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Estudantes demandam discussões sobre gênero, raça e sexualidade na escola

Projetos elaborados por estudantes comprometidos com um Ensino Médio de qualidade reforçam a necessidade da abordagem das agendas, apesar de resistências da comunidade escolar

Projetos elaborados por estudantes comprometidos com um Ensino Médio de qualidade reforçam a necessidade da abordagem das agendas, apesar de resistências da comunidade escolar
Arte: Dillasete

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira 

Se desde 2013, nas discussões sobre o atual Plano Nacional de Educação (PNE), setores conservadores tentam retirar a discussão de gênero das escolas, as comunidades escolares, especialmente estudantes, nunca deixaram de pautar e reivindicar as agendas que consideram primordiais no ambiente escolar, ainda que encontrem resistência. Prova disso são as formações de redes contra a censura na educação e as muitas iniciativas estudantis que seguem demandando discussões sobre gênero, raça e sexualidade para promover o respeito com todas as pessoas, prevenir violências e avançar na melhoria da qualidade educacional. 

Algumas dessas iniciativas se inscreveram e foram contempladas pelo Edital “EM LUTA – Estudantes por um Ensino Médio de Qualidade!”, promovido pelo projeto Tô no Rumo, da Ação Educativa, em 2022. Nelas, estudantes da grande São Paulo receberam apoio para levar suas demandas para a escola pública: organizaram palestras, oficinas, slams e debates, muitas vezes sem o apoio da diretoria ou coordenação pedagógica. E reafirmaram que escola é sim um espaço para combater o racismo, sexismo e a LGBTfobia.  

O projeto “Lute como uma garota” é um exemplo da persistência das estudantes. Duas alunas do terceiro ano do Ensino Médio, com base em experiências pessoais e de outras meninas dentro da escola, viram a urgência de debater e combater o assédio sexual e moral, principalmente contra jovens negras. Em 2022, conseguiram organizar 3 dias de palestras sobre gênero, raça e sexualidade, realizadas por uma facilitadora externa, além de fazer intervenções pela escola (no Jardim Varginha/SP) com informações sobre legislação e sobre como procurar ajuda em caso de violência, inclusive psicológica. 

“Dar início ao projeto foi bem difícil, e acabamos atrasando porque a direção, apesar de formalmente apoiar o projeto, resistiu muito. Nós apresentamos o projeto em todas as reuniões com os professores, além da direção, e o diretor não estava presente para apoiar. Mas depois que conseguimos realizar a primeira palestra correu com mais facilidade”, relata Bianca*, de 18 anos, uma das idealizadoras do “Lute como uma garota”. 

Em contrapartida, tanto as alunas e alunos impactados pela iniciativa como o corpo docente demonstraram grande aceitação. “A resistência veio justamente daqueles que praticavam assédio, mas foi uma minoria”, conta Bianca. Os três dias de oficina, segundo ela, fomentaram e muito a discussão sobre assédio na escola – um problema que partia de professores ou funcionários contra alunas, mas também de alunos contra professoras. A questão era tão presente na escola que até mesmo alunos do ensino fundamental fizeram parte do projeto (as conversas com esse público tiveram linguagem e conteúdo adaptado para a faixa etária e etapa). Uma intervenção que se mostrou tão necessária que mesmo que as idealizadoras do projeto tenham concluído o Ensino Médio em 2022, a comunidade escolar se movimenta para dar seguimento ao “Lute como uma garota”. 

Já em uma escola estadual de Sumaré, quatro estudantes do segundo ano do EM interviram para trazer discussões de autoconhecimento e educação sexual para os colegas. “Percebia que a falta de autoconhecimento e de conhecimento sobre essas questões estava atrapalhando as relações sociais dentro da escola. Notamos que no local onde mais temos interações sociais, éramos reprimidos”, lembra Julia*, que idealizou o projeto “Em busca do seu eu”. A iniciativa tinha o objetivo de falar abertamente sobre raça, igualdade de gênero, orientação sexual, capacitismo e temas correlatos, a fim de acolher estudantes, trabalhar a autoestima e incentivar uma cultura de respeito e de combate a preconceitos e discriminações. 

Neste caso, planejar foi a parte fácil. Difícil foi vencer a resistência de pais e responsáveis em tocar no assunto. Foram, por exemplo, veementemente contra a distribuição de um kit de prevenção a ISTs e gravidez, e conseguiram vetar a iniciativa. Ou melhor, a própria escola achou melhor vetar com medo das represálias. “Tivemos que ter esse cuidado por conta da resistência da comunidade escolar, que não permitiu que fizéssemos tudo que estava originalmente previsto”, conta Julia. Ela, que inscreveu mais de um projeto no Edital, conta que o “Em busca de seu eu”, por tratar de temas tabus, era sempre visto com algum medo, desconfiança ou “pé atrás”. Mas ainda foi possível concretizar várias ações: levaram uma psicóloga para falar com as/os/es estudantes, fizeram gincanas de autoconhecimento, trabalharam as emoções, realizaram uma intervenção artística e distribuíram a cartilha “Por que discutir gênero na escola?”. 

“A palestra da psicóloga foi muito boa, especialmente porque fazia tempo, por conta da pandemia, que não tínhamos essa atividade presencial. No fim, tanto estudantes como familiares gostaram. A apresentação da artista Lila May foi muito interativa, e foi seguida por uma roda de conversa sobre como as mulheres são tratadas na sociedade e na escola”, relembra Julia. A estudante, agora no último ano do Ensino Médio, avalia que o projeto foi bem-sucedido com base no retorno das/dos/des jovens e também da equipe da escola, que, segundo ela, começou a tocar mais nestes assuntos. O professor de biologia do Ensino Médio, por exemplo, viu na iniciativa a deixa perfeita para falar de educação sexual e prevenção a ISTs nas aulas. “Mostramos que dá para abordar um assunto ‘pesado’ para a comunidade escolar. Faltava alguém colocar a ideia na mesa para as pessoas abraçarem”, resume a estudante. 

Essa conclusão vai inteiramente ao encontro do que mostrou a pesquisa “Educação, Valores e Direitos”, realizada em 2022 pelo Centro de Estudos em Opinião Pública (Cesop/Unicamp) e coordenada pela Ação Educativa e pelo CENPEC. Os resultados deste amplo estudo, que ouviu mais de 2.000 pessoas de 16 anos ou mais em todas as regiões do país, mostram que, na verdade, a população brasileira apoia a discussão sobre gênero, raça e sexualidade na escola, bem como tem opiniões progressistas em relação à militarização das escolas e à educação religiosa. Por exemplo, sete em cada dez entrevistados acreditam que a escola está mais preparada que os pais para explicar temas como puberdade e sexualidade, e nove em cada dez concordam que a discriminação racial deve ser debatida pelos professores. Quase 90% de quem respondeu à pesquisa concorda com a discussão sobre desigualdades entre homens e mulheres e quase 80% concorda que os pais não devem ter o direito de tirar seus filhos da escola e ensiná-los em casa. E o apoio da população à abordagem da igualdade de gênero e da educação sexual se torna ainda maior quando esse termo é concretizado em questões como o enfrentamento ao abuso sexual contra crianças e adolescentes e a violência contra mulheres.

“Uma das grandes contribuições da pesquisa é evidenciar o poder da vivência cotidiana para tensionar e, muitas vezes, desmontar discursos conservadores”, ressalta Denise Carreira, professora da Faculdade de Educação da USP/SP que coordenou a pesquisa pela ONG Ação Educativa e integrante da Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala. “Na perspectiva da educação popular, constatamos que quando aterrissamos o debate em experiências das pessoas em suas famílias e comunidades, as posições muitas vezes mudam. Posições contrárias às agendas de direitos humanos são repensadas quando se ativa casos concretos que mostram como, por exemplo, a educação sexual integral tem um papel decisivo na prevenção de casos de abuso sexual de crianças e adolescentes. Há complexidade, contradições e brechas que favorecem a retomada e o fortalecimento de uma agenda comprometida com a educação em direitos humanos, uma educação em prol da igualdade de gênero, raça e sexualidade, que estimule uma perspectiva crítica frente às nossas profundas desigualdades e à história autoritária e violenta do país”, completa. 

O projeto “Diversidade e inclusão na prática: educação igualitária e de qualidade para todos”, executado em uma escola em Poá/SP, é ilustrativo dessa complexidade. Proposto pelo coordenador pedagógico em parceria com alunas do segundo ano do ensino médio, tinha como objetivo promover a reflexão da comunidade escolar sobre temas urgentes como racismo, homofobia, diversidade de gênero, inclusão, violência, intimidação, saúde mental e qualidade da educação, especialmente considerando o contexto de retorno às aulas presenciais pós pandemia de COVID-19 e da reforma do Ensino Médio. Mais uma vez, familiares e responsáveis se opuseram à iniciativa, que tinha boa aceitação entre os corpos docente e discente. A tentativa de coação chegou a tal ponto que o projeto foi “denunciado” para o mandato da deputada Carla Zambelli, que enviou um e-mail para a escola acusando-a de “ideologia de gênero” e de tentar “doutrinar” estudantes. Felizmente, a escola não embarcou na tentativa de represália e o projeto seguiu mesmo assim. 

“Nós pensamos no projeto para tentar abrir a cabeça dos alunos, para ter uma visão mais abrangente sobre o que é viver em sociedade”, define Patrícia*, uma das idealizadoras do projeto. “Tínhamos muitas denúncias de brincadeiras de mau gosto ou ações violentas contra alunos da comunidade LGBTQ, por exemplo. E achamos que um dos motivos disso é a falta de informação ou de iniciativa da escola de ensinar sobre isso”, explica ela, que ressalta que nenhuma dessas agendas constava na nova grade da escola de acordo com o Novo Ensino Médio. “Esse modelo está sendo horrível. O que vemos é só uma sobrecarga dos professores, isso quando há professores. Eu escolhi o percurso de artes, mas não tive uma única aula de artes no ano porque não havia professores. Tentaram colocar mais coisa onde não se tem o básico”, critica. 

Neste contexto, as ferramentas encontradas pelo projeto para suscitar o debate foram a realização de palestras participativas, uma excursão até a USP e uma batalha de slam – com participação de uma slammer LGBT convidada para disparar a reflexão, intervenção que deu tão certo que não se encerrou com o projeto. As denúncias de agressão dentro da escola diminuíram, alguns alunos pediram desculpas por comportamentos passados e, segundo Patrícia, algumas “piadas” ou “brincadeiras” pararam. 

Ou seja, mesmo em contextos adversos é possível pensar em soluções e iniciativas para discutir temas urgentes na escola – e as estudantes mostram que querem falar sobre isso. E que tais intervenções podem sim fazer a diferença. Como ressalta Denise Carreira, da FEUSP e rede Malala, “os coletivos e movimentos juvenis têm sido decisivos por alimentar esse debate no cotidiano escolar, pressionando às escolas, às universidades e às políticas educacionais a transformarem seus currículos. Têm sido decisivos por empurrar estas agendas pra frente em um contexto adverso, caracterizado por ataques diversos à laicidade de Estado e pela censura e grande autocensura nas escolas. Precisamos que a política educacional reconheça as demandas, as propostas e acúmulos juvenis e estudantis, em articulação com o estímulo e a valorização de experiências promovidas por coletivos docentes, com a urgente retomada de políticas de formação para profissionais de educação sobre essas agendas. A política educacional precisa enfrentar a atmosfera de medo e insegurança nas escolas, decorrente da ação de grupos ultraconservadores, afirmando a necessidade fundamental da retomada e fortalecimento do debate sobre gênero, raça e sexualidade em creches e escolas”.

*Os nomes das estudantes foram alterados para sua proteção. 

Os grandes desafios para a educação no governo Lula

Abandonado e inviabilizado desde o golpe de 2016, PNE volta ao horizonte na transição do governo. Desafio é revogar medidas de austeridade que o sufocaram

Movimentos sociais e entidades da Educação reúnem-se na CONAPE 2022, em Natal, em defesa da educação pública, democrática, laica inclusiva e de qualidade para todas e todos. Foto: Jordana Mercado/CNTE

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

O novo governo Lula ainda não começou, mas tem inúmeros e urgentes desafios pela frente. Em todas as áreas, como apontam os boletins do gabinete de transição, o cenário deixado por Bolsonaro é de terra arrasada. A educação não apenas é um dos campos mais afetados pelos cortes orçamentários, mas também sofre com a ausência  da participação social e da gestão democrática. No centro dessa tempestade, um completo abandono do Plano Nacional de Educação (PNE) que, embora tenha vigência até junho de 2024, nunca norteou as políticas educacionais do atual governo – e desde o golpe parlamentar de 2016 tem sido, na prática, descontinuado pelas sucessivas políticas de austeridade.

