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As ameaças ao orçamento da Educação em 2025

Contenção de gastos no orçamento 2025 pode afetar de maneira mais profunda as políticas sociais   

Agência Brasil/EBC

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira 

Ainda não se sabe ao certo como será o Orçamento de 2025 – a votação e aprovação estão atrasadas -, mas é possível dizer que ele não será generoso com as áreas sociais, como saúde, educação e assistência social. Nos últimos meses, o governo federal, especialmente via ministérios da Fazenda e do Planejamento, tem sinalizado cortes, contingenciamentos e outras medidas que podem significar menos recursos para esses setores. E no próximo ano deve ser aprovado o novo Plano Nacional de Educação (PNE), com validade de 10 anos, e que, ao contrário do que vem sinalizando a agenda econômica, prevê um aumento gradual do investimento em Educação.

“Os contigenciamentos que acontecem ao longo do ano atrapalham o cumprimento das metas educacionais, isso quando não há bloqueio de recursos. São componentes que atrapalham muito a gestão e o direito à educação, uma vez que se perde qualquer possibilidade de planejamento”, explica Nelson Amaral, professor da UFG e atual presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca). 

Além disso, um montante significativo do orçamento é hoje distribuído via emendas parlamentares – mecanismo com muito menos controle social e transparência. “O Legislativo atualmente é responsável pela execução de parte do Orçamento, e há uma certa chantagem do Congresso”, alerta Cleo Manhas, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), organização que monitora o orçamento público sob a lente dos direitos humanos. 

Todos os anos, o orçamento do país é definido pela Lei Orçamentária Anual (LOA), cujo projeto é enviado pelo Executivo ao Congresso até dia 31 de agosto. Neste ano, o governo ainda não enviou o projeto referente a 2025 porque o passo anterior está atrasado. Para elaborar a LOA, é preciso que a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) já tenha sido votada – o que ainda não aconteceu. A LDO dá as diretrizes para o governo construir a LOA, sinalizando quais serão as prioridades orçamentárias. Ela deve ser aprovada pelo Congresso até julho, mas neste ano a Casa Legislativa entrou em recesso sem votá-la. Por isso ainda não é possível saber com certeza como estará distribuído o Orçamento para 2025. Ele segue em disputa, tendo as áreas sociais como alvos prioritários. 

Teto de Gastos, Arcabouço Fiscal: como o governo pode usar o dinheiro que arrecada

Atualmente é o arcabouço fiscal, aprovado em 2023, que diz quais são as regras de gastos do dinheiro público. Ele substituiu a Emenda Constitucional 95 (o Teto de Gastos), promulgada em 2016, e que congelou os gastos públicos. Segundo a EC 95, os gastos em áreas como saúde e educação só podiam subir de acordo com a inflação, não havendo nenhum aumento real no investimento. O governo Bolsonaro descumpriu muitas vezes o Teto de Gastos, mas nunca para investir nas áreas sociais. Essa política de austeridade, sem investimentos reais em Educação, afetou fortemente o planejamento educacional e praticamente inviabilizou o cumprimento do atual Plano Nacional de Educação

O arcabouço fiscal em vigor prevê que as despesas podem aumentar além da inflação, mas que o aumento não pode ultrapassar um certo patamar e deve ser compatível com o aumento da arrecadação. Ou seja, depende bastante da receita e, apesar de mais flexível, ainda impõe um limite. O arcabouço deve cumprir todas as obrigações constitucionais (como os pisos para Educação e Saúde), não se sobrepondo a elas. 

Quase tudo – cerca de 90% – que o governo arrecada já tem destino certo. No caso da Educação, há o Fundeb e o piso constitucional, previsto também para outras áreas. Por conta disso, desde a década de 90 existe um mecanismo que autoriza que parte (20%) dessa receita comprometida seja desvinculada. Ou seja, que possa ser gasta em qualquer área. O mecanismo hoje se chama Desvinculação de Receitas da União (DRU). Criado para ser provisório, acabou sendo prorrogado diversas vezes e está em vigor até dia 31 de dezembro de 2024. No quebra-cabeça do orçamento para 2025, cogita-se prorrogar a DRU para aumentar a receita sem destino pré-determinado. 

Essa manobra é interessante para o governo principalmente porque hoje mais da metade dos recursos discricionários – os não obrigatórios, não “carimbados” – é distribuída pelo Congresso através das emendas parlamentares. Por isso, diz-se que há uma “disputa entre Poderes” quando o assunto é orçamento, com o Executivo tendo que dividir o espaço com o Legislativo. Um ponto importante sobre as emendas parlamentares é que são um mecanismo com menos transparência e controle social do que o recurso via leis e programas já estabelecidos, que passam, por exemplo, por análise de Tribunais de Contas. 

“O que acontece hoje no Brasil é uma situação muito complexa e paradoxal de briga entre poderes pelo controle do orçamento. A pequena parte discricionária, onde estão os investimentos em novos programas e que o governo pode decidir onde alocar, está migrando para as mãos do Congresso, que hoje controla quase 60% desse tipo de recurso. Como a maior parte dos recursos não tem essa flexibilidade, isso significa que o governo tem que disputar a discriccionaridade com o Congresso. E hoje ele está de certa forma rendido nessa disputa, pois há cada vez mais emendas impositivas”, resume a Ursula Peres, pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e professora do curso de Gestão de Políticas Públicas na EACH/USP. “E, para abrir espaço no Orçamento, o governo tem caminhado mais para reduzir as despesas obrigatórias do que para brigar com o parlamento pelos recursos de investimentos, que são transformados em emenda e muitas vezes sem qualquer controle sobre sua execução”, diz Cleo Manhas, do Inesc. 

Financiamento da Educação: principais mecanismos 

A Educação pública tem várias fontes de financiamento. Na educação básica, a principal é o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). O Fundeb é um repasse obrigatório em todas as esferas (União, estados e municípios) e subsidia cerca de 40 milhões de matrículas, com mecanismos concebidos para enfrentar as desigualdades educacionais. Em 2020, ele foi alterado e constitucionalizado, tornando-se permanente. Nessa alteração, mais que dobrou a contribuição da União ao Fundeb. Ou seja, o governo federal é quem mais entra com recursos, repassando-os a estados e municípios – e esse aporte vai aumentar até pelo menos 2026. Além de ser um repasse obrigatório, o Fundeb ficou de fora do novo arcabouço fiscal, o que implica que as regras que limitam os gastos do governo não se aplicam a ele. 

Outro compromisso da União é investir em educação ao menos 18% de tudo que é arrecadado com impostos – é o piso constitucional. Aprovado na Constituição Federal de 1988, é um compromisso orçamentário obrigatório (também há um piso para a Saúde de 15%, mas com origem diferente dos recursos). O piso também ficou limitado ao reajuste da inflação enquanto o Teto de Gastos esteve em vigor (2016-23).

Além dos gastos obrigatórios, há os chamados recursos discricionários, que são os não obrigatórios – e por isso, em geral são os mais ameaçados quando se fala em corte de gastos e controle de orçamento. Na educação, estão entre os gastos discricionários: transporte e alimentação escolar, livros didáticos, Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), os repasses a universidades federais e recursos de assistência estudantil. 

O atual Plano Nacional de Educação determina que o total investido em Educação corresponda a 10% do PIB brasileiro – meta que nunca foi cumprida, sendo o patamar atual de cerca de 5.5%. O projeto do novo PNE enviado pelo Executivo ao Congresso reproduz essa meta para o próximo decênio. 

Quais as ameaças ao financiamento da Educação 

Muitas leis e programas já asseguram e regulamentam os mecanismos de financiamento da Educação, mas têm sido descumpridos ao longo dos anos sem grandes consequências. Ou impactados por políticas de austeridade fiscal, como o Teto de Gastos, que fez com que a Educação deixasse de receber mais de R$7 bilhões. “O financiamento da educação caiu consideravelmente durante a vigência do Teto de Gastos e no governo Bolsonaro, mas não foi só aí, não podemos nivelar por baixo. Se olharmos o PNE percebemos que ao longo dos 10 anos houve retrocesso. Teve Teto, Bolsonaro e pandemia, mas mesmo em governos democráticos não estamos aplicando o que deveríamos”, reforça Cleo Manhas, do INESC, ressaltando o subfinanciamento histórico da Educação pública brasileira. 

As regras fiscais – como o Teto de Gastos e o Arcabouço Fiscal em vigor – estabelecem limites para os gastos sociais, mas não fazem o mesmo para todos os outros gastos do governo. Fica de fora, por exemplo, o pagamento de juros da dívida pública. “Por que falamos de austeridade fiscal o tempo todo? Em DRU, em acabar com vinculações constitucionais? Porque o tempo todo se sinaliza e se dá satisfações ao ‘mercado’ para garantir que vai haver pagamento dos juros. As políticas de austeridade não mexem na dívida pública, no mercado financeiro”, ressalta Nelson Amaral, presidente da Fineduca. “Austeridade é uma palavra difícil pra dizer que estamos cortando dinheiro das políticas que te alcançam”, resume ele. 

Cleo Manhas, do INESC, reforça essa crítica, ressaltando que, quando o assunto é Orçamento, o governo federal é pressionado de todos os lados. “Por que a crítica é sempre do governo ‘gastar muito’ e sobre a necessidade de uma regra fiscal rígida para conter os gastos? É porque estão falando de gastos sociais. Um dos nossos maiores desafios é mostrar que essa narrativa é uma falácia e que na verdade o governo gasta muito menos do que deveria gastar com sua população, especialmente a mais empobrecida e vulnerabilizada”, diz. 

Com o orçamento tão “pressionado” para os gastos sociais, a tendência é que as despesas discricionárias – não obrigatórias – sejam as mais afetadas. Na avaliação de Ursula Peres, da EACH/USP, o Ensino Superior, especialmente universidades federais, pode estar particularmente vulnerável. “A educação básica tem uma certa proteção por causa do Fundeb, que é obrigatório. Além disso, a maior parte dos recursos de emendas parlamentares tendem a ir para municípios, responsáveis também pela educação básica. São as verbas discricionárias que permitem a compra de equipamentos, a manutenção de laboratórios, condições de infraestrutura nas universidades. Nada disso é obrigatório, no Ensino Superior só são gastos obrigatórios os salários e a manutenção básica” explica. Ou seja, a expansão do ensino superior público fica ainda mais difícil, e há uma tendência a uma precarização dessas instituições – o que afeta majoritariamente as populações já marginalizadas. 

No entanto, até mesmo os repasses obrigatórios para a Educação podem estar ameaçados. Em 2024, falou-se publicamente sobre a possibilidade de alterar as regras do piso constitucional para Saúde e Educação, limitando-os a 2,5% de crescimento acima da inflação.

Isso porque esse é um investimento que está fora do arcabouço fiscal e sob uma regra diferente, podendo crescer mais do que as outras despesas incluídas no arcabouço. Por isso o desejo do governo de limitá-lo, sob argumento de não pressionar ainda mais os gastos em outras áreas e/ou gastos não obrigatório.

A Iniciativa De Olho nos Planos alertou para esse descompasso – e sua potencial ameaça ao financiamento em saúde e educação – ainda em 2023. O advogado e professor da UFABC, Salomão Ximenes, apontou à época que o Novo Arcabouço Fiscal, se aprovado, poderia, como lei complementar, obrigar uma mudança na Constituição com consequências para os pisos constitucionais. O que se mostrou verdadeiro, já que o Ministro da Fazenda e ex-Ministro da Educação, Fernando Haddad, cogitou alterá-los. Segundo o que circulou na imprensa em junho, a ideia só não avançou porque o presidente Lula se opôs. Mas como a LOA ainda não foi aprovada, não é possível saber se o risco foi totalmente descartado. 

Expectativas para o orçamento e financiamento da Educação em 2025

Nem Cleo Manhas, Nelson Amaral ou Ursula Peres acreditam que os pisos constitucionais serão alterados para o próximo ano, mas concordam que as leis orçamentárias e a política econômica de forma mais ampla devem cercear ou limitar ainda mais alguns gastos em Educação. A professora da EACH/USP, Ursula Peres, destaca uma possível nova prorrogação da Desvinculação de Receitas da União (DRU) e acredita que o governo deve propor um orçamento “no limite do limite”. O presidente da Fineduca, Nelson Amaral, vê com preocupação que a defesa do piso constitucional tenha sido feita pelo próprio Presidente da República e não pelo ex-ministro da Educação, Fernando Haddad. “Acredito que para 2025 o governo deve fazer de tudo para aumentar a receita, mas acho que melhorias só se muito pontuais, não vejo nenhuma grande sinalização em relação à educação e saúde, ao cumprimento do PNE, até porque o arcabouço fiscal não permite”, avalia, enfatizando que a situação das universidades federais deve continuar limítrofe e exigindo mobilização de docentes, entidades estudantis e movimentos sociais. 

Já Cleo Manhas, assessora política do INESC, alerta para movimentos que reduzam as fontes de financiamento para as áreas sociais. Por exemplo, alterações nas cestas de impostos. “Outra possibilidade é alterar o conceito de “receitas correntes líquidas”, que é de onde sai o dinheiro mínimo da saúde. O risco está aí o tempo todo, e educação, saúde, previdência e assistência social são as áreas em maior risco”, diz. 

Para Ursula Peres, a educação pode ser alvo prioritário por receber maior de repasse da União se comparada, por exemplo, à saúde, ainda que os recursos para a educação sejam insuficientes para avançarmos na garantia de uma educação de qualidade e para a implementação das metas e estratégias do PNE. “Não é que a educação tenha financiamento suficiente, mas vem recebendo mais recursos da União, especialmente desde a aprovação do Novo Fundeb”, explica ela. “Mas reduzir os recursos em educação afeta direitos básicos e universais. E considerando, por exemplo, os mecanismos do Fundeb para aportar mais dinheiro para escolas que mais precisam, mexer nesses recursos é colocar em risco toda uma agenda de redução de desigualdades”. A pesquisadora do Centro de Estudos da Métrópole, Ursula Peres, destaca a importância de uma reforma tributária que assegure mais receitas para o governo como possibilidade de conter esses cortes – mas que ainda é incerta. 

