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Entre presidenciáveis, apenas Lula tem proposta de governo que viabiliza o Plano Nacional de Educação

Metas do governo atual são marcadas pela austeridade e enfraquecimento democrático. O Plano de Bolsonaro é o único que não prevê combate ao racismo, nem à LGBTfobia. 

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

Embora deva nortear as políticas educacionais brasileiras até 2024, o Plano Nacional de Educação (PNE) sequer está no horizonte de Ciro Gomes (PDT) e Jair Bolsonaro (PL). Entre os quatro candidatos à Presidência com maior intenção de votos, apenas Simone Tebet (MDB) e Lula (PT) mencionam o PNE, e só o candidato petista contempla também propostas que de fato viabilizam sua execução, como a revogação da Emenda Constitucional 95 (o Teto de Gastos). O diagnóstico preocupante baseia-se nas quatro propostas de governo submetidas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), analisadas pela Iniciativa De Olho Nos Planos.  

A ausência no Plano de Governo de Bolsonaro não surpreende, já que sua gestão nunca norteou a política educacional pelo PNE (Lei 13.005/14). Ao contrário, deu seguimento às políticas de austeridade que o inviabilizaram já em 2015, um ano após sua aprovação. Bolsonaro não apenas manteve a Educação subfinanciada e sofrendo com sucessivos cortes orçamentários, como também avançou medidas que impactam o PNE negativamente, como o Novo Ensino Médio e a militarização das escolas. Para um eventual novo mandato, o atual presidente mantém o alinhamento com políticas neoliberais e de austeridade. 

Simone Tebet menciona a intenção de renovar o Plano Nacional de Educação em 2024 e destaca que o Ministério da Educação (MEC) deve ser protagonista neste processo. Ela também fala do PNE na meta de “garantir que todos os alunos sejam plenamente alfabetizados até o segundo ano do ensino fundamental, em cumprimento à BNCC e às metas do atual Plano Nacional de Educação”. No entanto, o conjunto das propostas da candidata não toca em mecanismos cruciais para que o PNE possa ser cumprido, como o financiamento adequado – ela e Ciro Gomes mencionam fontes alternativas de financiamento para a educação, mas não detalham quais seriam essas fontes. A articulação entre PNE e financiamento aparece apenas no Plano de Governo de Lula, que em sua diretriz 51 menciona a intenção de revogar o Teto de Gastos e, ainda, rever o atual regime fiscal brasileiro. Antes, na meta 21, o candidato explicita o objetivo de que o Brasil volte a “investir em educação de qualidade, no direito ao conhecimento e no fortalecimento da educação básica, da creche à pós-graduação, coordenando ações articuladas e sistêmicas entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, retomando as metas do Plano Nacional de Educação e revertendo os desmontes do atual governo”.

A Coordenadora da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, destaca que muitos dos mecanismos brasileiros de referência para a educação devem-se à conquistas mobilizadas pela sociedade civil, incluindo a existência de um Plano Nacional e de Planos subnacionais robustos. “A referência legal e o monitoramento institucional são as políticas que ainda têm se mantido de pé – a partir da resistência da comunidade educacional. As candidaturas que não reconhecem isso explicitamente dão sinais de falta de compromisso com gestão democrática e com a própria legislação”, afirma Andressa. 

Na mesma linha, o professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Eduardo Januário, também destaca que nortear-se pelo PNE demonstra compromisso com a democracia. “O histórico do PNE é de participação intensa de movimentos sociais desde sua concepção. Notar sua ausência como referência para as diretrizes educacionais, sobretudo no caso de Bolsonaro, é também notar a visão de cada candidato sobre o processo democrático. No caso de Bolsonaro não há intenção de agir conforme o processo que levou ao PNE e que foi criado a partir dele”, ressalta. 

Diferentes visões sobre educação 

As quatro propostas variam não apenas em extensão e detalhamento das políticas pretendidas como também nas diretrizes em si, refletindo diferentes concepções de sociedade e de Educação – como um direito ou como mero capital humano. A proposta de governo de Bolsonaro cita “competência” e “estratégias que se alinham com demandas do mercado”. Ciro Gomes fala em “habilidades socioemocionais” e “Incentivos financeiros para escolas que apresentam bom desempenho” e Simone Tebet refere-se a “produtividade”. 

“Uma rápida análise de discurso já mostra que Bolsonaro e Tebet têm uma visão de educação como capital humano, não como direito; Ciro contemporiza, matizando a proposta, sob um “rightswashing” que não engana aos atentos às estratégias do neoliberalismo; e Lula é quem mais se aproxima da educação na perspectiva de direito, cuja garantia da educação é compromisso por si e não com fins meramente econômicos”, avalia Andressa Pellanda, para quem a proposta do ex-presidente é também mais coerente com os pactos sociais e com o arcabouço legal brasileiro. 

Andressa aponta que nenhuma proposta menciona explicitamente mecanismos como o Custo Aluno-Qualidade. O professor Eduardo Januário também sentiu falta da menção à Meta 20 do PNE, que prevê a ampliação do investimento público em educação chegando a até 10% do PIB. Na avaliação do professor, uma diferença gritante dos planos de Bolsonaro em relação aos outros candidatos é que “na proposta de Bolsonaro estão ausentes todos os princípios do PNE e qualquer disposição em ouvir os movimentos sociais”. Suas propostas focam no enfraquecimento do Estado e no maior papel da iniciativa privada. Bolsonaro desvaloriza as profissionais da educação e a escola, tratando a educação como assunto de família – expressões típicas do projeto ultraconservador colocado em prática em seu governo. “É uma proposta extremamente excludente, com grandes e bem marcadas hierarquias sociais, e voltada a entregar nossas riquezas e benesses ao mercado”, reforça. É a marca da política dos últimos quatro anos na educação: “Censuras, mentiras e muito discurso ideológico ultraconservador, e nenhuma ação concreta no sentido de materializar o direito à educação, a não ser na contramão das diretrizes legais, com cortes de recursos, aparelhamentos, intervenções, e militarizações”, como também definiu a Coordenadora da Campanha. 

A abordagem da segurança alimentar do atual governo é um bom exemplo da hipocrisia e da falta de ações concretas. Na proposta enviada ao TSE, a segurança alimentar aparece como uma preocupação de Bolsonaro, que diz ter a intenção de manter a Política Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). No entanto, no dia 10 de agosto, o presidente vetou o reajuste de verbas repassadas ao Programa alegando que o aumento do valor destinado à alimentação escolar contraria o interesse público. Atualmente, o Brasil está de volta ao Mapa da Fome e mais da metade da população experiencia algum nível de insegurança alimentar. O professor da FEUSP e especialista em financiamento da Educação ainda aponta outras contradições no Plano de Governo de Bolsonaro: “Como atingir o chamado ‘ciclo da prosperidade’ sem investimentos públicos, vetando reajustes e reforçando a EC 95? Como dar a dignidade aos menos favorecidos? Que inclusão é possível quando a própria primeira-dama publicamente discrimina religiões de matrizes africanas?”. 

As outras propostas analisadas, de Ciro Gomes e Simone Tebet, não têm vieses antidemocráticos como a de Bolsonaro, mas têm uma abordagem para a Educação fortemente influenciada por uma visão empresarial. A candidata do MDB tem a parceria com a iniciativa privada como um dos eixos estruturantes de seu projeto, embora traga discussões sobre combate à pobreza e às desigualdades e apresente uma agenda detalhada em relação às normativas e políticas educacionais. “E [a proposta] se compromete com reformas recentes que têm precarizado a educação, como a Reforma do Ensino Médio, e traz a perspectiva da educação como capital humano, que aprofunda desigualdades e é sistêmica”, ressalta Andressa Pellanda. Já a proposta de Ciro Gomes, pautada fortemente por avaliações externas em larga escala, “dá ênfase em experiências locais, errando em achar que pode generalizá-la, e não traz propostas substantivas para a área”, completa. 

Para a Coordenadora da Campanha, nas agendas destes dois candidatos evidencia-se uma agenda neoliberal na educação, a partir de alianças público-privadas com fundações e grupos empresariais “que defendem um modelo educacional do capital humano, que coloca a educação como um meio para alimentar o sistema político-econômico vigente de exploração e não para superá-lo. O impacto para a educação é perverso: se retira a responsabilidade do Estado sobre os resultados educacionais – cujos problemas são diretamente relacionados a subfinanciamento e à falta de políticas equitativas – e se coloca no colo de profissionais da educação e de estudantes – sem dar as condições mínimas para que o processo de ensino e aprendizagem aconteça com qualidade; e se implementa uma agenda reducionista para a educação pública, com foco em conteudismo e formação precária para mão-de-obra barata, deixando à margem os pilares da formação plena e da formação cidadã, e aprofundando as desigualdades sociais, regionais, raciais”.

Políticas afirmativas: ausências e timidez na abordagem 

A abordagem de políticas afirmativas, como as cotas raciais, além de políticas de igualdade racial, de gênero e de combate a LGBTfobia também traz divergências importantes entre os quatro principais candidatos. 