O primeiro relatório da equipe de Educação do gabinete de transição corrobora essa percepção. De acordo com o colegiado, o Ministério da Educação (MEC) durante o governo Bolsonaro “perdeu protagonismo na execução orçamentária de programas, ações e investimentos” e teve sua condução marcada pela “inaptidão técnica, aversão ao diálogo e improviso”. O relatório, entregue no dia 30 de novembro com diagnósticos e recomendações para o novo governo, não é público (os trechos acima foram obtidos pelo G1), e um novo documento ainda deve ser entregue durante o mês de dezembro. “A Comissão de Transição tem como objetivos fazer um diagnóstico da situação em cada área e propor ações imediatas que o governo pode fazer logo após a posse. Mas não é possível ter certeza de que as recomendações serão acatadas, porque elas ainda precisam ser aprovadas pela Coordenação Geral, que filtra o que é ou não encaminhado ao novo governo que, por sua vez, também dá seu aval sobre colocar a recomendação em prática ou não”, explica Heleno Araújo, Presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e membro da equipe de transição em educação. Ou seja, ainda há muito espaço para disputa das pautas. 

“As agendas prioritárias se dividem entre aquelas a serem recolocadas na centralidade e voltarem a avançar, como o PNE, regulamentações e orçamento, e aquelas a serem revogadas  – como o Teto de Gastos e novo Ensino Médio”, resume Andressa Pellanda, coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que também destaca a centralidade das pautas de recomposição do orçamento e recuperação dos impactos da pandemia de Covid-19. Heleno também destaca a defesa intransigente do uso de recursos públicos para a educação pública. “Todos os atores que quiserem contribuir são bem-vindos, mas não podem receber dinheiro público. Não podemos continuar com a política de entregar as escolas públicas ao setor privado, aos militares da reserva, às famílias”, reforça. “Precisamos retomar o Plano Nacional de Educação como epicentro das políticas educacionais do nosso país”. 

Outros pontos abordados no primeiro relatório já entregue foram a redução de recursos para as políticas educacionais e o desmonte de programas como o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), o Programa Universidade Para Todos (Prouni) e o Proinfância. O gabinete de transição na área converge também em reverter projetos ultraconservadores da agenda de Bolsonaro, como a educação domiciliar e a militarização. 

Mas, apesar dos muitos consensos, a composição heterogênea do GT reflete as disputas do campo e são um prenúncio de que a luta por uma educação pública, gratuita, laica e de qualidade para todas e todos seguirá no novo governo. Tópicos como o Sistema Nacional de Educação (SNE), o Custo Aluno-Qualidade (CAQ) e a revogação da Emenda Constitucional 95 (EC 95, do Teto de Gastos) e do Novo Ensino Médio continuarão em disputa, bem como a urgência em assegurar os mecanismos de participação e controle social. “Pelo cenário posto na Transição e frente ampla de coalizão formada ao redor de Lula, com inclusão de representações do campo empresarial que gestaram e sustentaram as reformas de Estado e na área da educação desde Temer, vejo com preocupação como serão encaradas essas agendas, já que apoiam tais reformas”, alerta Andressa. “Desde antes de começar o novo governo já estamos vendo que o reformismo neoliberal não deve ser deixado tão enfaticamente quanto deveria para a retomada da centralidade das políticas sociais com financiamento adequado e gestão democrática”, completa. 

Centralidade do PNE e financiamento da educação pública

Como a Iniciativa De Olho nos Planos vêm reportando ao longo de anos, a mais importante política educacional brasileira e fruto de anos de debates com intensa participação social, foi escanteada no governo Bolsonaro. O último monitoramento da Campanha Nacional pelo Direito à Educação mostrou que 86% das metas e indicadores não serão cumpridas até o fim da vigência do PNE se o ritmo atual for mantido. E além do descumprimento há metas em retrocesso. Ou seja, retomar a centralidade dos Planos no próximo mandato é primordial para o país voltar a avançar em educação e reduzir as desigualdades educacionais e sociais.

O Plano Nacional de Educação (PNE, Lei 13.005/14) aprovado em 2014 após acirrada tramitação no Congresso foi uma vitória da sociedade civil e dos movimentos sociais da área da Educação, sublinhando a importância do planejamento educacional, orientando o investimento e a gestão, além de referenciar o controle social e a participação cidadã. Mas começou a ser esvaziado já em 2015 com medidas de ajuste fiscal do segundo governo Dilma. E a aprovação da EC 95 em 2016, que constitucionalizou os cortes orçamentários por 20 anos, inviabilizou qualquer progresso real, já que sem novos recursos é impossível cumprir várias das metas do PNE que preveem, por exemplo, aumento de matrículas. Fora o efeito em cascata do descumprimento da meta 20,  que ​​versa sobre a ampliação do investimento público em educação pública. O resultado deste abandono é que persistem as desigualdades educacionais entre brancos e negros no país, bem como as desigualdades regionais e disparidades entre rede pública e privada. 

A boa notícia é que a proposta de governo de Lula para seu terceiro mandato não apenas mencionava a retomada do PNE, mas também a necessidade de investir em educação de qualidade e de revogar o Teto de Gastos. Uma preocupação ausente, por exemplo, na proposta da então candidata Simone Tebet, que agora compõe um dos GTs da equipe de transição. Lula também prometeu assegurar a continuidade das políticas de cotas sociais e raciais na educação superior e nos concursos públicos federais, bem como sua ampliação para outras políticas públicas. Um ponto de atenção é que sua proposta não cita as Leis 10.639/03 que completará 20 anos em 2023, e a 11.645/08, que tornaram obrigatório o ensino e a cultura africana, afrobrasileira e indígena em todas as escolas públicas e privadas do Brasil. Isso evidencia o enorme desafio no reconhecimento do racismo como estruturante das desigualdades no país. 

Apesar da aprovação do Novo Fundeb no final de 2021 com aumento da contribuição da União ao Fundo, o novo governo deve se atentar à regulamentação do VAAR (Valor Aluno Ano por Resultado) no Fundeb como ponto estratégico de entrada da luta contra o racismo no financiamento. Assim, a distribuição de 2,5% da complementação da União deve ser feita conforme indicadores de atendimento e melhoria da aprendizagem que visem reduzir as desigualdades nos termos do  Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SINAEB), incorporando dimensões e processos avaliativos que envolvam a participação das comunidades escolares e captem desafios referentes às desigualdades educacionais, aos insumos (CAQ) e aos processos pedagógicos. 

E além do desafio de retomar a centralidade do atual PNE, o terceiro mandato de Lula abarcará o período final de sua vigência, tendo ainda que construir e propor um novo Plano Nacional de Educação para entrar vigorar a partir de julho de 2024.

“Entendo que os maiores desafios para o próximo mandato são reestabelecer o financiamento, que foi diminuindo ano a ano principalmente por conta da EC 95, e reestabelecer a participação social, muito afetada por exemplo pela Portaria 577 do MEC, que desconfigurou o Fórum Nacional de Educação ao retirar a participação da sociedade civil. Revogar a EC 95, reestabelecer a previsão orçamentária e  o retomar o diálogo são os objetivos, sempre tendo o PNE como norte”, destaca Heleno Araújo. 

EJA e Ensino Médio

Não há modalidade ou etapa de ensino que tenha passado ilesa pelo governo Bolsonaro. As universidades federais não têm verbas para pagar residentes e bolsistas, a alimentação escolar teve reajustes vetados, sobrecarregando ainda mais estados e municípios. A Educação de Jovens e Adultos (EJA) foi quase totalmente desfinanciada – em 2022 o orçamento de 8 milhões de reais é apenas 0.44% do que foi em 2012. Esses desafios dão a urgência da revogação da EC 95 para que o país volte a investir em educação de qualidade para todas e todos e não deixe ninguém para trás. 

Os últimos balanços do PNE também mostram que nesse cenário geral de desmonte e destruição, algumas metas estão particularmente prejudicadas. Entre elas, as que se referem à  redução de desigualdades, o combate ao analfabetismo e o Ensino Médio. O novo Ensino Médio, como destacou a Campanha em balanço, é um marco negativo para o cumprimento da Meta 3, que diz respeito à universalização do atendimento escolar para a população de 15 a 17 anos e ao aumento das matrículas nesta etapa. Mas a reforma dá margem à privatização e não garante as condições necessárias nas escolas como infraestrutura e falta de professoras/es com formação adequada. Na prática, como destaca a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) em nota técnica sobre o tema, acirra as desigualdades educacionais, aumentado o fosso entre estudantes da rede pública e da rede privada e mesmo dentro da rede pública. “A reforma do ensino médio continuará em pauta porque está se destruindo por si própria – além de ser totalmente descabida em termos de educação, não há condições para implementá-la”, destaca a coordenadora geral da Campanha, Andressa Pellanda.

Por isso, em 2022, diversas organizações, incluindo a Ação Educativa, assinaram uma carta aberta pela revogação da Reforma do Ensino Médio. Essa não é uma posição unânime no campo da educação, e por isso embates nesse tema podem acontecer no governo Lula. Mais uma vez, será necessária grande mobilização e pressão dos setores progressistas da Educação para garantir que visões privatistas não se imponham na discussão. 

Pautas ultraconservadoras

Muitas foram as agendas ultraconservadoras na Educação impulsionadas por Bolsonaro ao longo de seu mandato: a militarização das escolas, a educação domiciliar, enfraquecimento da laicidade e a criminalização de debates sobre gênero, raça e direitos humanos são alguns deles. 

A militarização, por exemplo, foi intensificada logo no início do governo, através de portaria de 2019 que criou o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim). Nesse modelo, o estado ou o município assinam termo de cooperação com o MEC e policiais militares ou das Forças Armadas podem atuar dentro das escolas, com função pedagógica, administrativa e disciplinar. E foi consenso entre a equipe de transição que o novo governo deve revogar essa portaria e tentar reverter o processo de militarização tão impulsionado por Bolsonaro. Como enfatizou a professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UNB), Catarina de Almeida Santos, em webinário promovido pela Iniciativa De Olho nos Planos, tão importante quanto não fomentar essa agenda é tentar reverter o processo de militarização. 

Resta saber se isso, de fato, acontecerá, e se o novo governo Lula será bem sucedido em desmobilizar uma demanda que tem certo apoio popular e que também pode ser implementada a nível estadual ou municipal. Um exemplo: em 2020, o estado do Paraná sozinho anunciou a adesão de 216 escolas da rede estadual a esse modelo, processo implementado sob a gestão de Renato Feder, recentemente anunciado por Tarcísio de Freitas  como futuro Secretário de Educação em São Paulo a partir de 2023, um risco para a qualidade das escolas no Estado. 

INEP

O primeiro relatório da equipe de transição, segundo o G1, também apontou  fragilidades na coordenação do MEC para a elaboração das provas do Enem. Isso pode ser um sintoma das sucessivas tentativas de desmonte do órgão responsável por elas, o  Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Na gestão Bolsonaro, foram muitas as intervenções no Inep na tentativa de deixar o Enem com “a cara do governo” – e se não houve intervenção ideológica na escolha das questões, o ano de 2021 foi palco do Enem mais branco da história. Além disso, microdados do Censo Escolar foram descartados pelo Inep, o que causou reação de entidades, redes de pesquisa e movimentos sociais. 

O INEP teve sucessivas trocas de dirigentes e ataques à burocracia – por exemplo, uma proposta de Reforma Administrativa que retira a estabilidade dos servidores que foram cruciais na resistência ao desmonte. A pressão foi tanta que 35 funcionários entregaram seus postos de chefia na semana do Enem 2021, sinalizando que não queriam participar do projeto em curso.

Sendo o INEP fundamental para a produção de dados sobre a realidade educacional brasileira, frear os desmontes, fortalecer o órgão e retomar coletas de dados e bases de informações mais sólidas para o monitoramento das políticas educacionais é também um dos grandes desafios do terceiro governo Lula. 

Sistema Nacional de Educação (SNE) 

O SNE já está previsto na Constituição e no PNE, mas ainda não tem lei que o regulamente, colocando-o como um dos grandes desafios do novo governo na área de Educação. Em março de 2022, o projeto de lei complementar 235/19, que regulamenta o SNE, foi aprovado por unanimidade no Senado após ter sido apressado pelo governo Bolsonaro. Agora, o projeto – que tem falhas graves em pontos como o Custo Aluno-Qualidade (CAQ), gestão democrática e avaliação da educação básica – aguarda análise na Câmara. 

Assim como o SUS na saúde, o SNE teria, na educação, as funções de dar coesão e unidade às políticas públicas, articular realidades locais com a nacional, integrar o sistema educacional, assegurar a colaboração e a cooperação – inclusive financeira – entre as esferas municipais, estaduais e a União, combater iniquidades, fortalecer a participação social e a gestão democrática em educação, além de especificar os recursos que integram o financiamento da educação e que formam os padrões de qualidade do CAQ. Mas para fazer tudo isso precisa de uma lei de regulamentação forte, coerente e que valorize esses aspectos, o que não aconteceu até o momento. Como detalhamos em matéria de abril, um dos desafios da lei do SNE é regulamentar o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica e vincular o CAQ ao Fundeb. Mas caso o texto final continue sem fazer esse detalhamento, a lacuna pode prolongar os embates em torno da regulamentação do CAQ, que já é alvo de disputas há anos e não faz parte da agenda dos setores empresariais na educação. Além disso, o texto não contempla a participação de sociedade civil, sindicatos, estudantes ou comunidades escolares nas esferas de decisão e monitoramento, apenas gestores. Embora reconheça mecanismos que já existem, como o Fórum Nacional de Educação, as comissões tripartite e bipartite contariam apenas com governo em sua composição, sendo portanto um retrocesso no aspecto da gestão democrática e da participação social na educação.

