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Subfinanciamento, abandono e destruição: porque o PNE está tão longe de ser cumprido

Além das metas não avançarem, muitas estão regredindo. As que tratam do financiamento, EJA e Educação Integral são as mais afetadas no descumprimento do Plano Nacional de Educação 

Por Nana Soares 
Edição de texto: Claudia Bandeira

O Plano Nacional de Educação (PNE, Lei 13.005/14) aprovado em 2014 foi uma vitória da sociedade civil e dos movimentos sociais da área da Educação. Reunindo metas a serem cumpridas até 2024 para que o país avance na garantia desse direito, é um marco fundamental ao sublinhar a importância do planejamento educacional, orientar o investimento e a gestão e referenciar o controle social e a participação cidadã. Mas há um problema: está longe de ser cumprido. 

O PNE, principal instrumento da política pública educacional, foi fruto de amplo debate em Conferências de Educação e de acirrada disputa na tramitação no Congresso Nacional. Começou a ser esvaziado já em 2015, no ano seguinte da sua aprovação, quando o ajuste fiscal do segundo governo de Dilma Rousseff cortou recursos de políticas sociais. O cenário se agravou com o golpe parlamentar de 2016, que intensificou a política econômica de austeridade com a aprovação da Emenda Constitucional 95 (EC 95, o Teto de Gastos) que constitucionalizou os cortes orçamentários por vinte anos. A situação se torna mais dramática ainda no governo Bolsonaro, que nunca norteou a política educacional pelo PNE. Em 2022, a dois anos do fim de sua vigência, os avanços são marginais. Os retrocessos, em contrapartida, se acumulam, ameaçando, inclusive, as políticas educacionais que já estavam mais estabelecidas e que foram conquistadas ao longo de anos. 

Segundo o último levantamento da Campanha Nacional pelo Direito a Educação, apenas 15% dos dispositivos previstos no PNE devem ser  cumpridos no prazo previsto. E não é que os outros dispositivos apenas não avancem no prazo esperado: muitas das metas na verdade estão regredindo. É o caso das metas 6, 9, 10 e 20, que tratam, respectivamente, da Educação Integral (EI), alfabetização, Educação de Jovens e Adultos (EJA) e do financiamento público da educação. 

Subfinanciamento da Educação: efeito em cascata

A meta 20 do PNE prevê que o Brasil amplie o investimento público em educação pública, o contrário do que temos visto nos últimos anos. A meta de aumentar o investimento progressivamente até o equivalente de 10% do PIB em 2024, conquista histórica dos movimentos e organizações que defendem a educação pública e de qualidade, ficou ainda mais distante, tanto em termos relativos, como absolutos. “Se o percentual estivesse estagnado e a economia estivesse bem, ao menos a quantidade de dinheiro estaria aumentando. Mas é uma redução em um PIB que também está caindo ou estagnado. A inflexão negativa é o mais preocupante”, diz José Marcelino de Rezende Pinto, professor da USP-Ribeirão Preto e vice-presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca).

O PNE previa uma destinação de 7% do PIB em 2019 e de 10% em 2024, mas, segundo o INEP, os gastos estiveram em torno de 5% de 2015 a 2017, caindo 0,1% quando deveria ter subido. O professor Marcelino acrescenta que em 2018 o investimento público em Educação foi equivalente a 4.9% do PIB – uma redução que representa cerca de 16 bilhões de reais a menos para a Educação. Isso porque além do Teto de Gastos a Educação também tem sido uma das áreas com maiores cortes orçamentários anuais. Por exemplo, em 2021 houve redução de 27% no Orçamento da área.

E o não cumprimento da meta 20 atua em efeito cascata em todo o PNE, pois sem novos recursos a implementação das outras metas – que preveem, por exemplo, maior número de matrículas em diferentes níveis – fica inviabilizada.

Nem mesmo conquistas importantes como a aprovação do novo Fundeb, em 2020, amenizam essa tragédia que, como lembra o professor Marcelino, está diretamente relacionada ao papel minoritário do governo federal no financiamento da Educação. Ainda são os governos locais e regionais que arcam com a maior parte do financiamento, embora seja a União quem mais arrecada com impostos. “Quem precisa contribuir mais é o governo federal, os municípios não têm muito de onde cortar pois cumprem os mínimos constitucionais. Por isso é imensa a responsabilidade e a importância da eleição de um governo progressista”, ressalta Marcelino.

Essa participação desigual no financiamento, no entanto, não vem de hoje. Por décadas o Brasil manteve uma média de investimento em educação na casa dos 4% do PIB anual, onde apenas 0.5% vinham da União. Isso aumentou no governo Lula, quando mais que dobrou a participação do governo federal nesse percentual. Mas os investimentos vieram através de transferências voluntárias e de programas que eram políticas de governo – e não de Estado – e que logo foram abandonados ou cortados nos governos seguintes. “No governo Bolsonaro houve uma clara intenção de esvaziar qualquer política educacional, embora a nomeação de ministros tecnicamente muito incompetentes e sem pauta definida tenha “limitado” a gestão a destruir o que já existia, sem conseguir criar políticas novas e irreversíveis”, resume o vice-presidente da Fineduca.

A política de fundos é extremamente importante para o cumprimento da Meta 20 do PNE, inclusive para diminuir as desigualdades educacionais, mas tem suas limitações e precisa receber mais investimento. “Sem mais dinheiro, não adianta muito mexer e fazer ajustes nestes mecanismos porque o total permanece o mesmo. Dá para ir um pouco mais para os municípios, mas a custa de menos para os estados, acaba virando uma briga política”, explica José Marcelino de Rezende Pinto. Na prática, a falta de recursos ocasiona em “escolhas” como fechar turmas de EJA ou de educação no campo para abrir uma creche. Ou seja, é vital que ainda que a Meta 20 não seja cumprida até 2024, a Educação receba novos recursos para que ao menos voltemos a caminhar rumo ao seu cumprimento, ao invés de regredir.

Segundo Marcelino, os mecanismos, diretrizes e percentuais já estão dados, falta realmente a vontade política de investir em educação pública e de lidar com a correlação de forças entre as diferentes instâncias governamentais. “É preciso revogar a EC 95, porque o governo federal precisa gastar. E aí é ampliar o investimento, ainda que progressivamente. Precisamos viabilizar, ver o quanto custa um mínimo por estudante do qual não vamos abrir mão para assegurar a qualidade, aumentar os investimentos na educação superior pública, fortalecer a política de fundos. Nossa tarefa enquanto sociedade civil é estar sempre cobrando. O mercado financeiro e os interesses privados não esperam as trocas de mandato para assediar e cobrar seus interesses”, diz ele, reforçando que o PNE é uma lei e, portanto, deve ser cumprida.

O abandono da Educação Integral

A meta 6 do PNE estabelece que, até 2024, o Brasil deve oferecer educação em tempo integral em no mínimo 50% das escolas públicas, de forma a atender ao menos 25% dos estudantes da educação básica. Mas no período de vigência do PNE o que houve foi um completo abandono por parte do governo federal nessa modalidade, como explica Natacha Costa, diretora-geral da Associação Cidade Escola Aprendiz.

Para se ter uma ideia do quanto a meta regrediu: Entre 2014 e 2020 o número de escolas com jornadas em tempo integral caiu de 42.655 para 27.969 – que representam 29% e 20.5% das escolas públicas – e as matrículas de 6.5 milhões para 4.8 milhões. Nesse período, os principais programas a nível federal para a meta foram descontinuados e o que resta hoje, explica Natacha, resiste porque estados e municípios conseguiram espelhar a meta do PNE em seus próprios Planos de Educação.

“O Mais Educação era a política do governo federal para a educação integral e era focado nos mais vulneráveis. Em 2016, é descontinuado e substituído por um novo desenho que, ao contrário, focava no reforço da língua portuguesa e matemática – ou seja, guiava-se pelo Ideb e não pela redução de vulnerabilidade. Aí já observamos a queda da abrangência da educação integral. E essa queda só não foi maior porque houve crescimento das matrículas de educação integral no Ensino Médio, o que é controverso porque pode acabar agravando as desigualdades educacionais, uma vez que muitos jovens não podem aumentar sua jornada. Por exemplo, porque precisam trabalhar”, resume Natacha. Ou seja, o novo desenho ia contra a concepção da educação integral que pautou o PNE: a de que a modalidade fosse um mecanismo de enfrentamento – e não acirramento – das desigualdades educacionais.

Com o corte de orçamento do MEC e a descontinuidade do programa Mais Educação, a Educação Integral saiu do horizonte de políticas públicas do governo federal. Os estados e municípios, que já arcam com a maior parte do financiamento da educação básica no Brasil, sustentam suas iniciativas com recursos próprios ou com verbas do Fundeb. E vale reforçar que em um contexto de corte de gastos e de Emenda Constitucional 95, cumprir a Meta 6 fica completamente inviável, uma vez que a Educação Integral, por sua natureza (aumento da jornada), exige mais recursos e investimentos.

Natacha lembra ainda que o projeto de destruição da educação no governo Bolsonaro conjuga alianças ultraliberais e ultraconservadoras. Para ela, houve um abandono generalizado em nome de políticas ultraconservadoras e ideológicas. “É quando a educação é assaltada por uma perspectiva de desmonte”.

A EJA e o aprofundamento das desigualdades educacionais

A meta 8 do PNE tem como objetivo diminuir desigualdades educacionais ao aumentar a escolaridade de grupos como a população de 18 a 29 anos, dos 25% mais pobres do país e a educação do campo, bem como igualar a escolaridade média entre pessoas negras e não-negras. A Meta 9 fala sobre erradicar o analfabetismo absoluto e reduzir o analfabetismo funcional pela metade. A Meta 10, por sua vez, diz que o Brasil deve oferecer ao menos 25% das matrículas de Educação de Jovens e Adultos (EJA) integradas à educação profissional. Ou seja, todas estas metas dizem respeito à EJA em alguma medida.

Embora a meta 8 não tenha regredido até o último dado disponível, não avançou no ritmo necessário. A alfabetização de brasileiras e brasileiros prevista na Meta 9 também não deve chegar ao índice necessário previsto no PNE – e os dados oficiais de monitoramento do INEP, de 2018, ainda não consideram os impactos da pandemia. Ainda na Meta 9, o analfabetismo funcional avançou no período de vigência do PNE quando deveria ter diminuído, muito por conta do desmonte de programas como o Brasil Alfabetizado. Por fim, se o objetivo era ter 25% de matrículas da EJA integradas à educação profissional, como prevê a meta 10, estamos muito longe. Ainda em 2014 não chegávamos a 3%. E em 2018 essa porcentagem diminuiu para apenas 1.8%, ou pouco mais de 54 mil matrículas. E o número de matrículas totais da EJA também caiu no período.