Como o novo PNE e o planejamento educacional podem ser afetados

Para quem olha de perto a política econômica atrelada ao direito à educação, um aspecto é consenso: sob a vigência do arcabouço fiscal, vai ser muito difícil aumentar os recursos para Educação segundo o que determina o PNE. “A meta de 10% não pode ser só figurativa, até porque há cálculos que a justificam e que mostram como precisamos desses recursos”, reforça Cleo Manhas, do Inesc. Ela se refere à Nota Técnica da Fineduca divulgada em dezembro de 2023, em que a entidade defende a manutenção dos 10% do PIB no novo PNE, mas sugere metas intermediárias diferentes das propostas pelo governo para facilitar seu cumprimento. O presidente da Fineduca, Nelson Amaral, é categórico ao dizer que a inclusão dessa meta por parte do governo foi positiva, mas que a análise do contexto traz dúvidas se ela realmente vai ser cumprida. “Tudo traz a questão: ela foi colocada para valer ou para satisfazer a base do governo?”. 

Ursula Peres, da EACH/USP, enfatiza ainda o papel crucial de coordenação entre as esferas de poder para fazer valer o PNE e todas as políticas educacionais. Tema que ressalta a urgência do Sistema Nacional de Educação, que ainda não foi regulamentado. “O PNE depende das três esferas colocando e organizando recursos. Para um direito de fato ser garantido, não basta estar na Constituição, tem que estar no orçamento, e das três esferas. O direito à educação depende de uma ação coordenada e ajustada de União, estados e municípios remando para o mesmo lado”. 

Mas em um contexto de cerceamento progressivo aos gastos sociais, a assessora política do INESC, Cleo Manhas, lembra da importância do campo progressista manter e sustentar um posicionamento crítico com relação aos cortes para as políticas sociais. “Sempre temos o ‘medo’ de fortalecer a extrema direita, mas o que de fato a fortalece é não falar. Eles nunca vão cobrar mais gastos sociais. Nós precisamos disputar essa narrativa e lembrar que a política econômica não é um fim em si mesmo, ela é um meio. O que de fato é um fim é saúde e educação pública e de qualidade para todas e todos”.

Projeto do novo PNE se afasta de deliberações da CONAE e não menciona gênero e população LGBTQIA+

Texto apresentado pelo Governo tem metas mais generalistas, dificultando o monitoramento e controle social das políticas educacionais

Foto: Agência Brasil-EBC

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

No dia 26 de junho de 2024, um dia após a lei 13.005/2014, do Plano Nacional de Educação (PNE), completar 10 anos, o governo federal enviou o projeto do novo Plano ao Congresso Nacional. O PL 2.614/2024 mantém alguns pontos do atual PNE, mas ainda está distante do que foi deliberado na Conferência Nacional de Educação (CONAE), não contemplando várias de suas agendas. 

O novo projeto, que ainda não iniciou sua tramitação, traz 18 metas para o próximo decênio (o atual PNE tem 20). Em linhas gerais, os temas tratados não mudam muito (estão contempladas todas as etapas da educação básica e superior, qualidade da educação, valorização das profissionais, gestão democrática e redução de diversas desigualdades). Mas vários objetivos são colocados de forma mais generalista, com métricas menos específicas ou metas intermediárias menos ambiciosas e mais tardias. Alguns dos objetivos não alcançados do atual PNE permanecem. 

“O novo PNE para 2024-2034 apresenta avanços, principalmente na transversalidade da igualdade e equidade nas metas, e mantém o patamar de investimentos de 10% do PIB. No entanto, carece de ousadia em diversas áreas”, resume Andressa Pellanda, coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, entidade que divulgou nota técnica comentando retrocessos, avanços e lacunas deste projeto. Andressa considera que não há uma articulação clara entre a política educacional e planos de desenvolvimento econômico e social, que alguns grupos marginalizados não são mencionados ou que as metas sobre eles não estão suficientemente detalhadas, e a falta de uma política robusta de educação para justiça climática e proteção socioambiental. Para Andressa, o novo PNE precisa de “metas mais ousadas, percentuais mais ambiciosos e prazos mais curtos para recuperar os anos de descumprimento do PNE atual e para realmente transformar a educação no Brasil”. 

O balanço mais recente da Campanha sobre o andamento do atual PNE mostrou que o cenário de descumprimento é generalizado. Dez anos depois de entrar em vigor, quase 90% das metas e dispositivos não foram cumpridos (e três metas estão em retrocesso), as desigualdades sociais, étnico-raciais e regionais persistem, bem como a falta de dados, especialmente sobre as populações indígenas e quilombolas. Em alguns casos, como no analfabetismo funcional (Meta 9 do atual PNE) e acesso ao ensino fundamental (Meta 2), a situação é ainda pior do que em 2014. Por exemplo, hoje a porcentagem de jovens de 6 a 14 anos que frequenta ou já concluiu o ensino fundamental é de 95.7%, contra 97.2% em 2014.  São mais de um milhão de crianças fora dessa etapa. 

Fonte: ANÁLISE FINAL DA EXECUÇÃO DAS METAS DA LEI 13.005/2014

Esses dados mostram o tamanho dos desafios educacionais que o país tem pela frente e que, na avaliação de Andressa, podem não ser suficientemente enfrentados com este novo PNE, caso o projeto não sofra alterações. A coordenadora da Campanha o classificou como tendo “uma abordagem conservadora”, aquém do necessário para garantir que a educação brasileira avance de forma significativa e inclusiva. 

Educação de Jovens e Adultos: texto mais abrangente, mas menos preciso

Um exemplo do que narra Andressa pode ser o que propõe o PL 2.614/2024 para a Educação de Jovens e Adultos (EJA). O novo projeto traz várias novidades em relação ao atual PNE – por exemplo, abarca idosos na população alvo e levanta a possibilidade de apoiar financeiramente as e os estudantes desta modalidade para que possam concluir seus estudos. Como relembra Franciele Busico, diretora do Cieja Perus e integrante do Fórum Estadual EJA de São Paulo, “a inclusão dos idosos – na verdade, de qualquer pessoa acima dos 15 anos de idade -, é um direito constitucional. Entre os idosos, frequentemente são pessoas que trabalham desde criança e para quem a escola era inacessível, então é muito importante considerar esse público e garantir o direito à educação em qualquer idade”. 

Mas, em contrapartida, o novo projeto para o PNE traz muito menos métricas e prazos que estimulem e favoreçam o monitoramento e avaliação do cumprimento das metas. Como destaca Andressa Pellanda, da Campanha, uma das lições do PNE 2014-2024 foi justamente a importância de incluir metas intermediárias e especificar métricas de avaliação, para garantir que o progresso possa ser medido e ajustado conforme necessário. 

As diferenças nesse aspecto são nítidas. No texto aprovado em 2014, as metas 9 e 10 objetivam:


Já a meta 10 do projeto enviado ao Congresso Nacional em 26 de junho é assim apresentada: 

Para o coordenador da Unidade de Educação de Jovens e Adultos da Ação Educativa, Roberto Catelli, se o projeto for aprovado sem o detalhamento necessário há o risco real de que o novo PNE seja ainda mais descumprido em relação à EJA – uma das modalidades mais abandonadas na última década, completamente escanteada e subfinanciada. “A maneira com que as metas estão colocadas no texto não obriga o governo a cumprir nada, tornando assim a proposta muito mais uma carta de princípios do que de fato um plano para os próximos 10 anos”, diz. “São bons princípios, mas sem meta. Aumentar uma ou um milhão de matrículas tanto faz”. E alerta: “Metas [bem estabelecidas] não garantem o cumprimento, mas sim um controle social, permitem o monitoramento e a denúncia. Se não há obrigação, o Estado pode defender os princípios mas não fazer efetivamente nada. Corremos o risco de ter um PNE com boas ideias e nenhuma política de implementação”. 

Ausências de gênero e população LGBTQIA+

Indicadores, métricas e prazos para monitoramento e controle social não são a única ausência sentida no texto enviado ao Congresso para o próximo Plano Nacional de Educação. O projeto de lei do governo para o novo PNE não menciona em nenhum momento os termos “gênero”, “orientação sexual” ou a população LGBTQIA+. Teoricamente, essas populações e agendas estariam contempladas nas diversidades, igualdade, equidade e combate a discriminações. Vale lembrar que uma das marcas da tramitação do atual PNE, em 2013, foi justamente a ofensiva ultraconservadora contra o “gênero”, termo que acabou sendo retirado do texto final – o que fomentou uma cultura de censura e perseguição a essa agenda nas escolas. Desta vez, os termos sequer constaram no texto inicial, que também não contemplou populações em situação de migração e refúgio, e fala de justiça climática em termos muito amplos. 

Em relação a metas e estratégias que abarquem a superação de desigualdades étnico-raciais – como a educação indígena e a quilombola -, também são criticadas as ausências de métricas e indicadores mais precisos e ousados. “Não adianta falar em termos genéricos se não houver construção para que essa política realmente exista. Isso significa ter indicadores para poder ter orçamento para cumpri-los. Nada acontece sem isso, sem estabelecer os parâmetros que darão acesso ao recurso”, enfatiza Ana Paula Brandão, diretora programática da ActionAid Brasil e coordenadora do Projeto SETA. Ela destaca a importância das métricas e indicadores, mas também que eles sejam relevantes para cada meta. Por exemplo, educação indígena e educação quilombola precisam ser trabalhadas junto a questões territoriais e respeitar as especificidades de cada espaço. Também precisam de mais dados sobre essas populações, o que hoje é uma grande lacuna. “Pelo IBGE, agora sabemos o número absoluto de indígenas e quilombolas, mas seguimos sem dados na educação, inclusive com recorte de gênero. É muito difícil, por exemplo, ter dados que acompanhem toda a trajetória escolar de uma menina negra, menos ainda de indígenas e quilombolas”, reforça Ana Paula. “As ações precisam ser direcionadas, explícitas. Se não, vai depender muito mais da boa vontade de gestores”, complementa. 

A diretora da ActionAid chama o cenário de “vergonhoso” considerando que já são muitos os documentos, legislações e mecanismos no Brasil que reconhecem tais desigualdades e tentam corrigi-las – como as leis 10.639/2003 e a 11.645/2008 -, mas que seguem sendo pouco executados. “[A lacuna nessas agendas] é uma loucura, considerando que já temos marco regulatório consolidado, além de informação suficiente – produzida inclusive pelo Estado – que justifique sua inclusão não apenas de forma transversal, mas central. Isto é, que não apenas constem, mas guiem todo o Plano Nacional de Educação”.

Financiamento, gestão democrática e qualidade 

Em relação ao financiamento, o projeto para o novo PNE conserva a meta de financiamento de 10% do PIB para a educação – reivindicação da sociedade civil e que esteve longe de ser alcançada no decênio 2014-2024. O não cumprimento dessa meta, estreitamente relacionado às políticas de austeridade do período, teve efeito cascata em todo o Plano, impossibilitando seu pleno cumprimento. Para Andressa Pellanda, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a manutenção da meta é uma melhoria “na medida em que reitera um compromisso já estabelecido e reconhece a importância de altos investimentos na educação”. No entanto, a Coordenadora Geral da Campanha alerta para o retrocesso na meta intermediária de financiamento, que ficou para o 6º ano de vigência (frente ao 5º ano do Plano anterior), e o estabelecimento de 7% do PIB até o sexto ano, em comparação com os 10% previstos anteriormente pela Lei nº 13.005/2014. 

“O principal aprendizado do PNE 2014-2024 é a necessidade de uma implementação rigorosa e de um acompanhamento contínuo e estruturado das metas e estratégias, em articulação com uma política econômica a serviço dos direitos sociais. O descumprimento avassalador das metas anteriores destaca a importância de estabelecer mecanismos claros de monitoramento e avaliação”, destaca Andressa. 

E no que diz respeito à avaliação educacional, há uma outra importante lacuna no projeto de lei apresentado pelo Governo: o desempenho de estudantes medido por avaliações externas em larga escala é basicamente o único fator utilizado para balizar a qualidade da Educação e das metas. Não são mencionados, por exemplo, mecanismos como a avaliação institucional e a autoavaliação institucional participativa, o que enfraquece o aspecto de gestão democrática do texto. 

“Durante a CONAE aprovamos a autoavaliação participativa da escola como fundamental para o fortalecimento da gestão democrática em educação e também como parte do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica, que tem como objetivo ampliar o conceito de qualidade para além das avaliações externas em larga escala. Isso significa que quando falamos de qualidade outros aspectos precisam ser considerados, inclusive para contextualizar os resultados de avaliações como o Ideb. Esses aspectos se relacionam à infraestrutura das escolas; acesso, permanência e conclusão dos estudos; gestão escolar democrática; valorização das profissionais da educação; igualdade de gênero e raça na educação; entre outros”, destaca Claudia Bandeira, coordenadora da Iniciativa De Olho Nos Planos. 

O Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SINAEB), criado pela sociedade civil, avalia a equidade e a eficiência da educação básica, prevendo processos participativos de avaliação junto às comunidades escolares para que as realidades e demandas das escolas sejam consideradas nos processos avaliativos e nas políticas educacionais. O projeto do novo PNE não faz menção ao SINAEB e apresenta uma visão restrita de qualidade tendo como principal referência as avaliações externas em larga escala, como o Ideb, o que pode acirrar ainda mais as desigualdades educacionais no país.

Ainda sobre gestão democrática, falta no texto apresentado pelo MEC detalhamento sobre a sua regulamentação e elementos que assegurem a continuidade e a estabilidade das políticas para além dos ciclos governamentais.   

Distância da CONAE

Agendas cruciais para a garantia do direito à educação de qualidade e para a redução das desigualdades educacionais no Brasil estão ausentes no texto que pode vir a ser o novo Plano Nacional de Educação, apesar de terem sido amplamente debatidas na Conferência Nacional de Educação (CONAE) realizada em janeiro, e constarem em seu texto final. 

Esse texto – posteriormente validado pelo Fórum Nacional de Educação e entregue ao MEC – é o que, segundo o regulamento da CONAE, deveria ser base do projeto de lei do PNE, uma vez que é fruto de debate entre diferentes setores da sociedade. Em 2024, o texto teve inclusive caráter vinculante, isto é: o governo não poderia apresentar ao Congresso um texto que contrarie as diretrizes construídas na CONAE. Por isso foi tão importante assegurar agendas de equidade na Conferência. Para representantes ouvidas/os nesta reportagem, o projeto proposto pelo governo não chega a contrariar a CONAE, mas se distancia do que foi nela debatido ao retirar vários pontos do texto final. 