Uma diferença notável é que o plano de Bolsonaro é o único que não prevê combate ao racismo nem à LGBTfobia e o único que não inclui a revisão da lei de cotas. O plano de Lula promete assegurar a continuidade das políticas de cotas sociais e raciais na educação superior e nos concursos públicos federais, bem como sua ampliação para outras políticas públicas. O de Tebet fala em manter  a política de cotas e expandir ações afirmativas para promover maior igualdade racial, social e de gênero. 

Gênero, aliás, é uma palavra que também só aparece nos planos de Lula e Tebet. Ciro e Bolsonaro não utilizam o termo, embora tratem de mulheres e da redução das desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho (Ciro e Bolsonaro) e no parlamento (Bolsonaro). Lula utiliza inclusive o termo “identidade de gênero” como categoria que deve ser reconhecida e protegida. A população LGBTQIA+ é abarcada no plano de Lula sob o combate à violência e promoção de direitos, enquanto Ciro foca no combate à violência. A candidata do MDB faz apenas uma menção, quando refere-se à adoção de “medidas que garantam a igualdade de oportunidades a mulheres, jovens, pessoas idosas, com deficiência e com doenças raras, negros, quilombolas, população LGBTQIA+, povos originários e outras minorias em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública”. Para Andressa Pellanda, a abordagem de “igualdade de oportunidades” de Tebet é mais uma expressão da lógica neoliberal, uma vez que minimiza o papel do Estado na garantia de direitos com equidade. E Ciro, ao restringir as propostas para essas populações às políticas de prevenção ao crime, “denota reducionismo da agenda e uma proposta reativa, que olha para uma das consequências das desigualdades e não para sua causa”.

O professor Eduardo Januário reitera que a única proposta que busca trabalhar com as causas das desigualdades, especialmente a racial, é a de Lula, que inclusive menciona racismo estrutural, genocídio e perseguição à juventude negra, e o superencarceramento, além de explicitar a violência contra mulheres negras, a juventude e ataques as religiões de matriz africana. “A questão da violência também é interessante, porque há uma dimensão estrutural que não é apenas a violência física, mas o preconceito, a dificuldade em acesso a serviços e direitos, a inserção desigual no mercado de trabalho. E apenas o Plano de Lula menciona, com firmeza, políticas de inclusão. Sua oposição é o plano de Jair Bolsonaro, que reafirma não ter preocupação com grupos minorizados. Pelo contrário, explicita o projeto de destruição dos avanços construídos ao longo de décadas”.

Políticas de austeridade na Educação, Reforma do Ensino Médio e militarização das escolas tornam o cumprimento do PNE ainda mais difícil

O descaso do Governo Bolsonaro com o Plano Nacional de Educação e a intensificação das políticas de austeridade em sua gestão ampliaram as desigualdades educacionais no país

Estudantes protestam contra cortes na Educação em Macau (RN). Foto: Vitória Matos/Estudantes Ninja

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

Todos os anos a Campanha Nacional Pelo Direito à Educação (Campanha) divulga seu balanço do cumprimento das metas e dispositivos do Plano Nacional de Educação (PNE, Lei 13.005/14). E ano após ano o cenário de descumprimento se agrava. A última edição, lançada em junho, apontou que além das metas não cumpridas ou graves retrocessos, há também uma importante lacuna de dados que impediu a avaliação de quase metade das metas e dispositivos. Retrato da gestão Bolsonaro, que aprofundou as políticas de austeridade na educação e dificultou de diversas maneiras a participação social, a gestão democrática e a transparência. Das 20 metas, 8 apresentam retrocesso em ao menos um dispositivo, e também são 8 as que não têm dados suficientes para avaliação. No total, a taxa de descumprimento é de 86%. 

Como a Iniciativa De Olho nos Planos sempre reitera, o PNE começou a ser esvaziado já em 2015, e o cenário se agravou após o golpe parlamentar de 2016 e com a aprovação da Emenda Constitucional 95 (EC 95, o Teto de Gastos), que constitucionalizou os cortes orçamentários por 20 anos. “Vínhamos em um esforço muito grande de construir o PNE como epicentro das políticas educacionais, mas fomos afetados pela mudança no cenário político, que veio seguida de um descontrole imenso e de um ataque sistemático aos direitos sociais”, resume Márcia Angela Aguiar, professora da UFPE e Diretora de Cooperação Internacional da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE). Márcia destaca outros dois baques importantes no cumprimento do PNE para além da EC 95 e que, em sua visão, indicaram também uma inclinação para o setor privado: as alterações na composição do Fórum Nacional de Educação e na composição do CNE, reduzindo a representação da sociedade civil (que respondeu criando o FNPE e a Conape).

O governo Bolsonaro nunca norteou a política educacional pelo PNE e deu seguimento às políticas de austeridade que inviabilizam o cumprimento do plano. Além do subfinanciamento da Educação que inviabiliza o PNE como um todo, em seu governo também avançaram medidas que o impactam, como a Reforma do Ensino Médio e a militarização das escolas. “Vemos que o contexto político é um elemento determinante. Para além da ausência de recursos, o PNE também está em disputa quando se avançam pautas como a educação domiciliar, as tentativas de criminalizar discussões sobre gênero. Tudo isso causa um tumulto”, complementa Márcia Angela Aguiar. 

O novo Ensino Médio, como destacou a Campanha em seu último balanço, é um marco negativo para o cumprimento da Meta 3, que diz respeito à universalização do atendimento escolar para a população de 15 a 17 anos e a elevar as matrículas do Ensino Médio para 85%. O cenário atual é de quase meio milhão de jovens nessa faixa etária fora da escola, e a taxa de matrícula líquida, que já não avançava no ritmo ideal, teve queda durante a pandemia. Retrocessos que devem ser agravados pela Reforma do Ensino Médio, uma vez que essa dá margem à privatização e não garante as condições necessárias nas escolas como infraestrutura e falta de professoras/es com formação adequada, além de estabelecer um currículo mínimo através dos chamados itinerários formativos. Na prática, como destaca a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) em nota técnica sobre o tema, a reforma acirra as desigualdades educacionais: “Os/as estudantes mais pobres da rede estadual – particularmente os/as do Ensino Médio noturno – são sempre mais prejudicados/as: têm menos possibilidades de escolha, mais aulas sem professores e a oferta de expansão da carga horária mais precarizada”. 

Tais impactos também devem ser sentidos por quem opta pela Educação Profissional técnica de nível médio, foco da Meta 11 do PNE. Essa modalidade, onde só houve aumento de matrículas na rede pública, pode ser impactada pelo Novo Ensino Médio uma vez que o itinerário formativo que contempla a formação técnica e profissional é bastante questionado em relação à manutenção da qualidade, pois permite que profissionais sem formação docente lecionem disciplinas e que até 30% do ensino médio seja realizado no formato de educação a distância (EaD). “Esta última, para além de questões relacionadas à qualidade, mostrou enormes limitações relacionadas ao próprio acesso – e, especialmente, à equidade de acesso – durante a pandemia”, reforçou a Campanha no balanço do PNE. A diretora da ANPAE, Márcia Aguiar, é ainda mais contundente, contextualizando a reforma do Ensino Médio na perspectiva neoliberal e de austeridade na Educação: “É uma concepção de currículo ligada à ideia de formar um trabalhador dócil e domesticado, de reduzir suas possibilidades de formação. Uma ruptura em relação ao que era construído até então a duras penas: a educação básica voltada para a formação da cidadania”. Ruptura que é completada por outras políticas como as de militarização e da educação domiciliar. Neste contexto, diversas organizações, incluindo a Ação Educativa, assinaram uma carta aberta pela revogação da Reforma do Ensino Médio

O crescente aumento de escolas militarizadas – processo que tem grande aval do governo -, impacta especialmente as metas que se referem à participação social e gestão democrática da Educação, como a meta 19, e à redução das desigualdades educacionais, como a meta 8. Isso porque, como nos explicou em entrevista a professora Catarina de Almeida Santos, as escolas militarizadas operam sob uma lógica de hierarquia, obediência e repressão. Nesse sentido, negam o direito à educação. “Educação tem a ver com o desenvolvimento pleno dos sujeitos, de suas especificidades, de formar uma pessoa para a vida em sociedade, e a militarização nega essa lógica. Ao proibir a demonstração de afetividade, regular as maneiras de sentar, de correr, obrigar a bater continência, forma-se um sujeito que entende que a única possibilidade do certo é obedecer aquela lógica”, explicou ela. 