O gráfico acima evidencia o tamanho do desafio para que, no Brasil, seja garantido o direito à educação na modalidade, já que as matrículas da EJA não chegam nem perto de cobrir a demanda, representada em azul.

Não é de agora que a EJA é negligenciada no Brasil. Historicamente, são poucas as políticas e o investimento público direcionado a essa modalidade. Os fatores de ponderação no Fundeb, por exemplo, são de 0.8 e 1.2. Ou seja, a cada R$1 gasto por estudante do Ensino Fundamental regular, são gastos R$0,80 ou R$1,20 por estudante da EJA – sendo que essa é uma modalidade que exige mais recursos por conta das especificidades de seu público-alvo. Segundo o professor José Marcelino de Rezende Pinto, até 3 vezes mais recursos (o que seria um fator de ponderação 3). Ou seja, nos valores atuais, as e os gestores não têm incentivos financeiros para investir na EJA.

Para a professora da Faculdade de Educação da USP Maria Clara Di Pierro, o subfinanciamento histórico e o brutal retrocesso assistido nos últimos anos são sinais de um descaso geral com a Educação de Jovens e Adultos. “A EJA é historicamente negligenciada, assim como modalidades e etapas como a educação infantil e a educação especial. Mas a diferença é que há uma maior mobilização para as políticas que afetam crianças e adolescentes”, diz ela, que também menciona o fenômeno de fechamento de matrículas e turmas de EJA para “priorizar” outras demandas, como creches e educação infantil. “Tenho a impressão que ainda caminhamos em relação à consciência social do direito à educação na vida adulta, o que é um agravante em um contexto de redução do gasto público e contração do papel da União”, completa Maria Clara.

E essa redução foi brutal: pelos dados do SIOP, o pico de investimentos federais na EJA foi em 2012, com quase 1.8 bilhões de reais repassados naquele ano. Em 2020, o número ficou em 8 milhões – 0,44% do investimento de 2012. Como explica Maria Clara Di Pierro, o governo Bolsonaro focou mais em desidratar o financiamento da EJA do que em de fato revogar políticas para a área – mas o resultado não é outro que não praticamente destruir a modalidade no país. “Sobrevivem matrículas residuais. A EJA hoje alcança uma parcela ínfima da população, e se o número aumentar no futuro vai ser mais por conta de mudanças, como a Reforma do Ensino Médio, o Parecer CNE/CEB 6/2020 e a Resolução CNE/CEB nº 1 de 2021, que permitem que até 80% da EJA seja realizada à distância. Ou seja, uma EJA pré-formatada e com seríssimos problemas de qualidade”, alerta. A professora especialista na modalidade ressalta também que, em Censos populacionais futuros, as oscilações na escolaridade da população adulta deverão ser muito mais creditadas a mudanças demográficas do que de fato a políticas de educação de jovens e adultos. “A regra geral hoje é ver as escolas fechando”, resume.

Mais uma vez, a reversão desse quadro necessariamente passa pelo aumento do financiamento na modalidade, embora a professora também destaque a gravidade da diretriz que permite que boa parte da EJA seja realizada à distância. É preciso investir na Educação de Jovens e Adultos, aumentar o fator de ponderação do Fundeb e voltar a financiar outras políticas e programas que afetem a modalidade. E, igualmente importante, fortalecer a noção de que a educação para todas e todos é um direito e de que a qualidade não se mede apenas sob critérios de resultados.“É preciso reverter as lógicas meritocráticas que baseiam a educação por indicadores. A EJA é uma categoria diferente, onde a evasão tem outro significado social, são adultos que têm uma relação intermitente com a escola. Avaliar o desempenho dessa modalidade pelo Ideb, exigir a frequência obrigatória como na educação infantil, não funciona”, finaliza a professora.

Considerações finais

As informações evidenciam um conjunto de medidas, intensificadas no governo Bolsonaro, para inviabilizar o cumprimento do PNE e acirrar ainda mais as desigualdades educacionais no país: corte brutal do financiamento, Programas do Governo Federal descontinuados ou substituídos por outras iniciativas que prejudicam ainda mais o alcance das Metas, os indicadores de avaliações externas em larga escala estruturando cada vez mais as políticas sem considerar contextos e equidade e, pode-se acrescentar, o desmonte das instâncias de participação e controle social das modalidades e do próprio PNE, como o Fórum Nacional de Educação. 

Para revertermos este cenário é preciso recuperar o PNE como norte da Educação Brasileira e eleger um governo comprometido com o principal instrumento da política pública educacional brasileira, cujo cumprimento não é opcional.

O que está em jogo na regulamentação do Sistema Nacional de Educação

Projeto de lei aprovado no Senado que regulamenta o SNE tem falhas graves e não avança na democratização da Educação brasileira

Projeto aprovado no Senado não prevê sociedade civil, sindicatos ou estudantes nas instâncias deliberativas do Sistema Nacional de Educação (Foto: Tô No Rumo/Ação Educativa)

Texto: Nana Soares // Edição: Claudia Bandeira

“Muito político-burocrático, pouco político-democrático”. É assim que Salomão Ximenes, professor de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC) e doutor em Direito de Estado pela USP, resume o projeto de lei complementar 235/19, que regulamenta o Sistema Nacional de Educação. O projeto de lei foi aprovado por unanimidade no Senado no início de março, após alterações do relator Dario Berger (MDB/SC) no projeto original de Flávio Arns (Podemos/PR). Agora, vai entrar em votação na Câmara. A votação ainda não tem data, mas a matéria caminha em regime de urgência, mesmo que apresente falhas graves em pontos importantes como o Custo Aluno-Qualidade (CAQ), gestão democrática e avaliação da educação básica. 

O SNE, previsto na Constituição Federal e no Plano Nacional de Educação (PNE) de 2014, ainda não tem lei que o regulamente. Assim como o SUS na saúde, o SNE teria, na educação, as funções de dar coesão e unidade às políticas públicas, articular realidades locais com a nacional, integrar o sistema educacional, assegurar a colaboração e a cooperação – inclusive financeira – entre as esferas municipais, estaduais e a União, combater iniquidades, fortalecer a participação social e a gestão democrática em educação, além de especificar os recursos que integram o financiamento da educação e que formam os padrões de qualidade do CAQ. Mas para fazer tudo isso precisa de uma lei de regulamentação forte, coerente e que valorize esses aspectos, o que não está acontecendo até o momento. 

>>>>>> Saiba mais: Ainda sem regulamentação, Sistema Nacional de Educação Irá definir responsabilidades de instâncias federativas 

Embora os projetos de lei já existissem há algum tempo, o governo Jair Bolsonaro apressou a regulamentação do PLP 235/2019. O texto foi aprovado conforme versão proposta pelo relator Dário Berger (MDB-SC) e, segundo reportagem do Alma Preta, existe um acordo com o presidente da Câmara, Arthur Lira, para que a matéria seja aprovada. Ele teria dito que é “mais um projeto para o governo chamar de seu”. As votações foram nos dias 23 de fevereiro e 9 de março, quando o projeto foi aprovado por unanimidade, e agora deve ser analisado diretamente no plenário da Câmara, tendo incorporado o PLP 25/2019, de autoria da deputada professora Dorinha Rezende (DEM-TO) e relatoria de Idilvan Alencar (PDT-CE) que também tratava da regulamentação do SNE. Por tramitar em regime de urgência, pode ser colocado em votação a qualquer momento. Para Salomão Ximenes,  um equívoco político, pois uma lei desse porte requer um debate mais amplo na sociedade – e, segundo ele, o texto falho deixa clara a imaturidade da discussão até agora. 

Há vários pontos questionados por organizações, ativistas e pesquisadores comprometidos com o direito à educação pública de qualidade. Um deles é que desigualdades e discriminações a serem combatidas – como racismo estrutural ou desigualdade de gênero – não são explicitamente citadas. Outros problemas são brechas na regulamentação do CAQ e a falta de detalhamento dos insumos mínimos de qualidade, além da falta de participação social e de falhas no detalhamento de mecanismos de avaliação da educação básica – pontos estes levantados em nota técnica da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (Campanha). 

CAQ: falta de detalhes e brechas políticas 

O CAQ, mecanismo que de fato redistribui os recursos educacionais nas diferentes regiões do país e que tem o potencial de reduzir desigualdades ao assegurar um padrão mínimo de qualidade, não está sendo detalhado como deveria no projeto do SNE aprovado pelo Senado. Em outras palavras, o detalhamento do que seriam, de fato, os insumos mínimos para garantir um padrão de qualidade nas escolas (como água, saneamento básico, computador, acesso à internet, biblioteca, quadra poliesportiva coberta, número adequado de alunos por turma, etc), não é feito no substitutivo de Dario Berger. A sugestão da Campanha é justamente fazer esse detalhamento para que estes padrões sejam explicitados. 

“Em resumo, é preciso detalhar mais o CAQ e amarrar qual seria a contribuição ou participação da União na garantia desse CAQ”, explica Nalu Farenzena, vice-presidenta da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca). “Não é que o CAQ não está sendo contemplado no texto, mas é preciso reforçar a noção de Custo Aluno-Qualidade ligado a referenciais e insumos que sejam redistribuídos de forma equitativa. E é preciso vincular o CAQ ao Fundeb, porque não se trata de criar mais um mecanismo de complementação da União, mas sim vincular ao que já temos”, completa. Caso o texto final continue sem fazer esse detalhamento, ela alerta que a lacuna pode levar a mais discussões e disputas em torno da regulamentação do CAQ, que já é alvo de disputas há anos e não faz parte da agenda dos setores empresariais na educação. “O CAQ precisa ser operacionalizado. Se não for detalhado nesse momento, a regulamentação vai ter que vir de outro modo, e isso pode ser por decreto ou por processos mais amplos. Ou seja, se não se resolve agora o mecanismo ainda fica vulnerável a uma regulamentação centralizada vindo do Executivo”, finaliza Nalu. 

