BNCC, de ensino técnico, ou uma combinação de mais de uma área. O NEM aumenta a carga horária mínima de aulas, mas somente Português e Matemática permanecem obrigatórios em toda a etapa. Além disso, há o “Projeto de Vida”, ferramenta que deve ajudar as e os estudantes a escolher seus itinerários a partir de diálogos com educadores.
O problema é que as escolas que conseguem de fato ofertar isso aos estudantes e com qualidade são a exceção e não a regra no país. É consenso entre diferentes agentes das comunidades escolares que as alunas e alunos estão tendo menos aula do que antes, apesar do suposto aumento da carga horária. Além disso, o modelo não foi construído ou sequer debatido junto às comunidades escolares, jovens e à população, não injetou novos recursos na educação pública e tem sido implementado sem diálogo e às pressas. O resultado é que o tiro sai pela culatra: se o objetivo é aumentar o interesse pela escola, a evasão pode aumentar justamente entre a população mais pobre. Se é oferecer educação profissionalizante, essa não cumpre a carga horária suficiente para um diploma, mas sua inserção retira as disciplinas que caem em vestibulares. Ou seja, o novo Ensino Médio agrava o cenário já devastador de antes e vai na contramão de suas próprias justificativas.
Como relata Catherine da Silva Costa, que a partir do segundo ano do EM teve as aulas no novo modelo, “ir embora duas horas mais cedo ou ter o Projeto de Vida era a mesma coisa”. Ela, estudante da rede pública de São Paulo/SP, fez o itinerário formativo na área de Mídias, mas relata que não foi exatamente uma escolha, já que a oferta de opções era restrita. “No itinerário de Tecnologia e Inovação, os professores é que pediam ajuda para os alunos. E não é culpa deles, que não tiveram qualquer preparo para esse modelo”, diz ela.
Essa experiência é corroborada por Vanessa Cândida, professora de Sociologia da rede estadual de São Paulo. Em sua vivência, o novo Ensino Médio tem desestimulado estudantes e docentes. Professoras e professores porque suas disciplinas de formação tiveram carga reduzida e, para cumprir suas cargas horárias, as e os profissionais acabam tendo que ensinar temas para os quais não têm formação. Vanessa dá como exemplo um caso na escola que leciona: o itinerário formativo de jornalismo ficou sob responsabilidade do professor de Educação Física, que, para poder trabalhar com algo que lhe era familiar, passou a lecionar práticas corporais. Ou seja, estudantes de Jornalismo não tinham, de fato, as aulas que pensaram que iam ter ao fazer essa “escolha”. “E pense que um profissional pode pegar 3 ou 4 disciplinas diferentes, de vários anos diferentes, então a sobrecarga também vem nesse sentido”, diz Vanessa. Situação que pode ser ainda mais grave caso a escola não tenha profissionais suficientes, tendo que deixar os/as alunos/as sem aula.
Sob a reforma, a estudante Catherine, que estudava no período noturno, tinha apenas uma aula de Geografia por semana, em contraponto às duas de Mídias que, segundo ela conta, limitavam-se a ler e interpretar textos. Mudança de currículo que foi sentida inclusive no ENEM, onde ela avalia que teve prejuízos. “Foi um sentimento generalizado, todos da minha turma sentiram a diferença comparando com o modelo antigo. E não estamos nem falando de escola particular, mas de outras escolas estaduais mesmo, que estavam muito à nossa frente”, alerta.
Vale lembrar que durante a pandemia o ENEM foi o mais branco e elitista da história, já que muitos estudantes negros, indígenas ou mais pobres se sentiram desencorajados a fazer a prova dada a precariedade do ensino no período. Fator que pode se tornar uma constante com o novo Ensino Médio. “Pense em um contexto que os itinerários não têm professores, o número de matérias se multiplicou, adicionando muita pressão nos alunos, e vindo de um contexto de pandemia. Muitos alunos nem foram fazer o ENEM”, relata a professora Vanessa Cândida, para quem fica evidente o processo de expulsão escolar, especialmente para estudantes pobres, negras e negros, trabalhadoras e trabalhadores dentro e fora do espaço doméstico. “E esse é um outro ponto da reforma: [ao aumentar a carga horária] ela ignora que os e as estudantes têm vida e outras demandas além da escola”.