Outras metas que já vinham em retrocesso seguem nesta situação gravíssima. Por exemplo, as metas que abarcam a redução das desigualdades educacionais – agravadas durante a pandemia -, a Educação de Jovens e Adultos (EJA) e a Educação Integral. A EJA, abarcada pelas metas 9 e 10, segue em situação de completo abandono. Dois dados chamam a atenção: de acordo com os últimos dados disponíveis, apenas 2,2% das matrículas de EJA estavam integradas à profissionalização. Percentual abaixo do observado no início da vigência do atual PNE (2.8%) e muito distante da meta de 25%. Ainda, o programa Brasil Alfabetizado, que atendia principalmente municípios com altas taxas de analfabetismo, foi ainda mais desidratado em seus recursos, estando virtualmente extinto. A professora da Faculdade de Educação da USP Maria Clara Di Pierro já havia alertado que essa era a característica do governo Bolsonaro para a EJA: não revogar as políticas da área, mas sim desfinanciá-las. O resultado é a destruição de uma modalidade já há muito negligenciada. A Educação Integral, por sua vez, apresenta uma das situações mais graves em relação a seu cumprimento, como observou a Campanha. Os dois dispositivos da meta 6 caíram entre 2014 e 2021, ao invés de subir. Foram mais de 10 mil escolas e 1 milhão de matrículas perdidas e sem perspectiva de recuperação. 

Subfinanciamento e lacuna de dados: retratos de uma gestão excludente e autoritária

O subfinanciamento da Educação brasileira que inviabiliza o cumprimento do PNE como um todo não é novidade, mas nem por isso é menos preocupante. A meta 20 prevê que o país amplie o investimento público em educação pública progressivamente até o equivalente de 10% do PIB em 2024, uma conquista histórica dos movimentos e organizações que defendem a educação pública e de qualidade. O percentual ficou na faixa dos 5% entre 2015 e 2017, tendo uma queda ao invés de subir. Reflexo das políticas de austeridades que apenas se intensificaram desde o Teto de Gastos. O não cumprimento dessa meta tem efeito cascata em todo o PNE, pois sem novos recursos a implementação das outras metas – que preveem, por exemplo, maior número de matrículas em diferentes níveis – fica inviabilizada.

É significativo que a maior conquista no tema do financiamento educacional dos últimos anos – a constitucionalização do novo Fundeb com maior participação da União -, não tenha conseguido amenizar o cenário de destruição, tamanha sua amplitude. Em nossa última análise do cumprimento do PNE, o professor José Marcelino de Rezende Pinto, vice-presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), alertou que a política de fundos tem suas limitações: precisa de mais investimento. “Sem mais dinheiro, não adianta muito mexer e fazer ajustes nestes mecanismos porque o total permanece o mesmo”, explicou. Outros desafios para o cumprimento dessa meta incluem a regulamentação do CAQ, que vincula o financiamento com parâmetros de qualidade para a educação básica. Apesar de já estar previsto na Lei do novo Fundeb e em outros marcos educacionais, o CAQ ainda não foi implementado. 

Por fim, a lacuna de dados educacionais coroa o cenário preocupante de retrocessos observados nos últimos anos e de descumprimento do PNE. Para realizar a última edição do Balanço do PNE, a campanha teve que se valer da Lei de Acesso à Informação – e mesmo assim 8 metas ainda não tinham dados suficientes. Principalmente pelo atraso na realização do Censo do IBGE e de dados de responsabilidade do INEP, como o Censo da Educação Básica. O INEP, aliás, está sob ataque no governo Bolsonaro desde o início da gestão. Nos últimos anos, tem sofrido com sucessivos desmontes de sua estrutura, que afetam a capacidade da autarquia ligada ao MEC de cumprir suas funções de promover estudos e avaliações periódicas sobre o sistema educacional brasileiro a fim de subsidiar a formulação e implementação de políticas públicas, como o PNE.  É a “tempestade perfeita” para inviabilizar o que se atinjam das metas do Plano Nacional de Educação, como define Márcia Angela Aguiar, da ANPAE. A falta de transparência, marca característica da gestão Bolsonaro, impede que a população tenha acesso aos dados sobre o próprio país e que possa construir políticas transformadoras a partir daí. Os mais afetados, portanto, são sempre os grupos historicamente marginalizados, que são ativamente invisibilizados de programas e ações governamentais. 

O caso de Santo André-SP: a saída é pelo coletivo

Apesar do dramático cenário nacional, não faltam exemplos de ativistas, membros das comunidades escolares, gestoras e gestores comprometidos com o cumprimento dos planos a nível municipal, estadual e nacional. O edital “Planos de educação vivos: vamos contar as suas histórias!”, promovido pela Iniciativa De Olho nos Planos em 2021, mostra alguns desses casos inspiradores. 

Em Santo André (SP), por exemplo, a movimentação de ativistas preocupadas e preocupados com a educação antirracista tem conseguido algumas vitórias, ainda que com muita luta. A cidade teve um longo processo de construção de seu Plano Municipal, fortemente marcado pela participação social. Um de seus aspectos mais importantes é o monitoramento social participativo, realizado através de diversos mecanismos, como o Comitê de Articulação Interfederativa e a implementação dos Indicadores de Qualidade na Educação – Relações Raciais na Escola que gerou um Documento de Recomendações para implementação das Metas 7 e 8 do PME. Tais iniciativas já conseguiram realizar relatórios de monitoramento do plano, formações de educadoras e educadores sobre as leis 10.639/2003 e 11.645/2008, e a sociedade civil tem procurado incidir no Fórum Municipal de Educação e no Conselho Municipal de Educação. 

Um grande desafio, como conta Elly Bayó, educadora e integrante do Conselho Municipal de Educação do município. Ela aponta que a participação da sociedade civil vem sendo limitada e que instâncias fundamentais vem sendo cooptadas para reduzir a incidência da sociedade civil. Mas que, com muita coletividade, o município tem conseguido, por exemplo, retomar o uso dos Indicadores nas escolas e creches do município. “A duras penas e porque estamos pressionando muito o Conselho e os Fóruns de Educação. Nossos debates acabam reverberando no cotidiano escolar, e vemos os Indicadores aparecerem nas escolas de novo, embora isso não significa que eles estejam sendo colocados em prática”, ressalva. Elly destaca a centralidade do Grupo Guardião no âmbito das unidades escolares e da sociedade civil nas instâncias formais de monitoramento. “Temos pautado a importância de usar esse material (Indicadores) que já está pronto, foi feito com recursos públicos e é coerente com o que precisamos fazer na rede municipal”, diz. “Santo André já seria uma referência em educação antirracista se simplesmente tivesse usado o material que já tem há anos”, complementa. Em Santo André, para além das imensas dificuldades em assegurar a participação da sociedade civil nas instâncias formais, há ainda problemas no monitoramento do Plano – corroborando o diagnóstico feito pela Campanha -, como falta de dados oficiais que dificultam o monitoramento com qualidade. “Mas entendo que a saída é a construção da coletividade, apostar em uma coletividade que não se restrinja aos espaços formais, porque apenas esses espaços não dão conta de tudo. Uma coletividade Ubuntu. É preciso irmos e ouvirmos o chão da escola, outras pessoas em outras realidades. A luta é coletiva”, resume Elly.

Projeto ultraconservador para a educação inclui a criminalização de debates sobre direitos humanos, gênero, raça, sexualidade e ataques à laicidade

Projeto de desmonte da Educação pública é uma aliança entre grupos que defendem o seu desfinanciamento pelo Estado e os que criminalizam profissionais da educação, comunidades escolares e contribuem com o aumento da violência. 


Por Nana Soares
Edição de texto: Claudia Bandeira

A educação pública, gratuita e de qualidade está há anos sob ataque: a Emenda Constitucional 95, de 2016, inviabilizou o cumprimento do Plano Nacional de Educação (PNE) ao proibir o aumento dos gastos em áreas sociais. No governo Temer, também a participação da sociedade civil foi drasticamente reduzida a partir do desmonte das instâncias de monitoramento e de controle social da política educacional. Isso piorou com Bolsonaro, quando a Educação sofreu os maiores cortes orçamentários – apesar do novo Fundeb, que aumentou a participação da União no financiamento da Educação. Mas os ataques ao direito à educação de qualidade para todas e todos não se dão apenas através do desfinanciamento. Também há investidas contra a laicidade da educação, a democratização e participação social, contra a construção de visões críticas e questionadoras e contra a liberdade de aprender e ensinar. Estas agendas em geral são agrupadas sob o nome de “projeto ultraconservador”. 

Este projeto reúne diversas agendas – como a educação domiciliar, Escola sem Partido, criminalização de debates sobre gênero e sexualidade, militarização das escolas, combate à “ideologia de gênero”, etc – e embora esteja alinhado e tenha se intensificado com a gestão Bolsonaro, não começou nela. Em 2013, quando se debatia a construção do PNE, o “gênero” já estava sob ataque e acabou suprimido do texto final

Para Fernando Cássio, professor de políticas educacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC) e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU), esse projeto é mais do que conservador: é reacionário, e tem como alvo as escolas porque é na Educação que muitos avanços foram construídos nos últimos anos. “É claro que é um projeto conservador, mas este é um campo amplo, composto também por entidades empresariais da educação que, por exemplo, se eximem de discussões de gênero e sexualidade. Já os reacionários visam reverter as conquistas sociais. Na educação tivemos avanços inegáveis, como no currículo e no reconhecimento de diversas diferenças, então a escola se torna um grande bastião de resistência a esse projeto”, diz. Cássio diferencia a “barbárie gerencial” da ultraconservadora ou reacionária. Enquanto a primeira disputa a escola a partir de fora, nos debates de políticas e gestões educacionais, a segunda disputa pequenas lutas do cotidiano, ou a escola “por dentro”: o currículo, o conteúdo passado pelos professores, a relação de confiança entre os atores escolares. “Em suma, visam transformar a escola em um ambiente hostil”, resume. 