Mas para além do detalhamento dos insumos, Salomão Ximenes enxerga ainda outros problemas – técnicos e políticos – no texto em relação ao CAQ, de modo que correm o risco de esvaziar o mecanismo. Estes problemas estão presentes nos Artigos 38, 39 e 40 do texto aprovado no Senado. Dizem, respectivamente, que a complementação se dará conforme os fatores de ponderação (saiba mais aqui), que estará sujeita à disponibilidade financeira da ocasião, e que a suplementação da União tem caráter facultativo. Como Salomão explica, essas redações invertem o sentido do CAQ e o que já está previsto em lei sobre ele. Por exemplo, é o CAQ que estabelece os parâmetros de ponderação do FUNDEB, e não o contrário. Além disso, a disponibilização do recurso é obrigatória e não depende da disponibilidade financeira. “Ou seja, se aprovado dessa forma é um texto com constitucionalidade bastante questionável, uma vez que o CAQ está previsto na Constituição”. Por isso, acredita o professor da UFABC, ainda que o CAQ seja detalhado, o projeto de Lei Complementar 235/19 ainda pode representar um retrocesso em relação à regulamentação desse mecanismo. 

Gestão democrática

Ao regulamentar o Sistema Nacional de Educação e a cooperação interfederativa, o PLC 235/19 também estabelece os mecanismos de governança, monitoramento e avaliação do Sistema. E aqui há mais um problema sério: o texto não contempla a participação de sociedade civil, sindicatos, estudantes ou comunidades escolares nessas esferas, apenas gestores. Embora reconheça mecanismos que já existem, como o Fórum Nacional de Educação, as comissões tripartite e bipartite contariam apenas com governo em sua composição, sendo portanto um retrocesso no aspecto da gestão democrática e da participação social na educação. 

“Há menção a instâncias com participação social, mas não naquelas que de fato são deliberativas e permanentes, onde isso precisa ser reforçado. É preciso que a participação social esteja nos meios do SNE e não apenas como um princípio, e para isso já temos um instrumento jurídico muito forte para lançar mão, que é o fato da Emenda 108, do Fundeb, ter inserido na Constituição o preceito de que a sociedade deve participar da formulação, monitoramento, controle e avaliação das políticas sociais, inclusive a educacional”, explica Nalu Farenzena, explicando que, mais uma vez, as propostas em tramitação no Congresso não contemplam mecanismos já previstos em outras leis e marcos.

Para Salomão Ximenes, o texto aprovado no Senado se concentra demais na regulamentação interfederativa. Isto é, em como as diferentes esferas (União, estados e municípios) deverão interagir e se articular entre si. E sobra pouco espaço para outras regulamentações. “Esse é um aspecto importante, mas não é o único que deveria ser tocado pelo Sistema Nacional de Educação. Nesse sentido, a proposta é deficitária porque ela em alguma medida confunde a relação interfederativa com o próprio Sistema, que vai além disso, e não mexe em gargalos importantes, como o Conselho Nacional de Educação, além de mencionar as escolas apenas uma vez. É um Sistema Nacional de Educação que não fala de escola. Está mais preocupado em resolver um conflito federativo”, critica Salomão. 

Em relação ao Conselho Nacional de Educação (CNE), o PLP não altera sua composição – hoje dependente de nomeações da Presidência da República através de lista tríplice. Por isso, seria mais um aspecto em que o projeto aprovado no Senado e defendido pelo governo Bolsonaro não avança na gestão democrática. O Conselho Nacional de Saúde, em comparação, tem sua composição dividida entre usuários do SUS (50%), trabalhadores do sistema (25%) e gestores (25%). “Particularmente, acho descabido dizer que não compete a essa proposta regular isso, pois o CNE é central para o Sistema”, finaliza Salomão. 

SINAEB 

Por fim, o projeto de lei que agora vai à Câmara também precisa fortalecer o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SINAEB), que amplia o sentido da avaliação ao avaliar também a qualidade, a equidade e a eficiência da educação básica. 

Além da necessidade de ser um sistema de avaliação permanente, como destacou Salomão, o SINAEB precisa prever processos participativos de avaliação junto às comunidades escolares, por meio da autoavaliação institucional participativa, para que as realidades e demandas das escolas sejam consideradas nos processos avaliativos e nas políticas educacionais. É necessário também prever a articulação do SINAEB com o CAQ de modo a fornecer indicadores para a avaliação da qualidade e equidade na educação.

O substitutivo do relator Dario Berger precisa agora ser corrigido na Câmara para definir os princípios, as diretrizes e as dimensões avaliativas do SINAEB retomando a Portaria 369 de maio de 2016 que instituiu o Sistema e que foi construída pelo INEP em diálogo com organizações da sociedade civil, movimentos educacionais e com profissionais da educação.     

Em resumo: o SNE é fundamental para fazer avançar a educação brasileira pública e de qualidade para todas, todos e todes. E sua regulamentação está atrasada. No entanto, os textos aprovados até agora estão muito aquém do que a educação brasileira precisa, e seu debate está sendo encurtado e apressado no processo de tramitação. Na pressa de regulamentar o trabalho interfederativo, princípios cruciais como a participação social estão sendo deixados de lado. Cabe à mobilização popular tentar barrar, ou ao menos amenizar, mais esse retrocesso.

Em semana de apagão de dados educacionais pelo Inep, mais de 80 entidades lançam nova versão do Manual Contra a Censura nas Escolas

O Manual inclui decisões recentes do STF que reforçam a inconstitucionalidade de leis inspiradas no movimento Escola sem Partido e o dever do Estado em abordar gênero e sexualidade nas escolas.

Em resposta às intimidações, ameaças e notificações dirigidas a docentes e escolas e à escalada do autoritarismo no país, um grupo de mais de 80 entidades de educação e direitos humanos lança, nesta quarta-feira, 23 de fevereiro, uma nova versão do Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas. A publicação apresenta orientações jurídicas e estratégias político-pedagógicas em defesa da liberdade de aprender e de ensinar, baseadas em normas nacionais e internacionais e na jurisprudência brasileira.

“O Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas articula duas estratégias complementares: por um lado, fornece subsídios para que as comunidades escolares possam, em seu cotidiano, enfrentar as ameaças concretas ou anunciadas. Por outro, valoriza o debate público sobre essas situações como forma de enfrentamento de um conflito social gerado pela manipulação das ideias”, explica a apresentação do material.

Lançada em 2018, a primeira versão do documento contou com mais de 150 mil downloads. Na nova versão, foram incluídas decisões recentes do Supremo Tribunal Federal que reforçam a inconstitucionalidade de leis inspiradas no movimento Escola sem Partido e o dever do Estado em abordar gênero e sexualidade nas escolas como forma de prevenir a violência doméstica e o abuso sexual contra crianças e adolescentes.

A nova versão também apresenta estratégias de como responder a novos tipos de ameaças que têm sido promovidas por movimentos e grupos ultraconservadores contra comunidades escolares. Além disso, são esmiuçadas as alterações recentes de normativas nacionais e internacionais de direitos humanos, além de novas possibilidades no campo das estratégias jurídicas, políticas e pedagógicas de enfrentamento ao acirramento do autoritarismo na educação.


Apagão de dados educacionais

O lançamento ocorre na mesma semana em que microdados do Censo Escolar foram descartados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) com base na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Em nota de posicionamento, entidades, redes de pesquisa e movimentos sociais afirmam que o descarte é inadmissível, carece de fundamento legal e, como resultado, impede a avaliação e elaboração de políticas públicas que respondam às necessidades da população.

O Manual também está sendo lançado como forma de prevenção e enfrentamento de possíveis ataques às escolas, educadores, estudantes e famílias em um ano eleitoral dramático, marcado por ameaças diversas à democracia, desinformação e disputas acirradas.


Casos-modelo, seus desdobramentos e estratégias de defesa

Manual, que pode ser baixado gratuitamente clicando aqui, descreve 19 casos-modelo baseados em situações reais, seus desdobramentos e estratégias jurídicas e político-pedagógicas que podem ser usadas por profissionais de educação.

Entre os casos, são apresentadas situações de ameaças pelo Poder Público, como a aprovação de legislações antigênero; a interferência do Legislativo ou Executivo nas instituições educacionais; o constrangimento de docentes por diretorias de ensino e a militarização de escolas públicas. São também abordados casos de ameaças por membros da própria comunidade escolar e de seu entorno, como a perseguição por meio de notificações extrajudiciais, a ocorrência de constrangimentos ao uso de nome social, a censura ao uso de linguagem neutra, a violação da laicidade e o cerceamento das discussões sobre racismo e do ensino – previsto em lei – das histórias e culturas indígena, africana e afro-brasileira em escolas públicas e privadas.

O Manual trata ainda do tema fortemente recorrente, mas pouco comentado, da autocensura, isto é, da interrupção da abordagem de gênero, raça e sexualidade nas escolas pelos próprios docentes em decorrência do pânico moral e do medo de perseguição decorrentes da atuação autoritária de movimentos ultraconservadores contra professores. 


Marcos legais nacionais, internacionais e decisões do Supremo Tribunal Federal

A primeira versão do Manual foi lançada no final de 2018 como parte de uma estratégia de incidência junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que a Corte julgasse um conjunto de ações que questionavam a constitucionalidade de leis de censura na educação.

Ao longo do ano de 2020, dez ações foram julgadas positivamente, reafirmando a inconstitucionalidade da censura e o dever do Estado em abordar as questões de gênero e sexualidade na Educação Básica como forma de prevenir o abuso sexual de crianças e adolescentes. As decisões reforçaram também que a ideia de neutralidade ideológica é antagônica ao pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, pilar constitucional da legislação educacional brasileira.

Outro aspecto importante referendado pelo STF foi a interpretação a respeito do lugar das famílias na gestão democrática da educação. Na compreensão da Corte, a participação das famílias na vida escolar de crianças e adolescentes é fundamental, mas  não pode ser usada como artifício para limitar o direito constitucional de crianças e adolescentes a uma educação que contemple várias visões de mundo, estimule a capacidade de refletir e de pesquisar a realidade e que prepare os e as estudantes para uma sociedade sempre mais complexa e desafiante.

“Muitas vezes, mobilizadas pelo desejo de proteção de suas filhas e filhos, algumas famílias acabam contribuindo para que crianças e adolescentes cresçam despreparados e vulneráveis para enfrentar o mundo e atuar conscientemente pela superação das desigualdades, discriminações e violências nas suas vidas e na sociedade brasileira”, destaca o Manual.


Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação

Com apoio do Fundo Malala, do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e da Defensoria Pública da União (DPU), a publicação é resultado do trabalho de uma ampla articulação de sociedade civil, que inclui organizações não governamentais e redes que atuam pelo direito humano à educação, entidades sindicais, associações científicas, redes de pesquisa, organizações vinculadas ao movimento feminista, negro e LGBTQI+, setores religiosos progressistas defensores da laicidade do Estado, coletivos políticos e órgãos públicos comprometidos com a defesa dos direitos humanos.