Andressa Pellanda, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, ressalta que a falta de uma política robusta de educação para justiça climática e proteção socioambiental, que foram agendas amplamente debatidas e demandadas na CONAE 2024, demonstra uma abordagem “tímida” do governo em relação a desafios emergentes. Já Roberto Catelli, da Ação Educativa, avalia que o texto enviado ao Congresso é uma peça reduzida e reorganizada das discussões da CONAE. Gestora da EJA, Francielle Busico reforça ainda vários retrocessos ou lacunas destacados pela nota técnica da Campanha em relação à Educação de Jovens e Adultos: “a discussão da CONAE foi bem mais profunda do que o que aparece no texto, mais voltada a uma política de reparação de direitos, e não de caráter generalista”. Ela sente falta de maior ênfase na oferta presencial da EJA, da abordagem de temáticas transversais em Direitos Humanos, maior detalhamento sobre EJA nas prisões e da menção às salas de acolhimento para filhos e filhas de estudantes da modalidade. 

“O PNE não dialogou tanto com os resultados da CONAE, então quando há lacunas tão importantes [no texto], todo o esforço feito na Conferência fica, de certa forma, em segundo plano”, resume Ana Paula Brandão, do Projeto SETA. 

Expectativas para a tramitação

O processo de tramitação que culminou na lei 13.005/2014 deixa a expectativa de que o projeto de lei do novo PNE também deve ser alterado nas casas do Congresso. Se as mudanças serão para corrigir suas lacunas e retrocessos ou para reafirmá-los, vai depender do jogo político, por sua vez muito influenciado pela pressão social em torno da matéria. O Ministério da Educação sinalizou o desejo de aprovar a nova lei ainda em 2024, para que possa entrar em vigor em 2025, mas as eleições municipais de outubro podem alterar substantivamente a agenda e o próprio ritmo de votações do Congresso. 

Roberto Catelli, da Ação Educativa, não é otimista em relação à adição de metas e indicadores mais precisos, uma vez que a Comissão de Educação da Câmara é presidida pelo deputado conservador Nikolas Ferreira. Já a leitura de Ana Paula Brandão, coordenadora do Projeto SETA, é que a ausência da agenda de gênero no documento do novo PNE deva minimizar as tensões durante sua tramitação – mas que pode ser revertida, inclusive de maneiras “criativas”, como com o reforço das interseccionalidades ao longo do texto. 

Por sua vez, Andressa Pellanda, Coordenadora Geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, organização que trabalha fortemente na incidência em políticas públicas, têm expectativas de que o novo PNE passe por melhorias significativas durante a tramitação, especialmente nas áreas de articulação intersetorial e econômica, inclusão de políticas para grupos marginalizados e incorporação de metas mais ousadas e específicas. “As expectativas de aprimoramento estão centradas na necessidade de uma avaliação institucional e estrutural das políticas educacionais e na inclusão de estratégias detalhadas, além de uma maior ênfase na educação para a justiça climática”, destaca. 

Prorrogar a vigência do Plano Nacional de Educação pode enfraquecer suas metas e estratégias

Proposta aprovada pelo Senado prorroga a vigência da lei 13.005/2014 até dezembro de 2025, o que pode abrir perigoso precedente de descumprimento e ter efeito cascata em estados e municípios. 

Foto: CONAE 2024

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira 

O atual Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado pela lei 13.005, de 2014, completa 10 anos de vigência com cerca de 90% de descumprimento de seus dispositivos, 13% em retrocesso e 30% com lacuna de dados segundo o último balanço da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação. Sob a justificativa de não haver vácuo até a aprovação do novo plano, ele pode ter sua vigência prorrogada, o que abriria um sério precedente de descumprimento de políticas públicas e pode enfraquecer suas metas e estratégias. Outra preocupação se refere aos prejuízos com relação à articulação federativa, já que estados e municípios devem elaborar seus planos seguindo as diretrizes nacionais.  

O projeto de lei 5.665/2023 de autoria da senadora Professora Dorinha Seabra (União/TO), foi votado e aprovado em maio pelo Senado e enviado à Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, presidida pelo bolsonarista Nikolas Ferreira (PL-MG). Originalmente, o projeto de lei previa a prorrogação da vigência do atual PNE até 2028, mas o texto acabou mudando após negociação política, incorporando emenda do senador Cid Gomes (PSB-CE) que limita a extensão até dezembro de 2025. A argumentação da autora do PL é que a prorrogação do PNE permite manter o foco na direção anteriormente traçada até que o novo plano – cuja tramitação está atrasada – entre em vigor. Outro argumento corrente é que o novo texto precisa ser discutido com calma, sem estar pressionado pelo fim da vigência da atual lei. 

Heleno Araújo, da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e presidente do Fórum Nacional de Educação (FNE), critica a falta de diálogo com a sociedade na tramitação deste PL, dizendo que não houve estímulo nem de Dorinha e nem do relator (senador Espiridião Amin, do Progressistas-SC) de convocar debates sobre a matéria. “Oficializamos nosso posicionamento contrário e aproveitamos uma sessão sobre Ensino Médio para entregar essa posição por escrito para ela”, diz.  

Segundo a Agência Senado, o Poder Executivo comprometeu-se, por meio do Ministério da Educação (MEC), a trabalhar pela rápida análise da matéria na Câmara. O MEC foi perguntado pela Ação Educativa sobre esse projeto e como se posiciona frente à prorrogação, mas não respondeu até o fechamento da matéria.

Em que passo está o novo PNE? 
A lei do atual PNE completa 10 anos, e portanto termina sua vigência, no dia 25 de junho de 2024. De acordo com a legislação, o Poder Executivo deveria ter enviado um novo texto para análise do Congresso no nono ano de vigência do PNE, o que não ocorreu. Nenhum texto foi enviado até o momento. 
A etapa nacional da CONAE foi realizada em janeiro de 2024, precedida das etapas municipais, regionais e estaduais em 2023. O texto base que saiu da CONAE foi validado pelo Fórum Nacional de Educação (FNE), que o entregou ao MEC em março. Depois disso, não houve movimentação pública sobre a matéria. 
No entanto, segundo uma matéria do Estadão publicada em junho de 2024, o MEC enviou minuta aos ministérios da Fazenda e do Planejamento e aguarda aval para encaminhar à Casa Civil. Só depois deve ser encaminhado ao Congresso para iniciar sua análise e tramitação.
A matéria do Estadão também revelou problemas graves no texto do novo Plano: ele não aborda questões sobre a população LGBTQIA+, e a pauta da “Diversidade” é trabalhada em termos vagos – o oposto do que foi deliberado na CONAE por estudantes, profissionais da educação, entidades e movimentos sociais do campo educacional. 

OS RISCOS DE PRORROGAR A LEI DO PNE 

À primeira vista, pode fazer sentido prorrogar a lei 13.005/2014 para assegurar que o novo Plano seja discutido da forma adequada. No entanto, como afirma Salomão Ximenes, Professor de Direito e Políticas Educacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC) e coordenador do Observatório Regional de Políticas Educacionais do ABC, esse objetivo poderia ser alcançado de outras formas, sem necessidade da extensão do prazo. “O final da vigência da lei do PNE e o final da validade do PNE são coisas diferentes. As metas e estratégias não perdem a validade do ponto de vista jurídico do direito à educação. Um parecer técnico de órgãos como Advocacia Geral da União, MEC, Conselho Nacional de Educação ou Tribunal de Contas da União poderia resolver isso do ponto de vista formal. É que parece que essa não é a opção política, que não há interesse no fortalecimento do peso jurídico das metas do PNE”, diz. 

Salomão reforça que contraditório seria se, passados 10 anos, as metas – um esforço de planejamento que mobiliza diversos órgãos de controle – parassem de valer e os municípios estivessem autorizados a, por exemplo, diminuir números de matrículas ao invés de aumentar. Como resumiu ele em artigo publicado em parceria com Lucas Junqueira Carneiro, “a premissa de uma lacuna jurídica com o final da vigência decenal do PNE é um equívoco”. 

A prorrogação inclusive fere a Constituição Federal, uma vez que o artigo 214 diz explicitamente que o plano nacional de educação deve ter caráter decenal. E esse é um dos motivos pelos quais o PL 5665/23, se aprovado, pode acabar enfraquecendo – e não fortalecendo – a mais importante política educacional brasileira. “O caráter decenal foi inscrito na Constituição justamente pensando na necessidade de um parâmetro fixo para pensar a médio e longo prazo”, destaca o professor da UFABC. Para Heleno Araújo, do FNE, a prorrogação é também uma ideia “delicada e inconveniente” e que gera uma acomodação na obrigação dos poderes Executivo e Legislativo de encaminharem um novo plano. 

Prorrogar a atual lei do PNE, ainda que “só” por um ano, também pode abrir um precedente para outras prorrogações. Ou seja, pode fazer com que os prazos percam sua força. “Nada impede que o prazo 2025 seja prorrogado de novo. Ao abrir esse precedente, ele passa a ser uma possibilidade sempre que um gestor público perceber que o plano não vai ser cumprido”, explica o professor Salomão Ximenes. 

E se o Plano de Educação não foi cumprido ou se o processo de elaboração de seu substituto também não foi feito no prazo adequado, significa que gestores e parlamentares falharam com suas obrigações. E aí entram – ou deveriam entrar – os órgãos de fiscalização  e controle para responsabilizá-los pelo descumprimento de uma política pública constitucionalizada. Mas a prorrogação, ao ampliar esses prazos, também pode afetar esse aspecto. Em artigo publicado no Conjur, a procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo, Élida Graziane, diz que a prorrogação da vigência do PNE equivale a uma  “anistia estratégica” e que “adia o debate do PNE 2024-2034, sem abrir qualquer responsabilização pelo diagnóstico de fracasso do plano educacional vigente”. Nessa mesma linha, Heleno Araújo também cobra os órgãos de monitoramento do PNE. “Temos 4 relatórios [do Inep] prontos, o quinto está prestes a sair. Mas não podemos ficar só no diagnóstico do não cumprimento. Qual o redimensionamento de políticas e as medidas que serão tomadas a partir do diagnóstico?”, questiona. 

Além de todos esses fatores, a prorrogação do Plano Nacional de Educação pode ter efeitos desastrosos para estados e municípios. Tanto porque abre o precedente para a prorrogação nos outros níveis – e essas prorrogações não têm salvaguarda constitucional -, quanto porque impacta a elaboração dos planos estaduais, distrital e municipais, em geral construídos após o nacional para que suas metas e estratégias estejam em consonância com o PNE. É o que Salomão Ximenes chamou de “descoordenação federativa”. “Os planos estaduais e municipais também serão prorrogados? Se não, qual será o efeito? O atual sistema já é muito falho em termos de coordenação, e em vez de enfrentar o problema daríamos vários passos atrás ao criar temporalidades diferentes no processo”. 

MAS O BRASIL FICARIA SEM UM PNE VIGENTE? 

Segundo explica Salomão Ximenes, coordenador do Observatório Regional de Políticas Educacionais do ABC, ainda que a vigência da lei 13.005/14 termine, o Brasil não entraria em um vácuo legislativo. Isto é, as metas e estratégias pactuadas não desaparecem e deixam de valer no dia 26 de junho de 2024. Na verdade, ficam ainda mais urgentes. “O PNE estabelece um padrão para estabelecimento do direito à educação. Passados 10 anos, esse padrão é obrigatório, e quem não cumpriu está indo contra essa norma”, resume ele. Por isso, na avaliação das pessoas ouvidas na reportagem o efeito prático da aprovação do PL 5665/23 seria normalizar uma situação gravíssima de descumprimento dos prazos estabelecidos. “É uma banalização do processo de planejamento vinculante, cujo efeito é muito desproporcional à preocupação levantada”, complementa Salomão. 

O Fórum Nacional de Educação também se pronunciou nesse sentido. Em nota pública contrária à prorrogação, o órgão defende que o projeto de lei tem “potencial de desorganizar o planejamento comum articulado no país”, tanto por ferir a periodicidade prevista na Constituição como por interferir no alinhamento com estados e municípios. 

A procuradora do MP-SP Élida Graziane também é categórica ao dizer que “todas as propostas de prorrogação da vigência da Lei 13.005/2014 em tramitação no Congresso Nacional tendem a perdoar o descumprimento das metas e estratégias do PNE em curso”, contextualizando que “como tem sido muito fácil ignorar e descumprir os comandos do PNE 2014-2024, nunca foi necessário alterá-lo. Pelo mesmo motivo, agora tende a ser igualmente fácil prorrogá-lo nominalmente”.  

PARTICIPAÇÃO E GESTÃO DEMOCRÁTICA

Um outro argumento contrário à prorrogação da lei do atual PNE destaca os esforços já realizados no sentido da construção do novo Plano. Por exemplo, o Grupo de Trabalho do Novo PNE (GTPNE) do MEC, que buscou analisar os problemas da educação nacional como subsídio ao Projeto de Lei para o PNE 2024-2034. Mas, principalmente, os esforços e recursos mobilizados para a realização de debates, audiências e a CONAE. Nesse contexto, vale destacar a Conferência Livre “Gênero nos Planos já!”, realizada em outubro de 2023 pela Ação Educativa que contou com jovens estudantes da região metropolitana de São Paulo e do interior debatendo a importância de garantir equidade de gênero e raça no Plano Nacional de Educação.

Esses esforços já resultaram num documento final – entregue pelo FNE ao Ministério da Educação e sob análise do Executivo. Para Salomão Ximenes, a prorrogação colocaria em risco todo o processo participativo da CONAE 2024. “Especificamente porque a depender do prazo e da mudança de conjuntura, esse ciclo pode perder relevância e sentido. E tudo isso pode ser transportado para os níveis estaduais e municipais”, diz. 

A nota do Fórum Nacional de Educação também toca nesse ponto, ressaltando que o projeto de lei 5665/23 não considera as deliberações dos processos participativos e que “se mostra inoportuno e macula o processo participativo e dialogado em curso que, ademais, está protegido pela Lei, que consagra conferências e instâncias de monitoramento e avaliação do PNE com legítimos papéis propositivos em relação à Política Nacional de Educação”. 