Novo balanço do PNE mostra que persistem as desigualdades raciais na educação: população negra tem piores índices e faltam dados sobre indígenas

Recente balanço da Campanha com dados desagregados por sexo e por raça mostra que, além do cenário geral de descumprimento do Plano, persistem as desigualdades educacionais

Estudantes de Viçosa-MG protestam dia 18/10/22 contra cortes na educação. Foto: Raoni G https://www.instagram.com/raonigf/

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

Os balanços anuais que monitoram o cumprimento do Plano Nacional de Educação (PNE) realizados pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação vêm mostrando, ano após ano, um cenário generalizado de descumprimento da mais importante política educacional brasileira. A edição divulgada em junho de 2022 mostrou que 86% das metas e indicadores não seriam cumpridas até o fim da vigência do PNE (2024) se o ritmo atual for mantido. E para além do descumprimento, há metas em retrocesso e até mesmo aquelas sem dados disponíveis para que a sociedade monitore seu andamento. 

Um novo balanço divulgado no último mês adicionou mais nuances a este cenário já bastante desfavorável ao trazer os dados das metas e indicadores desagregados por raça/cor, sexo e por estado. A análise detalhada evidencia o grande desafio de fazer com que a Educação de qualidade seja uma realidade para todas e todos os brasileiros, já que persistem as desigualdades educacionais entre brancos e negros em praticamente todos os indicadores. Em contrapartida, sequer é possível dar o mesmo diagnóstico sobre a educação da população indígena e de pessoas com deficiência, uma vez que não há dados suficientes sobre elas. Ainda, as desigualdades regionais e disparidades entre rede pública e privada mostram que há muito a ser feito mesmo nas metas e indicadores que à primeira vista caminham bem.

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>>>> LEIA: Políticas de austeridade na educação, reforma do Ensino Médio e militarização das escolas tornam o cumprimento do PNE ainda mais difícil 

>>>> LEIA: Subfinanciamento, abandono e destruição: porque o PNE está tão longe de ser cumprido 

“O balanço detalhado nos dá a possibilidade de aprofundar o panorama nacional. Dito isso, o que ele traz de mais negativo é o que já estava posto nacionalmente: estamos distantes de cumprir as metas e estratégias do Plano Nacional de Educação a menos de 2 anos de seu fim. E o que temos de dados novos se destacam em termos das desigualdades”, resume Andressa Pellanda, coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Por exemplo: a região norte é a que tem indicadores mais alarmantes nas metas de acesso, permanência e qualidade, seguida pelo nordeste; a população negra ainda está em situação de exclusão e desigualdade em relação à população branca, ainda que as distâncias tenham diminuído; e embora as mulheres sejam mais escolarizadas e a maioria entre as profissionais da educação, persistem desigualdades nas metas de valorização das profissionais. 

O impacto da pandemia também pode ser visualizado. Por exemplo, no indicador 2A (Percentual da população de 6 a 14 anos que frequenta ou já concluiu o Ensino Fundamental). Se antes o indicador estava próximo da meta de cumprimento, em 2021 caiu para um nível menor do que o de 2014, quando começou o período de vigência do PNE. E com um agravante: essa queda foi mais acentuada entre a população preta. Ou seja, em um cenário geral de retrocesso, as desigualdades por raça/cor se intensificaram. Jaqueline Santos,  diretora de projetos para ações programáticas em justiça racial e justiça de gênero da Fundação Friedrich Ebert Stiftung (FES) Brasil, destaca que o retrocesso nesse indicador é gravíssimo e exige um olhar mais cuidadoso. “Precisamos pensar nessa grande lacuna: o que aconteceu na transição do ensino fundamental 1 para o ensino fundamental 2 que perdemos tantos alunos? Como isso impacta as desigualdades?”, questiona. Como ela sintetiza, “a média não mede desigualdades”. Ou seja, agendas prioritárias para planejar estratégias e ações muitas vezes podem ser invisibilizadas olhando-se apenas para os números gerais. 

Já que estamos quase no fim da vigência do atual PNE, Jaqueline defende que um novo Plano Nacional de Educação foque mais explicitamente em metas de equidade, almejando a redução de desigualdades raciais, de gênero, regionais, entre outras. Ou, em outras palavras, que tanto o PNE quanto os planos estaduais e municipais subsequentes sejam políticas orientadas pelas diferentes necessidades e especificidades de diversos grupos sociais e dos territórios brasileiros. 

>>>> LEIA: O ataque ao INEP no Governo Bolsonaro; Edição de 2021 do ENEM foi a mais branca da história

Desigualdades por raça/cor e sexo 

Essa necessidade é evidente uma vez que os dados do último levantamento mostram, por exemplo, que tanto o analfabetismo absoluto como o funcional são mais prevalentes entre pretos e pardos do que em brancos (ainda que os últimos avanços tenham sido mais pronunciados entre os negros) e que a população negra ainda não atinge a média de 12 anos de estudo obrigatório na população de 18 a 29 anos. Invisibilizada nas pesquisas, os dados disponíveis mostram que a população indígena tem muito menos acesso à educação integral, além de um percentual muito baixo de professores da educação básica com pós-graduação (12%, ante 50% da população branca). Para Andressa Pellanda, esses dados mostram que “a especialização em educação no Brasil ainda é pouco decolonial e restrita ou quase a alguma política de incentivo à progressão de carreira e especialização de docentes indígenas”. 

Um dado positivo em relação à raça/cor é a diminuição de desigualdades no acesso à educação básica. No entanto, permanecem os desafios de permanência, como a queda do indicador 2A durante a pandemia demonstra para o ensino fundamental, e também o indicador 3B para o Ensino Médio. Mas o avanço mais significativo vem do Ensino Superior, como no indicador 12A (Porcentagem de matrículas na Educação Superior em relação à população de 18 a 24 anos): ainda que persista a desigualdade no acesso entre brancos e negros, de 2014 para cá a variação da matrículas de pessoas pretas na universidade aumentou 9,4 pontos (ante 5 da população branca). Similarmente, o indicador 12B, que trata sobre conclusão do ensino superior, também mostra avanços maiores na população preta.

 A redução dessas desigualdades, que embora não aconteçam no ritmo necessário para cumprir o PNE no prazo adequado, pode ser creditada às políticas de ações afirmativas como a Lei de cotas. Não à toa, ela está sob ameaça. “Fica nítido que as tendências de reversão de antigas desigualdades se dão por conta das políticas de ações afirmativas. E a nível federal são as cotas raciais, e não as sociais, que estão ameaçadas”, reforçou Jaqueline dos Santos, da FES Brasil, evidenciando a centralidade da pauta racial para o cumprimento do PNE. Além disso, no lançamento da publicação ela também chamou a atenção para nuances que só aparecem quando dados são desagregados. Por exemplo, as mulheres negras tiveram grande inserção nas universidades públicas, mas seguem concentradas em áreas como pedagogia, enfermagem e outras profissões de cuidado, com pouca representação em áreas como engenharia e ciências exatas. Ou seja, é preciso pensar inclusão também nos termos da representação em todas as áreas. 

Diferenças regionais e problemas de qualidade 

O Brasil tem disparidades regionais muito significativas em praticamente todas as metas e indicadores analisados pela Campanha. Norte e Nordeste têm índices piores em vários indicadores, como os de analfabetismo absoluto e funcional. As metas de ensino superior também mostram forte concentração nas unidades da federação mais ricas – como os estados do sudeste e o Distrito Federal, que concentram, por exemplo, a titulação de mestres e doutores (meta 14). 

Por outro lado, o detalhamento mostrou uma situação alarmante no estado de Roraima, que apresentou retrocessos e/ou estagnações em diversas metas de acesso e conclusão na Educação Básica, incluindo a Meta 12 de matrículas, frequência e conclusão do Ensino Superior. Já o Rio Grande do Norte, estado onde houve recente política de valorização de profissionais da educação (meta 17 do PNE), vai melhor do que a média nacional. Lá, docentes com ensino superior completo recebem, em média, o dobro do que outros profissionais com a mesma escolaridade. “[O Rio Grande do Norte] é um estado em que o balanço detalhado evidencia melhorias de indicadores na progressão de pontos percentuais em quase todas as metas que dependem do governo do estado, tendo tido em geral progressões equivalentes ou melhores que os demais estados da região Nordeste, com destaque para a Meta 3, de ensino médio, em que o RN atinge a melhor variação do Brasil, e para a Meta 9 com redução significativa do analfabetismo absoluto”, ressalta Andressa Pellanda, coordenadora da Campanha. 

A nível federal, houve um completo abandono da modalidade da Educação Integral, com o fim do programa Mais Educação e sua substituição pelo Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, que tem problemas sérios de qualidade e que não dialoga com as demandas juvenis. No estado de São Paulo, o projeto de “expansão da carga horária” associado ao novo Ensino Médio tem na verdade o efeito de ampliar ainda mais as desigualdades educacionais ao reduzir o ensino presencial dos mais pobres e estimular a privatização na rede estadual, como defende o professor de políticas educacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC) e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU), Fernando Cássio. “Desde 2018 as pesquisas da REPU mostram que o Programa Ensino Integral (PEI), que atende um número limitado de estudantes, amplia as desigualdades educacionais, separa negros e brancos, ricos e pobres e exclui estudantes com deficiência, criando uma ilha de excelência em meio a um mar de exclusão”, critica o professor. Isso porque tendem a atender aqueles já em melhores condições dentro do ensino público. “Os estudos já mostram que a abertura de uma PEI faz com que os estudantes mais pobres migrem para a escola regular mais próxima, que começa a ficar superlotada. Isso fez com que esse ano faltassem vagas na rede estadual para alunos do ensino fundamental, o que não acontecia há décadas. Ou seja, é uma política que vai na contramão da concepção do PNE”, resume Cássio. 

No ensino médio, a precarização e sucateamento vêm por efeito das PEIs mas também por uma política aliada: o Novo Ensino Médio. Essas políticas, têm, na prática, aumentado o fosso entre estudantes da rede pública e da rede privada e mesmo dentro da rede pública. A Reforma do Ensino Médio, como mostram balanços da Campanha e estudos da REPU, dá margem à privatização da educação e não garante as condições necessárias nas escolas, como infraestrutura e professoras/es com formação adequada. O resultado é que estudantes mais pobres da rede estadual, particularmente do Ensino Médio noturno, têm menos possibilidades de escolha, mais aulas sem professores e a oferta de expansão da carga horária mais precarizada. “O estado de SP, o mais rico do país, sequer consegue entregar as mil horas letivas anuais, quem dirá debater currículo, projeto de vida. O nível de precariedade é absoluto. O Novo Ensino Médio é publicizado como dando liberdade de escolha, mas na verdade é um barateamento da educação dos mais pobres – uma reforma que não equipou escolas, não contratou professores, não construiu sala de aulas”, sintetiza Fernando Cássio, enfatizando a perversidade de uma política que precariza ainda mais a escola de quem mais precisa dela. Em 2022, diversas organizações, incluindo a Ação Educativa, assinaram uma carta aberta pela revogação da Reforma do Ensino Médio

>>> LEIA: Ensino em tempo integral e segmentação da oferta: análise dos programas ETI e PEI na rede pública estadual de São Paulo

PNE em risco? 

A meta 20 do PNE prevê que o Brasil amplie o investimento público em educação pública, o contrário do que tem acontecido nos últimos anos. A meta de aumentar o investimento progressivamente até o equivalente de 10% do PIB em 2024, conquista histórica dos movimentos e organizações que defendem a educação pública e de qualidade, tem ficado estagnado na faixa dos 5% de 2015 a 2020. E o não cumprimento da meta 20 atua em efeito cascata em todo o PNE, pois sem novos recursos a implementação das outras metas – que preveem, por exemplo, maior número de matrículas em diferentes níveis – fica inviabilizada.

No governo Bolsonaro, a Educação sofreu sucessivas reduções orçamentárias, seja com corte ou bloqueio de verbas. No início de outubro, por exemplo, foi anunciado um novo bloqueio de mais de 2 bilhões de reais, dos quais parte seria retirada do Ensino Superior, que já tem funcionado no limite do orçamento. Fernando Cássio, professor da UFABC e membro da REPU, destaca que, no governo Bolsonaro, as universidades públicas – responsáveis pela maior parte da produção científica brasileira – passaram a ter que lidar com mais do que os cortes orçamentários, já intensificados desde 2016. “Os cortes em geral se davam no começo do ano, não ao longo dele, quando os contratos já estão em curso. Sob o nome ‘corte’ ou ‘bloqueio’, o que interessa é o efeito prático: as universidades estão sem recursos. Se não por cortes no MEC, pelos cortes na área de ciência e tecnologia. É um vale tudo para fechar o ano, porque o governo se comprometeu tanto com o orçamento secreto que agora não consegue fechar as contas”, diz Cássio. 