Confira a lista completa de entidades signatárias:

  • Ação Educativa
  • Ação Educação Democrática
  • ABEH – Associação Brasileira de Pesquisa em Ensino de História
  • ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos
  • ABIA – Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS
  • ABPN – Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as
  • AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros
  • Agência Pressenza
  • Aliança Nacional LGBTI
  • ANAÍ – Associação Nacional de Ação Indigenista
  • ANAJUDH-LGBTI – Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos de LGBTI
  • Andes-SN – Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior
  • Anfope – Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação
  • Anpae – Associação Nacional de Política e Administração da Educação
  • ANPEd – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
  • Anpocs – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
  • Anpof – Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia
  • Antra – Associação Nacional de Travestis e Transexuais
  • Articulação de Mulheres Negras Brasileiras
  • Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais
  • Campanha Nacional pelo Direito à Educação
  • Cedeca-CE – Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Ceará
  • Cedes – Centro de Estudos Educação e Sociedade
  • CENDHEC – Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social
  • Cenpec
  • Centro das Mulheres do Cabo
  • Centro de Cultura Professor Luiz Freire
  • Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza
  • CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria
  • Cidade Escola Aprendiz
  • Cladem – Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher
  • CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação
  • Coletivo de Advogad@s de Direitos Humanos
  • Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia
  • Comissão Pastoral da Terra
  • Comitê Goiano de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno
  • Conic – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs
  • CONTEE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino
  • Dom da Terra AfroLGBTI
  • Fineduca – Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação
  • Forumdir – Fórum Nacional de Diretores de Faculdades, Centros de Educação ou Equivalentes das Universidades Públicas Brasileiras
  • Fórum Ecumênico ACT-Brasil
  • Gajop – Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares
  • Geledés – Instituto da Mulher Negra
  • GPTEC – Grupo de Pesquisa em Tecnologia, Educação e Cultura (IFRJ)
  • Grupo Dignidade
  • IDDH – Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos
  • Inesc – Instituto de Estudos Socioeconômicos
  • Instituto Alana
  • Instituto Pólis
  • Instituto Vladimir Herzog
  • Intervozes
  • Justiça Global
  • LAVITS – Rede Latinoamericana de Estudos em Tecnologia, Vigilância e Sociedade
  • Mais Diferenças – Educação e Cultura Inclusivas
  • Marcha das Mulheres Negras
  • Mirim Brasil
  • Movimento Humanista
  • Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio
  • MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
  • Núcleo de Consciência Negra – USP
  • NUDISEX – Núcleo de Estudos e Pesquisas em Diversidade Sexual
  • Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras de Belo Horizonte
  • Odara – Instituto da Mulher Negra
  • OLÉ/UFF – Observatório da Laicidade na Educação
  • Plataforma Dhesca Brasil
  • Professores contra o Escola sem Partido
  • Projeto Mandacaru Malala
  • QuatroV
  • Rede Brasileira de História Pública
  • Rede Liberdade
  • REPU – Rede Escola Pública e Universidade
  • SBEnBio – Associação Brasileira de Ensino de Biologia
  • SBEnQ – Sociedade Brasileira de Ensino de Química
  • Sinpeem – Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São Paulo
  • Sinpro Guarulhos – Sindicato dos Professores e Professoras de Guarulhos
  • Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos
  • SPW – Observatório de Sexualidade e Política
  • Terra de Direitos
  • UNCME – União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação
  • Undime – União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação
  • UPES – União Paranaense dos Estudantes Secundaristas

Ação no STF questiona uso do Disque 100 para perseguição política

Governo Federal instrumentalizou o canal para recebimento de denúncias sobre abordagem de gênero nas escolas e exigência de comprovante de vacina, em desrespeito a decisões do STF

“Conceitos de direitos humanos vêm sendo subvertidos de forma a permitir a execução de uma política de vigilância, perseguição, discriminação e repressão, sobretudo nos campos da Educação e da Saúde”. É o que afirma uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), protocolada nesta terça-feira (8) pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS) em articulação com ativistas e operadores de direito que atuam na defesa dos direitos humanos.

A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 942 aponta que o governo federal, em total desacordo com a jurisprudência do STF, vem usando o Disque 100 – canal de denúncias de violações de direitos humanos – para constranger profissionais de educação, profissionais de saúde, demais cidadãos e instituições com perspectivas diferentes às do governo federal em questões como vacinação, identidade de gênero e orientação sexual.

Criado em 1997 como iniciativa de organizações da sociedade civil, o Disque 100 é um serviço público vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) que tem a função de receber, analisar e encaminhar denúncias de violações de direitos. Além disso, a sistematização das denúncias recebidas é um instrumento para que gestores públicos, sociedade civil e pesquisadores possam monitorar a situação dos direitos humanos no país. No entanto, o canal foi reformulado no governo Bolsonaro. Uma das mudanças foi a inclusão da expressão “ideologia de gênero” como motivação para violação de direitos humanos, como forma de estimular denúncias contra profissionais de educação que abordem a questão nas escolas.

Em decisões recentes, o Supremo considerou inconstitucionais leis municipais e estaduais que proibiam a abordagem de conteúdos ligados a gênero e sexualidade nas escolas, que se apoiavam na categoria “ideologia de gênero”. O STF também determinou ser dever do Estado brasileiro abordar a igualdade de gênero na escola como forma de prevenir a violência doméstica e o abuso sexual de crianças e adolescentes. Discurso criado nos anos de 1990 por setores conservadores da Igreja Católica, a chamada “ideologia de gênero” se constituiu em resposta reacionária contra o avanço dos direitos das mulheres e da população LGBTQIA+ no plano internacional.

Uma das preocupações das entidades proponentes da ADPF é com o acionamento de órgãos policiais a partir das informações recebidas pelo Disque 100 contra profissionais de educação da saúde. Isso aconteceu em dezembro de 2021 no município de Resende (RJ), onde a direção da Escola Municipal Getúlio Vargas recebeu intimação da Polícia Civil devido a uma denúncia anônima por supostamente expor os alunos a “conceitos comunistas” e a “ideologia de gênero”. Outro caso envolveu uma professora de filosofia da escola estadual Thales de Azevedo em Salvador (BA) por abordar questões de gênero, racismo e sexualidade. Mais recentemente, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos disponibilizou o Disque 100 para recebimento de denúncias relativas à exigência de certificado de vacina de Covid-19 para acesso a locais públicos ou privados, contribuindo para situações de constrangimento e agressões contra profissionais da saúde e comprometendo diretrizes de saúde pública em contexto pandêmico. A ação do governo acarretou ainda no baixo índice da vacinação infantil contra a Covid-19, apesar da alta capacidade do sistema de saúde do país. Segundo dados dos veículos da imprensa obtidos com as secretarias estaduais, apenas 18,8% das crianças de 5 a 11 anos no Brasil receberam a primeira dose do imunizante.

“O Disque 100 foi instrumentalizado para burlar jurisprudências estabelecidas pelo STF, tanto em relação à abordagem de gênero na educação como em relação à vacinação. Para piorar, essas denúncias são enviadas a órgãos policiais sem que se decline o crime que se deve apurar. Com isso, o aparato policial é utilizado para gerar medo e inibição de práticas absolutamente legais e constitucionais, endossadas por esse Supremo Tribunal Federal”, afirma a advogada e ex-Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat, uma das representantes das entidades na ADPF, que conta também com a representação do grupo de advogados da Rede Liberdade, liderado pela advogada Juliana Vieira dos Santos.

Outro problema apontado é que o funcionamento atual do Disque 100 invisibiliza os dados de violências contra pessoas LGBTQIA+. “Da forma como está estruturado, fica impossível obter dados sobre violência motivada por homofobia e transfobia. Essas informações são essenciais para que os estados e municípios elaborem políticas de enfrentamento a esses casos”, explica Marco Aurélio Máximo Prado, professor da UFMG e coautor de um estudo sobre as mudanças no serviço.

Mudanças no Disque 100 e pedidos ao STF

Em abril de 2021, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos divulgou o Manual de Taxonomia de Direitos Humanos, com a função de classificar as notificações recebidas pelo Disque 100. Nesse documento, foi incluída entre os indicadores de motivação das violações o item “Em razão da orientação sexual / ideologia de gênero”. Segundo estudo realizado por pesquisadores da UFMG, o Manual promove um apagamento das violências de caráter homofóbico e transfóbico, devido ao termo vago “orientação sexual” e por dividir espaço com a questionada categoria “ideologia de gênero”.

O caso Disque 100 constitui mais uma das medidas adotadas pelo governo Bolsonaro que atacam ações e políticas comprometidas com a igualdade de gênero e a diversidade sexual no país, realidade abordada pelo Relatório “Ofensivas Antigênero no Brasil: políticas de Estado, legislação e mobilização social, publicado em outubro de 2021 e submetido ao Mandato do Perito Independente das Nações Unidas sobre Orientação Sexual e Identidades de gênero e Direitos Humanos por um conjunto de organizações da sociedade civil brasileira.

O MMFDH também editou uma nota técnica em que afirma ser uma violação de direitos humanos a exigência de comprovante de vacina para acesso a locais públicos ou privados. O Disque 100 foi disponibilizado para recebimento desse tipo de denúncias, em mais uma ação de combate às medidas de contenção da pandemia de Covid-19. Mais uma vez, a instrumentalização do Disque 100 desrespeita decisão do Supremo, que afirmou a legalidade de restrições indiretas para ampliação da cobertura vacinal no país.

As proponentes da ADPF solicitam que o STF urgentemente determine a remoção da expressão “ideologia de gênero” do Manual de Taxonomia de Direitos Humanos e do Painel de Dados do Disque 100; a inclusão da categoria identidade de gênero e de indicadores de violações de direitos contra a população LGBTQIA+; a suspensão da nota técnica do MMFDH que questiona a obrigatoriedade do Certificado Nacional da Vacina e da vacinação infantil; e a exigência de que o encaminhamento de denúncias do Disque 100 aos órgãos policiais só aconteça na hipótese de crime tipificado em lei, constando o tipo penal específico.

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O ataque ao INEP no governo Bolsonaro

Autarquia vem sofrendo sucessivos desmontes na atual gestão, prejudicando o planejamento de políticas educacionais a longo prazo. Servidores resistem

Servidores do INEP protestam, em novembro, contra os desmontes na autarquia. Dezenas de pessoas reunidas, de máscaras, em frente ao prédio do INEP, com cartazes com os dizeres "Assédio moral não" e "respeitem a história do INEP".
Servidores do INEP protestam, em novembro, contra os desmontes na autarquia. Foto: divulgação

Texto: Nana Soares | Edição: Claudia Bandeira

O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) tem como objetivo promover estudos e avaliações periódicas sobre o sistema educacional brasileiro a fim de subsidiar a formulação e implementação de políticas públicas, como o Plano Nacional de Educação (PNE). É fundamental para pensar a Educação a longo prazo. Não à toa, está sob ataques do governo Bolsonaro desde o início da gestão. Nos últimos anos, o INEP tem sofrido com sucessivos desmontes de sua estrutura, que afetam a capacidade da autarquia ligada ao MEC de cumprir suas funções, isso quando não é alvo de intervenções explicitamente político-ideológicas. 