Para alcançar seus objetivos, os defensores deste projeto frequentemente se aliam com os chamados “ultraliberais” – isto é, que querem o enfraquecimento do Estado e do setor público. Um artigo recente de Cássio em parceria com Fernanda Moura e Salomão Ximenes ilustrou como essa aliança se deu nos debates de regulamentação do Fundeb, em 2020. O Fundeb, maior mecanismo de financiamento da Educação Pública brasileira, teoricamente não seria uma agenda de interesse dos ultraconservadores, mas todos os parlamentares que se opuseram ao novo Fundeb têm ligação com o movimento Escola Sem Partido. E, na tramitação da regulamentação, trabalharam arduamente pelo maior repasse de recursos a instituições privadas, ganhando a adesão de vários deputados e deputadas. Os autores destacam ainda que a atuação dos mais de 100 parlamentares que defenderam essa agenda privatista está muito mais voltada para pautas conservadoras, como de segurança pública e punitivismo, do que para pautas de Educação ou direitos humanos. 

“Tais encontros mostram uma confluência de interesses entre o discurso antilaico e o privatista”, ressalta Cássio. Quem também reforça o conservadorismo em um aspecto amplo é Catarina de Almeida Santos, professora da Universidade de Brasília (UNB). “O objetivo é conservar as bases da sociedade brasileira: racismo, machismo, patriarcado, desigualdade social e econômica. No fundo é a mesma lógica escravocrata e colonizadora que o país sempre teve”, diz. 

No governo Bolsonaro, avançam várias agendas ultraconservadoras – ou reacionárias -, como a educação domiciliar, a militarização das escolas e a criminalização dos debates de gênero e sexualidade. Para Benilda Brito, ativista da Rede Malala no Brasil e integrante da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras, o principal objetivo deste projeto é continuar delimitando quem são “os indesejáveis sociais. E tirá-los de todos os cenários, inclusive da escola pública”..

Escola Sem Partido 

O Movimento Escola Sem Partido (MESP) foi fundado em 2004 e ganhou destaque nos debates públicos brasileiros na década passada. O movimento, através da acusação de “doutrinação ideológica”, criminaliza a docência e o ensino. Tentou se impor no legislativo, com a aprovação de dezenas de projetos de lei proibindo essa suposta doutrinação, mas os projetos foram derrotados após o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir que é inconstitucional proibir ou criminalizar tais debates na escola. O pesquisador Luis Felipe Miguel, em artigo que reconta a história do MESP, destaca que o Escola Sem Partido tem como princípio a primazia da família sobre a escola e enxerga docentes como ameaça em potencial. Ele reforça que o movimento só ganhou corpo e relevância nacional quando passou a atacar a chamada “ideologia de gênero”, ou as discussões sobre gênero e sexualidade na escola que desnaturalizam desigualdades e opressões. 

O MESP posicionou-se contra o novo Fundeb, argumentando que mais recursos para a educação básica seria “mais dinheiro para ser torrado em roda de conversa sobre ‘fascismo’ e identidade de gênero”. Na visão do movimento, “a escola sem partido só pode ser a escola sem financiamento”, como resumiram os pesquisadores Fernando Cássio e Fernanda Moura. Cássio, professor de políticas educacionais na UFABC, acredita que o MESP hoje é irrelevante enquanto movimento, o que não quer dizer que não afete o cotidiano escolar e nem que as forças ultraconservadoras não estão agindo na educação. “O movimento reacionário vai muito além do Escola Sem Partido, que teve suas teses invisibilizadas judicialmente e rompeu com Bolsonaro. Mas o projeto é mais antigo e é contra ele que lutamos”, defende o professor e ativista. “Além disso, o reacionarismo não depende muito de uma lei aprovada. A expectativa da aprovação ou o projeto de lei bastam para criar um ambiente escolar hostil e de ameaça”, reforça. 

E a resistência a projetos como o MESP também é articulada e coletiva. Por exemplo, em 2022, mais de 80 entidades de educação e direitos humanos lançaram a segunda versão do Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas. O manual, que pode ser baixado gratuitamente no site do projeto, foi construído em resposta às intimidações, ameaças e notificações dirigidas a docentes e escolas e à escalada do autoritarismo no país. Apresenta estratégias de como responder a novos tipos de ameaças que têm sido promovidas por movimentos e grupos ultraconservadores contra comunidades escolares. Além disso, esmiuça as alterações recentes de normativas nacionais e internacionais de direitos humanos, além de novas possibilidades no campo das estratégias jurídicas, políticas e pedagógicas de enfrentamento ao acirramento do autoritarismo na educação.

Militarização das escolas

Autoritarismo, obediência e hierarquia são também marcas de uma outra agenda conservadora: a militarização das escolas, ou a transferência da gestão das escolas civis públicas para a Polícia Militar. Esse processo se intensificou no governo Bolsonaro após a criação, em 2019, do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim). Nesse modelo, o estado ou o município assinam termo de cooperação com o MEC e policiais militares ou das Forças Armadas podem atuar dentro das escolas, com função pedagógica, administrativa e disciplinar. 

​​ Não há números exatos das escolas militarizadas no país, já que esse processo não se dá de uma única maneira, mas elas já passam de 500 e seguem em crescimento vertiginoso. Por exemplo, o Paraná em 2020 anunciou a adesão de 216 escolas da rede estadualde uma só vez. Estados como Goiás, Amazonas e Bahia também vêm investindo na modalidade, tanto a nível estadual como municipal. Para a professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UNB) e coordenadora do Comitê-DF da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, Catarina de Almeida Santos, insistir nesse projeto é, ainda que inconscientemente, criminalizar a comunidade escolar. “Em nosso imaginário, a polícia cuida de marginais. Levar a polícia para a escola é uma autodeclaração que são essas pessoas que estão na escola, porque é com quem a polícia teoricamente lida”, diz. 

As escolas militarizadas prezam, como o nome indica, por uma lógica militar, ou o que Catarina chama de “pedagogia do quartel”. Ou seja, privilegia a hierarquia e relações verticais, a obediência pelo medo, a padronização de corpos e comportamentos. Valores que se opõem à uma visão de escolas e processos educativos plurais, participativos, com relações mais horizontais e orientadas à convivência com diferenças, ao pensamento crítico e à desnaturalização de desigualdades. “É uma contraofensiva para que a base da sociedade não mude”, diz Catarina em relação ao avanço desse processo no Brasil. “Como trabalhar machismo e racismo em uma escola militarizada? Tirar o acesso à formação que desnaturaliza essas opressões garante a manutenção dos privilégios”, acrescenta ela. 

Um caso emblemático da padronização e da punição de tudo que é “diferente” aconteceu em Joinville-SC em março deste ano, quando alunos de uma escola cívico-militar foram advertidos por estarem com bandeiras LGBT dentro da escola (que foram confiscadas). É por isso que a professora da UNB considera que militarizar a escola é negar o direito à educação, uma vez que se nega o desenvolvimento pleno dos sujeitos, que não são preparados para viver em uma sociedade diversa. E as escolas militarizadas também são excludentes ao manter uma lógica de resultados que privilegia estudantes que já estão em melhores condições. Isto é, priorizam quem cumpre os requisitos e se adequa ao projeto. “Em geral, o perfil das escolas muda depois da militarização: embranquecem, atendem pessoas com mais condições financeiras, passam a ter congestionamento de carros”, descreve a pesquisadora.  

Ainda assim, a militarização parece uma opção atraente para milhares de famílias no país ao evocar ideias como disciplina e combate à violência – ao menos, a um tipo delas. É, nas palavras de Catarina de Almeida Santos, uma lógica invertida, uma vez que o trabalho das forças de segurança pública é zelar pela segurança fora da escola. “É contraditório militarizar a escola com o discurso de garantir segurança colocando dentro dela exatamente quem não garante a segurança fora, especialmente para quem é pobre e negro. É porque a sociedade está insegura que a escola também está, e não o contrário. Chamar os responsáveis por essa falha para resolvê-la não resolve nada”. 

Educação domiciliar ou homeschooling

Se a militarização busca controlar corpos e comportamentos dentro da escola, a educação domiciliar exerce esse controle retirando estudantes da instituição. Esta é uma das principais pautas do governo Bolsonaro na Educação, que vem trabalhando incessantemente para regulamentar essa modalidade, proibida no Brasil por decisão de 2018 do STF. 