O coordenador do FNE, Heleno Araújo, ressalta justamente o respeito ao esforço que envolveu mais de 4 mil municípios. “Política educacional tem que ser feita com participação e colaboração da sociedade. Por isso a CONAE cumpriu seu papel e entregou seu produto final”, diz. Para Heleno, é estratégico debater fortemente não apenas o novo PNE mas também o financiamento adequado para de fato implementar e cumprir o PNE. “Já aprendemos que lei do PNE sem financiamento adequado não adianta, então temos que enfrentar esse debate de forma séria e manter a pressão sobre as ausências de políticas e leis que prejudicaram o atual plano, como lei do Sistema Nacional de Educação e do Custo Aluno-Qualidade”, diz. 

O professor Sérgio Stocco, do Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES) e do FNE, vai ainda mais além, ressaltando os efeitos do controle social e gestão democrática – contemplados no atual PNE através da meta 19 –  ainda insuficientes. Em seminário na Ação Educativa sobre os 10 anos do PNE, ele reforçou: “Seria fundamental que essa meta tivesse sido implementada como está disposto, mas o caminho da gestão democrática não foi assentado para gerar o processo de mobilização social que exatamente geraria uma disposição da sociedade para cumprir as outras 19 metas”. Ele elenca os bloqueios e restrições à formação de conselhos escolares, grêmios estudantis e outros processos no sentido de assegurar a autonomia da escola. “Sem isso não conseguiremos a base social necessária para fazer o que tem que fazer. Só haverá formação política permanente com a autonomia das escolas”. 

Militarização crescente, fechamento de escolas por (in)segurança: como a segurança pública afeta a Educação

Lógica punitivista e de obediência tem se refletido no aumento das escolas militarizadas, enquanto operações policiais desarticuladas nas periferias deixam milhares sem escola

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Texto: Nana Soares // Edição: Claudia Bandeira

Tanto educação quanto segurança pública são direitos da população e obrigações do Estado, assegurados pela Constituição Federal. Assim como outros direitos, como saúde e moradia, devem estar articulados e caminhar no mesmo sentido: o de construir uma sociedade cada vez mais democrática, inclusiva e participativa, sem deixar ninguém para trás, segundo os princípios dessa mesma Constituição. Mas essa lógica tem sido cada vez mais ignorada, com políticas de segurança pública interferindo de maneira negativa na garantia do direito à educação. 

A concretização dessa interferência é o crescimento exponencial das escolas militarizadas no país, que aumentaram mais de 20 vezes em apenas uma década, expansão que persiste mesmo após o fim do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM). O exemplo mais recente é o estado de São Paulo, que acaba de aprovar um programa nesse sentido. Mas a segurança pública – ou justamente a falha na garantia dela – também afeta a educação de jovens em todo o país pelo crescente de violência e conflitos territoriais, que fazem com que as escolas fiquem fechadas por vários dias do ano. Essas interrupções cada vez mais frequentes trazem prejuízos para toda a comunidade escolar e somam-se a outros problemas estruturais da Educação. 

Militarização segue em expansão, e melhora de avaliação das escolas não corresponde à realidade

Até o governo Bolsonaro, não havia um esforço nacional para a militarização das escolas – quando a gestão passa parcial ou totalmente para a responsabilidade de forças de segurança. Os estados ou mesmo municípios criavam suas próprias iniciativas – Goiás e Bahia são dois dos locais onde esse modelo está presente há mais tempo. Em 2019, com a criação do PECIM, o cenário mudou: em um contexto de avanço do ultraconservadorismo e do pensamento militarizado e punitivista como um todo, passou a haver um estímulo, inclusive financeiro, para a militarização de escolas em todo o país. Um exemplo é o estado do Paraná, que hoje talvez seja onde o modelo de escolas militarizadas se expande mais rápido e abertamente. 

“O PECIM deixou um lastro de nacionalização em um processo que até então estava em várias unidades da federação, mas não era nacional. Sua criação em alguma medida endossou as narrativas localizadas”, diz a professora Miriam Fabia Alves, da Universidade Federal de Goiás (UFG), e que estuda militarização. 

Alguns dados ilustram esse avanço: o orçamento destinado às escolas cívico-militares mais que triplicou entre 2020 e 2022 (de 18 para 64 milhões de reais). Segundo a Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação (RePME), eram 39 escolas militarizadas no país em 2013, número que passou para 122 em 2018 (ainda antes do PECIM) e saltou para ao menos 816 escolas em 2023. Vale comentar que esse número pode ser ainda maior, uma vez que os modelos de militarização são múltiplos. 

Neste cenário desafiador, o novo governo Lula ainda demorou a revogar o PECIM, fazendo-o somente em julho de 2023, apesar de ter sido orientado a fazer isso desde a fase de transição. A revogação, no entanto, não veio acompanhada da “desmilitarização” das escolas que aderiram ao modelo. Assim, embora não exista mais um programa nacional, a militarização da educação está fortalecida após 4 anos de aportes financeiros e estímulos de todas as ordens. E agora os estados e municípios já têm – e seguem criando – seus próprios programas. 

“A tendência é de regionalização”, explica Amarilis Costa, advogada e diretora Executiva da Rede Liberdade, uma articulação que atua juridicamente em casos de violação de direitos e liberdades individuais, onde se inclui a militarização. Ela reforça que o movimento das escolas cívico-militares hoje acompanha a reorganização do bolsonarismo, e há especialmente duas estratégias: o sucateamento da educação pública e o remodelamento e regionalização da militarização. O remodelamento dos projetos de lei é descrito por Amarilis como uma espécie de “fatiamento” do projeto de militarização, ou a construção da viabilidade dessas escolas a partir de outras dinâmicas do direito administrativo. “Por exemplo, em alguns estados, militares ou ex-militares são colocados como secretários de cultura, educação ou gestores escolares”, explica. Já o sucateamento da escola pública “é mais discreto e parece dissociado da militarização, mas está super conectado uma vez que reforça o argumento da escola cívico-militar [ECM] como uma melhoria”, diz. Nessa linha entrariam ações tomadas pelo governo Tarcísio em São Paulo ainda antes do anúncio do programa de militarização, como a restrição da liberdade de cátedra dos professores e o que é ofertado nos conteúdos e atividades a estudantes. Não por acaso, a gestão não demorou a anunciar a adesão às escolas cívico-militares. 

Por que militarizar vai contra o direito à Educação 

A militarização das escolas vai contra diretrizes constitucionais para a educação, acirra desigualdades e reforça o racismo, o machismo e a LGBTfobia nas escolas. Para a pesquisadora Catarina de Almeida Santos, a padronização de corpos e sujeitos é a contramão do que deveria ser o papel da escola. A lógica de obediência e de modelo único, em contrapartida ao reforço e valorização das diversidades, pode enfraquecer também a gestão democrática e o próprio papel das escolas públicas. 

“A militarização se apresenta como ‘neutra’, uma contranarrativa e um combate ao que seria uma escola ‘doutrinadora’. Essa narrativa ganhou muita força no Brasil, um país que flerta com muita frequência com esse super poder dos militares”, diz a professora da UFG, Miriam Fabia Alves. Ela concorda que a supervalorização desse modelo faz parte de um projeto de extrema desvalorização da escola pública, e por isso localiza a disputa também no campo narrativo. “Nós temos dificuldades em todo o país com a atuação das forças de segurança pública, mas ao mesmo tempo supervalorizamos sua atuação dentro da escola. Como as mesmas forças que assassinam podem educar?”, questiona. Vale lembrar que na votação que aprovou o programa de escolas cívico-militares no estado de São Paulo, forças de segurança foram chamadas à sessão justamente para reprimir estudantes que protestavam contra a medida

Além disso, as escolas militarizadas tendem a iniciar, manter ou aprofundar uma lógica de exclusão em relação a quem são os e as estudantes que podem estudar ali. Em Goiás, por exemplo, algumas escolas, apesar de públicas, têm uma taxa de contribuição voluntária. Além disso, alunos que não “se adequam”, seja pelo desempenho escolar ou por outros motivos, podem ser transferidos. “É uma lógica que dificulta o acesso e a permanência, porque nem todas as exigências – de uniforme, contribuição, questão corporal, etc – podem ser cumpridas por todas as pessoas”, reforça a professora Miriam Alves.

Segundo um relatório apresentado pela sociedade civil brasileira a um comitê da ONU em 2023, o investimento público feito nas escolas militarizadas tem sido significativamente maior que o direcionado às escolas públicas comuns, o que tem como efeito ampliar a segregação étnicorracial e de classe no sistema de ensino. As exigências/exclusões e o maior investimento podem, portanto, justificar porquê as ECMs são frequentemente exaltadas como um “modelo vencedor”, tendo como base o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). 

Mas essa ideia não é sustentada pelos dados. A geógrafa Rafaela Miyake mapeou o perfil das primeiras escolas a aderirem ao PECIM e observou que muitas das unidades já tinham infraestrutura e nota do Ideb acima da média antes do PECIM. Isto é, não foi a militarização que elevou sua qualidade. Outros estudos e levantamentos já tinham percebido esse mesmo padrão, e também ressaltam o maior orçamento destinado às ECMs. 

“A conclusão do mapeamento, e o choque, foi perceber que o projeto piloto [do PECIM] na verdade foi uma tentativa de convencimento da opinião pública de que a militarização melhora a escola. Mas elas já eram boas antes”, explica Rafaela, que continua o mapeamento em seu mestrado no Departamento de Geografia da USP. Das 54 escolas do projeto piloto: 49 já tinham biblioteca quando aderiram ao PECIM (90%); 45 já tinham laboratório de informática (83%); 41 já tinham salas de atendimento especial (76%); 36 já tinham quadra coberta (67%) e 27 já tinham laboratório de ciências (50%). As informações foram enviadas a Rafaela pelo INEP através da Lei de Acesso à Informação. E 20 das 54 escolas já tinham alcançado a meta projetada no Ideb (dados extraídos do Censo Escolar). Em relação à situação de vulnerabilidade social, Rafaela também observou que boa parte dos alunos já figurava em índices diferenciados segundo o INSE-INEP (índices 3 e 4). “Pensando na realidade da escola pública, já era um quadro de exceção”, reforça a pesquisadora. 

A adesão ao PECIM, conforme observado pelo mapeamento, tornou as escolas mais excludentes, já que muitas delas tiveram que fechar turmas para poder se adequar ao Programa. As escolas que aderiram ao projeto piloto não poderiam, por exemplo, ter turmas noturnas, de Educação de Jovens e Adultos (EJA), entre outros requisitos. Mas no momento da adesão eram cerca de 300 turmas de EJA, com quase 8 mil matrículas. “O que aconteceu com essas pessoas após a adesão?”, questiona a pesquisadora. “[Com a militarização], a avaliação pode até aumentar, mas a prestação de serviços para a população piora: as vagas diminuem, além das escolas – sem noturno e sem EJA – passarem a ter menor complexidade na gestão e menor evasão”, reitera Rafaela. A pesquisadora segue seu mapeamento, agora focada nos programas estaduais de Goiás e Paraná – neste último, que é fruto do PECIM, já se notam os mesmos padrões de exclusão.

Operações policiais e conflitos territoriais: fechamento de escolas cada vez mais comum

Os dados sobre a militarização mostram que ela não é uma solução para a educação pública. Mas além disso, há outra complexidade na relação entre educação e segurança: no Brasil, as ações, estratégias e políticas de segurança pública têm reforçado exclusões e desigualdades educacionais e negado o direito à educação a estudantes mais pobres, de periferias, negras e negros. 

O exemplo mais flagrante dessas violações é a quantidade de dias letivos perdidos por alunas e alunos por conta de conflitos territoriais ou operações policiais. No Rio de Janeiro, em 2023, 257 escolas não abriram ou precisaram fechar por conta da violência urbana – isso apenas nos primeiros 45 dias letivos do ano. Foram mais de 85 mil  estudantes sem aulas, ou 13.5% da rede municipal. Outra pesquisa, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), analisou dados de 2019 e aferiu que nada menos do que 74% das escolas cariocas tiveram pelo menos um tiroteio em seu entorno naquele ano. E a estimativa de redução de aprendizado chegou a 64% em português e em perda completa em matemática. 

O Complexo da Maré sempre figura entre as regiões mais afetadas por esse fenômeno. Lá, onde moram 160 mil pessoas, estudam cerca de 20 mil alunas e alunos em 50 escolas. Segundo dados compilados pela organização Redes da Maré, foram 146 dias sem aula de 2016 a 2023, e em 2024 já eram 10 dias de escolas fechadas apenas nos 4 primeiros meses do ano. Uma média de 25 dias sem aulas a cada ano. Isso significa que nos 11 anos de escolarização obrigatória de uma estudante da Maré, a violência pode ter deixado sua escola fechada por mais de um ano letivo completo. 

“Quando penso na relação entre educação e segurança pública, penso em violação de vários direitos: do direito à educação, do direito de ir e vir, do próprio direito à segurança pública”, resume Andreia Martins, pesquisadora da Redes da Maré e ativista do Fundo Malala. “O mesmo estado que propõe ações truculentas de combate ao crime organizado é o que deveria estar fornecendo educação, mas as operações violam esse direito ao fechar escolas”, completa ela. 

Os problemas causados pela violência se acumulam, uma vez que têm impactos na saúde física e mental de toda a comunidade escolar, além de apresentar um desafio logístico e até trabalhista para repor as aulas perdidas. “No dia seguinte não é uma aula normal, as aulas não têm como ser as mesmas quando a escola ficou fechada por tiroteio, quando pessoas foram baleadas. Além da violação do dia a dia, as pessoas ficam fragilizadas e adoecem. É muito difícil criar um ambiente propício para o desenvolvimento cognitivo, para a produção de conhecimento entre estudantes e docentes com tantas fragilidades”, pontua Andreia. “A Secretaria de Educação do município, que diz ter um plano de mitigação desses efeitos, propõe, para o dia não ser ‘perdido’, aulas remotas ou envio de atividades remotas. Mas pesquisas que nós mesmos já conduzimos durante a pandemia já mostraram que os estudantes não têm condição de acompanhar essa aula”, reforça a pesquisadora, destacando desafios como o acesso às tecnologias e conexões adequadas para as aulas remotas. 