O Enem ilustra esse processo. A maior prova de acesso ao ensino superior do país incomoda o governo federal – pelos temas das redações, pelas menções à ditadura militar, por seu papel na democratização das universidades do país. Nas vésperas da edição de 2021, Bolsonaro chegou a declarar que a prova teria a “cara de seu governo”, indicando uma intervenção político-ideológica em sua formulação. Ficou na intenção, porque as mudanças desejadas esbarram na burocracia do órgão e exigem mais do que o desejo de um único governante. “Nós, servidores públicos, só podemos fazer o que está previsto em lei. Para alterar o Enem precisa mexer em outras normas que o regulam, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Não basta um comando de voz de uma empresa contratada”, enfatiza Alexandre dos Santos, servidor do órgão desde 2008. 

Alexandre foi um dos servidores que, em novembro, assinou um documento com uma compilação de denúncias de casos de assédio moral e tentativas de intervenção no Enem partindo da nova diretoria do INEP. O material foi entregue à Câmara dos Deputados, ao Tribunal de Contas da União, à Controladoria-Geral da União e à ouvidoria do próprio INEP. Alexandre avalia que, depois de um período de fortalecimento, tanto o Inep como o aparato estatal como um todo vêm sendo atacados, num processo que se intensificou com a chegada de Bolsonaro ao poder. O Enem é o alvo preferencial – e talvez o mais visível – dos ataques, sendo parte de “um instrumento de guerra ideológica criada por Bolsonaro”, segundo o servidor. Essa guerra se materializa com as sucessivas trocas de dirigentes e com os ataques à burocracia – por exemplo, com a proposta de Reforma Administrativa, que retira a estabilidade dos servidores, tão crucial para evitar que o Enem 2021 tivesse a “cara do governo”. 

>>>>>>> Leia: Os impactos da Reforma Administrativa para a Educação 

Nessa sucessão de trocas de diretoria, a última foi a que mais preocupou os servidores do INEP. Atitudes do atual diretor, Danilo Dupas Ribeiro, sinalizaram a terceirização do banco de itens do Enem, além de ser uma gestão marcada por ações – descritas na carta denúncia entregue em novembro – classificadas pelos funcionários como intimidatórias e de assédio moral. A gota d’água foi Danilo se retirar do plantão no fim de semana de aplicação do Enem, deixando as responsabilidades daquele fim de semana para os servidores. A situação ficou tão insustentável que, na semana da prova, 35 funcionários entregaram seus postos de chefia, sinalizando que não queriam participar do projeto em curso. Todo esse processo é resumido por Alexandre da seguinte maneira: “As trocas de gestão por si só sinalizam um enfraquecimento, uma vez que a administração pública exige conhecimento sofisticado e há uma curva de aprendizagem para entender o INEP. Trocas frequentes na diretoria acabam diminuindo a velocidade das entregas do órgão. Com Danilo, um novo projeto ficou visível, um projeto que quer enfraquecer o instituto e, na verdade, a capacidade do Estado de produzir informações. É um projeto de desmantelamento da capacidade estatal de entender o que está acontecendo e formular políticas públicas a partir disso”. 

Efeitos a longo prazo

Desde o início da gestão Bolsonaro, isso também tem acontecido no IBGE (com o adiamento do Censo 2020, ainda não realizado) e no INPE (atacado por Bolsonaro por publicizar os dados do desmatamento, o que levou a uma troca na gestão). Romualdo Portela, presidente da ANPAE, destaca a gravidade do que está em curso e as consequências nefastas para a educação, já que sem dados confiáveis não é possível fazer um planejamento educacional de qualidade. “O INEP é responsável pelos Censos da Educação Superior, do Magistério, além das provas nacionais. Se não temos dados sobre acesso e progresso no sistema, não sabemos o que precisa ser enfrentado pelas políticas públicas”. 

Romualdo preocupa-se especialmente com a Prova Brasil (de avaliação da Educação Básica), pois o modelo atual só tem vigência até 2022, e ainda não há informações suficientes sobre como será a nova versão. “O MEC destituiu a comissão de ex-presidentes do INEP que estava encarregada de pensar alternativas, substituindo por uma comissão com pouca familiaridade em avaliações educacionais. Nessa gestão, tudo o que se refere a planejamento está em risco. O que já foi planejado – como o Enem, que já tinha uma estrutura razoavelmente estável – está sendo mal executado, mas a margem para destruição é menor. Mas tudo que é planejamento está num nível preocupante”, diz ele, que ressalta haver um limite na capacidade de resistência dos servidores, sendo necessária uma grande mobilização popular em defesa do INEP. 

Movimentação parlamentar

A recente movimentação dos servidores parece ter iniciado essa mobilização de que fala Romualdo: senadores e deputados criaram uma Comissão Mista justamente com o objetivo de avaliar qual a situação das políticas públicas do INEP e se elas estão sendo intencionalmente prejudicadas – iniciativa celebrada pelo servidor Alexandre Santos. Como explica o deputado Professor Israel (PV-DF), membro da comissão, também está no escopo da Comissão entender se o banco nacional de itens do Enem está propositalmente esvaziado para viabilizar uma terceirização e identificar se as avaliações futuras estão garantidas, já que trazem as informações para elaborar, executar e avaliar políticas públicas em educação. A iniciativa também deve investigar a demissão massiva dos servidores e suas denúncias, bem como trabalhar para aprovar leis que beneficiem o órgão. Um exemplo é a PEC 27/2021, que propõe mais autonomia para INEP, IPEA e IBGE. “Entendemos que mais autonomia é necessária porque o INEP produz dados que, em última análise, podem constranger o governo. Por isso, não pode ser excessivamente submisso”, diz o parlamentar.

O desmonte tem cor, etnia e classe

As tentativas de desmonte do INEP, junto a outras políticas do governo Bolsonaro em Educação, são, também, um meio de mantê-la como um privilégio de poucos. O Enem 2021 teve o menor número de inscritos desde 2005 e também foi a edição mais branca da história. Dentre os motivos, está o fato do MEC não ter autorizado a inscrição gratuita a quem faltou ao exame de 2020 por causa da pandemia. Como lembra Alexandre Santos, essa é a materialização do projeto contra o qual os servidores se insurgiram. “Um projeto que promove desigualdade, amplia exclusão e cria mais barreiras para o pobre ter acesso. Isso está impresso nas estatísticas, e as estatísticas dificultam a manutenção do discurso. Se não há evidências, qualquer discurso cabe”, diz ele. 

Segundo dados do INEP, 82% dos jovens pobres são negros. E, como lembra a professora Analise da Silva, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a desigualdade e a política de exclusão começam muito antes do Enem. “O novo Ensino Médio, por exemplo, com seus percursos formativos, traz uma “escolha” que não é escolha: cursar a formação profissional, que já permite o trabalho em pouco tempo, ainda que de forma precária, ou a universidade, com uma promessa de renda daqui vários anos. Dito de outro modo, mesmo aqueles jovens pobres que chegam ao Enem, chegam em condição de desigualdade. Trabalham com salários defasados, em condições precárias e frequentemente na informalidade. Se são aprovados, encontram uma universidade em contexto de redução de bolsas e políticas de permanência estudantil”, elenca. Parafraseando Darcy Ribeiro: não é crise, é projeto. 


Entenda como os ataques a gênero afetam o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD)

Edital do PNLD 2023 retira a afirmação da defesa dos direitos humanos e privilegia a alfabetização pelo método fônico.Alterações no PNLD são parte de intensificação de ataques a gênero na Educação, segundo aponta relatório da sociedade civil

Texto: Nana Soares

O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) é uma política pública de apoio à produção de materiais pedagógicos que são distribuídos gratuitamente para cerca de 47 milhões de estudantes da Educação Básica. Os livros são selecionados através de editais periódicos que estabelecem os parâmetros para esses materiais. 

O atual edital do programa, que terá efeitos a partir de 2023, traz mudanças sutis, mas significativas em relação aos anos anteriores: A violação de direitos humanos deixou de ser um critério eliminatório e priorizou-se a alfabetização pelo método fônico, apesar da diversidade de metodologias existentes e aplicadas no Brasil. Essas alterações estão inseridas em um contexto de ataques aos direitos humanos na Educação com o argumento da “neutralidade ideológica”, que inclui a supressão de temas de gênero, raça e sexualidade.

Os editais anteriores do PNLD excluíam, desde 2013, todo material pedagógico que veiculasse “preconceitos de condição social, regional, étnico-racial, de gênero, de orientação sexual ou de linguagem, assim como qualquer outra forma de discriminação ou de violação de direitos”. Isso mudou na Chamada 2021, quando a não violação de direitos passou a ser um critério avaliativo, mas não eliminatório. E violências específicas deixaram de ser nominadas.

Confira algumas das alterações feitas no PNLD 2023

PNLD 2023: Exclusão da premissa de não discriminação

A exclusão da premissa da não discriminação está sendo contestada judicialmente por diversas entidades da sociedade civil, como Ação Educativa, Geledés, Campanha Nacional pelo Direito à Educação e ABGLT. As organizações entraram com uma ação civil pública com um pedido de liminar, propondo novas cláusulas para o edital PNLD 2023, com vistas a restaurar os critérios de exclusão de obras que violam direitos humanos e abrir um novo prazo para adaptação das editoras aos efeitos da eventual decisão. O pedido de liminar (que garantiria que as demandas fossem concedidas emergencialmente enquanto o juiz analisa a ação) foi negado, mas o processo segue em andamento seu conteúdo ainda será analisado.

O grupo de entidades destaca que a alteração na redação configura um retrocesso em direitos humanos e um apagamento de grupos minoritários, enfraquecendo sua proteção. “As mudanças buscam, ainda que não explicitamente, combater a chamada ‘ideologia de gênero’”, destaca Marco Aurélio Prado, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e membro do Fórum das Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas, Letras, Linguística e Artes. O Fórum publicou um manifesto em abril contra as alterações e reuniu-se com integrantes do MEC para discuti-las ainda antes da judicialização. “O PNLD reflete e atualiza as discussões de direitos que vieram depois de 1988. Por exemplo, a criminalização da homofobia. Portanto, não basta que o PNLD se atenha ao que está de modo genérico na Constituição e ignore as novas leis”, explica ele.