Em maio de 2022, foi aprovado na Câmara o projeto de lei que autoriza o homeschooling no país. Segundo este projeto, a ou o estudante deve estar matriculado em uma instituição de ensino e submeter-se a provas regulares. E ao menos um dos responsáveis deve ter ensino superior, o que demonstra que o projeto, além de conservador, atende a uma elite econômica. O projeto altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) para admitir o ensino domiciliar na educação básica. No entanto, não há apelo popular. Uma pesquisa do DataFolha, também de maio de 2022, atestou que a maioria da população brasileira – 8 em cada 10 entrevistados – apoia a educação na escola. Para virar lei, ainda precisa ser aprovado pelo Senado e de sanção presidencial. 

A educação domiciliar retrocede em inúmeros direitos, em diversas áreas. Não à toa, é uma pauta tão importante para o projeto ultraconservador. “É uma estratégia que retrocede muitas políticas sociais que já tinham avançado e que pensava-se estarem consolidadas”, resume Benilda Brito, ativista da Rede Malala no Brasil e integrante da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras. Assim como a militarização, compromete o direito de crianças e adolescentes à convivência social e ao acesso a conhecimentos científicos e diferentes visões de mundo. Mas também oculta violências doméstica e sexual, frequentemente denunciadas através da escola; aumenta a insegurança alimentar; rompe com a política de educação especial na perspectiva da educação inclusiva; aprofunda desigualdades educacionais; estimula a evasão escolar; e enfraquece os investimentos em educação e nas escolas públicas.“É um retrocesso do que está expresso na Constituição sobre o direito à educação. Mas não é isolado e tem um efeito dominó em várias políticas, com o objetivo de garantir que a mesma elite branca, heterossexual e católica se mantenha”, diz ela. 

Como Benilda faz questão de enfatizar, a educação domiciliar já aconteceu em outros momentos da história brasileira, mas em momentos em que a população não tinha acesso à educação. Hoje esse é um direito constitucional, além de estar em várias convenções internacionais das quais o Brasil é signatário. “Por isso entendo esse projeto como do governo Bolsonaro sim, e que aliado a pautas como militarização e Escola Sem Partido complementa outras agendas, como o armamento, a destruição de política de cotas, entre outras. Pode não ser a principal política de Bolsonaro, mas tem a função óbvia de manter o conservadorismo e os privilégios da elite brasileira”, resume Benilda. 

Outras searas de disputa: PNLD e Disque 100 

Embora essas sejam descritas como as grandes pautas de um projeto conservador na educação, não são as únicas. Há outras ofensivas recentes de cunho conservador, excludente e reacionário, como os ataques ao Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), a perseguição a docentes através do Disque 100 e tentativas de criminalização da linguagem neutra. 

O PNLD, por exemplo, que atinge quase 50 milhões de estudantes, teve mudanças importantes no seu último edital: a violação de direitos humanos deixou de ser um critério eliminatório e a alfabetização pelo método fônico foi priorizada, apesar da diversidade de metodologias existentes e aplicadas no Brasil. Essas alterações estão inseridas no contexto de ataques aos direitos humanos na Educação sob o argumento da “neutralidade ideológica”. Também são esses argumentos os utilizados por autores de projetos de lei que têm surgido desde 2020 no país para criminalizar a linguagem neutra. Eles associam a estratégia à “militância ideológica” de uma “minoria” e pretendem proibir o uso de variações linguísticas nas escolas, em materiais didáticos, concursos, atividades culturais e esportivas. 

Em 2021, a censura e perseguição a professoras e professores atingiu um novo patamar quando o governo federal passou a incluir “ideologia de gênero” como uma categoria de denúncia no Disque 100, a central de recebimento de violações de direitos humanos. Nos estados da Bahia e do Rio de Janeiro, membros das comunidades escolares foram denunciados sob essa acusação. Tal ofensiva fez com que a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) entrasse com ação no STF questionando o uso do Dique 100 para perseguição política de comunidades escolares que discutem gênero, raça e sexualidade nas unidades educacionais. Agendas que, assim como a educação na escola, são defendidas em massa pela população brasileira, como também atestam pesquisas recentes

A quantidade de ações, programas e projetos de lei que buscam retroceder nas discussões sobre raça, gênero, sexualidade, direitos humanos e democracia deixam evidente que tais pautas não são secundárias para a gestão Bolsonaro, embora não tenham nascido em seu governo. As conquistas por uma educação pública, gratuita, laica e de qualidade para todas e todos levaram a uma contraofensiva organizada que encontra espaço na atual gestão, que simultaneamente também age para drenar recursos públicos das escolas públicas. Mas esses movimentos encontram resistência na ação da sociedade civil, que já conseguiu imprimir derrotas importantes por vias judiciais. E que agora se articula para derrubar o projeto ultraconservador também nas urnas.

Compromisso para a eleição: não corte da educação!

Lançamento da Carta Compromisso pelo Direito à Educação nas Eleições 2022

A Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala no Brasil e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação com seu Comitê Diretivo lançaram a “Carta Compromisso pelo Direito à Educação nas Eleições 2022” a candidatas/os à presidência, legislativos federais e estaduais e a governos em evento presencial na terça-feira (28/06), em evento no Salão Nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). A cerimônia integrou a Semana de Ação Mundial 2022 (SAM), a maior iniciativa global de mobilização pelo direito humano à educação, realizada simultaneamente em 100 países desde 2003.

O documento contém 40 compromissos para garantir um financiamento adequado à educação nos próximos governos, além da construção de sistemas de educação pública fortes e a superação das profundas desigualdades raciais, sociais, de gênero e regionais que afetam o acesso e permanência de estudantes na escola – sobretudo meninas. O documento será assinado pelas/os pré-candidatas/os presentes, que irão então assumir um compromisso público por uma educação pública, gratuita, laica, inclusiva, equitativa e de qualidade.

LEIA A CARTA COMPROMISSO

LEIA A VERSÃO ACESSÍVEL DA CARTA COMPROMISSO (PRODUZIDA PELA ESCOLA DE GENTE)

A leitura da Carta foi feita pela jovem indígena Maria Clara da Cruz, do povo Tumbalalá, do município de Abaré, no norte da Bahia. “Esse é um momento importante para a sociedade brasileira como um todo. Queremos sentir quais são os compromissos que os nossos futuros governantes terão com a educação. O que não dá mais é continuarmos nessa linha de pensar a educação como gasto, e não como investimento”, diz Givânia Silva, Ativista pela Educação do Fundo Malala e coordenadora do Coletivo de Educação da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ). 

A Carta Compromisso foi elaborada por 11 ativistas apoiadas pelo Fundo Malala no Brasil e pelo Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. A Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala no Brasil irá acompanhar de perto as/os pré-candidatas/os ao longos das eleições até o fim dos primeiros 100 dias de mandato com o objetivo de verificar se estão engajadas/os e cumprindo com os pontos assumidos por meio da assinatura da Carta Compromisso.

Destaques da Carta Compromisso

  • Plano Nacional de Educação (PNE) como horizonte da luta pelo direito à educação
  • Revogação do “Teto de Gastos” (EC 95/2016)
  • Plena regulamentação e implementação do novo e permanente Fundeb (Fundo de Desenvolvimento e Manutenção da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação)
  • Aprovação e implementação de um Sistema Nacional de Educação, tendo como referência o Custo Aluno-Qualidade (CAQ) e o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb)
  • Cumprimento integral da Lei 13.005/2014, do Plano Nacional de Educação (PNE), e construção de um novo Plano com ampla participação social
  • Revogação da Reforma do Ensino Médio
  • Implementação plena da Lei de Cotas (Lei 12.711/2012) e defesa intransigente do princípio da gratuidade no ensino superior público
  • Garantia de educação de qualidade para as populações quilombolas, indígenas, ribeirinhas e do campo, conforme suas especificidades e com financiamento adequado para a implementação das respectivas Diretrizes Curriculares Nacionais

Balanço PNE: taxa de descumprimento é de cerca de 86%; apagão de dados impede que 8 das 20 metas sejam completamente avaliadas

A 3 anos do final da vigência, Plano Nacional de Educação apresenta 45% das metas em retrocesso e sofre com falta de dados

A Campanha Nacional pelo Direito à Educação lançou nesta segunda-feira (20/06) seu 8º Balanço anual do Plano Nacional de Educação (PNE). O documento apresenta dados da situação atual de cada uma das 20 metas do Plano e avalia seu cumprimento ao longo do tempo. 

Às vésperas do final da vigência do Plano, o cenário é de abandono. Além da baixa taxa de avanço em praticamente todas as metas, 45% delas estão atualmente em retrocesso e a situação pode ser ainda pior. Dada a grande falta de informações atualizadas, não é possível afirmar com certeza a gravidade dos atrasos e retrocessos.

Como indica o balanço, se observa um grave problema na disponibilização de dados oficiais. Das 20 metas do PNE, 8 não possuem dados abertos suficientes para serem completamente avaliadas. Em alguns casos só conseguimos dados por meio da Lei de Acesso à Informação e em outros, não recebemos resposta.