Esse ponto, comum a outras escolas do Brasil, especialmente de periferias, merece destaque. Andreia faz questão de lembrar que, quando o assunto é educação, há outros problemas na Maré que não só a violência, agenda que acaba ganhando destaque enquanto há outras fragilidades no território, como a falta de infraestrutura das escolas, a dificuldade de vagas para todas e todos estudantes do Complexo e a ausência de outros órgãos de assistência à população. “É perigoso porque o discurso do Estado para justificar a precariedade dos serviços oferecidos é muito pautado na violência, sendo que há muitas coisas que independem disso. É preciso superar esse discurso”, resume. “O problema não é só a violência, mas o olhar do Estado na implementação de políticas para esse território, que passa também, mas não só, pela política de segurança pública”. 

Articulações para reverter esse cenário: mobilização social e investidas no judiciário

Nesse contexto de crescente militarização, a mobilização social é cada vez mais importante, e tem encontrado, no Judiciário, um caminho para conseguir frear ou reverter alguns desses retrocessos. “Se por um lado a regionalização e desmantelamento dos programas são um desafio e dificultam seu mapeamento, o fato de não virem mais de cima [nível federal] também nos dá melhores argumentos e articulações no sentido jurídico”, avalia Amarilis Costa, diretora executiva da Rede Liberdade, organização que atua fortemente nessa pauta. A Rede tem insistido muito na inconstitucionalidade das escolas cívico-militares, citando especialmente – mas não só – os artigos 37 e 206 da Constituição Federal, que versam sobre a pluralidade de saberes, gestão democrática, valorização de profissionais, entre outros. 

Por isso, inclusive, a “facilitação” à militarização por meio do sucateamento da escola pública pode ser mais desafiadora, já que não há menções diretas à militarização. Da mesma maneira, as muitas maneiras de implementar escolas cívico-militares no país também são um desafio a mais para o litígio no âmbito jurídico. “São políticas sempre em curso e em constante alteração”, diz Amarilis, explicando que novas estratégias de implementação de escolas cívico-militares são utilizadas tão logo se consegue construir os argumentos jurídicos para desmobilizá-las. 

Daí a importância da sociedade civil articulada e mobilizada na pressão social e na disputa de narrativas. “Com todos os desafios, temos tido avanços consideráveis no repúdio a esse modelo, mas sabemos que o imaginário de violência e retrocesso vai se enraizando e afeta especialmente territórios do sul global. Por isso, a mobilização da sociedade civil é fundamental, já que as respostas institucionais e do judiciário nem sempre alcançam o tempo da resposta política”, diz Amarilis. 

No caso de São Paulo, a Articulação Contra o Ultraconservadorismo na Educação, ao lado de mais de 100 organizações que atuam na defesa dos direitos humanos e pelo direito à educação de qualidade, lançou uma Carta de Repúdio ao Programa de Escola Cívico-Militar, promovido pelo governador, Tarcísio de Freitas, alertando que escolas militares acirram desigualdades educacionais, coíbem a expressão da diversidade de gênero e sexualidade e incentivam abusos por parte dos militares. Além disso, elas também reproduzem o racismo estrutural e institucional, impondo padrões estéticos baseados na branquitude e violam a liberdade de crença.

>> Baixe o Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas>

> Informe-se sobre as mobilizações da União Brasileira de Estudantes Secundaristas




SEMANA DE AÇÃO MUNDIAL 2024

PNE na boca do povo: pelo direito a uma educação com justiça e transformação socioambiental! Vamos construir um Plano novo!

Semana de Ação Mundial 2024 vai reforçar a mobilização em defesa do novo Plano Nacional de Educação (PNE 2024-2034)!

Nossa luta é pela renovação do PNE, tendo como base o documento final da Conferência Nacional de Educação (Conae) 2024, sem retrocessos e com ousadia, para garantir uma educação pública de qualidade a todas as pessoas no território brasileiro.

Use sempre as hashtags #SAM2024, #PNEpraValer e #SemRetrocessoComOusadia nas suas redes sociais!

Novo PNE e a Conae 2024

O atual PNE (2014-2024) termina neste ano com grande parte da legislação descumprida – veja mais no Balanço do PNE 2023, produzido pela Campanha. Em breve, publicaremos o Balanço 2024.

Justamente para efetivar as metas ainda a serem alcançadas, o novo Plano Nacional de Educação (2024-2034) deve ser construído sem retrocessos em relação ao atual e ousando em suas metas e estratégias, seguindo a deliberação da Conae 2024. Isso é o que a grande maioria dos segmentos da educação defende, incluindo a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, entidade que realiza a SAM.

A Conae promoveu conferências municipais, intermunicipais, estaduais e distrital que discutiram  o Documento de Referência publicado pelo FNE. Na etapa nacional, em Brasília (DF) – evento que reuniu no início de 2024 mais de 2.500 pessoas, entre delegadas/os, observadores e palestrantes –, o documento final foi referendado, sendo condizente com o direito à educação.

O texto final da Conae tem caráter deliberativo e espera-se que o Ministério da Educação (MEC) siga este conjunto de propostas para formular um Projeto de Lei do novo PNE – legislação que deve passar a tramitar no Congresso Nacional ainda neste ano.

Para garantir que cheguemos à tramitação no Congresso Nacional fortalecidos, precisamos aumentar cada vez mais a mobilização nas redes sociais e também nas ruas, e não aceitar recuos do governo federal ou do Congresso Nacional.

A perspectiva do direito à educação a todas as pessoas deve prevalecer e estar refletida nas metas e estratégias da nova legislação.

Semana de Ação Mundial 2024

A Semana de Ação Mundial (SAM) é uma iniciativa realizada simultaneamente em mais de 120 países, desde 2003, com o objetivo de informar e engajar a população em prol do direito à educação, de diversas maneiras. De 2003 a 2023, a Semana já mobilizou mais de 100 milhões de pessoas em todo o mundo, sendo cerca de 2,4 milhões de pessoas apenas no Brasil.

A SAM acontece por meio de atividades autogestionadas (ou seja, cada um faz a sua, de acordo com seu contexto!) em praças, escolas, centros comunitários, nas ruas, em audiências públicas e nos mais diversos locais. 

Qualquer pessoa que queira refletir e se engajar pelo direito à educação pode participar.

Os inscritos vão receber o um resumo do Manual da SAM 2024 impresso. O Manual, na íntegra, ficará disponível online gratuitamente.

O Manual da Semana de Ação Mundial (SAM) 2024 já está disponível gratuitamente no site!

Acesse e compartilhe o Manual da SAM 2024: semanadeacaomundial.org

Use sempre a hashtag #SAM2024 nas suas redes sociais!

A Semana de Ação Mundial é a maior atividade de mobilização pela educação no mundo!

A SAM brasileira é dedicada, desde 2014, ao monitoramento da implementação do Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024), previsto na Lei 13.005/2014, que é o principal caminho para que toda a população brasileira possa ter acesso a uma educação de qualidade da creche à universidade.

Consideramos que a garantia plena do direito à educação é condição para atingirmos, de fato, a justiça social no país. Seguiremos monitorando os indicadores da educação, de forma a exigir que as políticas públicas tenham por base o que está previsto na Lei, possibilitando o cumprimento do artigo 205 de nossa Constituição Federal de 1988:

“Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”

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Novo projeto de lei para o Ensino Médio deixa brechas para privatização e precarização da etapa

Pautas como a educação profissional, a educação à distância, os itinerários e o notório saber devem mobilizar as disputas mais acirradas no Congresso Nacional

Ato pela Revogação do Novo Ensino Médio
Agência Brasil /EBC

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

Em 2023, admitindo as muitas limitações do Novo Ensino Médio (NEM), em especial o aprofundamento das desigualdades educacionais, o Ministério da Educação (MEC) realizou uma consulta pública para avaliar e reestruturar a política para essa etapa em todo o país. A Consulta não deixou dúvidas que a sociedade brasileira quer um outro Ensino Médio, e foram feitas várias propostas para reverter os retrocessos trazidos pela lei atualmente em vigor. No entanto, o que deveria resultar em aprimoramento pode vir a ter o efeito contrário caso seja aprovada a versão em tramitação no Congresso. 

O substitutivo do PL 5.230/2023, elaborado pelo deputado Mendonça Filho (União-PE) – ministro da Educação no Governo Temer, que estabeleceu o Novo Ensino Médio -, fragiliza ainda mais a modalidade, abrindo brechas para o ensino à distância (EaD), a privatização e a desescolarização. “Esse projeto fraciona o sistema de tal maneira, sem regulamentar e sem dar garantias, que a partir dele não é possível ter um desenho de como será o Ensino Médio no futuro. Podemos intuir, mas não dá para saber”, resume Debora Goulart, professora da Unifesp e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU).

O projeto em tramitação – aprovado pela Câmara dia 20 de março, o que foi considerada uma vitória para o governo – estabelece a garantia de 2.400 horas na formação geral básica (FGB) dos estudantes, mas mantém vários outros pontos problemáticos. Até mesmo a carga de 2.400 horas não é uma vitória em todos os aspectos, porque não determina como essas horas serão distribuídas entre as disciplinas científicas obrigatórias, e também porque os cursos técnico-profissionais podem ter carga da FGB reduzida. 

Além disso, o texto em sua forma atual abre portas para a precarização da educação pública de várias maneiras. Por exemplo, mantém uma brecha para a oferta de ensino à distância na educação básica. As precarizações ficam ainda mais evidentes na regulação do ensino técnico profissionalizante, modalidade em que fica permitida a contratação de docentes por “notório saber” – isto é, sem necessidade de formação em docência e em suas áreas específicas. Também no ensino técnico permanece a possibilidade de que organizações privadas ofertem ou assessorem cursos dos itinerários – um aceno aos interesses privatistas. Ainda, no que talvez seja o retrocesso mais flagrante do texto aprovado, “experiências extraescolares” podem ser validadas como carga horária para o Ensino Médio. Ou seja, até trabalho pode passar a contar como aula. 

“É uma precarização na medida em que não há mais obrigação em fornecer aquela carga horária, já que ela pode ser compensada de outra maneira”, explica Débora Goulart. Assim, em vez de garantir as condições necessárias para a oferta de uma educação de qualidade que atenda as necessidades de estudantes trabalhadoras e trabalhadores que têm maiores índices de evasão, a solução para “resolver” o problema é fazer horas de trabalho contarem como carga horária da educação formal. Por isso, para vozes críticas como as do Coletivo em Defesa do Ensino Médio de Qualidade, esse projeto incentiva a desescolarização. 

EaD e notório saber: espaço para privatização e precarização

O texto aprovado na Câmara deixa brechas para a privatização em diversos momentos. No ensino técnico profissionalizante, estabelece que a oferta de cursos deve ser dada por instituições “preferencialmente públicas”. Quanto à EaD, fica estabelecido que a carga horária deve ser ofertada de forma presencial “ressalvadas as exceções previstas em regulamento”. Esses casos excepcionais – ainda não descritos -, não apenas preocupam pela possibilidade de precarização, mas também de privatização, uma vez que grande parte da estrutura de EaD vem de instituições privadas. 

“As ressalvas, ou excepcionalidades, serão dadas por legislação posterior, e portanto poderão ser qualquer coisa. Mas o ponto é que não há sistema público de oferta de EaD. Por exemplo, no estado de São Paulo, todas as plataformas conectadas ao Centro de Mídias são compradas”, acrescenta a professora Débora Goulart. “E não há interesse [em ter sistema público de EaD], uma vez que é um campo altamente lucrativo e que se expandiu sobretudo na pandemia”, diz ela, ressaltando as péssimas avaliações do ensino ofertado à distância. Em audiência pública realizada no dia 16/04, o próprio MEC admite que as “excepcionalidades” podem ser uma brecha para a oferta de baixa qualidade. 

Por exemplo, uma pesquisa realizada por UNESCO, UNICEF, Banco Mundial e OCDE em 2021 mostrou altos índices de exclusão durante a pandemia. Nesse mesmo período, a pesquisa “A Educação de Meninas Negras em Tempos de Pandemia: O aprofundamento das desigualdades”, realizada pelo Geledés, também atestou o aprofundamento das desigualdades, sendo as dificuldades de acesso ao ensino remoto um dos fatores primordiais. 

“A privatização no ensino público hoje se dá de forma combinada. Vem pela tecnologia, pelo conteúdo e, sobretudo, pela organização do currículo escolar. Por exemplo, um itinerário formativo tem a liberdade de descrever quais são as disciplinas que o compõem, o que permite assessorias privadas, ou que o material seja produzido por empresas privadas, além da formação dos professores. É possível ter uma cadeia de entidades privadas na construção da relação pedagógica” – Débora Goulart 

E essa precarização também afetará as profissionais da educação, uma vez que no substitutivo de Mendonça Filho fica regulada a contratação por notório saber na educação técnico profissionalizante – prática que, como ressalta Débora Goulart, da Rede Escola Pública e Universidade, já é largamente utilizada na rede pública, salvo poucas exceções, para sanar falta de professores. Uma vez autorizada na legislação, não há qualquer incentivo para resolver esse problema ou para assegurar condições dignas de trabalho às professoras e professores concursados. 

Descumprimento de legislações, falta de participação social e tramitação acelerada

Não bastasse o texto insuficiente para enfrentar os problemas do Ensino Médio no Brasil, o substitutivo do PL 5.230/2023 tem ainda o agravante de desrespeitar os processos participativos de escuta das demandas de estudantes e profissionais da educação para esta etapa da educação básica. O documento final da Conferência Nacional de Educação (CONAE) de 2024, por exemplo, é explícito sobre a necessidade e urgência de revogar o Novo Ensino Médio e de construir um novo Plano Nacional de Educação com mais investimento em educação pública. E a Consulta Pública realizada pelo MEC em 2023 não tem impactado de maneira efetiva o projeto que tramita no Congresso Nacional.  

Em 2024, as decisões da plenária da CONAE tiveram caráter vinculante reconhecido pelo MEC. Isto é, o que foi acordado na conferência não é meramente consultivo mas sim uma decisão a ser respeitada pelo Estado. E vai na direção oposta do que foi aprovado no Congresso até agora. 