A cláusula de exclusão por violações de direitos humanos foi um incentivo para as editoras abordarem esses temas. Também por isso, reforça Marco, a mudança é um retrocesso. “Ela retira o fortalecimento dos direitos das minorias e não impede que uma editora se inscreva com um livro que não fala de pessoas LGBTQIA+, por exemplo”. Na avaliação do professor da UFMG, a ação judicial foi fundamental para que a sociedade civil registrasse sua oposição ao retrocesso

PNLD 2023: favorecimento do método fônico

Há ainda outra mudança com efeitos em gênero, sexualidade e direitos humanos – embora não se perceba isso à primeira vista. O Edital 2021 privilegia materiais didáticos formulados sobre o método fônico de alfabetização em detrimento a outras metodologias. Faz isso de maneira indireta, vinculando-se ao Programa Nacional de Alfabetização. O método fônico tem um viés tecnicista, desconsiderando o contexto das crianças em alfabetização ou o uso social da leitura e da escrita. É considerado por educadores um método ultrapassado e ineficaz para a aprendizagem.  

Por isso, entidades do campo da linguística e da alfabetização também ajuizaram uma ação contestando a preferência pelo método fônico no novo edital. Elas argumentam que a mudança exclui a pluralidade de metodologias, especialmente as que consideram a contextualização da leitura e escrita a partir da realidade social dos estudantes. Também reforçam que essa pluralidade está garantida na Constituição Federal, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação e na Base Nacional Comum Curricular. Portanto, se o edital desconsidera essas legislações, é inconstitucional e ilegal. 

“Nos baseamos em critérios técnicos e nesse caso há um problema muito grave e evidente de inadequação às legislações existentes. Mas o favorecimento do método fônico tem implicações para os direitos humanos, já que a pluralidade de concepções pedagógicas não é apenas um critério técnico. Garantir a pluralidade é garantir que as crianças não apenas consigam decodificar palavras, mas que sejam leitoras aptas a interpretar um texto e o mundo em que ele foi escrito”, diz Lucas Moraes, advogado e integrante do Projeto Liberdade, responsável pela ação judicial. Atualmente, a ação está parada no Superior Tribunal de Justiça, que precisa decidir em que foro ela será julgada.

Ataques a gênero na educação

A “higienização” do PNLD 2023 é apenas um dos ataques a gênero visto nos últimos anos. A publicação “Ofensivas Antigênero no Brasil: políticas de Estado, legislação, mobilização social”, recém lançada por uma coalizão de organizações, detalha esses ataques, bastante pronunciados desde a elaboração do Plano Nacional de Educação. Além disso, o repúdio à linguagem neutra, a agenda pela Educação Domiciliar e pela militarização das escolas compõem esse contexto de ofensivas.

Para se ter uma ideia, no fim de 2020, haviam 23 projetos de lei no Congresso Nacional remetendo ao Escola sem Partido ou a legislações antigênero, além de propostas para criminalizar a “ideologia de gênero” ou que classificam a abordagem de gênero e sexualidade como um incentivo à pornografia infantil. A Educação Domiciliar e as escolas cívico-militares também têm ganhado força. As duas modalidades são defendidas com argumentos de “proteção” das crianças e adolescentes da “desordem” que estaria dominando as comunidades escolares. Mas tanto a educação domiciliar quanto as escolas cívico-militares prezam por lógicas hierárquicas e pelo controle dos corpos e da sexualidade. Assim, tendem a estimular a discriminação, especialmente contra jovens negros e LGBTQIA+.

Também se multiplicaram projetos para proibir a linguagem neutra, fazendo defesa intransigente da norma culta para censurar o debate sobre igualdade de gênero e diversidade e associando a linguagem neutra à “ideologia de gênero”. Isso pode ser uma estratégia para driblar decisões recentes do STF, que já reconheceu a legitimidade da abordagem de gênero e sexualidade na educação.

Mais detalhes dos ataques a gênero na Educação e em outras áreas sociais podem ser lidos na íntegra acessando a publicação

Fonte: Gênero e Educação

“Militarizar escolas é negar o direito à Educação”, diz professora Catarina de Almeida Santos

Professora da UnB reforça que a “pedagogia do quartel”, ao prezar pela obediência e padronização de corpos e sujeitos, vai na contramão do que deveria ser o papel da escola

A professora Catarina de Almeida Santos defende que a militarização não começou no governo Bolsonaro, embora tenha se intensificado pela gestão

Embora não existam números precisos, a militarização das escolas é um fenômeno crescente no Brasil – e que não tem explicação ou análise simples. Foi o que nos explicou Catarina Almeida, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do Comitê-DF da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação. Em uma entrevista imperdível, ela detalha porque esse fenômeno vai contra o direito à educação e os valores pregados na Constituição Federal de 1988. Ela defende que não há bases legais que sustentem a militarização nos termos em que esta vem ocorrendo. Leia a entrevista completa a seguir.  

A entrevista foi editada para fins de concisão e compreensão. 

De Olho nos Planos: O que é a militarização das escolas?

Catarina de Almeida Santos: É a transferência do processo de gestão das escolas civis públicas para a Polícia Militar. 

Existem as escolas militares, que são as das corporações (Escolas dos Bombeiros, da PM, do Exército, etc). Essas são originalmente criadas como militares e têm um conjunto próprio de características. Por exemplo, podem cobrar taxas ou mensalidades, são criadas para atender dependentes de militares, podendo destinar algumas vagas para demais estudantes da comunidade, que ingressam por processos seletivos diversos. E, embora sigam as leis da área de Educação, têm como base central o regimento das corporações. Já as escolas militarizadas são civis e públicas. São escolas que, por decisões dos gestores, são militarizadas, ou seja, o processo de gestão (administrativo, pedagógico ou disciplinar) é repassado para o comando das polícias. 

De Olho nos Planos: Como vem se dando a militarização das escolas no Brasil? 

Catarina de Almeida Santos: O processo de militarização se dá de diversas formas: nas redes estaduais, há um processo direto de convênio entre a Secretaria de Educação (Seduc) e a Secretaria de Segurança Pública; nos municípios que não possuem polícia própria, isso se dá por assinatura de um termo de cooperação entre o município e o comando de uma das corporações, geralmente bombeiros e PM. Nesse caso, as escolas passam a contar com comandantes e monitores responsáveis por implementar a chamada “metodologia dos Colégios da Polícia Militar”. Existem casos em que militares e ex-militares criaram empresas sem fins lucrativos para vender essa metodologia. 

Por último, há também as escolas militarizadas por meio do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), criado por Decreto em 2019. Nesse modelo, o estado ou o município assinam um termo de cooperação com o MEC e, a partir desse termo, policiais militares ou das Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica) podem atuar dentro das escolas, com função pedagógica, administrativa e disciplinar. 

Em comum a todas essas formas de militarização, temos o que eu chamo de pedagogia do quartel, que inclui a padronização do comportamento, disciplina rígida, hierarquia, obediência pelo medo e a reprodução de ritos e comandos típicos do militarismo. E o preocupante é que a militarização vem se expandindo muito, num processo que começa no final da década de 1990, com a militarização de uma escola estadual em Goiânia (GO), contando com períodos de picos de expansão, como 2013, 2017 – 2018 quando muitas escolas municipais foram militarizadas na Bahia – e a partir de 2019. Entre os primeiros decretos do governo Bolsonaro estava o Nº 9.465, de 02/01/2019, que fez a reestruturação do MEC e criou a Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares (Secim). E a partir daí não apenas observamos uma expansão do processo, especialmente  nos municípios, mas também a mudança na nomenclatura, porque até então o processo de militarização não utilizava essa denominação.

De Olho nos Planos: Isso veio com o Pecim?

Catarina de Almeida Santos: O Pecim foi criado por decreto em setembro de 2019, com adesão voluntária de estados e municípios. Segundo o decreto, as escolas que aderissem ao modelo receberiam um milhão de reais por ano. Mas é importante frisar que embora o Pecim impulsione o processo de militarização, o maior número de escolas militarizadas no país não está nesse modelo. O Pecim até hoje não conseguiu cumprir seu objetivo de militarizar 54 escolas por ano, mas ele fez com que a militarização entrasse na agenda nacional, o que impulsiona o processo no país ainda que a escola não se militarize via Pecim.  

É difícil saber o número exato de escolas militarizadas porque nem sempre esse processo é concluído pelos governos e principalmente porque o Brasil é um país com muitos municípios, então nem sempre a militarização é anunciada. O que sabemos, por anúncios em leis, é que as escolas militarizadas já passam de 500. Mas em um único anúncio em 2020, o estado do Paraná anunciou que 216 das cerca de 2 mil escolas da rede estadual passariam pelo processo de militarização.

De Olho nos Planos: E por que a militarização é um processo preocupante? 

Catarina de Almeida Santos: Educação e segurança são dois direitos sociais fundamentais, mas com princípios muito diferentes. Não se resolve os problemas da educação deixando quem não entende cuidando da área, sobretudo em um país como o Brasil, onde via de regra os policiais são formados para o confronto e a violência. 

A segurança pública segue uma lógica militar, de hierarquia, disciplina, obediência e relações verticais, o que chamamos de pedagogia do quartel. Essa não é uma pedagogia que pode servir à escola e aos processos educativos, na verdade são relações diametralmente opostas. Ao militarizar as escolas, o policial fará dentro dela o que ele sabe fazer, que não tem nada a ver com o nosso entendimento de educação que é de uma escola que seja pública e de todos os públicos, construída em torno de relações horizontais. Uma escola onde a disciplina é a da convivência, do respeito, do aprendizado com as diferenças. Acho que a pedagogia da escola deveria fazer parte do quartel e não o contrário. 

As pessoas enxergam as escolas militarizadas como um caminho por conta de muitos argumentos. A segurança é um desses argumentos, mas o ponto é que se a polícia precisa ir para dentro escola pra ela ser segura, significa que a polícia falhou em sua função social. Não existe escola violenta em sociedade segura. Outro argumento é o da disciplina, que também se relaciona com a violência. É a disciplina da polícia – baseada na hierarquia, no comando, na obediência – que queremos? Queremos viver em uma sociedade onde uma pessoa não mata outra porque tem alguém vigiando, e não porque respeita o próximo? E ainda tem a questão do rendimento, mas o papel da escola é o rendimento ou ele é uma consequência (e não causa) do processo educativo? 