Apesar da gravidade do cenário, em 2022 foram poucas as candidaturas, tanto presidenciáveis quanto a nível estadual, que mencionaram ou se basearam nos atuais Planos de Educação. Em âmbito nacional, apenas Lula (PT) se compromete a retomar as metas do PNE e reverter os desmontes do atual governo, inclusive revogando a Emenda Constitucional 95, que inviabilizou o cumprimento do PNE tão logo ele foi aprovado. Já entre candidatas e candidatos a governos estaduais, apenas 1 em cada 4 propostas de governo mencionava os Planos de Educação em alguma instância. Ou seja, é preciso que a população, organizações e movimentos sociais exijam em âmbito nacional, estadual e municipal a avaliação e construção participativas dos Planos de Educação, uma vez que os decênios de vigência acabarão durante o próximo mandato do Executivo. “A luta pela aprovação e pela centralidade dos planos de educação nas políticas governamentais segue sendo crucial, não só por conta do cenário de eleição de candidaturas que marginalizam os planos, mas por conta do desafio ainda enorme de compreensão da necessidade de construção de políticas de Estado, em detrimento de políticas de governo, e de falta de gestão democrática e formação política da sociedade, que não tem espaço e não está acostumada a participar das decisões e do monitoramento de políticas públicas, diminuindo a possibilidade de cobrança para a efetivação dessas políticas”, reforça a coordenadora da Campanha. 

A gestão de Jair Bolsonaro, por exemplo, nunca norteou a política educacional pelo PNE. Ao contrário, deu seguimento às políticas de austeridade que o inviabilizaram já em 2015, um ano após sua aprovação. Bolsonaro não apenas manteve a Educação subfinanciada e sofrendo com sucessivos cortes orçamentários, como também avançou em medidas que impactam o PNE negativamente, como o Novo Ensino Médio e a militarização das escolas. Para um eventual novo mandato, o atual presidente mantém o alinhamento com políticas neoliberais e de austeridade. Em contrapartida, o ex-presidente Lula (PT) quer “investir em educação de qualidade, no direito ao conhecimento e no fortalecimento da educação básica, da creche à pós-graduação, coordenando ações articuladas e sistêmicas entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, retomando as metas do Plano Nacional de Educação e revertendo os desmontes do atual governo”. O candidato promete assegurar a continuidade das políticas de cotas sociais e raciais na educação superior – implementadas nas gestões petistas – e nos concursos públicos federais, bem como sua ampliação para outras políticas públicas. 

O compromisso com a construção participativa de Planos de Educação e com a garantia de financiamento adequado para o cumprimento de suas metas e estratégias são critérios que devem ser levados em consideração pelas pessoas que defendem a redução das desigualdades e a melhoria da qualidade da educação para todes no Brasil. 

Eleições 2022: 75% das candidaturas aos governos estaduais não mencionam Planos de Educação

Documentos, que deveriam nortear políticas públicas, raramente são referenciados nas principais candidaturas estaduais. Em contrapartida, militarização das escolas está presente em um quarto das propostas analisadas

Texto: Nana Soares

Os Planos de Educação – seja o Nacional, os estaduais ou municipais -, que deveriam nortear as políticas públicas da área até 2024, são citados por apenas 25% das principais candidaturas aos governos estaduais, e ainda mais raras são as menções que posicionam os Planos como documentos de referência. A análise é da Iniciativa De Olho Nos Planos, que leu as propostas dos principais candidatos e candidatas a governos estaduais de todas as unidades da federação. 

A análise considerou, em cada estado e no Distrito Federal, as duas ou três candidaturas com mais intenções de voto de acordo com pesquisas de agosto de 2022. No total, foram 59 candidatas e candidatos (confira a lista no fim da matéria), dos quais três sequer enviaram propostas de governo ao TSE. 

Destas 59 candidaturas, apenas 15 fazem menção aos Planos de Educação – nenhuma no Centro-Oeste e cerca de 30% nas outras regiões. Quando o assunto é avaliação educacional, candidatos de 7 estados não fazem qualquer menção – e os que fazem, norteiam-se apenas pelas avaliações externas e em larga escala de desempenho dos estudantes, como o Ideb. Também é preocupante a ascensão das propostas de militarização das escolas, pauta fortemente encorajada por Bolsonaro. Elas são explicitamente mencionadas em 15 propostas de governo, fora as candidaturas que mencionam aumento de disciplina, austeridade e parcerias militares. 

Planejamento e financiamento educacional: Planos de Educação e EC 95

Como nossa análise das candidaturas presidenciáveis já mostrou, a retomada do PNE e de mecanismos que garantam sua implementação não são prioridade para os candidatos – apenas Lula e Tebet mencionam o PNE e somente o ex-presidente busca revogar a EC 95, que inviabilizou o cumprimento do Plano. Essa tendência permanece nas candidaturas estaduais. Apenas uma candidatura (de Roberto Requião, do PT-PR) menciona a Emenda Constitucional 95 como um obstáculo para o investimento público em áreas sociais. 

A Procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo, Élida Graziane, reforça que essa deveria ser uma agenda também dos governadores. Isso porque estados e municípios são mais onerados pelo teto de gastos a nível federal. Por exemplo, o recente veto de Bolsonaro à correção de valor repassado ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) faz com que o valor de referência, de 2017, esteja fortemente defasado pela inflação do período. “Isso faz com que quem tenha que pagar essa diferença sejam os governadores e prefeitos. Quando o governo federal não corrige essas tabelas, quando gastos básicos estão asfixiados, a responsabilidade é transferida para estados e municípios. Afinal, não dá para não ofertar merenda escolar, para não oferecer saúde pública e universal. Nesse sentido, a Emenda Constitucional 95 acirra a guerra fiscal na federação brasileira”, resume Élida.

Especificamente sobre os Planos, algumas menções ao PNE nas propostas de governo estadual referem-se na verdade a algumas de suas metas específicas, como a alfabetização, universalização do acesso à educação infantil, fundamental e Ensino Técnico Profissionalizante ou metas de Educação Integral. Apenas Roberto Requião (PT-PR) menciona as metas de participação popular e gestão democrática previstas no PNE, reafirmando o compromisso com a realização das Conferências Municipais, Regionais e Estaduais de Educação e de um amplo debate social para os próximos planos decenais. Ainda, algumas poucas propostas mencionam a construção dos novos Planos de Educação ao fim do decênio ou versam sobre o fortalecimento/revisão dos atuais Planos Estaduais, não detalhando como pretendem fortalecer os planos ou fazê-los serem cumpridos. 

Sobre isso, Élida Graziane pontua que o próximo plano já deveria, de fato, estar sendo discutido, mas que os Planos de Educação estão fora da agenda da sociedade, de gestores e de órgãos de controle. “Estamos no oitavo ano de vigência do PNE e com 86% de descumprimento das metas. É preocupante que não haja qualquer constrangimento, principalmente de candidatos que concorrem à reeleição, sobre o não cumprimento. Que não haja a necessidade de justificar porque os planos não estão sendo cumpridos. Os órgãos de controle não conseguem sequer implementar a responsabilização pelo não cumprimento para quem descumpre. E, para completar, a Emenda Constitucional 119 chancela o déficit da aplicação em educação. Então temos, neste processo eleitoral, a percepção clara de que a educação não é prioridade”, avalia a Procuradora. 

Na mesma linha, o apoio aos municípios na implementação dos Planos Municipais de Educação aparece em algumas propostas, mas sem detalhamento. E apenas cinco candidaturas entre as 59  mencionam a articulação dos planos em mais de uma instância: nacional, estadual e/ou municipal. Fátima Bezerra (PT-RN), por exemplo, pretende, em um eventual segundo mandato, “avaliar e monitorar o cumprimento das metas e estratégias do Plano Estadual de Educação em sintonia com o PNE e os Planos Municipais de Educação, fortalecendo ações articuladas, sistêmicas e colaborativas entre Estado, Municípios e União, com encaminhamentos para renovação desses Planos, a partir de 2024”. 

Puxada por Bolsonaro, militarização avança

A militarização das escolas, ou a transferência da gestão das escolas civis públicas para a Polícia Militar, é uma das facetas do projeto ultraconservador em curso para a Educação. Está explicitamente presente em uma de cada quatro candidaturas analisadas pela Iniciativa De Olho Nos Planos, um número alarmante e que reflete os incentivos da gestão de Jair Bolsonaro a essa agenda. Embora seja um processo antigo, intensificou-se em 2019 com a criação do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim). Apenas na gestão de Ratinho Junior (PSD), no Paraná, 199 escolas passaram por este processo. E o governador, que tenta a reeleição em 2022, quer ampliar este número, como deixa explícito em sua proposta de governo. 

Como lembra Catarina de Almeida Santos, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) e uma das coordenadoras da Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação (REPME), a militarização vem em um processo de expansão que data do fim da década de 1990, e entre os primeiros decretos do governo Bolsonaro estava o Nº 9.465, de 02/01/2019, que criou a Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares (Secim). “A partir daí não apenas observamos uma expansão do processo, especialmente  nos municípios, mas também a mudança na nomenclatura, porque até então o processo de militarização não utilizava essa denominação”, explica ela.  “O Pecim até hoje não conseguiu cumprir seu objetivo de militarizar 54 escolas por ano, mas fez com que a militarização entrasse na agenda nacional, o que impulsiona o processo no país ainda que a escola não se militarize via Pecim”. Para Catarina, incentivar a militarização é, ainda que inconscientemente, criminalizar a comunidade escolar. “Em nosso imaginário, a polícia cuida de marginais. Levar a polícia para a escola é uma autodeclaração que são essas pessoas que estão na escola, porque é com quem a polícia teoricamente lida”, complementa. 

Além da expansão no Paraná, todas as principais candidaturas no Distrito Federal, Goiás, Acre e Roraima ou citam diretamente metas de militarização ou versam com o aumento da disciplina, vigilância e austeridade. Também encorajam a pauta, no nordeste: Fernando Collor (PTB) em Alagoas, Carlos Brandão (PSB) no Maranhão, Fabio Dantas (Solidariedade) no Rio Grande do Norte e Nilvan Ferreira (PL) na Paraíba. No Sudeste são dois casos: Carlos Manato (PL) no Espírito Santo, e Tarcísio de Freitas (Republicanos) em São Paulo, ambos aliados de Bolsonaro. Também aliado de Bolsonaro, Onyx Lorenzoni (PL), candidato no Rio Grande do Sul, é outro favorável à agenda. 

A proposta de Carlos Manato é a que mais se dedica a defender o projeto de militarização nas escolas. O candidato argumenta que parte da sociedade “perdeu o respeito pela escola, pelo professor e pela educação” por conta de uma cultura de “não disciplina” e de “sobrepor as ideologias em relação às matérias que serão exigidas no âmbito profissional”. Em resposta, propõe um incentivo a bandas marciais, um resgate de símbolos nacionais, típicos do pensamento militar, e a ampliação das Escolas Cívico-Militares (ECMs) em alinhamento com o MEC. O candidato defende que as ECMs não têm “qualquer tipo de ideologia” e baseia-se no desempenho positivo dessas escolas em avaliações externas. 

Catarina de Almeida Santos, no entanto, contesta fortemente a associação entre escolas militarizadas e bom desempenho escolar. Esse bom desempenho, lembra ela, parte de uma lógica de exclusão. “Em geral, o perfil das escolas muda depois da militarização: embranquecem e atendem pessoas com mais condições financeiras”, descreve a pesquisadora. “É comum que essas escolas transfiram quem não se adequa ao projeto, o que engloba tanto o não concordar mas também tem a ver com o rendimento do aluno. Então quem em geral tem problemas de rendimento, o que sabemos ser influenciado por fatores sociais, será excluído”, explica. Catarina também chama a atenção para a ausência de candidaturas cujas propostas enfrentem a militarização: “Sem dúvida é muito preocupante ter tantos planos de governo prevendo a ampliação das escolas militarizadas, tendo em vista que já temos tantas e não deveríamos ter nenhuma. Mas não me parece menos preocupantes as propostas que falam da gestão democrática e da valorização de profissionais da educação e do protagonismo dos estudantes não falarem nada ou não preverem a desmilitarização das escolas já militarizadas. O silêncio é também muito revelador em uma questão tão grave. Quem se cala pretende não ampliar, mas pretende manter as já existentes? Não pretende fazer uma gestão para reverter o quadro?”. 