Fora isso, o PL 5230/2023 tramitou em regime de urgência, sem passar pelas devidas avaliações e votações das Comissões da Câmara, indo direto a plenário, o que reduziu significativamente o debate sobre a matéria. Uma tramitação que, nas palavras de Tânia Dornellas, assessora de advocacy da Campanha Nacional pelo Direito à Educação,  “reproduziu as mesmas condições de criação da reforma do novo Ensino Médio, pela MP 746/2016: sem o tempo necessário para um debate aprofundado e responsável sobre os impactos na vida de  aproximadamente 8 milhões de estudantes matriculados na última etapa da Educação Básica”. Não é a única semelhança entre os dois períodos, já que Mendonça Filho, relator do PL, é ex-Ministro da Educação do governo Temer, o próprio criador do atual modelo da reforma do Ensino Médio. “Sem o prazo adequado para o debate e a efetiva participação social, o texto do substitutivo aprovado na Câmara é insuficiente e ruim”, avalia Tânia. 

Agora o texto será apreciado no Senado, onde espera-se que seja modificado – é para isso que se mobilizam dezenas de movimentos sociais comprometidos com uma educação pública de qualidade., “Embora o Ministro da Educação, Camilo Santana, já tenha deixado claro em entrevistas, que a expectativa do MEC seja aprovar rapidamente o texto no Senado, entendemos que o texto pode e deve ser aprimorado”, enfatiza Tânia Dornelles. Para a assessora da Campanha, temas como a educação profissional, a educação à distância, os itinerários e o notório saber são as pautas que devem mobilizar as disputas mais acirradas. 

Apesar do contexto desfavorável, a própria recomposição das 2.400 horas na formação geral básica, bem como o adiamento da votação do PL para março deste ano são resultados da mobilização popular. Ou seja, por mais que interesses privatistas estejam atuantes para aprovar um Novo Ensino Médio condizente com o que acreditam, as juventudes, profissionais da educação, comunidades escolares também estão. E também têm impacto no Congresso.



Construção do primeiro Observatório Regional de Políticas Públicas no Brasil foi iniciada no Grande ABC

Implementação está prevista no Plano Regional de Educação e contará com a parceria da Iniciativa De Olho nos Planos, da Ação Educativa

O Observatório Regional de Políticas Educacionais do Grande ABC realizou sua primeira atividade pública no dia 10 de abril, no campus de Santo André da Universidade Federal do ABC. O projeto que está em fase de implementação é uma iniciativa da UFABC com o Consórcio Intermunicipal do Grande ABC. O projeto recebe apoio  do Programa de Pesquisa em Políticas Públicas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (PPPP/Fapesp) e conta com uma rede de pesquisadoras/es e instituições parceiras, da qual a Ação Educativa faz parte.

“A construção, implementação e monitoramento participativo do Plano Regional de Educação no Grande ABC é uma experiência inovadora de articulação das políticas educacionais no território. Nossa aposta é que por meio da gestão democrática e do estímulo à participação popular, as escolas e suas comunidades possam ser ouvidas sobre as principais demandas educacionais da região”, ressalta Claudia Bandeira coordenadora da Iniciativa De Olho Nos Planos e assessora da Ação Educativa.

A mesa de abertura contou com a participação do professor da UFABC e coordenador do Observatório Salomão Barros Ximenes, Juliana Cavasini da Silva, coordenadora de Programas e Projetos do Consórcio ABC; Ana Clara Carneiro, secretaria Municipal de Educação de Diadema; Karen Aparecida Silveira, do Fórum Regional de Educação do Grande ABC (FRE); Sérgio Stoco, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); e Claudia Bandeira, da Ação Educativa.

Em sua apresentação o professor Salomão Ximenes destacou que a implementação do Observatório de Políticas Educacionais do ABC está prevista no Plano Regional de Educação do Grande ABC (PRE 2016-2026) aprovado pelos 7 municípios que compõe a região para ser uma política pública de planejamento, monitoramento e avaliação orientada com foco na melhoria da qualidade, democratização de oportunidades educacionais e gestão democrática, mediante a articulação territorial das políticas educacionais. O professor ainda apresentou a equipe de bolsistas selecionadas para atuar na implementação do Observatório.

Após a apresentação, os participantes se dividiram em 12 grupos temáticos para organizar e pensar em uma agenda de trabalho e pesquisa sobre temas como Educação Infantil, Ensinos Fundamental, Médio e Superior; Educação de Jovens e Adultos (EJA), financiamento da Educação, gênero e relações étnico raciais, entre outros.

Articulações das ações

As equipes do Observatório Regional de Políticas Educacionais do ABC e da Ação Educativa estiveram na Secretaria Municipal de Educação de Diadema (SME Diadema) no último dia 23 de abril. O município já possui o Observatório da Educação de Diadema e por isso foi escolhido como projeto-piloto para a implementação do Observatório Regional, primeira experiência do tipo em todo o país, um projeto coordenado pela UFABC e pelo Consórcio Intermunicipal Grande ABC com o apoio da FAPESP.

Na visita, o Observatório Regional foi apresentado aos distintos setores da SME Diadema, todos envolvidos nos processos participativos de monitoramento e avaliação dos planos de educação.  Em reuniões de trabalho foram pensadas demandas da educação na Cidade e na Região, bem como as próximas etapas para implementação do Observatório Regional. Um possível cronograma de trabalho foi apresentado durante o encontro, que também discutiu como se dará o funcionamento do Observatório Regional e sua relação com o Observatório municipal. Também foi pontuada a necessidade de aprofundar o diagnóstico sobre a educação municipal e de colaborar nos processos formativos, sobretudo voltados à autoavaliação participativa das escolas e à gestão democrática.

Estiveram presentes Salomão Ximenes, professor da UFABC que coordena o Observatório Regional, e a equipe de bolsistas da Fundação de Amparo á Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), a secretária de educação da cidade Ana Lucia Sanches, a equipe de servidores da secretaria, além de Cláudia Bandeira coordenadora da Iniciativa De Olho Nos Planos e assessora da Ação Educativa.

Aumento de ensino à distância na EJA agravou ainda mais crise na modalidade

Além do subfinanciamento e abandono, Resolução 01/2021 autorizou que até 80% do conteúdo da EJA para Ensino Médio fosse dado de forma remota. 

Estudante faz anotações em caderno enquanto assiste aula de matemática pelo celular
Foto: Agência Brasil / EBC

Texto: Nana Soares / Edição: Claudia Bandeira

No Brasil, há mais de 50 milhões de pessoas que não concluíram o Ensino Fundamental e outras 22 milhões que não concluíram o Ensino Médio, além de cerca de 9 milhões de pessoas não alfabetizadas. Todas elas têm direito à escolarização na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA), mas mesmo que, em um cenário de fechamento de turmas, consigam fazer suas matrículas, será um desafio continuar estudando. E quem conseguir provavelmente vai ter acesso a um ensino precário e de baixa qualidade, não pensado para suas realidades e que pode ser realizado quase todo à distância. Esse é o cenário da modalidade, talvez a mais abandonada do país nos últimos anos e que luta para se recompor.

Cronicamente subfinanciada e muito distante de conseguir atingir as metas previstas para 2024 no atual Plano Nacional de Educação (PNE), a EJA sofreu mais um baque em 2021 com a aprovação da Resolução CNE/CEB  nº 1. Essa resolução, ainda em vigor, flexibilizou a oferta de ensino à distância para a modalidade, permitindo que chegasse até 80% no Ensino Médio. O resultado foi o sucateamento ainda maior da EJA, com a explosão de oferta de baixa qualidade.

“Com a resolução, o que vimos foi uma invasão de oferta de Ensino à Distância (EaD) sem muito critério, uma oferta gigante a baixo preço. Isso tanto em redes privadas, como faculdades que abriram plataformas à distância, e em redes públicas, com o desmonte de redes de ensino para ampliar a oferta EaD”, destaca Roberto Catelli, coordenador da unidade de educação de jovens e adultos da Ação Educativa. Fenômeno preocupante pois, como explica Catelli, as e os estudantes da EJA são pessoas para quem a figura da professora ou professor faz muita diferença, uma vez que têm uma trajetória de exclusão escolar. “Não é de EaD que precisam quem nunca foi à escola ou passou muitos anos fora. Em certos casos [ensino à distância] pode ser útil, como em locais onde não há acesso à escola ou a situações muito particulares de trabalho, mas transformar o EaD na principal oferta é muito ruim”, diz. 

E esse não é o único ponto da Resolução 01/2021 questionado por entidades e movimentos sociais que lutam por uma educação pública e de qualidade para todas e todos. O alinhamento à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que não foi pensada para escolarização de jovens e adultos, também preocupa. “O documento propor que a BNCC seja a principal referência da EJA é muito grave e não funciona, uma vez que a BNCC pensa as séries iniciais para crianças de 6 e 7 anos de idade em escolas convencionais”, resume. 

Não olhar a Educação de Jovens e Adultos como uma modalidade em si mesma, com suas especificidades, e sim como uma adaptação do ensino regular para crianças e adolescentes, é um grande problema para quem está na base. Franciele Busico, diretora do Cieja Perus e integrante do Fórum Estadual EJA de São Paulo, defende que a modalidade tenha carga horária própria, material escolar e didático próprio, e até professoras próprias. “Nosso jovem – porque temos recebido cada vez mais jovens – não está na mesma condição que o do ensino regular”, diz ela. “E as diretrizes nacionais já indicam que é possível flexibilizar tempos e espaços, o erro tem sido fazer a EJA como um ‘puxadinho’ do ensino regular”, defende. A diretora também reforça a necessidade do contato e mediação de docentes para estudantes da EJA, entendendo como absurda a oferta da modalidade à distância, inclusive por questões de acesso à tecnologia. “Estamos falando de pessoas em alta vulnerabilidade que frequentemente não têm equipamento para acessar EaD. Além disso, o acesso a mídias digitais requer um certo letramento. Acreditamos em flexibilização de carga horária e em um currículo adequado ao público, nunca à distância. Quem não teve escolarização tem direito de frequentar a escola, a viver a cultura escolar”, completa ela.

Felizmente, após muita pressão da sociedade civil e diversas entidades e movimentos educacionais, essa regra pode estar com os dias contados. A Resolução 01/2021, que flexibilizou o aumento da oferta de ensino à distância para EJA, é alvo de protestos desde que entrou em vigor – e ainda não foi possível substituí-la mesmo quase dois anos depois do governo Bolsonaro. Tratando-se de uma resolução aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), para deixar de valer ela não deve ser revogada e sim substituída por outra que a invalide. Esse processo pode entrar na agenda em breve, pois o Ministério da Educação (MEC), por meio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi), construiu um novo texto, que já chegou ao CNE para apreciação. 

O MEC informou que, após análise da Resolução pela Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA), a recomendação foi a “necessidade, urgente, de elaboração de novas diretrizes operacionais para a EJA, que atendam as orientações das políticas formuladas na atual gestão, que têm como eixo central a garantia da equidade nas condições de acesso e permanência à escola, e garantia dos direitos de aprendizagem”. Agora, de acordo com Mariângela Graciano, Coordenadora-Geral de Educação de Jovens e Adultos na SECADI, a expectativa é que a proposta “seja aprimorada quando submetida a audiências e consultas públicas, organizadas pelo CNE, e que o Conselho, nosso parceiro na elaboração da proposta construída na CNAEJA, proceda o ciclo de audiências e consultas públicas o mais rapidamente possível”. 

O Conselho reúne representantes de diversos segmentos – inclusive aqueles beneficiados pelo aumento da oferta de EaD. Ou seja, há uma batalha técnica e política pela frente. “EaD é uma pauta que envolve muita gente e muitos atores que investiram dinheiro para montar a estrutura”, adianta Roberto Catelli, coordenador da Ação Educativa, prevendo possíveis embates políticos na discussão dessa agenda. “Deve haver disputas sobre o quanto é possível restringir o ensino à distância, porque não é possível impedir 100%, e nem seria recomendável, mas é preciso restringir para que não desmonte o atendimento e crie situações distorcidas, como acabou acontecendo”, completa. Além disso, a desvinculação da EJA da BNCC também deve entrar em pauta. 

EJA nas políticas educacionais

O atual Plano Nacional de Educação (PNE) termina sua vigência nos próximos meses, com descumprimento quase total de suas Metas e Estratégias. Naquelas que versam sobre a Educação de Jovens e Adultos, o cenário é desolador: a EJA foi completamente desfinanciada na última década, tendo um orçamento em 2022 que representava apenas 0.44% do que foi o orçamento de 2012. A Meta 8, focada em reduzir desigualdades, foi do crescimento insuficiente, estagnação até chegar ao retrocesso em 2022. E a meta 9 mostra que o analfabetismo funcional avançou quando deveria ter regredido, resultado do desmonte de programas como o Brasil Alfabetizado. O número de matrículas na EJA caiu muito na última década, não chegando nem perto de atender toda a população que tem direito a continuar os estudos. 

 

EJA no ATUAL PNE: 

A meta 8 do PNE tem como objetivo diminuir desigualdades educacionais ao aumentar a escolaridade de grupos como a população de 18 a 29 anos, dos 25% mais pobres do país e a educação do campo, bem como igualar a escolaridade média entre pessoas negras e não-negras. A Meta 9 fala sobre erradicar o analfabetismo absoluto e reduzir o analfabetismo funcional pela metade. A Meta 10, por sua vez, diz que o Brasil deve oferecer ao menos 25% das matrículas de Educação de Jovens e Adultos (EJA) integradas à educação profissional. 


Para coroar, o subfinanciamento é crônico. Até mesmo no Fundeb, principal mecanismo de financiamento da Educação Pública, um aluno da modalidade recebia menos repasses do que um aluno da rede regular – distorção que só começou a ser corrigida com os novos fatores de ponderação, vigentes a partir de 2024. Ainda longe do ideal, mas uma melhora em relação ao repasse anterior. 