Primeiro dia de aulas no CED 01 da Estrutural, uma das escolas públicas do DF onde foi implementado o modelo cívico-militar. Modelo intensificado no governo Bolsonaro intensifica exclusões no ambiente escolar


De Olho nos Planos: E como a militarização afeta a população negra, meninas e a população LGBTQ+? 

Catarina de Almeida Santos: Militarizar a escola faz com que ela funcione a partir de uma lógica de uniformização dos corpos, sujeitos, dos comportamentos, do linguajar. Tudo isso passa a ser uniformizado, e a uniformização é um processo que nega os sujeitos, porque os sujeitos são, em si, diversos. Por isso digo que militarizar a escola é negar direito à educação. Educação tem a ver com o desenvolvimento pleno dos sujeitos, de suas especificidades, de formar uma pessoa para a vida em sociedade. A militarização nega essa lógica. Ao proibir a demonstração de afetividade, regular as maneiras de sentar, de correr, obrigar a bater continência, está se formando um sujeito que entende que a única possibilidade do certo é obedecer aquela lógica. É um sujeito que não está preparado para viver em uma sociedade diversa. Ou seja, o direito à educação é negado. 

Nessa linha, a escola precisa ser espaço de formação contra a barbárie, um espaço em que se desnaturalize as mazelas da sociedade, como o racismo, machismo, homofobia e transfobia. Um local onde se debate o patriarcado, a educação sexual, violência contra mulheres. Quando esse espaço é militarizado e o debate não pode ser dado dentro da escola, estamos formando para a barbárie, para a naturalização e manutenção das lógicas estabelecidas. Não se pode debater tais questões em uma escola que segue a lógica de uma polícia que dizima uma população periférica e preta. 

A militarização define um mesmo tipo de roupa, de cabelo, que é imposta pela branquitude. Quantos anos levamos para fazer com que pessoas negras assumam seus cabelos? Para que tenham orgulho de suas crenças, ancestralidades, vestimentas? Quem precisa reafirmar suas identidades são as populações originárias e escravizadas, que por muito tempo tiveram que se submeter a um padrão estabelecido pela branquitude. A mesma coisa a heteronormatividade, o machismo, já que se impõe uma forma de comportamento para meninas e meninos. Nós lutamos tanto para incluir essas demandas na Constituição de 1988, para tipificar o racismo como crime, para olhar para a educação como direito e não como privilégio, e militarizar a escola uniformiza tudo e todos e nega essas lutas. Não são escolas para pobres ou negros, eles não vão ficar lá dentro. 

De Olho nos Planos: Pode falar mais sobre como a escola deixa de ser de todos? Isso pode levar a evasão escolar? 

Catarina de Almeida Santos: Ao militarizar uma escola, eu a transformo em um lugar de privilégio, de exclusão dos que sempre foram excluídos. Essas escolas transferem aqueles e aquelas que não se adequam ao projeto. Inclusive, está presente em muitas normativas que quem não concorda com o projeto tem o “direito” a ser transferido, bem como a maior punição para as faltas é a transferência. Não se adequar ao projeto é tanto o não concordar mas também tem a ver com o rendimento do aluno, então quem em geral tem problemas de rendimento, o que sabemos ser influenciado por fatores sociais, será excluído. Os dados das primeiras escolas públicas militarizadas de Goiás mostram que o aluno que já tinha rendimento médio continua tendo rendimento médio após a militarização, e a mesma coisa para o de rendimento alto, mas os alunos de baixo rendimento são transferidos. 

Há ainda muitas escolas que exigem a compra de farda, traje de gala, ou até mesmo cobra uma pequena mensalidade para que a escola fique mais bonita. Além disso, há normativas que determinam que naquele sistema de ensino não pode haver distorção de idade/série. Qual escola pública não tem distorção idade/série? Só pode ser uma escola onde não cabem estudantes com necessidades educativas especiais, onde não cabe pobre. Dito de outro modo, a militarização mantém uma lógica de resultados, e faz isso transferindo o aluno problema. Isso faz com que ela deixe de ser uma escola pública. Se ela seleciona os alunos, já deixou de ser uma escola pública. 

De Olho nos Planos: Se a militarização não começou com o governo Bolsonaro, basta a troca de governo para reverter esse fenômeno? Como podemos encarar esse problema? 

Catarina de Almeida Santos: Uma eleição resulta de uma lógica posta na sociedade. A militarização não começou com o Bolsonaro, ele pegou carona em uma política que já estava em curso. O que é possível resolver com a saída de Bolsonaro (e supondo que o novo governo queira encarar essa briga) é o fim do Pecim, porque ele é só um programa. Mas acredito que para fazer o enfrentamento podemos questionar as bases legais da militarização. Mas, principalmente, precisamos construir um debate sobre a sociedade que queremos. 

Acredito que questionar as bases legais seja uma estratégia mais efetiva, porque não há base suficiente para a militarização. A rigor, quem define o que pode e o que não pode na escola são as leis do campo da educação, e elas dizem que policiais ou outros profissionais não podem ser professores ou gestores se não têm a formação para isso. Tanto a Constituição como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) tratam a Educação como direito de todos. Ainda, a LDB define quem são as e os profissionais da educação e qual formação devem ter, dizendo também que é preciso formação e experiência na docência. 

Mas o mais importante é o debate franco e público no sentido de questionar a escola que queremos, de realmente pensar porque achamos que militarização é o caminho. Mas isso não é uma coisa rápida. É uma construção, é debate e formação. E não dá para pensar militarização fora do debate de homeschooling, do Escola Sem Partido, etc. Estamos em uma lógica de hipermilitarização da sociedade, onde a escola é só um desses espaços. 

Leia mais de Catarina de Almeida Santos: 

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Atrasos na regulamentação e erros em repasses marcam 1 ano do novo Fundeb

Novo Fundeb alterou as formas de repasse de recursos, o que vem causando confusão entre gestores. Dispositivos como CAQ e SNE ainda não têm regulamentação

Foto: Igor Santos/Secom

Texto: Nana Soares | Edição: Claudia Bandeira

Em agosto de 2020, a Emenda Constitucional 108 (EC 108) foi promulgada, prometendo ser um divisor de águas no financiamento da educação brasileira. O texto, que constitucionalizou o novo Fundeb e dispositivos como o Custo Aluno-Qualidade (CAQ), trouxe avanços importantes como o aumento dos recursos destinados à educação e novas lógicas de repasse que incorporaram a correção de injustiças e iniquidades sociais e regionais.  Mas, passado um ano da promulgação da EC 108, os gestores ainda não têm clareza sobre alguns dos mecanismos, e o CAQ segue distante de se materializar. 

Entre as conquistas do texto aprovado em 2020 estão o aumento da complementação de repasses financeiros da União de 10% para 23%, com recursos novos; a constitucionalização do CAQ como parâmetro para qualidade adequada da educação e como mecanismo de controle social; a incorporação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb) como política que avalia a qualidade educacional por meio de indicadores que ampliam a visão de qualidade para além das avaliações externas de larga escala; e a aprovação de sistema híbrido de distribuição de recursos. Esse sistema é mais equitativo, garante mais matrículas e qualidade para redes de ensino que têm menos recursos sem desestruturar nenhuma rede. Além disso, o texto proíbe o desvio dos recursos de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE) para o pagamento de aposentadorias e garante que 70% dos recursos sejam destinados para a valorização das profissionais da educação – e não apenas profissionais do magistério, como a lei anterior. 

“Considerando não apenas o contexto político mas o momento do país, acho que conseguimos aprovar um texto com muitos avanços”, avalia a deputada Professora Dorinha (DEM-TO), relatora do projeto de lei que culminou na EC 108 e também da lei de regulamentação. Ela lembra que o debate foi prejudicado pelo início da pandemia no país, já que o Fundeb anterior tinha prazo de vigência até dezembro de 2020. 

Após a promulgação da Emenda Constitucional, houve ainda a tramitação do Projeto de Lei (PL) de regulamentação do Fundeb, que também foi objeto de acirrada disputa. As propostas diferiam em pontos importantes, como os fatores de ponderação (que ajustam os repasses a depender das etapas e modalidades de ensino), e todo o processo de votação foi marcado por investidas privatistas – parcialmente contornadas-, que abriam margem para convênios com instituições privadas. Foi apenas no dia 17 de dezembro que a regulamentação foi finalmente aprovada, tornando-se lei oito dias depois (Lei 14.113/2020) e permitindo que o novo Fundeb pudesse entrar em vigor em 2021. 

“Mudamos o desenho do Fundeb, mais que dobrando a complementação da União. Conseguimos dar prioridade à educação infantil sem entrar no caminho de voucher. A regulamentação e implementação são processos lentos, envolvem estruturas muito pesadas e capilarizadas, tanto que inserimos um período de transição. Os sistemas ainda estão se organizando, temos elementos que requerem ainda ajustes em termos conceituais”, acrescenta a deputada Professora Dorinha. 

Confusões, problemas e morosidade 

O salto nos repasses vindos da União deve acontecer progressivamente, chegando a 23% apenas em 2026. A previsão é que em 2021 ele aumente de 10% para 12%, sendo que estes 2% significariam R$ 3.2 bilhões a mais (o balanço que confirma esses valores sai no ano que vem). Em 2021, sob vigência do novo Fundeb, o governo federal fez vários repasses errados a estados e municípios. Em janeiro, R$766 milhões foram repassados equivocadamente, com três estados recebendo mais do que deviam e seis recebendo a menos. Em maio, os erros foram em um repasse de R$836 milhões, que desconsideraram milhares de matrículas. Especialmente, a destinação de 70% dos recursos para pagamento de profissionais da educação vem trazendo confusão – e sem posição clara do governo federal

A confusão se dá porque a vinculação anterior, de 60%, destinava-se a “profissionais do magistério”. O novo Fundeb aumentou o escopo de profissionais elegíveis, mas ainda não há total clareza sobre quem está e quem não está incluído entre “profissionais da educação”, especialmente se essa definição deve ficar vinculada à formação. Dessa maneira, muitos gestores não estão aplicando os recursos devidos com medo de punições posteriores. Até o início de setembro, haviam mais de 1.500 pedidos de esclarecimento de prefeituras ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), como informou reportagem da Folha de S. Paulo. 

Para Alessio Costa Lima, Presidente da União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) Região Nordeste, ter segurança e precisão sobre quem pode ser pago e onde exatamente gastar cada recurso é o ponto de maior confusão para gestores sobre o novo Fundeb. Na avaliação de Alessio, a insegurança vem do fato de que muitas regras ainda não foram totalmente definidas, e isso em um modelo que traz novos mecanismos de repasse e de vinculações. Por exemplo, com o Valor Aluno Ano Total (VAAT), que pela lei deveria ter sido publicado até junho para que a complementação começasse em julho. 