Avaliação educacional: abordagens limitadas e parciais do que a lei prevê

Outra lacuna importante nas propostas de governos estaduais enviadas ao TSE é a da avaliação educacional. As principais candidaturas de sete estados (Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Amazonas, Pará, Roraima, Rondônia e Amapá) não mencionam nenhuma proposta nesse sentido, e, em linhas gerais, quando este tópico é abordado, não há muitos detalhes ou então a avaliação fica totalmente pautada por avaliações externas em larga escala de desempenho de estudantes. Neste caso, quase 70% das propostas estão alinhadas a uma lógica da meritocracia na educação, vinculando seus resultados a premiações e bonificações de escolas e profissionais da educação. Em outras palavras, escolas e redes com melhor desempenho teriam mais aporte financeiro do estado. E o processo de avaliação, ao invés de reduzir as desigualdades educacionais, as acirraria ainda mais.

Para Claudia Bandeira, pedagoga e assessora da Iniciativa De Olho nos Planos pela Ação Educativa, essa análise evidencia o “enorme desafio que temos no país com relação à avaliação educacional”. “Chama a atenção que nenhum Plano de Governo faz referência à avaliação institucional e à autoavaliação da escola realizada com participação das comunidades escolares como um importante mecanismo de diagnóstico, inclusive para contextualizar resultados das avaliações externas em larga escala de desempenho de estudantes, na medida em que considera como qualidade na educação outras dimensões como a valorização das profissionais da educação; as condições de infra-estrutura das escolas; a gestão democrática; o acesso, permanência e sucesso dos/as estudantes na escola; as relações raciais e de gênero na educação; entre outros”, completa. 

Pelo contrário, algumas propostas vão de encontro a essa ideia. A já citada proposta de Carlos Manato (PL-ES) utiliza o desempenho escolar para justificar um processo de militarização, e ACM Neto (União Brasil-BA), Fábio Dantas (Solidariedade-RN), Paulo Dantas (MDB-AL), Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) e Eduardo Leite (PSDB-RS) falam em vincular o repasse de ICMS aos resultados obtidos nas avaliações externas de larga escala. 

No entanto, o arcabouço legal de referência para a Educação no país já explicita que os mecanismos de avaliação educacional devem ir além das avaliações externas de desempenho. O Plano Nacional de Educação, em seu artigo 11, quando trata do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SINAEB) prevê a avaliação e a autoavaliação institucional. “Nesse sentido é fundamental retomarmos a discussão sobre a Portaria 369, de maio de 2016, que regulamentou o SINAEB, por meio de processos participativos liderados pelo Inep e que foi revogada logo após o golpe parlamentar de 2016”, complementa Claudia (saiba mais aqui). “Para que a avaliação educacional contribua com a redução das desigualdades educacionais é preciso que Planos de Governo estabeleçam processos avaliativos mais amplos, participativos e diversificados que considerem insumos e processos pedagógicos no debate sobre qualidade na educação”. 

CONFIRA A LISTA DE CANDIDATURAS ANALISADAS PELA INICIATIVA DE OLHO NOS PLANOS

Entre presidenciáveis, apenas Lula tem proposta de governo que viabiliza o Plano Nacional de Educação

Metas do governo atual são marcadas pela austeridade e enfraquecimento democrático. O Plano de Bolsonaro é o único que não prevê combate ao racismo, nem à LGBTfobia. 

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

Embora deva nortear as políticas educacionais brasileiras até 2024, o Plano Nacional de Educação (PNE) sequer está no horizonte de Ciro Gomes (PDT) e Jair Bolsonaro (PL). Entre os quatro candidatos à Presidência com maior intenção de votos, apenas Simone Tebet (MDB) e Lula (PT) mencionam o PNE, e só o candidato petista contempla também propostas que de fato viabilizam sua execução, como a revogação da Emenda Constitucional 95 (o Teto de Gastos). O diagnóstico preocupante baseia-se nas quatro propostas de governo submetidas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), analisadas pela Iniciativa De Olho Nos Planos.  

A ausência no Plano de Governo de Bolsonaro não surpreende, já que sua gestão nunca norteou a política educacional pelo PNE (Lei 13.005/14). Ao contrário, deu seguimento às políticas de austeridade que o inviabilizaram já em 2015, um ano após sua aprovação. Bolsonaro não apenas manteve a Educação subfinanciada e sofrendo com sucessivos cortes orçamentários, como também avançou medidas que impactam o PNE negativamente, como o Novo Ensino Médio e a militarização das escolas. Para um eventual novo mandato, o atual presidente mantém o alinhamento com políticas neoliberais e de austeridade. 

Simone Tebet menciona a intenção de renovar o Plano Nacional de Educação em 2024 e destaca que o Ministério da Educação (MEC) deve ser protagonista neste processo. Ela também fala do PNE na meta de “garantir que todos os alunos sejam plenamente alfabetizados até o segundo ano do ensino fundamental, em cumprimento à BNCC e às metas do atual Plano Nacional de Educação”. No entanto, o conjunto das propostas da candidata não toca em mecanismos cruciais para que o PNE possa ser cumprido, como o financiamento adequado – ela e Ciro Gomes mencionam fontes alternativas de financiamento para a educação, mas não detalham quais seriam essas fontes. A articulação entre PNE e financiamento aparece apenas no Plano de Governo de Lula, que em sua diretriz 51 menciona a intenção de revogar o Teto de Gastos e, ainda, rever o atual regime fiscal brasileiro. Antes, na meta 21, o candidato explicita o objetivo de que o Brasil volte a “investir em educação de qualidade, no direito ao conhecimento e no fortalecimento da educação básica, da creche à pós-graduação, coordenando ações articuladas e sistêmicas entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, retomando as metas do Plano Nacional de Educação e revertendo os desmontes do atual governo”.

A Coordenadora da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, destaca que muitos dos mecanismos brasileiros de referência para a educação devem-se à conquistas mobilizadas pela sociedade civil, incluindo a existência de um Plano Nacional e de Planos subnacionais robustos. “A referência legal e o monitoramento institucional são as políticas que ainda têm se mantido de pé – a partir da resistência da comunidade educacional. As candidaturas que não reconhecem isso explicitamente dão sinais de falta de compromisso com gestão democrática e com a própria legislação”, afirma Andressa. 

Na mesma linha, o professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Eduardo Januário, também destaca que nortear-se pelo PNE demonstra compromisso com a democracia. “O histórico do PNE é de participação intensa de movimentos sociais desde sua concepção. Notar sua ausência como referência para as diretrizes educacionais, sobretudo no caso de Bolsonaro, é também notar a visão de cada candidato sobre o processo democrático. No caso de Bolsonaro não há intenção de agir conforme o processo que levou ao PNE e que foi criado a partir dele”, ressalta. 

Diferentes visões sobre educação 

As quatro propostas variam não apenas em extensão e detalhamento das políticas pretendidas como também nas diretrizes em si, refletindo diferentes concepções de sociedade e de Educação – como um direito ou como mero capital humano. A proposta de governo de Bolsonaro cita “competência” e “estratégias que se alinham com demandas do mercado”. Ciro Gomes fala em “habilidades socioemocionais” e “Incentivos financeiros para escolas que apresentam bom desempenho” e Simone Tebet refere-se a “produtividade”. 

“Uma rápida análise de discurso já mostra que Bolsonaro e Tebet têm uma visão de educação como capital humano, não como direito; Ciro contemporiza, matizando a proposta, sob um “rightswashing” que não engana aos atentos às estratégias do neoliberalismo; e Lula é quem mais se aproxima da educação na perspectiva de direito, cuja garantia da educação é compromisso por si e não com fins meramente econômicos”, avalia Andressa Pellanda, para quem a proposta do ex-presidente é também mais coerente com os pactos sociais e com o arcabouço legal brasileiro. 

Andressa aponta que nenhuma proposta menciona explicitamente mecanismos como o Custo Aluno-Qualidade. O professor Eduardo Januário também sentiu falta da menção à Meta 20 do PNE, que prevê a ampliação do investimento público em educação chegando a até 10% do PIB. Na avaliação do professor, uma diferença gritante dos planos de Bolsonaro em relação aos outros candidatos é que “na proposta de Bolsonaro estão ausentes todos os princípios do PNE e qualquer disposição em ouvir os movimentos sociais”. Suas propostas focam no enfraquecimento do Estado e no maior papel da iniciativa privada. Bolsonaro desvaloriza as profissionais da educação e a escola, tratando a educação como assunto de família – expressões típicas do projeto ultraconservador colocado em prática em seu governo. “É uma proposta extremamente excludente, com grandes e bem marcadas hierarquias sociais, e voltada a entregar nossas riquezas e benesses ao mercado”, reforça. É a marca da política dos últimos quatro anos na educação: “Censuras, mentiras e muito discurso ideológico ultraconservador, e nenhuma ação concreta no sentido de materializar o direito à educação, a não ser na contramão das diretrizes legais, com cortes de recursos, aparelhamentos, intervenções, e militarizações”, como também definiu a Coordenadora da Campanha. 

A abordagem da segurança alimentar do atual governo é um bom exemplo da hipocrisia e da falta de ações concretas. Na proposta enviada ao TSE, a segurança alimentar aparece como uma preocupação de Bolsonaro, que diz ter a intenção de manter a Política Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). No entanto, no dia 10 de agosto, o presidente vetou o reajuste de verbas repassadas ao Programa alegando que o aumento do valor destinado à alimentação escolar contraria o interesse público. Atualmente, o Brasil está de volta ao Mapa da Fome e mais da metade da população experiencia algum nível de insegurança alimentar. O professor da FEUSP e especialista em financiamento da Educação ainda aponta outras contradições no Plano de Governo de Bolsonaro: “Como atingir o chamado ‘ciclo da prosperidade’ sem investimentos públicos, vetando reajustes e reforçando a EC 95? Como dar a dignidade aos menos favorecidos? Que inclusão é possível quando a própria primeira-dama publicamente discrimina religiões de matrizes africanas?”. 

As outras propostas analisadas, de Ciro Gomes e Simone Tebet, não têm vieses antidemocráticos como a de Bolsonaro, mas têm uma abordagem para a Educação fortemente influenciada por uma visão empresarial. A candidata do MDB tem a parceria com a iniciativa privada como um dos eixos estruturantes de seu projeto, embora traga discussões sobre combate à pobreza e às desigualdades e apresente uma agenda detalhada em relação às normativas e políticas educacionais. “E [a proposta] se compromete com reformas recentes que têm precarizado a educação, como a Reforma do Ensino Médio, e traz a perspectiva da educação como capital humano, que aprofunda desigualdades e é sistêmica”, ressalta Andressa Pellanda. Já a proposta de Ciro Gomes, pautada fortemente por avaliações externas em larga escala, “dá ênfase em experiências locais, errando em achar que pode generalizá-la, e não traz propostas substantivas para a área”, completa. 

Para a Coordenadora da Campanha, nas agendas destes dois candidatos evidencia-se uma agenda neoliberal na educação, a partir de alianças público-privadas com fundações e grupos empresariais “que defendem um modelo educacional do capital humano, que coloca a educação como um meio para alimentar o sistema político-econômico vigente de exploração e não para superá-lo. O impacto para a educação é perverso: se retira a responsabilidade do Estado sobre os resultados educacionais – cujos problemas são diretamente relacionados a subfinanciamento e à falta de políticas equitativas – e se coloca no colo de profissionais da educação e de estudantes – sem dar as condições mínimas para que o processo de ensino e aprendizagem aconteça com qualidade; e se implementa uma agenda reducionista para a educação pública, com foco em conteudismo e formação precária para mão-de-obra barata, deixando à margem os pilares da formação plena e da formação cidadã, e aprofundando as desigualdades sociais, regionais, raciais”.

Políticas afirmativas: ausências e timidez na abordagem 

A abordagem de políticas afirmativas, como as cotas raciais, além de políticas de igualdade racial, de gênero e de combate a LGBTfobia também traz divergências importantes entre os quatro principais candidatos. 

Uma diferença notável é que o plano de Bolsonaro é o único que não prevê combate ao racismo nem à LGBTfobia e o único que não inclui a revisão da lei de cotas. O plano de Lula promete assegurar a continuidade das políticas de cotas sociais e raciais na educação superior e nos concursos públicos federais, bem como sua ampliação para outras políticas públicas. O de Tebet fala em manter  a política de cotas e expandir ações afirmativas para promover maior igualdade racial, social e de gênero. 

Gênero, aliás, é uma palavra que também só aparece nos planos de Lula e Tebet. Ciro e Bolsonaro não utilizam o termo, embora tratem de mulheres e da redução das desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho (Ciro e Bolsonaro) e no parlamento (Bolsonaro). Lula utiliza inclusive o termo “identidade de gênero” como categoria que deve ser reconhecida e protegida. A população LGBTQIA+ é abarcada no plano de Lula sob o combate à violência e promoção de direitos, enquanto Ciro foca no combate à violência. A candidata do MDB faz apenas uma menção, quando refere-se à adoção de “medidas que garantam a igualdade de oportunidades a mulheres, jovens, pessoas idosas, com deficiência e com doenças raras, negros, quilombolas, população LGBTQIA+, povos originários e outras minorias em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública”. Para Andressa Pellanda, a abordagem de “igualdade de oportunidades” de Tebet é mais uma expressão da lógica neoliberal, uma vez que minimiza o papel do Estado na garantia de direitos com equidade. E Ciro, ao restringir as propostas para essas populações às políticas de prevenção ao crime, “denota reducionismo da agenda e uma proposta reativa, que olha para uma das consequências das desigualdades e não para sua causa”.