ACESSE O RESUMO-EXECUTIVO DO BALANÇO NO SITE DA CAMPANHA

Além disso, os dados coletados até 2021 indicam que 15 metas não estão cumpridas. Entre as 5 metas parcialmente cumpridas estão aquelas que já estavam avançadas no momento da aprovação da Lei em 2014, não indicando propriamente progresso do sistema educacional.

A edição deste ano do Balanço também mostra que, dos 38 dispositivos em andamento que servem como parâmetro para as metas, apenas 5 avançam em ritmo suficiente para serem cumpridos até o final da vigência do Plano. Isso representa uma taxa de descumprimento da Lei de cerca de 86%.

A vigência do PNE tem sido marcada pela austeridade fiscal que se aprofundou nesse período e não saiu de cena desde a aprovação da EC 95/2016 do Teto de Gastos, comprometendo de maneira crítica os recursos da educação. Como é possível perceber, a situação é preocupante e o cumprimento do PNE não vai avançar sem os investimentos adequados.

O balanço foi apresentado em audiência pública no Senado Federal na segunda (20). O resumo dos dados está disponível neste link.

Leia mais: SUBFINANCIAMENTO, ABANDONO E DESTRUIÇÃO: PORQUE O PNE ESTÁ TÃO LONGE DE SER CUMPRIDO

“Pequeno Dicionário” desmistifica termos polêmicos do debate político brasileiro atual

Parceria com UFRJ explica como termos como “ideologia de gênero” e “politicamente correto” passaram a ser usados como acusação.

O que significa “ideologia de gênero” e por que é ruim ser acusado de propagá-la? Um país com mais de 80% de cristãos pode ser “cristofóbico”? E “politicamente correto” sempre foi uma acusação? Essas são algumas perguntas que a publicação “Termos ambíguos do debate político atual: pequeno dicionário que você não sabia que existia” pretende responder. 

A publicação, disponível no site do projeto, reúne alguns termos mais frequentes do atual debate político brasileiro – como “patriotismo”, “ideologia” e “racismo reverso” – e detalha os percursos que fizeram com que virassem presença quase obrigatória no vocabulário político do Brasil da última década. 

Elaborado ao longo de 2021, o “Pequeno Dicionário” é uma iniciativa do Observatório de Sexualidade e Política (SPW) em parceria com pesquisadores da área de linguística aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A publicação resgata a história das expressões selecionadas, destacando os momentos em que estas passam a ser usadas como acusação no debate público. Os verbetes explorados são “ideologia”, “ideologia de gênero”, “politicamente correto”, “marxismo cultural”, “cristofobia”, “racismo reverso” e “feminismo”. Há também a história do “patriotismo”, hoje usado em forma de exaltação ou qualidade. O objetivo do projeto é que os leitores possam decidir, de maneira informada, se querem manter ou incorporar essas expressões em seu vocabulário. 

“Os termos tratados neste pequeno dicionário foram sendo sorrateiramente absorvidos pelo senso comum desde o final dos anos 1990 e hoje fazem parte do vocabulário político  comum e corrente. É como se esses bordões sempre tivessem existido. Ninguém se pergunta de onde vieram, como foram criados e  a que se destinam.  Recuperar essas trajetórias foi uma de nossas motivações, porque isso é vital para saber como melhor contestá-los”, diz Sonia Corrêa, ativista e pesquisadora feminista e co-coordenadora do SPW.  

Linguagem acessível

A publicação tem duas versões: uma para leitoras e leitores com escolaridade de nível superior e outra dedicada a quem está no Ensino Médio. Manter uma linguagem acessível e que alcançasse públicos fora da academia foi uma das grandes preocupações dos realizadores do projeto. Isso porque o objetivo é também confrontar a maneira reducionista e simplista com que esses termos foram disseminados e incorporados no vocabulário cotidiano. Para cumprir esses objetivos, foram aplicados conceitos da área da Linguística aplicada. 

“Na edição jovem, todos os verbetes ficaram ainda mais curtos e descomplicados, em um processo de condensação e simplificação textual realizado através de uma ferramenta que avalia o nível de dificuldade de um texto. Este é um processo chamado de ‘tradução intralinguística’, isto é, a tradução de um texto dentro da mesma língua, orientada por metas e públicos diferentes”, diz Janine Pimentel, líder do Núcleo de Estudos da Tradução da UFRJ e professora da Universidade.

Termos ambíguos do debate político atual: pequeno dicionário que você não sabia que existia

72 páginas. 
A quem se destina: estudantes de graduação, profissionais recém-formados, profissionais de comunicação, influenciadores e criadores de conteúdo, docentes e interessados em geral. 
Disponível em https://sxpolitics.org/pequenodicionario 

Termos ambíguos do debate político atual: pequeno dicionário que você não sabia que existia – Versão Ensino Médio 

39 páginas.
A quem se destina: Estudantes de Ensino Médio e interessados em geral. 
Disponível em https://sxpolitics.org/pequenodicionario 


As gestões do MEC no Governo Bolsonaro “são pautadas pela omissão, pela incompetência e pela priorização de temáticas localizadas” , diz o professor e ativista Idevaldo Bodião

Em entrevista ao De Olho nos Planos, o ativista do CEDECA-CE e professor aposentado da UFC analisa a condução do MEC no governo Bolsonaro

Entrevista: Nana Soares | Edição: Claudia Bandeira

Faltando ainda um semestre para o fim do mandato de Jair Bolsonaro, o Ministério da Educação (MEC) já passou por quatro trocas de comando. Ricardo Vélez Rodríguez, Abraham Weintraub, Milton Ribeiro e Victor Godoy já comandaram a pasta, além de Carlos Alberto Decotelli, que foi nomeado mas não chegou a tomar posse. A Pasta, uma das mais prejudicadas por cortes orçamentários e por políticas ultra neoliberais do governo Bolsonaro, concentra também o que muitos chamam de “ala ideológica” do governo, já que é um espaço importante para o projeto bolsonarista – por exemplo, de criminalização dos debates sobre gênero e sexualidade

A gestão do governo Bolsonaro na área da educação atua – seja por incompetência ou por projeto – no sentido oposto ao de garantir uma escola pública, gratuita, laica, democrática e de qualidade para todas e todos. Para refletir mais sobre estes temas e avaliar pontos de convergência e de diferenciação entre os últimos Ministros da Educação, conversamos com o professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará e ativista do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente – Ceará (Cedeca Ceará) e da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Idevaldo Bodião. Na entrevista, Bodião defendeu que embora o governo Bolsonaro tenha objetivos políticos claros, não consegue por todo seu projeto em prática, entre outras coisas, por falta de competência na gestão. Enfatizou também que, apesar dos ex-ministros terem perfis diferentes, todos se mostraram adeptos às linhas do chefe do Executivo. 

Confira a entrevista abaixo. As perguntas e respostas foram editadas para maior clareza e objetividade. 

De Olho nos Planos: Em linhas gerais, como você classifica a atuação do MEC no governo Bolsonaro? Predomina a implementação de um projeto claro ou a incompetência e negligência que culminam em retrocessos? 

Idevaldo Bodião: Acho que não há um projeto do governo para o Brasil. Falo desde a candidatura e mesmo antes, da atuação de Bolsonaro como parlamentar, onde não há nenhuma proposição relevante. A falta de conteúdo, associada a verbalizações beligerantes, é, mais ou menos, o vazio mais beligerância da proposta de governo do Bolsonaro candidato. Minha visão é que seu mandato na Presidência é uma expressão disso, um misto de incompetência dele próprio e de seu entorno. 

Na Educação, falo com ainda mais clareza que não houve um projeto no Ministério. Vou dar um exemplo: Bolsonaro herdou duas grandes propostas do governo Temer, a BNCC e a reforma do Ensino Médio, e nem mesmo essas pautas avançaram articuladas pelo governo federal como, em princípio, deveria acontecer. Então é um misto de falta de propostas e de incompetência para administrar mesmo aquelas que estão de acordo com as ideias do governo. Acho que vale para o MEC mais ou menos o que tem valido para a Presidência: na falta de proposta, as gestões são movidas por eventos e pautas localizadas, que preenchem os espaços de mídia e, de alguma maneira, escondem ou mascaram a falta de ações e a incompetência. 

De Olho: Mas e pautas como a educação domiciliar (homeschooling) e o incentivo à militarização das escolas? Não seriam parte de um projeto? 

IB: Sem dúvidas são propostas que defendem uma concepção muito clara, que têm uma veia político-ideológica muito clara, bem definida e alinhada com o ideário bolsonarista, mas que não chegam a consolidar um projeto de educação.

Elas atendem a pauta conservadora, são pautas conservadoras, ainda que para públicos distintos, e atendem, em certa medida, as expectativas dos públicos a quem em princípio se destinam. 

A lógica bolsonarista nessas pautas conservadoras é sempre a do direito individual, que parece negar a convivência coletiva e em sociedade. A escola cívico-militar é uma escola pedagogicamente pobre para pobre e que não alimenta perspectivas de mudanças, como solução para o futuro. Com os militares na escola pública, ainda que possa existir um projeto pedagógico que abranja os conteúdos disciplinares, no que diz respeito a participações, debates e discussões, a escola seguirá a lógica do quartel, da obediência, estrangulando quaisquer preparações para o exercício da cidadania.