“A EJA é historicamente abandonada por não ser escolarização obrigatória, mas nossa luta é para que isso mude, que tenhamos uma política de fato, articulada com os sistemas de ensino, que a EJA seja considerada em toda sua singularidade e importância, inclusive como política antirracista. Fechar salas de EJA é o contrário de combater o racismo”, afirma Franciele Busico. A diretora do CIEJA Perus e ativista da EJA é enfática ao afirmar que, como resultado desse desmonte, o maior desafio para a modalidade hoje é a permanência estudantil. “Nós até temos conseguido matrículas, mas a permanência é muito difícil para o trabalhador que estuda, seja ele jovem, adulto ou idoso. A condição não é nada favorável para permanecer na escola, a EJA hoje não atende as necessidades da classe trabalhadora”, reforça ela, referindo-se às limitações de oferta, material didático e currículo próprio a essas e esses estudantes e acrescentando que a pandemia piorou esse cenário, com o empobrecimento de uma população já mais vulnerável economicamente.

Para Mariângela Graciano, Coordenadora-Geral de Educação de Jovens e Adultos na SECADI/MEC, o maior desafio da modalidade é a constante queda do número de matrículas, uma realidade que vem se afirmando há mais de uma década, “impondo a necessidade de implementar ações para estancar a perda de estudantes e, ao mesmo tempo, estimular a busca pela escolarização na EJA”. Nesse sentido, a Pasta informa que “o conjunto de estratégias previstas no âmbito do Pacto Nacional pela Superação do Analfabetismo e Qualificação da EJA está sendo construído para responder a este desafio”. O Pacto, que prevê políticas intersetoriais, deve contar com a participação de diversos Ministérios e da sociedade civil, mas também do setor privado. Especificamente em relação à permanência, ela destaca o programa Pé de Meia, que também contempla estudantes na faixa dos 18 aos 24 anos das famílias que recebem o Bolsa Família. 

O princípio do Programa Pé de Meia, de auxílio financeiro para estimular a permanência, é elogiado pela diretora Franciele Busico, mas ela reforça que ainda é insuficiente pois só contempla estudantes do Ensino Médio, defendendo uma política de auxílio que contemple todas e todos que têm direito à EJA. Franciele defende que tais políticas podem ser a virada de página da EJA – e devem ser necessariamente intersetoriais, uma vez que a permanência escolar depende também de moradia, renda, transporte público, alimentação etc. 

E na próxima década? 

No fim de fevereiro, o Ministro da Educação, Camilo Santana, recebeu a Coordenação Executiva Nacional dos Fóruns de Educação de Jovens e Adultos (EJA), que reivindicou a Política Nacional para a Educação de Jovens e Adultos. Segundo ativistas, na ocasião o ministro foi receptivo a essa ideia e confirmou a  substituição da Resolução 01/21. 

O encontro do movimento social da EJA com o ministro Camilo Santana foi realizado algumas semanas após a Conferência Nacional de Educação (CONAE), que nesse ano debateu as bases do próximo PNE. No documento referência da CONAE, a EJA é contemplada em vários pontos e tem destacada a necessidade de se constituir, nas políticas públicas, como uma modalidade própria, que exige medidas específicas. Entre os pontos levantados estão a reabertura de turmas, a manutenção e o fortalecimento de programas como o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem), o respeito a especificidades dos diferentes públicos, adaptando horários, calendário escolar e garantindo transporte noturno; a integração da EJA com setores da saúde, do trabalho, meio ambiente, cultura e lazer, entre outros, na perspectiva da formação integral dos cidadãos e cidadãs. O documento faz referência ainda à descontinuidade da educação à distância (EaD) na EJA, “já que o seu uso na educação básica deve ser de maneira excepcional, de acordo com a legislação vigente”, destaca o documento. 

Há também a preocupação com uma política de educação de jovens, adultos e idosos (EJA) para as pessoas em situação de privação de liberdade. Segundo dados que constam no documento referência da CONAE, 82,24% das pessoas nessa situação têm essa necessidade, mas apenas 15% da demanda potencial está matriculada. Segundo o MEC, há em curso um Acordo de Cooperação Técnica em parceria com o Ministério da Justiça e Segurança Pública para, em 36 meses, ampliar a oferta de vagas da EJA para o ensino fundamental e o ensino médio nas unidades prisionais, priorizando a oferta de maneira integrada à Educação Profissional Tecnológica (EPT).

Para Franciele Busico, as demandas do movimento social por uma EJA de qualidade foram contempladas no texto final da CONAE, que reflete uma discussão progressista e necessária para o próximo decênio. “O temor é o que vai acontecer quando o texto chegar no Congresso”, diz. “Provavelmente não vamos conseguir passar tudo que conseguimos colocar, mas se conseguirmos, serão muitos avanços. Conseguimos fazer um texto que contempla as necessidades da EJA pensando no país”, resume a diretora. 


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Conferência Nacional de Educação defende equidade de gênero, raça e combate a todas as discriminações: o que isso significa?

Documento referência também contempla a revogação do Novo Ensino Médio. Texto deve ser a base do novo PNE

Conferência Nacional de Educação, Brasília 2024.

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira 

Entre os dias 28 e 30 de janeiro, milhares de pessoas de diversos segmentos educacionais – como educadoras e educadores, estudantes, pais, gestão escolar, movimentos sociais e sociedade civil organizada – reuniram-se em Brasília para a Conferência Nacional de Educação (CONAE). Com o tema “Plano Nacional de Educação 2024-2034: Política de Estado para garantia da educação como direito humano com justiça social e desenvolvimento socioambiental sustentável”, a CONAE teve como objetivo construir as diretrizes, metas e estratégias que devem guiar o novo Plano Nacional de Educação (PNE), documento que orientará as políticas em Educação na próxima década. 

Movimentos, entidades e ativistas comprometidos com a educação pública, laica, de qualidade para todas e todos participaram ativamente da Conferência – apesar dos desafios históricos para efetivar a gestão democrática em espaços como esse. As discussões dos três dias de evento resultaram num documento referência, que só foi consolidado após aprovação de cada um dos seus pontos pelos participantes. Esse texto, que é a base do novo PNE, contempla várias agendas importantes, como: o aumento do investimento em educação pública, a revogação do Novo Ensino Médio (NEM) e a necessidade das discussões sobre gênero, raça e combate a todas as formas de discriminação

O documento referência agora será entregue formalmente pelo Fórum Nacional de Educação (FNE) – que também reúne diversos segmentos educacionais – ao Ministério da Educação/Presidência da República. O governo, por sua vez, analisará o texto construído coletivamente à luz da Constituição e demais legislações em vigor, fazendo possíveis adaptações e o apresentará como projeto de lei ao Congresso para que enfim inicie sua tramitação no Legislativo. O novo PNE só vira lei após aprovação na Câmara, no Senado e posterior sanção presidencial, podendo sofrer alterações em cada uma dessas etapas. Embora o atual PNE termine sua vigência ainda em 2024, este processo não tem data para ser finalizado – o ministro da Educação, Camilo Santana, manifestou interesse de apresentar o texto ao Congresso neste primeiro semestre

Com tantos passos – e poucas garantias – até a aprovação do novo PNE, por que é importante que a CONAE tenha defendido a revogação do NEM? O que significa ter uma agenda validada pela Conferência? É uma vitória apenas simbólica? Como podemos usar isso em nossa luta por uma educação de qualidade para todas e todos? 

Documento referência: validação de peso

O papel de uma Conferência Nacional de Educação é influenciar a elaboração, reformulação e implementação das políticas educacionais, o que se complementa ao papel de monitoramento e avaliação dos planos nacionais, estaduais e municipais, por seus respectivos fóruns (FNE, FEEs e FMEs). Por isso, ela precisa assegurar a maior representatividade geográfica e de segmentos possível. Na CONAE de 2014, foram mais de 4 mil delegados (com direito a voto), e neste ano cerca de 2.500 pessoas participaram e 1847 delegadas e delegados foram eleitos em etapas anteriores, nas conferências municipais, regionais e estaduais, além das indicações nacionais feitas conforme regimento aprovado pelo FNE. 

“A CONAE é o principal processo participativo nacional que visa vocalizar as demandas da sociedade civil para o campo das políticas educacionais, legitimando proposições, diagnósticos e denúncias. Logo, é muito importante termos aprovadas na Conae propostas e moções que manifestam desafios a serem priorizados pelas políticas educacionais”, destaca  Denise Carreira, Professora da FEUSP, integrante da coordenação da Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação e sócia-educadora da Ação Educativa. 

O texto-referência que chega na CONAE é resultado do que foi trabalhado nos níveis estadual e municipal. Ou seja, quando uma agenda é aprovada na etapa nacional, ela foi validada pela sociedade civil em um processo amplo, complexo e representativo – ainda que não seja perfeito. Neste ano foram 8.651 emendas aos 1.134 parágrafos que compunham o texto inicial. O texto final aprovado propõe, entre outras agendas, a revogação da Reforma do Ensino Médio e da Base Comum Curricular; a universalização da pré-escola a partir dos quatro anos e do ensino fundamental de nove anos, educação em tempo integral para pelo menos metade dos estudantes e investimento de 10% do PIB para a educação.

“Em termos gerais, temos conquistas importantes, porém a fragilidade das condições das crianças, adolescentes e jovens negras (os), indígenas e migrantes no sistema de ensino nacional é flagrante, de maneira que a equidade racial deve ocupar papel central na construção da agenda por direitos educacionais. Entendemos que é preciso um olhar para a equidade racial mais profundo e em vários temas”, ressalta a representante da Uneafro, Adriana Moreira, destacando que o novo PNE não será de fato democrático se não contemplar o combate ao racismo de forma estrutural.  

A Uneafro, organização que há 15 anos luta por uma educação antirracista e anticolonial, participou de todas as etapas e elegeu delegados/as para a Conferência Nacional. Em 2024 optou por também levar uma comitiva de 30 estudantes negras/os, indígenas e periféricos para uma incidência mais direta e crítica ao modelo atual.  Foram cartazes, faixas, panfletagem, música, além da ação política mais tradicional. “Entendemos que há hoje um dilema no processo da construção das Conferências, que poderiam significar muito mais para as demandas históricas da população brasileira, sobretudo para a população negra. Ainda que se reconheça a relevância das construções e sistematizações do universo acadêmico e da fundamentação teórica das políticas públicas, é fundamental a escuta qualificada das demandas dos grupos populacionais ainda excluídos do direito à educação. Sem essas características fundamentais, a conferência pode padecer por se tornar uma espaço estéril em virtude de seu caráter tecnocrata e suas resoluções não corresponderem às demandas objetivas dos grupos mais fragilizados da sociedade brasileira”, avalia Adriana Moreira, representante da organização. A crítica da Uneafro é que espaços como as conferências de educação têm tido cada vez mais dificuldade de dialogar com as bases. Por isso o esforço de levar estudantes para conhecerem esse espaço e fortalecer a agenda da equidade racial como eixo estruturante do PNE.

Processos como as Conferências buscam assegurar que o Plano Nacional de Educação – a mais importante política pública de planejamento educacional – não seja construído apenas com a visão do governo. Nessa linha, segundo as regras aprovadas nesta edição, as decisões têm caráter vinculante. Isto é: o governo não pode apresentar ao Congresso um texto que contrarie as diretrizes construídas na CONAE com participação da sociedade. “A CONAE é um esforço de muitas pessoas e que gera um documento que tem um caminho árido até a aprovação. Precisamos defendê-lo, porque se não estivermos atentos, a tendência é que existam alterações significativas em relação ao que foi pensado”, diz Sérgio Stoco, professor de Políticas Públicas na Unifesp e membro do Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES), que compõe o Fórum Nacional de Educação (FNE).

Isso pode ser muito estratégico em temas como a revogação do Novo Ensino Médio (NEM), até agora abordada com certa resistência pelo Ministério da Educação, mas explicitamente defendida no texto da CONAE. O documento referência, por ter um olhar integral sobre a Educação brasileira, não fala apenas na revogação mas sim da construção de uma nova política para o Ensino Médio [e outras etapas], uma vez que se trata de uma política para a próxima década. Ou seja, o governo federal tem a obrigação de defender um PNE nesse sentido. 

Moções: explicitando posicionamentos

Além do documento referência, na CONAE há ainda outra possibilidade de marcar posicionamento sobre diferentes agendas: aprovando moções favoráveis ou desfavoráveis em relação a quaisquer temas relevantes. As moções podem ser propostas por qualquer pessoa ou segmento, devem ser endossadas por um número mínimo de entidades ou delegadas/os e então votadas na plenária final, podendo ser aceitas ou rejeitadas. As moções aprovadas expressam o posicionamento ou sentimento daquela audiência – mas não são parte do texto-base do novo PNE. “O texto da moção é a representação explícita, direta e enunciada daquilo que se está pensando, ao passo que o que vai para o documento referência é fruto de um processo de negociação. Por isso, várias questões que aparecem em ambos os processos não aparecem no documento referência com os mesmos termos que aparecem nas moções aprovadas”, explica Sergio Stoco, membro do FNE e coordenador de um dos eixos da CONAE 2024. 

Mas legitimar certas agendas por moções é importantíssimo, como ressalta a professora Denise Carreira, porque elas podem ser utilizadas como instrumento de pressão política durante a tramitação do novo PNE ao demandar políticas e programas que enfrentem os desafios colocados nas moções e demais deliberações. Elas também podem ser utilizadas em ações junto ao Sistema de Justiça, em iniciativas no Congresso Nacional e em relatórios e denúncias às instâncias de direitos humanos, como às vinculadas à Organização dos Estados Americanos (OEA) e à Organização das Nações Unidas (ONU).

Foram 57 moções aprovadas na edição de 2024, sendo quatro delas propostas pela Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação: pelo direito à educação e contra a censura nas escolas: “NÃO AO SILÊNCIO E AO MEDO: por uma política de promoção da igualdade de gênero, raça e diversidade sexual na educação – promovendo direitos e enfrentando violências e discriminações contra meninas, mulheres e população LGBTQIA+”; “Inclusão de movimentos sociais e organizações da sociedade civil como segmento da próxima CONAE”; “Moção pela desmilitarização da educação básica e em defesa da educação democrática”; e “Moção contra a liberação da educação domiciliar e em defesa do investimento nas escolas públicas”. “Pela Revogação do Novo Ensino Médio | O Novo Ensino Médio aprofunda Desigualdades e é Retrocesso para Educação Pública, por isso Defendemos sua Revogação. Não Podemos Retroceder!” foi uma moção submetida pela Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS), Campanha Nacional pelo Direito à Educação e Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES/UNICAMP).