Foi pelo VAAT que vieram os R$3.2 bilhões incorporados ao novo Fundeb em 2021, destinados a ao menos 1364 municípios de 25 estados da federação. E tem gerado confusão porque o artigo 28 da lei de regulamentação determina que ao menos 50% do valor repassado pelo VAAT deva ser aplicado na educação infantil. Mas é preciso que o INEP faça um cálculo do indicador para aplicação dos recursos da complementação VAAT na educação infantil. E a metodologia deste cálculo, que foi publicada e está em vigor,  ainda é provisória. “Até o momento, a forma apresentada pelo MEC do indicador da educação infantil  deixa a desejar”, opina Alessio, da Undime. “Ela leva em conta índices como nível socioeconômico, população e taxa de atendimento da educação infantil, mas para calcular taxa de atendimento são preciosos dados populacionais, o que não temos. Os cálculos foram feitos de forma linear, desconsiderando que nascem cada vez menos crianças, por exemplo. As fórmulas precisam ser mais discutidas e amadurecidas”, argumenta ele. 

Outro mecanismo de repasses de recursos da União também está sob disputa. O VAAR, que vai ser responsável por 2.5% dos 23% da complementação da União e pretende colaborar para diminuir desigualdades por meio da redistribuição dos recursos. É um grande avanço do novo Fundeb, como destaca o professor Eduardo Januário, da Faculdade de Educação da USP (FEUSP): “É a primeira vez na história que se incita o Estado a cumprir a promoção da equidade através de políticas educacionais”.

O VAAR ainda não está em vigor, mas seus critérios não são consenso. Aléssio Lima, da Undime, destaca que o contexto da pandemia deveria inclusive alterar os critérios do VAAR. “A destinação se dá com base no desempenho, mas não se pode usar o indicador baseado em 2020, como prevê a lei. Foi um ano atípico, com muitas desigualdades na oferta do ensino. Distribuir os recursos com base nisso reforçará ainda mais as desigualdades educacionais, privilegiando redes que já tinham maior infraestrutura. E também não está posta a forma de cálculo para mensurar o desempenho e a evolução das redes de ensino”, alerta. 

Fatores de ponderação

De acordo com a lei de regulamentação do novo Fundeb, os fatores de ponderação permaneceriam os mesmos em 2021, e até outubro deste ano a lei deve ser atualizada. A um mês do fim do prazo, não há indícios de que vai haver essa atualização, o que tornam incertos os fatores para 2022. Até o momento, o Congresso realizou audiências públicas sobre os fatores.  

Todas as pessoas que ouvimos para esta reportagem concordam que esse é um aspecto importante ainda sem definição e que pode influenciar diretamente na redução de desigualdades ao destinar mais recursos para categorias historicamente subfinanciadas, como a Educação de Jovens e Adultos (EJA) e Educação Escolar Indígena e Quilombola. Eduardo Januário, professor da FEUSP, enfatiza que as conversas sobre os fatores de ponderação já acontecem – e sem dúvidas prometem ser um ponto de disputa. “Percebo que a discussão étnico-racial já está na mesa, o que é um progresso, mas é preciso ter garantias, como o CAQ, para assegurar que hajam recursos para de fato promover uma educação antirracista. O mercado já não renega questões como as de gênero e de diversidade sexual, mas as vê sob uma ótica da meritocracia e não como um processo libertário, de políticas afirmativas”, destaca o professor. 

Ameaças ao financiamento educacional e PEC 13  

Os fatores de ponderação devem ter o CAQ como referência, mas o CAQ  – e sua fórmula de cálculo – ainda não estão nem perto de entrar em vigor. O Sistema Nacional de Educação (SNE), também ainda não saiu do papel. Para Nalu Farenzena, presidenta da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), avançar na implementação do CAQ e do SNE são talvez os maiores desafios da implementação do novo Fundeb, junto à derrubada da Emenda Constitucional 95 (EC 95, do Teto de Gastos), que vem, desde 2016, inviabilizando o aumento dos repasses reais para a Educação e, consequentemente, inviabilizando o cumprimento do Plano Nacional de Educação (PNE). 

A pesquisadora ressalta que, nos últimos anos, a complementação do governo federal na Educação se mantém ou cresce via Fundeb (um repasse obrigatório e protegido inclusive da EC 95) enquanto são reduzidos os recursos não obrigatórios para os programas de assistência financeira na área, como os financiados pelo FNDE – Apoio ao Transporte Escolar, o Programa de apoio à Alimentação Escolar (PNAE), Programa do LIVRO DIDÁTICO, etc. “Se essa trajetória continuar, os programas vão se reduzir ainda mais. Isso vai totalmente na contramão do CAQ como referência para assistência financeira da União na educação básica, onde o que acontece na prática é a queda da assistência, excetuando-se o Fundeb”, diz ela. Os números não mentem: entre 2014 e 2020 o governo federal tirou quase 40 bilhões do orçamento da educação, segundo acompanhamento de Nelson Amaral, da Universidade Federal de Goiás (UFG). 

E a situação pode ficar ainda pior caso a Câmara também aprove a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 13/2021, que anistia os gestores que não investiram o mínimo constitucional em Educação nos anos de 2020/21. O último episódio do podcast #FiqueDeOlho explicou que a proposta é um retrocesso, podendo alterar a Constituição de 1988 por conta de uma minoria de municípios que não cumpriram a regra durante a pandemia. “É um retrocesso não só pelo conteúdo, mas porque abre o precedente para matérias que, como essa, poderiam ser resolvidas em outro nível, banalizando as reformulações na Constituição e as próprias regras de financiamento da Educação”, aponta Nalu. O presidente da Undime Nordeste, Aléssio Lima, concorda e afirma que a PEC vai na contramão do espírito do novo Fundeb, debatido ao longo de anos junto à sociedade civil e movimentos e entidades do campo da Educação. 

Quem também é contrária à PEC 13 é a deputada Professora Dorinha, que tem expectativas de que a Câmara consiga reverter o retrocesso que teve o aval do Senado. “Não há argumento possível para perdoar gestores que não investiram os 25% na Educação. Mesmo considerando as escolas fechadas fisicamente, muitas precisavam de recursos para fazer suas readequações. Temos 49% das escolas que sequer têm saneamento básico, sem nem falar de biblioteca ou laboratório. Como dizer que não há onde gastar os 25% da educação se tem tanto pra ser feito?”. 

Em suma, um ano após sua promulgação, o novo Fundeb, um avanço incontestável para a garantia do direito à educação a todas e todos no país, segue precisando de grande mobilização social para garantir que de fato seja implementado.

OUÇA O PODCAST #FIQUEDEOLHO

A Iniciativa De Olho nos Planos, em parceria com a Oxfam Brasil, lançou o podcast #FiqueDeOlho, que debate como as movimentações legislativas impactam  as comunidades escolares e o que é possível fazer para participar e influenciar esses processos.

O episódio está disponível em diversas plataformas como a Anchor.FM e o Spotify.

Se você tem alguma sugestão de tema ou quer entender melhor algum debate legislativo que afeta a educação e sua comunidade escolar, escreva para nós!  Você pode entrar em contato em contatodeolho@acaoeducativa.org.br 

O #FiqueDeOlho conta com a edição e apresentação de Raquel Melo, locução de Cacau Melo, sonoplastia de Fábio ACM, roteiro e produção de Claudia Bandeira e Nana Soares.

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ENTIDADES DENUNCIAM “CALOTE À EDUCAÇÃO PREMIADO” EM PROPOSTA DO SENADO

Ação Educativas assina manifestação com organizações contra a PEC 13/2021 que desresponsabiliza o Estado de repassar valores para manutenção e desenvolvimento da educação

Entidades ligadas ao direito à educação denunciam em manifestação que, se aprovada, a PEC 13/2021, que tramita no Senado Federal, vai liberar um “calote à educação premiado”. A PEC 13/2021 anistia entes federativos e agentes públicos pelo descumprimento da MDE (Manutenção e Desenvolvimento da Educação) no exercício financeiro de 2020 e 2021.

A manifestação chamada “Depois da destruição da Amazônia, agora querem acabar com a Educação – A PEC 13/2021 do Senado e o calote à educação premiado” é assinada pelas seguintes entidades e movimentos:

  • Ação Educativa
  • Anfope – Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação
  • Anpae – Associação Nacional de Política e Administração da Educação
  • Anped – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
  • Campanha Nacional pelo Direito à Educação
  • Cedes – Centro de Estudos Educação e Sociedade
  • CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação
  • Fineduca – Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação
  • Mieib – Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil
  • MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

? LEIA A MANIFESTAÇÃO AQUI: https://campanha.org.br/acervo/manifestacao-depois-da-destruicao-da-amazonia-agora-querem-acabar-com-a-educacao-a-pec-132021-do-senado-e-o-calote-a-educacao-premiado/

A PEC também prevê anistia para o descumprimento da obrigação de investir no mínimo 70% dos recursos do Fundeb com pagamento dos profissionais da educação básica, em 2020 e 2021; prevê a obrigação de compensar na educação os valores faltantes até 2024 e unifica os pisos da saúde (15%) e educação (25%) durante os anos de 2020 e 2021, de modo que, nesses anos, os entes subnacionais somente se sujeitam à meta unificada de 40% na saúde em conjunto com a educação. Ou seja, se houver redirecionamento de recursos da educação para saúde nesses anos, não haveria necessidade de compensar o prejuízo sofrido pela educação posteriormente.

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“A alegação é a queda de receita de muitos entes e a redução de muitos gastos em função do atendimento remoto. Ora, como já se disse, se a receita cai (o denominador da fórmula), a tendência é o índice de vinculação subir. Quanto à citada queda na despesa, soa quase como cinismo em um contexto em que a educação demanda mais esforços e recursos. Educação é basicamente pessoal (de 85% a 90% do gasto total), portanto, se houve economia nessa área foi porque professores (muitos deles temporários) não tiveram seus contratos renovados e servidores (muitos deles terceirizados) foram dispensados. Ou seja, se houve economia, foi à custa da qualidade da educação, com o acirramento dos efeitos econômicos nefastos da pandemia, pois foram trabalhadores da educação que deixaram de receber sua remuneração”, dizem as entidades no texto.

Tabela presente na manifestação mostra que, em 2020, dos 5.120 municípios que entregaram suas declarações ao Sistema de Informações sobre Orçamento Públicos em Educação (Siope), 4.803 municípios, 94% do total, cumpriram a Constituição Federal no que se refere à vinculação mínima de impostos em educação.