O homeschooling, da forma como foi aprovado na Câmara, não é para pobre. Por exemplo, exige que ao menos um dos pais tenha Ensino Superior. Mesmo que considerássemos isso como aceitável, qual é a família cujos membros estão qualificados para tratar dos conteúdos de todas as disciplinas do ensino médio? Será preciso contratar professores, ao mesmo tempo em que se abre um importante mercado para materiais didáticos. Nesse sentido que digo que se destinam a públicos distintos e que não chegam a consolidar um único projeto de Educação. O número de famílias pleiteando a educação domiciliar, por exemplo, é ínfimo perto da população em idade escolar, mas é uma pauta que dá conta das expectativas de um certo segmento, da mesma forma que as escolas cívico-militares acolhem as expectativas de outro segmento social. 

De Olho: Se é um governo marcado pela incompetência, quais episódios ou momentos-chave que demonstram isso?

IB: Poderia citá-los em dois acontecimentos importantes: a tramitação do Fundeb e a pandemia. Com relação à tramitação do Fundeb, o que vimos foi uma omissão total, não foi o governo que o pautou no Legislativo, não houve defesa marcante das suas posições. Naquele momento, quem deu as cartas foram parlamentares, como a deputada Professora Dorinha, o deputado Idilvan Alencar e os senadores Randolfe Rodrigues e Flávio Arns, com uma interlocução intensa com a sociedade civil, onde a Campanha Nacional pelo Direito à Educação teve atuação destacada. O governo esteve omisso, o que é um absurdo, dentro da lógica deles mesmos, uma vez que os encaminhamentos levavam a um aumento da participação da União no financiamento da educação básica. O que de fato ocorreu, ainda que abaixo do que necessitaríamos. Repito que do ponto de vista da própria gestão é incompreensível a omissão numa pauta dessa natureza. Há uma matéria da Folha de São Paulo que mostra, por exemplo, que enquanto mais de 40% dos tweets do Weintraub eram ataques, até aquele momento, apenas 5 mensagens se referiam ao Fundeb, o que corresponde a 0,6% das postagens do período. 

Sobre a pandemia, nós passamos praticamente dois anos inteiros com aulas na modalidade remota e quais foram as ações do MEC? Nenhuma. Pelo contrário, houve uma tentativa justamente de negar a expansão do acesso a internet e tecnologias. E isso fez coro com o Planalto, cuja postura era a de negação das estratégias de isolamento e, posteriormente, de vacinação. Esse é um assunto que, mesmo que o ministro quisesse tomar posições mais condizentes com as orientações da OMS, por exemplo, o presidente atrapalharia, como foi o caso no Ministério da Saúde.

Na Educação, os ministros foram subservientes à forma como o governo encaminhou essas questões, o que, para a população, foi um desastre.

>> LEIA MAIS: ENSINO REMOTO EXCLUDENTE, RETORNO PRESENCIAL INSEGURO: OS DESMONTES NA EDUCAÇÃO DURANTE A PANDEMIA

De Olho: E os ministros? Há diferença substantiva entre as gestões?

IB: Na condução da gestão acho que não houve muitas diferenças, porque todas foram pautadas pelas omissões, incompetências e priorizações das temáticas localizadas, uns mais e outros menos. Uma pauta recorrente é o combate ao “marxismo das escolas” e contra a “ideologia de gênero”. Vez por outra emergem movimentos em favor de grupos privados, ainda que nem sempre explícitos.Vamos um por um.

Velez Rodriguez, em sua posse, verbaliza claramente que tinha uma proposta: combater o comunismo, que estaria presente nas escolas, e a “ideologia de gênero”. Nada disso vingou. É alguém sem experiência na gestão de uma pasta pública; parte da ala ideológica do governo, foi indicado por Olavo de Carvalho. Perdeu-se em meio a fortes disputas entre os militares e os olavistas.

Quem entra? Abraham Weintraub, também olavista. É o mais espalhafatoso, o do estardalhaço, o mais midiático, e que, também, tem como pauta “desconstruir o marxismo”. É dele a frase de que as universidades são uma balbúrdia e um antro do esquerdismo, portanto a pauta é a mesma. Também é na gestão Weintraub que se aprova o Programa Nacional de Escolas Cívico Militares (PECIM).

Em relação ao que vou chamar aqui de “pauta liberal”, uma proposta de sua gestão era o Future-se, um programa que pretendia trazer recursos do mercado para financiar pesquisas nas instituições. O receio com o programa – e essa era justamente a intenção da gestão – era que diminuísse o financiamento em áreas como as ciências humanas, porque não é onde a iniciativa privada vai financiar. Aqui há uma inversão, é o mercado que vem para a universidade para pautar o que ela deve fazer, o resultado final seria a diminuição dos recursos públicos e, ao mesmo tempo, o fortalecimento de uma pauta liberal; podem ser nomes distintos, mas a pauta é a mesma. É importante frisar que o Future-se não vinga porque é desidratado pelo próprio Paulo Guedes, e é a isso que me refiro quando falo da incompetência: é uma gestão onde não há articulação sequer para avançar suas próprias agendas. Se de Vélez Rodriguez, que só ficou três meses no cargo, ainda se poderia justificar não ter tido uma política clara, com Weintraub isso não existe, porque era tempo para ao menos sinalizar uma política.

Vou dar mais um exemplo do que chamo de incompetência: a gestão Weintraub tinha mais de um bilhão de reais recuperados de acordos da Lava-Jato, que obrigatoriamente precisariam ser usados na educação infantil, na implantação de creches, por exemplo, que é, sabidamente, um gargalo na expansão de vagas, mas o dinheiro não foi usado por falta de projeto. Àquela altura, o ministério já cogita em expansões de vagas na educação infantil na forma de “vouchers”. O dinheiro existia e a necessidade também, e eles poderiam ter faturado politicamente com recurso a custo zero para o orçamento, mas nem isso foram capazes de encaminhar. 

De Olho: E os outros ministros? 

IB: Uma das coisas que o Weintraub primou foi comprar brigas, sobretudo e principalmente com o STF. Com isso, ele sai. Entra quem? Ninguém! Um caso escandalosamente vergonhoso. Com as mentiras no currículo e a acusação de um possível plágio, tornou-se impossível manter a nomeação de Carlos Alberto Decotelli. Vem aí Milton Ribeiro, ungido pela bancada evangélica. Aí o Centrão já é um aliado de Bolsonaro e negociações, que não aconteceram nas nomeações dos outros ministros, já fizeram parte do pacote. Ele assume no “lockdown” e não faz nada, o que, insisto, significa um alinhamento com a política do Planalto. 

Milton Ribeiro expressou com clareza seu desejo de criar filtros ideológicos no ENEM, inicialmente trazendo para si a tarefa de controlar o ENEM, declinando-a, em seguida, para uma comissão; na sua gestão é publicado um edital do Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), que, entre outras coisas, relativiza a defesa dos direitos humanos. Essas medidas, sim, considero que tenham horizontes diferentes das escolas cívico-militares ou do homeschooling, pois atingem algumas dezenas de milhões de estudantes. Cada um dos ministros aponta para um local onde acham que está o “comunismo” ou o esquerdismo: para Weintraub era na universidade, para Ribeiro é na entrada da universidade, por isso o desejo de controlar o ENEM e assim controlar toda a educação básica. Talvez aí, de fato, podemos dizer que havia um plano no governo: acabar o “esquerdismo” na escola brasileira. 

No mais, é um Ministro que tem incompreensão do que é sua tarefa e que mistura incompetência com subserviência a Bolsonaro, por exemplo, negando a gravidade da pandemia e, com isso, omitindo-se em relação a medidas que poderiam mitigar seus impactos. Curiosamente, o ministro “terrivelmente evangélico” caiu justamente em função de declarações de favorecimento a certos atores também “terrivelmente evangélicos”. 

Estamos há alguns meses com um outro Ministro (Victor Godoy) que ninguém sabe quem é, mas vindo de onde vem, não devemos esperar nenhum tipo de correção de rota, uma vez que desde 2020 ele já trabalhava no MEC, como Secretário-Executivo. Talvez não sejam os mesmos movimentos, mas, certamente, a mesma política, por isso aumentam nossas responsabilidades em derrotar esse governo nas próximas eleições. 

De Olho: O PNE foi fruto de amplo debate em Conferências de Educação e de acirrada disputa na tramitação no Congresso Nacional, mas não será cumprido até o final de sua vigência. Quais fatores, na sua opinião, contribuem com o desmonte do Plano Nacional de Educação? 