Mas isso não significa que os conteúdos científicos sejam a prioridade, já que o Novo Ensino Médio diminuiu justamente essas disciplinas em detrimento de outras mais mercadológicas. “O que vemos é uma grande miscelânea de conteúdos voltados para o chamado saber fazer, para a aplicabilidade no mercado. Não há sequer problema em dizer que tudo bem não aprender, por exemplo, Física, porque não vai usar para nada. Ou seja, é ofertar menos conteúdo e menos conhecimento, é deixar a escola mais precarizada e o professor mais enlouquecido por ter que dar aula de algo que não sabe o que é. É uma reforma irreformável”, resume Débora Goulart.
Mas revogar significa voltar para o que era?
Não. Ao menos não se os Poderes fizerem agora o que não fizeram em 2016/17: fomentar um amplo debate com estudantes, professoras e profissionais da educação e consulta popular para a construção de um novo modelo que, de fato, faça sentido e possa começar a corrigir os problemas existentes nessa etapa de ensino. O ponto é que não é possível fazer isso sem revogar o novo modelo vigente.
“Se não interrompemos a reforma agora podemos cristalizar um projeto de crueldade de dar menos escola para quem mais precisa”, resume Debora Goulart, da Unifesp e da REPU, que alerta que ainda há tempo sim de revogar o Novo Ensino Médio. “Talvez a mudança do ENEM, isto é, a adaptação da prova a esse modelo, é que seja o ponto de não retorno. Revogar agora significa estancar o processo de deterioração do ensino médio e reconduzi-lo para seu caráter de aprofundamento da ciência e da cultura e que pode sim ter elementos da cultura local e do interesse da comunidade, desde que isso seja construído pela própria comunidade”, complementa. Em suma: a ideia não é voltar para o que estava ruim, mas sim parar, com urgência, o que está ainda pior e então de fato avançar para um novo modelo.
“A revogação é um ponto de partida, é o mínimo para que a gente consiga debater de fato a qualidade no Ensino Médio no Brasil” – Sâmia Bomfim (PSOL-SP).
E na prática, é possível revogar? O que posso fazer?
Sim. Há projetos de lei em tramitação propondo a revogação do NEM, como o PL 10682/2018, do Deputado Bacelar (Podemos-BA) – e um dos caminhos é a aprovação de um desses projetos. Eles podem ser votados em caráter de urgência pelas casas do Congresso e, se aprovados, basta a sanção do Presidente da República. Se seguirem a tramitação tradicional, tramitam antes nas Comissões correspondentes para depois irem à votação no plenário.
Neste processo, a pressão da sociedade civil é parte fundamental. Atualmente, há um abaixo-assinado (https://nossaluta.com.br) com mais de 120 mil assinaturas organizado pelo deputado Glauber Braga (PSOL-RJ), e que deve ser utilizado como instrumento de pressão no Congresso e junto ao Ministério da Educação. Quem quiser se envolver nesta luta pode começar assinando e compartilhando este abaixo-assinado, bem como pressionando os parlamentares de seu estado “porque é na ponta que as articulações têm o maior impacto”, lembra a deputada Sâmia Bomfim.
Foi uma reforma que tirou o futuro dos jovens brasileiros ! Precisa ser revogada !
Revoguem já é abram um debate com estudantes e professores!
O Novo Ensino Médio esta sendo aplicado na prática em toda a rede estadual de ensino de SP, no entanto, a grande maioria dos professores(as) não teve aprofundamento de preparação para lecionar estes itinerários, somado a pressão estadual da categoria assumir carga completa, resta pouco tempo e espaço na vida dos profissionais da educação preparar uma boa aula. Ficando assim os(as) estudantes prejudicados em sua formação na educação básica. A redução da carga horária da formação geral básica prejudicou muitas disciplinas e seu aprofundamento com profissionais graduados na área específica. O abismo entre a realidade da rede estadual de ensino e das escolas de ensino privado irão aumentar ainda mais com o NEM. As aulas de expansão à distância de modo virtual, não funciona com a faixa etária de adolescentes, precarizando severamente o processo de ensino-aprendizagem.
Revoguem já é abram um debate com estudantes e professores!
Essa reforma é a destruição do ensino médio, não preparara alunos da rede pública de ensino pra vestibulares.
Revoga#NEM