A desmilitarização urgente de escolas públicas é uma demanda já antiga de diversas entidades e coletivos do campo da educação. “Somente o fim do decreto do Programa de Escolas Cívico-militares pelo governo federal em 2023 – fruto da pressão da sociedade civil – não deu conta desse desafio, já que muitas escolas públicas seguem militarizadas e governos estaduais anunciaram a expansão de programas de militarização”, justifica Denise Carreira. Já a moção contra a liberação da educação domiciliar, tema que está no Senado, será mobilizada pela Articulação no convencimento de parlamentares contra a medida. 

A moção que reforça a urgência de uma política de promoção da igualdade de gênero, raça e diversidade sexual na educação é, por sua vez, chave para pressionar o Ministério da Educação e o governo federal a enfrentar o desafio de construir e implementar políticas robustas e urgentes, inclusive no enfrentamento da violência contra meninas, mulheres e população LGBTQIA+. “É importante ter essa moção aprovada para enfrentar o silêncio e o medo de forças progressistas com relação a essas agendas, sequestradas nos últimos anos por grupos de extrema-direita que promovem pânico moral, desinformação e perseguições às escolas, visando atacar políticas públicas comprometidas com o enfrentamento das desigualdades e à própria democracia”, reforça Denise. 

Por sua vez, a inclusão dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil como segmento da CONAE é fundamental para ampliar a participação de sujeitos que foram decisivos na resistência ao desmonte das políticas e programas educacionais dos últimos anos e na formulação de propostas para as políticas públicas. “Essa moção traz uma provocação ao Fórum Nacional de Educação quanto à importância de maior radicalização dos processos de participação social comprometidos com o fortalecimento da democracia e a concretização de direitos constitucionais”, reforça a integrante da coordenação da Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação e sócia-educadora da Ação Educativa. 

A luta por um PNE que enfrente as desigualdades educacionais nunca para 

As demandas que constam no documento referência da CONAE e que vão servir de base para o novo texto do PNE não vêm de agora. Foram construídas ao longo de anos, senão décadas. Da mesma forma, a luta não se encerra com o fim da CONAE. O PNE ainda tem um longo caminho até sua aprovação, podendo sofrer alterações substanciais. Por isso, a sociedade civil e os movimentos comprometidos com a educação pública e de qualidade precisam continuar vigilantes para que essas demandas históricas sigam contempladas no texto que vai virar lei. 

“É importantíssimo ter um documento, mas precisamos ter pessoas lutando pelo documento, senão ele de nada serve”, diz Sergio Stoco, destacando a importância da sociedade civil em todas as próximas etapas – do texto do MEC até a tramitação legislativa. “As pessoas que participaram [da CONAE] têm que estar conscientes de que continuam sendo pessoas responsáveis por esse processo”, completa. Até porque, depois da aprovação do PNE, seguem as construções dos planos de educação estaduais e municipais. E as batalhas em torno do termo “gênero” na tramitação do atual PNE, dez anos atrás, ilustram bem a importância de seguir na luta: apesar de inicialmente constar no texto apresentado pelo governo, a intensa campanha de grupos conservadores à época conseguiu retirar todas as menções à gênero do texto final, o que deu brecha para que planos abertamente antigênero fossem aprovados em outros níveis, e fomentou uma onda de censura e perseguição nas escolas de todo o país

Por isso, como a Uneafro reforça, o esforço é para assegurar o que foi contemplado, mas também para melhorar onde for possível. Por exemplo, trazendo a agenda da equidade racial de forma mais estrutural. “Já estamos pensando em toda uma agenda em torno do PNE, com um plano de acompanhamento do processo, além de ações mais pontuais. Independente do texto final apresentado, temos que nos preparar para a luta”, resume a ativista Adriana Moreira.


Os desafios para efetivar gestão democrática em Conferências de Educação no Brasil

Um PNE Pra Valer requer o fortalecimento da participação de movimentos sociais e sociedade civil organizada nas instâncias e processos de gestão democrática em educação 

II Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena
II Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena/ Divulgação

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

A Conferência Nacional de Educação (Conae), que acontece de 28 a 30 de janeiro em Brasília, tem uma missão nada simples: formular as diretrizes, metas e estratégias que irão construir o novo Plano Nacional de Educação (PNE). Com o tema “Plano Nacional de Educação 2024-2034: Política de Estado para garantia da educação como direito humano com justiça social e desenvolvimento socioambiental sustentável”, a Conferência foi convocada em caráter extraordinário, assegurando a presença da sociedade na construção do novo PNE, que ainda não tem texto consolidado. 

A ideia é que dessas discussões, que incluem a avaliação dos problemas e necessidades do PNE atual, saia o documento de referência para o próximo Plano – cuja elaboração fica a cargo do Fórum Nacional de Educação para posterior apresentação no Congresso. Serão sete eixos de discussão sobre o PNE. 

“Conferências são tecnologias sociais que representam uma ruptura com a manutenção do status quo dominante, uma vez que a participação social é um direito e, se é um direito, é para todas as pessoas”, resume o co-fundador do Movimento Negro Unificado (MNU), Adão de Oliveira, que ressalta que “se não há participação social efetiva, há continuidade do sistema escravagista, em que uns decidem pelos outros”. 

Rubens Barbosa de Camargo, professor sênior da Faculdade de Educação da USP e membro da diretoria da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca) explica que há vários mecanismos possíveis de participação social para viabilizar a gestão democrática, como Conselhos, fóruns, conferências, consultas públicas, além da eleição de diretores e outros gestores. “Nenhum desses mecanismos foi dado, foram todos forjados numa luta – quem defendeu a gestão democrática sempre foi, historicamente, os movimentos sociais”, diz o professor. 

Seguindo o processo que é comum às Conferências, as etapas municipais e estaduais da CONAE precederam a etapa nacional, sendo realizadas em 2023. Nelas, delegadas e delegados e seus suplentes foram eleitos para a última etapa. 

CONAE 2024: retomada do processo democrático

Em um Brasil que tenta se recuperar de anos de erosão da democracia e da participação social desde o golpe parlamentar de 2016, a efetivação da gestão democrática em espaços institucionais como a CONAE permanece sendo um desafio. “A gestão democrática é um princípio constitucional desde 1988, é relativamente novo comparado a outros princípios como a obrigatoriedade e a gratuidade de serviços como a educação”, explica Rubens, da FEUSP e da Fineduca. 

Esta será a quarta edição da CONAE – as outras foram em 2010, 2014 e 2018 -, e é marcada pela retomada do diálogo entre governo e sociedade civil, relação que foi interrompida na gestão Bolsonaro que esvaziou o sentido da CONAE de promover um debate amplo e democrático sobre os rumos da política educacional do país. Foi quando movimentos sociais e a sociedade civil organizada deixaram de enxergar na CONAE um espaço legítimo de discussão e de avanços democráticos norteados pela Constituição e pelo PNE. E quando diversas entidades do campo educacional se articularam e criaram, em resposta, o Fórum Nacional Popular de Educação (FNPE). O FNPE organizou, em 2018 e 2022, a Conferência Nacional Popular de Educação (Conape), e monitorou e defendeu o PNE paralelamente às instâncias oficiais. 

“Todo o processo de construção democrática, previsto na Constituição e que vinha se concretizando desde o PNE de 2001, foi alterado”, reforça Adão de Oliveira, co-fundador do Movimento Negro Unificado (MNU) de São Paulo e integrante do Fórum Municipal de Educação da capital. “O [atual] PNE teve interferência e influência de todos os setores, da esquerda à ultradireita. Tanto no FNE como no CNE tínhamos o mais próximo possível da democracia. Mas após o impeachment da presidenta Dilma, o FNE foi praticamente extinto em sua finalidade, o MEC passou a ser o mandatário de tudo. Foi um crime”, lembra o ativista. 

Rubens Barbosa de Camargo, professor sênior da FEUSP e membro da diretoria da Fineduca, também posiciona a época do impeachment de Dilma Rousseff como uma ruptura no que vinha sendo construído e implementado pouco a pouco em termos de participação social. “Quando o Fórum Nacional de Educação teve sua composição alterada, ele ainda era entendido como um órgão de Estado com a função de organizar conferências e acompanhar a efetivação do PNE vigente. Mas o Brasil é um país de pouca tradição democrática, onde parte da população não acredita nessa perspectiva. Exemplo foi a extinção dos muitos Conselhos em 2019 [um dos primeiros atos do governo Bolsonaro], o que ilustra a importância do princípio da gestão democrática tornar-se parte das unidades escolares e dos sistemas de educação”, opina. 

Adão, do MNU, vê com preocupação o fato de que mesmo após a derrota da extrema-direita nas urnas e com a retomada do processo democrático nem todas as mudanças tenham sido revertidas. “Esse ataque à participação social prevaleceu até o fim do governo Temer, se agravou no governo Bolsonaro, mas ainda não se reverteu no governo Lula, porque o FNE e o CNE ainda não voltaram totalmente à antiga composição”, explica ele. 

Para o professor Rubens Barbosa de Camargo aprimorar a democracia é um trabalho longo e de aprendizado contínuo. “É um problema que só se resolve quanto mais praticamos a própria democracia. Temos vários Conselhos de Educação que estão tomados por grupos de origem neoliberal, que pouco pensam no interesse público, e precisamos sim debater essas composições, mas são problemas que aprendemos conforme os vivenciamos. Com o próprio PNE que está se encerrando agora já aprendemos muito”. 

Desafios à efetivação da gestão democrática e movimentação conservadora

Coordenada pelo Fórum Nacional de Educação (FNE), a CONAE tem papel fundamental na construção do PNE que, por sua vez, é o principal instrumento da política educacional brasileira. O que é levantado e debatido na Conferência deve ser incorporado no texto do Plano aprovado. Por isso, é vital que estejam representados, na Conferência, os diversos setores da sociedade brasileira e das comunidades escolares: trabalhadoras e trabalhadores da educação, estudantes de diferentes níveis, vozes da educação do campo, quilombola, indígena, dos movimentos negros, LGBTQIA+, de mulheres, da sociedade civil organizada e dos movimentos sociais em geral. É somente com participação efetiva desses grupos que as políticas educacionais podem refletir as reais necessidades do país e caminhar no sentido da redução das desigualdades educacionais. É urgente pautar, por exemplo, a incorporação das perspectivas de gênero e raça de forma articulada em todos os Eixos do Documento Referência que subsidia a CONAE e o novo PNE. 

Mas há desafios para a etapa nacional da CONAE 2024: desde que foi convocada, a CONAE tem recebido críticas pelo curto intervalo entre as etapas, que podem ter simplifcado ou encurtado o debate em uma agenda tão fundamental. Esta edição da conferência conta com uma delegação menor do que a de 2014 – a última antes do rompimento do processo democrático – são cerca de mil delegados a menos. Além disso, os recursos não custeiam as despesas de todas as pessoas participantes, apenas de quem tem status de delegada/o. E movimentos sociais e sociedade civil organizada comprometidos historicamente com as agendas dos Direitos Humanos não foram considerados Setores nas eleições de delegadas e delegados nas etapas municipais e estaduais. 

Esses aspectos podem fazer com que alguns grupos de atuação histórica, como o Movimento Negro Unificado (MNU), fiquem de fora. “O MNU teve indicação como delegado e cheguei a passar meus dados para o Ministério. Recebi informações sobre a emissão da passagem aérea, mas depois fui informado que houve uma ‘revisão’ e que nossa presença seria avaliada. Até o momento, ainda não recebi nenhuma outra mensagem de confirmação ou não”, narra Adão de Oliveira, do MNU. 

São limitações e obstáculos que afetam a efetivação da gestão democrática em educação. “Se isso está acontecendo é porque mudanças em sentido antidemocrático permanecem nesse governo, porque não houve força social suficiente pra alterar isso”, critica o ativista, reforçando que o movimento negro tem propostas concretas para apresentar na CONAE, como um Plano Nacional de Implementação da lei 10.639/03, que prevê recursos específicos para esse fim. 

Somando a esses problemas, matéria recente do Intercept Brasil mostrou que bolsonaristas organizaram força-tarefa para incidir na conferência, tentando pautar temas como Escola Sem Partido e educação domiciliar, além de planejarem fortalecer perspectivas reacionárias, como uma visão reducionista de “família” que teria primazia em relação às políticas  públicas. Segundo a apuração do Intercept, os grupos – que aparentemente não têm representação entre delegadas e delegados eleitos para a Conae – buscam não apenas tumultuar o evento, mas ampliar a influência das frentes ultraconservadoras nos estados e municípios, que também elaborarão seus planos de educação após a aprovação do novo PNE. Para o professor da FEUSP Rubens Barbosa de Camargo, o embate com visões opostas faz parte do processo, desde que em uma perspectiva democrática. “É curiosa a tentativa [da direita] de ocupar espaços institucionais, coisa que não permitem quando são eles que estão no Poder. Por isso sentimos que as forças não estão balanceadas. Mas na Conferência leva a melhor o setor que estiver mais organizado, e acredito que sejam os progressistas”, avalia. No entanto, como ele reitera, é importante não perder de vista que as batalhas por um PNE Pra Valer estão apenas começando. “Embora tudo tenha sido meio apressado, é muito possível que saiamos da CONAE com um bom texto, mas ele vai precisar ser aprovado pelo Congresso, e é lá que a disputa é muito mais incoerente e complicada. A briga que vem depois torna ainda mais crucial sair com um bom texto-base da Conae”, acrescenta. 

Serão muitas as frentes de batalha da Conferência que se inicia nesta semana, e que, embora marcada por muitos desafios e pelo retrocesso democrático que assolou o Brasil na última década, ainda tem o potencial de construir as bases para o retrocesso ser revertido. Nas palavras do professor Rubens: “apesar de todos os percalços na construção da CONAE, não tenho dúvida que o que temos é muito melhor do que se o texto do PNE fosse produzido em um gabinete e sem nenhuma participação. O fato de muitos grupos não verem a perspectiva democrática como fundamental é exatamente o que torna mais importante do que nunca demonstrar que ela é possível, importante, viável e apresenta as melhores soluções para a educação nacional”.

BAIXE A CARTILHA “Em defesa de processos participativos e gestão democrática para a construção de um novo PNE”