O professor Eduardo Januário reitera que a única proposta que busca trabalhar com as causas das desigualdades, especialmente a racial, é a de Lula, que inclusive menciona racismo estrutural, genocídio e perseguição à juventude negra, e o superencarceramento, além de explicitar a violência contra mulheres negras, a juventude e ataques as religiões de matriz africana. “A questão da violência também é interessante, porque há uma dimensão estrutural que não é apenas a violência física, mas o preconceito, a dificuldade em acesso a serviços e direitos, a inserção desigual no mercado de trabalho. E apenas o Plano de Lula menciona, com firmeza, políticas de inclusão. Sua oposição é o plano de Jair Bolsonaro, que reafirma não ter preocupação com grupos minorizados. Pelo contrário, explicita o projeto de destruição dos avanços construídos ao longo de décadas”.

Políticas de austeridade na Educação, Reforma do Ensino Médio e militarização das escolas tornam o cumprimento do PNE ainda mais difícil

O descaso do Governo Bolsonaro com o Plano Nacional de Educação e a intensificação das políticas de austeridade em sua gestão ampliaram as desigualdades educacionais no país

Estudantes protestam contra cortes na Educação em Macau (RN). Foto: Vitória Matos/Estudantes Ninja

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

Todos os anos a Campanha Nacional Pelo Direito à Educação (Campanha) divulga seu balanço do cumprimento das metas e dispositivos do Plano Nacional de Educação (PNE, Lei 13.005/14). E ano após ano o cenário de descumprimento se agrava. A última edição, lançada em junho, apontou que além das metas não cumpridas ou graves retrocessos, há também uma importante lacuna de dados que impediu a avaliação de quase metade das metas e dispositivos. Retrato da gestão Bolsonaro, que aprofundou as políticas de austeridade na educação e dificultou de diversas maneiras a participação social, a gestão democrática e a transparência. Das 20 metas, 8 apresentam retrocesso em ao menos um dispositivo, e também são 8 as que não têm dados suficientes para avaliação. No total, a taxa de descumprimento é de 86%. 

Como a Iniciativa De Olho nos Planos sempre reitera, o PNE começou a ser esvaziado já em 2015, e o cenário se agravou após o golpe parlamentar de 2016 e com a aprovação da Emenda Constitucional 95 (EC 95, o Teto de Gastos), que constitucionalizou os cortes orçamentários por 20 anos. “Vínhamos em um esforço muito grande de construir o PNE como epicentro das políticas educacionais, mas fomos afetados pela mudança no cenário político, que veio seguida de um descontrole imenso e de um ataque sistemático aos direitos sociais”, resume Márcia Angela Aguiar, professora da UFPE e Diretora de Cooperação Internacional da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE). Márcia destaca outros dois baques importantes no cumprimento do PNE para além da EC 95 e que, em sua visão, indicaram também uma inclinação para o setor privado: as alterações na composição do Fórum Nacional de Educação e na composição do CNE, reduzindo a representação da sociedade civil (que respondeu criando o FNPE e a Conape).

O governo Bolsonaro nunca norteou a política educacional pelo PNE e deu seguimento às políticas de austeridade que inviabilizam o cumprimento do plano. Além do subfinanciamento da Educação que inviabiliza o PNE como um todo, em seu governo também avançaram medidas que o impactam, como a Reforma do Ensino Médio e a militarização das escolas. “Vemos que o contexto político é um elemento determinante. Para além da ausência de recursos, o PNE também está em disputa quando se avançam pautas como a educação domiciliar, as tentativas de criminalizar discussões sobre gênero. Tudo isso causa um tumulto”, complementa Márcia Angela Aguiar. 

O novo Ensino Médio, como destacou a Campanha em seu último balanço, é um marco negativo para o cumprimento da Meta 3, que diz respeito à universalização do atendimento escolar para a população de 15 a 17 anos e a elevar as matrículas do Ensino Médio para 85%. O cenário atual é de quase meio milhão de jovens nessa faixa etária fora da escola, e a taxa de matrícula líquida, que já não avançava no ritmo ideal, teve queda durante a pandemia. Retrocessos que devem ser agravados pela Reforma do Ensino Médio, uma vez que essa dá margem à privatização e não garante as condições necessárias nas escolas como infraestrutura e falta de professoras/es com formação adequada, além de estabelecer um currículo mínimo através dos chamados itinerários formativos. Na prática, como destaca a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) em nota técnica sobre o tema, a reforma acirra as desigualdades educacionais: “Os/as estudantes mais pobres da rede estadual – particularmente os/as do Ensino Médio noturno – são sempre mais prejudicados/as: têm menos possibilidades de escolha, mais aulas sem professores e a oferta de expansão da carga horária mais precarizada”. 

Tais impactos também devem ser sentidos por quem opta pela Educação Profissional técnica de nível médio, foco da Meta 11 do PNE. Essa modalidade, onde só houve aumento de matrículas na rede pública, pode ser impactada pelo Novo Ensino Médio uma vez que o itinerário formativo que contempla a formação técnica e profissional é bastante questionado em relação à manutenção da qualidade, pois permite que profissionais sem formação docente lecionem disciplinas e que até 30% do ensino médio seja realizado no formato de educação a distância (EaD). “Esta última, para além de questões relacionadas à qualidade, mostrou enormes limitações relacionadas ao próprio acesso – e, especialmente, à equidade de acesso – durante a pandemia”, reforçou a Campanha no balanço do PNE. A diretora da ANPAE, Márcia Aguiar, é ainda mais contundente, contextualizando a reforma do Ensino Médio na perspectiva neoliberal e de austeridade na Educação: “É uma concepção de currículo ligada à ideia de formar um trabalhador dócil e domesticado, de reduzir suas possibilidades de formação. Uma ruptura em relação ao que era construído até então a duras penas: a educação básica voltada para a formação da cidadania”. Ruptura que é completada por outras políticas como as de militarização e da educação domiciliar. Neste contexto, diversas organizações, incluindo a Ação Educativa, assinaram uma carta aberta pela revogação da Reforma do Ensino Médio

O crescente aumento de escolas militarizadas – processo que tem grande aval do governo -, impacta especialmente as metas que se referem à participação social e gestão democrática da Educação, como a meta 19, e à redução das desigualdades educacionais, como a meta 8. Isso porque, como nos explicou em entrevista a professora Catarina de Almeida Santos, as escolas militarizadas operam sob uma lógica de hierarquia, obediência e repressão. Nesse sentido, negam o direito à educação. “Educação tem a ver com o desenvolvimento pleno dos sujeitos, de suas especificidades, de formar uma pessoa para a vida em sociedade, e a militarização nega essa lógica. Ao proibir a demonstração de afetividade, regular as maneiras de sentar, de correr, obrigar a bater continência, forma-se um sujeito que entende que a única possibilidade do certo é obedecer aquela lógica”, explicou ela. 

Outras metas que já vinham em retrocesso seguem nesta situação gravíssima. Por exemplo, as metas que abarcam a redução das desigualdades educacionais – agravadas durante a pandemia -, a Educação de Jovens e Adultos (EJA) e a Educação Integral. A EJA, abarcada pelas metas 9 e 10, segue em situação de completo abandono. Dois dados chamam a atenção: de acordo com os últimos dados disponíveis, apenas 2,2% das matrículas de EJA estavam integradas à profissionalização. Percentual abaixo do observado no início da vigência do atual PNE (2.8%) e muito distante da meta de 25%. Ainda, o programa Brasil Alfabetizado, que atendia principalmente municípios com altas taxas de analfabetismo, foi ainda mais desidratado em seus recursos, estando virtualmente extinto. A professora da Faculdade de Educação da USP Maria Clara Di Pierro já havia alertado que essa era a característica do governo Bolsonaro para a EJA: não revogar as políticas da área, mas sim desfinanciá-las. O resultado é a destruição de uma modalidade já há muito negligenciada. A Educação Integral, por sua vez, apresenta uma das situações mais graves em relação a seu cumprimento, como observou a Campanha. Os dois dispositivos da meta 6 caíram entre 2014 e 2021, ao invés de subir. Foram mais de 10 mil escolas e 1 milhão de matrículas perdidas e sem perspectiva de recuperação. 

Subfinanciamento e lacuna de dados: retratos de uma gestão excludente e autoritária

O subfinanciamento da Educação brasileira que inviabiliza o cumprimento do PNE como um todo não é novidade, mas nem por isso é menos preocupante. A meta 20 prevê que o país amplie o investimento público em educação pública progressivamente até o equivalente de 10% do PIB em 2024, uma conquista histórica dos movimentos e organizações que defendem a educação pública e de qualidade. O percentual ficou na faixa dos 5% entre 2015 e 2017, tendo uma queda ao invés de subir. Reflexo das políticas de austeridades que apenas se intensificaram desde o Teto de Gastos. O não cumprimento dessa meta tem efeito cascata em todo o PNE, pois sem novos recursos a implementação das outras metas – que preveem, por exemplo, maior número de matrículas em diferentes níveis – fica inviabilizada.

É significativo que a maior conquista no tema do financiamento educacional dos últimos anos – a constitucionalização do novo Fundeb com maior participação da União -, não tenha conseguido amenizar o cenário de destruição, tamanha sua amplitude. Em nossa última análise do cumprimento do PNE, o professor José Marcelino de Rezende Pinto, vice-presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), alertou que a política de fundos tem suas limitações: precisa de mais investimento. “Sem mais dinheiro, não adianta muito mexer e fazer ajustes nestes mecanismos porque o total permanece o mesmo”, explicou. Outros desafios para o cumprimento dessa meta incluem a regulamentação do CAQ, que vincula o financiamento com parâmetros de qualidade para a educação básica. Apesar de já estar previsto na Lei do novo Fundeb e em outros marcos educacionais, o CAQ ainda não foi implementado. 

Por fim, a lacuna de dados educacionais coroa o cenário preocupante de retrocessos observados nos últimos anos e de descumprimento do PNE. Para realizar a última edição do Balanço do PNE, a campanha teve que se valer da Lei de Acesso à Informação – e mesmo assim 8 metas ainda não tinham dados suficientes. Principalmente pelo atraso na realização do Censo do IBGE e de dados de responsabilidade do INEP, como o Censo da Educação Básica. O INEP, aliás, está sob ataque no governo Bolsonaro desde o início da gestão. Nos últimos anos, tem sofrido com sucessivos desmontes de sua estrutura, que afetam a capacidade da autarquia ligada ao MEC de cumprir suas funções de promover estudos e avaliações periódicas sobre o sistema educacional brasileiro a fim de subsidiar a formulação e implementação de políticas públicas, como o PNE.  É a “tempestade perfeita” para inviabilizar o que se atinjam das metas do Plano Nacional de Educação, como define Márcia Angela Aguiar, da ANPAE. A falta de transparência, marca característica da gestão Bolsonaro, impede que a população tenha acesso aos dados sobre o próprio país e que possa construir políticas transformadoras a partir daí. Os mais afetados, portanto, são sempre os grupos historicamente marginalizados, que são ativamente invisibilizados de programas e ações governamentais. 

O caso de Santo André-SP: a saída é pelo coletivo

Apesar do dramático cenário nacional, não faltam exemplos de ativistas, membros das comunidades escolares, gestoras e gestores comprometidos com o cumprimento dos planos a nível municipal, estadual e nacional. O edital “Planos de educação vivos: vamos contar as suas histórias!”, promovido pela Iniciativa De Olho nos Planos em 2021, mostra alguns desses casos inspiradores. 

Em Santo André (SP), por exemplo, a movimentação de ativistas preocupadas e preocupados com a educação antirracista tem conseguido algumas vitórias, ainda que com muita luta. A cidade teve um longo processo de construção de seu Plano Municipal, fortemente marcado pela participação social. Um de seus aspectos mais importantes é o monitoramento social participativo, realizado através de diversos mecanismos, como o Comitê de Articulação Interfederativa e a implementação dos Indicadores de Qualidade na Educação – Relações Raciais na Escola que gerou um Documento de Recomendações para implementação das Metas 7 e 8 do PME. Tais iniciativas já conseguiram realizar relatórios de monitoramento do plano, formações de educadoras e educadores sobre as leis 10.639/2003 e 11.645/2008, e a sociedade civil tem procurado incidir no Fórum Municipal de Educação e no Conselho Municipal de Educação. 

Um grande desafio, como conta Elly Bayó, educadora e integrante do Conselho Municipal de Educação do município. Ela aponta que a participação da sociedade civil vem sendo limitada e que instâncias fundamentais vem sendo cooptadas para reduzir a incidência da sociedade civil. Mas que, com muita coletividade, o município tem conseguido, por exemplo, retomar o uso dos Indicadores nas escolas e creches do município. “A duras penas e porque estamos pressionando muito o Conselho e os Fóruns de Educação. Nossos debates acabam reverberando no cotidiano escolar, e vemos os Indicadores aparecerem nas escolas de novo, embora isso não significa que eles estejam sendo colocados em prática”, ressalva. Elly destaca a centralidade do Grupo Guardião no âmbito das unidades escolares e da sociedade civil nas instâncias formais de monitoramento. “Temos pautado a importância de usar esse material (Indicadores) que já está pronto, foi feito com recursos públicos e é coerente com o que precisamos fazer na rede municipal”, diz. “Santo André já seria uma referência em educação antirracista se simplesmente tivesse usado o material que já tem há anos”, complementa. Em Santo André, para além das imensas dificuldades em assegurar a participação da sociedade civil nas instâncias formais, há ainda problemas no monitoramento do Plano – corroborando o diagnóstico feito pela Campanha -, como falta de dados oficiais que dificultam o monitoramento com qualidade. “Mas entendo que a saída é a construção da coletividade, apostar em uma coletividade que não se restrinja aos espaços formais, porque apenas esses espaços não dão conta de tudo. Uma coletividade Ubuntu. É preciso irmos e ouvirmos o chão da escola, outras pessoas em outras realidades. A luta é coletiva”, resume Elly.

Projeto ultraconservador para a educação inclui a criminalização de debates sobre direitos humanos, gênero, raça, sexualidade e ataques à laicidade

Projeto de desmonte da Educação pública é uma aliança entre grupos que defendem o seu desfinanciamento pelo Estado e os que criminalizam profissionais da educação, comunidades escolares e contribuem com o aumento da violência. 


Por Nana Soares
Edição de texto: Claudia Bandeira

A educação pública, gratuita e de qualidade está há anos sob ataque: a Emenda Constitucional 95, de 2016, inviabilizou o cumprimento do Plano Nacional de Educação (PNE) ao proibir o aumento dos gastos em áreas sociais. No governo Temer, também a participação da sociedade civil foi drasticamente reduzida a partir do desmonte das instâncias de monitoramento e de controle social da política educacional. Isso piorou com Bolsonaro, quando a Educação sofreu os maiores cortes orçamentários – apesar do novo Fundeb, que aumentou a participação da União no financiamento da Educação. Mas os ataques ao direito à educação de qualidade para todas e todos não se dão apenas através do desfinanciamento. Também há investidas contra a laicidade da educação, a democratização e participação social, contra a construção de visões críticas e questionadoras e contra a liberdade de aprender e ensinar. Estas agendas em geral são agrupadas sob o nome de “projeto ultraconservador”. 

Este projeto reúne diversas agendas – como a educação domiciliar, Escola sem Partido, criminalização de debates sobre gênero e sexualidade, militarização das escolas, combate à “ideologia de gênero”, etc – e embora esteja alinhado e tenha se intensificado com a gestão Bolsonaro, não começou nela. Em 2013, quando se debatia a construção do PNE, o “gênero” já estava sob ataque e acabou suprimido do texto final

Para Fernando Cássio, professor de políticas educacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC) e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU), esse projeto é mais do que conservador: é reacionário, e tem como alvo as escolas porque é na Educação que muitos avanços foram construídos nos últimos anos. “É claro que é um projeto conservador, mas este é um campo amplo, composto também por entidades empresariais da educação que, por exemplo, se eximem de discussões de gênero e sexualidade. Já os reacionários visam reverter as conquistas sociais. Na educação tivemos avanços inegáveis, como no currículo e no reconhecimento de diversas diferenças, então a escola se torna um grande bastião de resistência a esse projeto”, diz. Cássio diferencia a “barbárie gerencial” da ultraconservadora ou reacionária. Enquanto a primeira disputa a escola a partir de fora, nos debates de políticas e gestões educacionais, a segunda disputa pequenas lutas do cotidiano, ou a escola “por dentro”: o currículo, o conteúdo passado pelos professores, a relação de confiança entre os atores escolares. “Em suma, visam transformar a escola em um ambiente hostil”, resume. 

Para alcançar seus objetivos, os defensores deste projeto frequentemente se aliam com os chamados “ultraliberais” – isto é, que querem o enfraquecimento do Estado e do setor público. Um artigo recente de Cássio em parceria com Fernanda Moura e Salomão Ximenes ilustrou como essa aliança se deu nos debates de regulamentação do Fundeb, em 2020. O Fundeb, maior mecanismo de financiamento da Educação Pública brasileira, teoricamente não seria uma agenda de interesse dos ultraconservadores, mas todos os parlamentares que se opuseram ao novo Fundeb têm ligação com o movimento Escola Sem Partido. E, na tramitação da regulamentação, trabalharam arduamente pelo maior repasse de recursos a instituições privadas, ganhando a adesão de vários deputados e deputadas. Os autores destacam ainda que a atuação dos mais de 100 parlamentares que defenderam essa agenda privatista está muito mais voltada para pautas conservadoras, como de segurança pública e punitivismo, do que para pautas de Educação ou direitos humanos. 

“Tais encontros mostram uma confluência de interesses entre o discurso antilaico e o privatista”, ressalta Cássio. Quem também reforça o conservadorismo em um aspecto amplo é Catarina de Almeida Santos, professora da Universidade de Brasília (UNB). “O objetivo é conservar as bases da sociedade brasileira: racismo, machismo, patriarcado, desigualdade social e econômica. No fundo é a mesma lógica escravocrata e colonizadora que o país sempre teve”, diz. 

No governo Bolsonaro, avançam várias agendas ultraconservadoras – ou reacionárias -, como a educação domiciliar, a militarização das escolas e a criminalização dos debates de gênero e sexualidade. Para Benilda Brito, ativista da Rede Malala no Brasil e integrante da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras, o principal objetivo deste projeto é continuar delimitando quem são “os indesejáveis sociais. E tirá-los de todos os cenários, inclusive da escola pública”..

Escola Sem Partido 

O Movimento Escola Sem Partido (MESP) foi fundado em 2004 e ganhou destaque nos debates públicos brasileiros na década passada. O movimento, através da acusação de “doutrinação ideológica”, criminaliza a docência e o ensino. Tentou se impor no legislativo, com a aprovação de dezenas de projetos de lei proibindo essa suposta doutrinação, mas os projetos foram derrotados após o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir que é inconstitucional proibir ou criminalizar tais debates na escola. O pesquisador Luis Felipe Miguel, em artigo que reconta a história do MESP, destaca que o Escola Sem Partido tem como princípio a primazia da família sobre a escola e enxerga docentes como ameaça em potencial. Ele reforça que o movimento só ganhou corpo e relevância nacional quando passou a atacar a chamada “ideologia de gênero”, ou as discussões sobre gênero e sexualidade na escola que desnaturalizam desigualdades e opressões. 

O MESP posicionou-se contra o novo Fundeb, argumentando que mais recursos para a educação básica seria “mais dinheiro para ser torrado em roda de conversa sobre ‘fascismo’ e identidade de gênero”. Na visão do movimento, “a escola sem partido só pode ser a escola sem financiamento”, como resumiram os pesquisadores Fernando Cássio e Fernanda Moura. Cássio, professor de políticas educacionais na UFABC, acredita que o MESP hoje é irrelevante enquanto movimento, o que não quer dizer que não afete o cotidiano escolar e nem que as forças ultraconservadoras não estão agindo na educação. “O movimento reacionário vai muito além do Escola Sem Partido, que teve suas teses invisibilizadas judicialmente e rompeu com Bolsonaro. Mas o projeto é mais antigo e é contra ele que lutamos”, defende o professor e ativista. “Além disso, o reacionarismo não depende muito de uma lei aprovada. A expectativa da aprovação ou o projeto de lei bastam para criar um ambiente escolar hostil e de ameaça”, reforça. 

E a resistência a projetos como o MESP também é articulada e coletiva. Por exemplo, em 2022, mais de 80 entidades de educação e direitos humanos lançaram a segunda versão do Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas. O manual, que pode ser baixado gratuitamente no site do projeto, foi construído em resposta às intimidações, ameaças e notificações dirigidas a docentes e escolas e à escalada do autoritarismo no país. Apresenta estratégias de como responder a novos tipos de ameaças que têm sido promovidas por movimentos e grupos ultraconservadores contra comunidades escolares. Além disso, esmiuça as alterações recentes de normativas nacionais e internacionais de direitos humanos, além de novas possibilidades no campo das estratégias jurídicas, políticas e pedagógicas de enfrentamento ao acirramento do autoritarismo na educação.

Militarização das escolas

Autoritarismo, obediência e hierarquia são também marcas de uma outra agenda conservadora: a militarização das escolas, ou a transferência da gestão das escolas civis públicas para a Polícia Militar. Esse processo se intensificou no governo Bolsonaro após a criação, em 2019, do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim). Nesse modelo, o estado ou o município assinam termo de cooperação com o MEC e policiais militares ou das Forças Armadas podem atuar dentro das escolas, com função pedagógica, administrativa e disciplinar. 

​​ Não há números exatos das escolas militarizadas no país, já que esse processo não se dá de uma única maneira, mas elas já passam de 500 e seguem em crescimento vertiginoso. Por exemplo, o Paraná em 2020 anunciou a adesão de 216 escolas da rede estadualde uma só vez. Estados como Goiás, Amazonas e Bahia também vêm investindo na modalidade, tanto a nível estadual como municipal. Para a professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UNB) e coordenadora do Comitê-DF da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, Catarina de Almeida Santos, insistir nesse projeto é, ainda que inconscientemente, criminalizar a comunidade escolar. “Em nosso imaginário, a polícia cuida de marginais. Levar a polícia para a escola é uma autodeclaração que são essas pessoas que estão na escola, porque é com quem a polícia teoricamente lida”, diz. 

As escolas militarizadas prezam, como o nome indica, por uma lógica militar, ou o que Catarina chama de “pedagogia do quartel”. Ou seja, privilegia a hierarquia e relações verticais, a obediência pelo medo, a padronização de corpos e comportamentos. Valores que se opõem à uma visão de escolas e processos educativos plurais, participativos, com relações mais horizontais e orientadas à convivência com diferenças, ao pensamento crítico e à desnaturalização de desigualdades. “É uma contraofensiva para que a base da sociedade não mude”, diz Catarina em relação ao avanço desse processo no Brasil. “Como trabalhar machismo e racismo em uma escola militarizada? Tirar o acesso à formação que desnaturaliza essas opressões garante a manutenção dos privilégios”, acrescenta ela. 

Um caso emblemático da padronização e da punição de tudo que é “diferente” aconteceu em Joinville-SC em março deste ano, quando alunos de uma escola cívico-militar foram advertidos por estarem com bandeiras LGBT dentro da escola (que foram confiscadas). É por isso que a professora da UNB considera que militarizar a escola é negar o direito à educação, uma vez que se nega o desenvolvimento pleno dos sujeitos, que não são preparados para viver em uma sociedade diversa. E as escolas militarizadas também são excludentes ao manter uma lógica de resultados que privilegia estudantes que já estão em melhores condições. Isto é, priorizam quem cumpre os requisitos e se adequa ao projeto. “Em geral, o perfil das escolas muda depois da militarização: embranquecem, atendem pessoas com mais condições financeiras, passam a ter congestionamento de carros”, descreve a pesquisadora.  

Ainda assim, a militarização parece uma opção atraente para milhares de famílias no país ao evocar ideias como disciplina e combate à violência – ao menos, a um tipo delas. É, nas palavras de Catarina de Almeida Santos, uma lógica invertida, uma vez que o trabalho das forças de segurança pública é zelar pela segurança fora da escola. “É contraditório militarizar a escola com o discurso de garantir segurança colocando dentro dela exatamente quem não garante a segurança fora, especialmente para quem é pobre e negro. É porque a sociedade está insegura que a escola também está, e não o contrário. Chamar os responsáveis por essa falha para resolvê-la não resolve nada”. 

Educação domiciliar ou homeschooling

Se a militarização busca controlar corpos e comportamentos dentro da escola, a educação domiciliar exerce esse controle retirando estudantes da instituição. Esta é uma das principais pautas do governo Bolsonaro na Educação, que vem trabalhando incessantemente para regulamentar essa modalidade, proibida no Brasil por decisão de 2018 do STF. 

Em maio de 2022, foi aprovado na Câmara o projeto de lei que autoriza o homeschooling no país. Segundo este projeto, a ou o estudante deve estar matriculado em uma instituição de ensino e submeter-se a provas regulares. E ao menos um dos responsáveis deve ter ensino superior, o que demonstra que o projeto, além de conservador, atende a uma elite econômica. O projeto altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) para admitir o ensino domiciliar na educação básica. No entanto, não há apelo popular. Uma pesquisa do DataFolha, também de maio de 2022, atestou que a maioria da população brasileira – 8 em cada 10 entrevistados – apoia a educação na escola. Para virar lei, ainda precisa ser aprovado pelo Senado e de sanção presidencial. 

A educação domiciliar retrocede em inúmeros direitos, em diversas áreas. Não à toa, é uma pauta tão importante para o projeto ultraconservador. “É uma estratégia que retrocede muitas políticas sociais que já tinham avançado e que pensava-se estarem consolidadas”, resume Benilda Brito, ativista da Rede Malala no Brasil e integrante da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras. Assim como a militarização, compromete o direito de crianças e adolescentes à convivência social e ao acesso a conhecimentos científicos e diferentes visões de mundo. Mas também oculta violências doméstica e sexual, frequentemente denunciadas através da escola; aumenta a insegurança alimentar; rompe com a política de educação especial na perspectiva da educação inclusiva; aprofunda desigualdades educacionais; estimula a evasão escolar; e enfraquece os investimentos em educação e nas escolas públicas.“É um retrocesso do que está expresso na Constituição sobre o direito à educação. Mas não é isolado e tem um efeito dominó em várias políticas, com o objetivo de garantir que a mesma elite branca, heterossexual e católica se mantenha”, diz ela. 

Como Benilda faz questão de enfatizar, a educação domiciliar já aconteceu em outros momentos da história brasileira, mas em momentos em que a população não tinha acesso à educação. Hoje esse é um direito constitucional, além de estar em várias convenções internacionais das quais o Brasil é signatário. “Por isso entendo esse projeto como do governo Bolsonaro sim, e que aliado a pautas como militarização e Escola Sem Partido complementa outras agendas, como o armamento, a destruição de política de cotas, entre outras. Pode não ser a principal política de Bolsonaro, mas tem a função óbvia de manter o conservadorismo e os privilégios da elite brasileira”, resume Benilda. 

Outras searas de disputa: PNLD e Disque 100 

Embora essas sejam descritas como as grandes pautas de um projeto conservador na educação, não são as únicas. Há outras ofensivas recentes de cunho conservador, excludente e reacionário, como os ataques ao Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), a perseguição a docentes através do Disque 100 e tentativas de criminalização da linguagem neutra. 

O PNLD, por exemplo, que atinge quase 50 milhões de estudantes, teve mudanças importantes no seu último edital: a violação de direitos humanos deixou de ser um critério eliminatório e a alfabetização pelo método fônico foi priorizada, apesar da diversidade de metodologias existentes e aplicadas no Brasil. Essas alterações estão inseridas no contexto de ataques aos direitos humanos na Educação sob o argumento da “neutralidade ideológica”. Também são esses argumentos os utilizados por autores de projetos de lei que têm surgido desde 2020 no país para criminalizar a linguagem neutra. Eles associam a estratégia à “militância ideológica” de uma “minoria” e pretendem proibir o uso de variações linguísticas nas escolas, em materiais didáticos, concursos, atividades culturais e esportivas. 

Em 2021, a censura e perseguição a professoras e professores atingiu um novo patamar quando o governo federal passou a incluir “ideologia de gênero” como uma categoria de denúncia no Disque 100, a central de recebimento de violações de direitos humanos. Nos estados da Bahia e do Rio de Janeiro, membros das comunidades escolares foram denunciados sob essa acusação. Tal ofensiva fez com que a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) entrasse com ação no STF questionando o uso do Dique 100 para perseguição política de comunidades escolares que discutem gênero, raça e sexualidade nas unidades educacionais. Agendas que, assim como a educação na escola, são defendidas em massa pela população brasileira, como também atestam pesquisas recentes

A quantidade de ações, programas e projetos de lei que buscam retroceder nas discussões sobre raça, gênero, sexualidade, direitos humanos e democracia deixam evidente que tais pautas não são secundárias para a gestão Bolsonaro, embora não tenham nascido em seu governo. As conquistas por uma educação pública, gratuita, laica e de qualidade para todas e todos levaram a uma contraofensiva organizada que encontra espaço na atual gestão, que simultaneamente também age para drenar recursos públicos das escolas públicas. Mas esses movimentos encontram resistência na ação da sociedade civil, que já conseguiu imprimir derrotas importantes por vias judiciais. E que agora se articula para derrubar o projeto ultraconservador também nas urnas.

Compromisso para a eleição: não corte da educação!

Lançamento da Carta Compromisso pelo Direito à Educação nas Eleições 2022

A Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala no Brasil e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação com seu Comitê Diretivo lançaram a “Carta Compromisso pelo Direito à Educação nas Eleições 2022” a candidatas/os à presidência, legislativos federais e estaduais e a governos em evento presencial na terça-feira (28/06), em evento no Salão Nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). A cerimônia integrou a Semana de Ação Mundial 2022 (SAM), a maior iniciativa global de mobilização pelo direito humano à educação, realizada simultaneamente em 100 países desde 2003.

O documento contém 40 compromissos para garantir um financiamento adequado à educação nos próximos governos, além da construção de sistemas de educação pública fortes e a superação das profundas desigualdades raciais, sociais, de gênero e regionais que afetam o acesso e permanência de estudantes na escola – sobretudo meninas. O documento será assinado pelas/os pré-candidatas/os presentes, que irão então assumir um compromisso público por uma educação pública, gratuita, laica, inclusiva, equitativa e de qualidade.

LEIA A CARTA COMPROMISSO

LEIA A VERSÃO ACESSÍVEL DA CARTA COMPROMISSO (PRODUZIDA PELA ESCOLA DE GENTE)

A leitura da Carta foi feita pela jovem indígena Maria Clara da Cruz, do povo Tumbalalá, do município de Abaré, no norte da Bahia. “Esse é um momento importante para a sociedade brasileira como um todo. Queremos sentir quais são os compromissos que os nossos futuros governantes terão com a educação. O que não dá mais é continuarmos nessa linha de pensar a educação como gasto, e não como investimento”, diz Givânia Silva, Ativista pela Educação do Fundo Malala e coordenadora do Coletivo de Educação da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ). 

A Carta Compromisso foi elaborada por 11 ativistas apoiadas pelo Fundo Malala no Brasil e pelo Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. A Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala no Brasil irá acompanhar de perto as/os pré-candidatas/os ao longos das eleições até o fim dos primeiros 100 dias de mandato com o objetivo de verificar se estão engajadas/os e cumprindo com os pontos assumidos por meio da assinatura da Carta Compromisso.

Destaques da Carta Compromisso

  • Plano Nacional de Educação (PNE) como horizonte da luta pelo direito à educação
  • Revogação do “Teto de Gastos” (EC 95/2016)
  • Plena regulamentação e implementação do novo e permanente Fundeb (Fundo de Desenvolvimento e Manutenção da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação)
  • Aprovação e implementação de um Sistema Nacional de Educação, tendo como referência o Custo Aluno-Qualidade (CAQ) e o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb)
  • Cumprimento integral da Lei 13.005/2014, do Plano Nacional de Educação (PNE), e construção de um novo Plano com ampla participação social
  • Revogação da Reforma do Ensino Médio
  • Implementação plena da Lei de Cotas (Lei 12.711/2012) e defesa intransigente do princípio da gratuidade no ensino superior público
  • Garantia de educação de qualidade para as populações quilombolas, indígenas, ribeirinhas e do campo, conforme suas especificidades e com financiamento adequado para a implementação das respectivas Diretrizes Curriculares Nacionais

Balanço PNE: taxa de descumprimento é de cerca de 86%; apagão de dados impede que 8 das 20 metas sejam completamente avaliadas

A 3 anos do final da vigência, Plano Nacional de Educação apresenta 45% das metas em retrocesso e sofre com falta de dados

A Campanha Nacional pelo Direito à Educação lançou nesta segunda-feira (20/06) seu 8º Balanço anual do Plano Nacional de Educação (PNE). O documento apresenta dados da situação atual de cada uma das 20 metas do Plano e avalia seu cumprimento ao longo do tempo. 

Às vésperas do final da vigência do Plano, o cenário é de abandono. Além da baixa taxa de avanço em praticamente todas as metas, 45% delas estão atualmente em retrocesso e a situação pode ser ainda pior. Dada a grande falta de informações atualizadas, não é possível afirmar com certeza a gravidade dos atrasos e retrocessos.

Como indica o balanço, se observa um grave problema na disponibilização de dados oficiais. Das 20 metas do PNE, 8 não possuem dados abertos suficientes para serem completamente avaliadas. Em alguns casos só conseguimos dados por meio da Lei de Acesso à Informação e em outros, não recebemos resposta.

ACESSE O RESUMO-EXECUTIVO DO BALANÇO NO SITE DA CAMPANHA

Além disso, os dados coletados até 2021 indicam que 15 metas não estão cumpridas. Entre as 5 metas parcialmente cumpridas estão aquelas que já estavam avançadas no momento da aprovação da Lei em 2014, não indicando propriamente progresso do sistema educacional.

A edição deste ano do Balanço também mostra que, dos 38 dispositivos em andamento que servem como parâmetro para as metas, apenas 5 avançam em ritmo suficiente para serem cumpridos até o final da vigência do Plano. Isso representa uma taxa de descumprimento da Lei de cerca de 86%.

A vigência do PNE tem sido marcada pela austeridade fiscal que se aprofundou nesse período e não saiu de cena desde a aprovação da EC 95/2016 do Teto de Gastos, comprometendo de maneira crítica os recursos da educação. Como é possível perceber, a situação é preocupante e o cumprimento do PNE não vai avançar sem os investimentos adequados.

O balanço foi apresentado em audiência pública no Senado Federal na segunda (20). O resumo dos dados está disponível neste link.

Leia mais: SUBFINANCIAMENTO, ABANDONO E DESTRUIÇÃO: PORQUE O PNE ESTÁ TÃO LONGE DE SER CUMPRIDO

“Pequeno Dicionário” desmistifica termos polêmicos do debate político brasileiro atual

Parceria com UFRJ explica como termos como “ideologia de gênero” e “politicamente correto” passaram a ser usados como acusação.

O que significa “ideologia de gênero” e por que é ruim ser acusado de propagá-la? Um país com mais de 80% de cristãos pode ser “cristofóbico”? E “politicamente correto” sempre foi uma acusação? Essas são algumas perguntas que a publicação “Termos ambíguos do debate político atual: pequeno dicionário que você não sabia que existia” pretende responder. 

A publicação, disponível no site do projeto, reúne alguns termos mais frequentes do atual debate político brasileiro – como “patriotismo”, “ideologia” e “racismo reverso” – e detalha os percursos que fizeram com que virassem presença quase obrigatória no vocabulário político do Brasil da última década. 

Elaborado ao longo de 2021, o “Pequeno Dicionário” é uma iniciativa do Observatório de Sexualidade e Política (SPW) em parceria com pesquisadores da área de linguística aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A publicação resgata a história das expressões selecionadas, destacando os momentos em que estas passam a ser usadas como acusação no debate público. Os verbetes explorados são “ideologia”, “ideologia de gênero”, “politicamente correto”, “marxismo cultural”, “cristofobia”, “racismo reverso” e “feminismo”. Há também a história do “patriotismo”, hoje usado em forma de exaltação ou qualidade. O objetivo do projeto é que os leitores possam decidir, de maneira informada, se querem manter ou incorporar essas expressões em seu vocabulário. 

“Os termos tratados neste pequeno dicionário foram sendo sorrateiramente absorvidos pelo senso comum desde o final dos anos 1990 e hoje fazem parte do vocabulário político  comum e corrente. É como se esses bordões sempre tivessem existido. Ninguém se pergunta de onde vieram, como foram criados e  a que se destinam.  Recuperar essas trajetórias foi uma de nossas motivações, porque isso é vital para saber como melhor contestá-los”, diz Sonia Corrêa, ativista e pesquisadora feminista e co-coordenadora do SPW.  

Linguagem acessível

A publicação tem duas versões: uma para leitoras e leitores com escolaridade de nível superior e outra dedicada a quem está no Ensino Médio. Manter uma linguagem acessível e que alcançasse públicos fora da academia foi uma das grandes preocupações dos realizadores do projeto. Isso porque o objetivo é também confrontar a maneira reducionista e simplista com que esses termos foram disseminados e incorporados no vocabulário cotidiano. Para cumprir esses objetivos, foram aplicados conceitos da área da Linguística aplicada. 

“Na edição jovem, todos os verbetes ficaram ainda mais curtos e descomplicados, em um processo de condensação e simplificação textual realizado através de uma ferramenta que avalia o nível de dificuldade de um texto. Este é um processo chamado de ‘tradução intralinguística’, isto é, a tradução de um texto dentro da mesma língua, orientada por metas e públicos diferentes”, diz Janine Pimentel, líder do Núcleo de Estudos da Tradução da UFRJ e professora da Universidade.

Termos ambíguos do debate político atual: pequeno dicionário que você não sabia que existia

72 páginas. 
A quem se destina: estudantes de graduação, profissionais recém-formados, profissionais de comunicação, influenciadores e criadores de conteúdo, docentes e interessados em geral. 
Disponível em https://sxpolitics.org/pequenodicionario 

Termos ambíguos do debate político atual: pequeno dicionário que você não sabia que existia – Versão Ensino Médio 

39 páginas.
A quem se destina: Estudantes de Ensino Médio e interessados em geral. 
Disponível em https://sxpolitics.org/pequenodicionario