IB: Nós temos uma ruptura, um divisor de águas importante em relação aos processos conferenciais e aos planos decenais de educação com o impeachment da presidenta Dilma. Em 2017, o Ministro Mendonça Filho desconfigurou o Fórum Nacional de Educação, instância que organizava o processo conferencial, ao mesmo tempo em que impôs que a supervisão, a articulação e coordenação da Conae passariam a ser exercidas pela Secretaria-Executiva do Ministério da Educação. Tratam-se de mudanças de ordem qualitativa, pois até então, nos governos Lula e Dilma, o Fórum era um importante espaço de participação social, com os embates políticos ocorrendo dentro de instâncias democráticas. A mensagem é clara, a partir desse momento é o governo quem conduz o FNE e com ele o processo conferencial, o que levou as entidades do campo democrático-popular da sociedade civil a se afastar daquela instituição e criar o Forum Nacional Popular de Educação, o que levou a, neste momento, termos, também, distintas Conferências. Dito de outro modo, é uma cisão entre governo e sociedade civil. 

Essa mudança nos leva de volta a 1997, quando governo e sociedade civil tinham propostas e projetos distintos para o Plano Nacional de Educação. Nesse sentido, reafirmo a importância das próximas eleições, também para as casas legislativas, pois precisamos garantir substantivas mudanças na Câmara dos Deputados (que poderá alterar toda a sua composição) para termos forças políticas para fazer avançar a proposta de PNE a ser construída pelo campo progressista da sociedade civil. Isto considerando o cenário que espero que aconteça, que é a eleição de Lula para presidente, o que levará à construção de um novo PNE; com uma nefasta, e por isso indesejada, reeleição de Bolsonaro não sei se teríamos um PNE, com tudo o que pode vir junto com isso. 

Volto a insistir, o governo Bolsonaro tem sido extremamente nefasto para o país e há um conjunto de matérias que o atestam; ainda assim, é importante lembrar que, do ponto de vista das participações populares na educação, o divisor das águas ocorreu no governo Temer, com uma ruptura nos processos de democratização da gestão – refiro-me à desconstrução do FNE e suas decorrências. Não se pode esquecer, também, que a Emenda Constitucional 95 é outra herança do governo Temer que tem imposto substantivas restrições ao financiamento da educação, dentre outras áreas do governo. 

Se considerarmos as pautas dos direitos sociais (Capítulo II da Constituição Federal) é fácil perceber que temos tido muitas derrotas depois de 2016; é nossa tarefa política pavimentar o caminho de reconquista desses direitos, percurso que tem um marco vital nas eleições de outubro de 2022 e ao lhe dizer isso me vem à memória uns versos do poeta espanhol, Antonio Machado, que deve ser um lema para muitos de nós: “Caminante, no hay caminho, se hace caminho al andar”. 

Subfinanciamento, abandono e destruição: porque o PNE está tão longe de ser cumprido

Além das metas não avançarem, muitas estão regredindo. As que tratam do financiamento, EJA e Educação Integral são as mais afetadas no descumprimento do Plano Nacional de Educação 

Por Nana Soares 
Edição de texto: Claudia Bandeira

O Plano Nacional de Educação (PNE, Lei 13.005/14) aprovado em 2014 foi uma vitória da sociedade civil e dos movimentos sociais da área da Educação. Reunindo metas a serem cumpridas até 2024 para que o país avance na garantia desse direito, é um marco fundamental ao sublinhar a importância do planejamento educacional, orientar o investimento e a gestão e referenciar o controle social e a participação cidadã. Mas há um problema: está longe de ser cumprido. 

O PNE, principal instrumento da política pública educacional, foi fruto de amplo debate em Conferências de Educação e de acirrada disputa na tramitação no Congresso Nacional. Começou a ser esvaziado já em 2015, no ano seguinte da sua aprovação, quando o ajuste fiscal do segundo governo de Dilma Rousseff cortou recursos de políticas sociais. O cenário se agravou com o golpe parlamentar de 2016, que intensificou a política econômica de austeridade com a aprovação da Emenda Constitucional 95 (EC 95, o Teto de Gastos) que constitucionalizou os cortes orçamentários por vinte anos. A situação se torna mais dramática ainda no governo Bolsonaro, que nunca norteou a política educacional pelo PNE. Em 2022, a dois anos do fim de sua vigência, os avanços são marginais. Os retrocessos, em contrapartida, se acumulam, ameaçando, inclusive, as políticas educacionais que já estavam mais estabelecidas e que foram conquistadas ao longo de anos. 

Segundo o último levantamento da Campanha Nacional pelo Direito a Educação, apenas 15% dos dispositivos previstos no PNE devem ser  cumpridos no prazo previsto. E não é que os outros dispositivos apenas não avancem no prazo esperado: muitas das metas na verdade estão regredindo. É o caso das metas 6, 9, 10 e 20, que tratam, respectivamente, da Educação Integral (EI), alfabetização, Educação de Jovens e Adultos (EJA) e do financiamento público da educação. 

Subfinanciamento da Educação: efeito em cascata

A meta 20 do PNE prevê que o Brasil amplie o investimento público em educação pública, o contrário do que temos visto nos últimos anos. A meta de aumentar o investimento progressivamente até o equivalente de 10% do PIB em 2024, conquista histórica dos movimentos e organizações que defendem a educação pública e de qualidade, ficou ainda mais distante, tanto em termos relativos, como absolutos. “Se o percentual estivesse estagnado e a economia estivesse bem, ao menos a quantidade de dinheiro estaria aumentando. Mas é uma redução em um PIB que também está caindo ou estagnado. A inflexão negativa é o mais preocupante”, diz José Marcelino de Rezende Pinto, professor da USP-Ribeirão Preto e vice-presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca).

O PNE previa uma destinação de 7% do PIB em 2019 e de 10% em 2024, mas, segundo o INEP, os gastos estiveram em torno de 5% de 2015 a 2017, caindo 0,1% quando deveria ter subido. O professor Marcelino acrescenta que em 2018 o investimento público em Educação foi equivalente a 4.9% do PIB – uma redução que representa cerca de 16 bilhões de reais a menos para a Educação. Isso porque além do Teto de Gastos a Educação também tem sido uma das áreas com maiores cortes orçamentários anuais. Por exemplo, em 2021 houve redução de 27% no Orçamento da área.

E o não cumprimento da meta 20 atua em efeito cascata em todo o PNE, pois sem novos recursos a implementação das outras metas – que preveem, por exemplo, maior número de matrículas em diferentes níveis – fica inviabilizada.

Nem mesmo conquistas importantes como a aprovação do novo Fundeb, em 2020, amenizam essa tragédia que, como lembra o professor Marcelino, está diretamente relacionada ao papel minoritário do governo federal no financiamento da Educação. Ainda são os governos locais e regionais que arcam com a maior parte do financiamento, embora seja a União quem mais arrecada com impostos. “Quem precisa contribuir mais é o governo federal, os municípios não têm muito de onde cortar pois cumprem os mínimos constitucionais. Por isso é imensa a responsabilidade e a importância da eleição de um governo progressista”, ressalta Marcelino.

Essa participação desigual no financiamento, no entanto, não vem de hoje. Por décadas o Brasil manteve uma média de investimento em educação na casa dos 4% do PIB anual, onde apenas 0.5% vinham da União. Isso aumentou no governo Lula, quando mais que dobrou a participação do governo federal nesse percentual. Mas os investimentos vieram através de transferências voluntárias e de programas que eram políticas de governo – e não de Estado – e que logo foram abandonados ou cortados nos governos seguintes. “No governo Bolsonaro houve uma clara intenção de esvaziar qualquer política educacional, embora a nomeação de ministros tecnicamente muito incompetentes e sem pauta definida tenha “limitado” a gestão a destruir o que já existia, sem conseguir criar políticas novas e irreversíveis”, resume o vice-presidente da Fineduca.

A política de fundos é extremamente importante para o cumprimento da Meta 20 do PNE, inclusive para diminuir as desigualdades educacionais, mas tem suas limitações e precisa receber mais investimento. “Sem mais dinheiro, não adianta muito mexer e fazer ajustes nestes mecanismos porque o total permanece o mesmo. Dá para ir um pouco mais para os municípios, mas a custa de menos para os estados, acaba virando uma briga política”, explica José Marcelino de Rezende Pinto. Na prática, a falta de recursos ocasiona em “escolhas” como fechar turmas de EJA ou de educação no campo para abrir uma creche. Ou seja, é vital que ainda que a Meta 20 não seja cumprida até 2024, a Educação receba novos recursos para que ao menos voltemos a caminhar rumo ao seu cumprimento, ao invés de regredir.

Segundo Marcelino, os mecanismos, diretrizes e percentuais já estão dados, falta realmente a vontade política de investir em educação pública e de lidar com a correlação de forças entre as diferentes instâncias governamentais. “É preciso revogar a EC 95, porque o governo federal precisa gastar. E aí é ampliar o investimento, ainda que progressivamente. Precisamos viabilizar, ver o quanto custa um mínimo por estudante do qual não vamos abrir mão para assegurar a qualidade, aumentar os investimentos na educação superior pública, fortalecer a política de fundos. Nossa tarefa enquanto sociedade civil é estar sempre cobrando. O mercado financeiro e os interesses privados não esperam as trocas de mandato para assediar e cobrar seus interesses”, diz ele, reforçando que o PNE é uma lei e, portanto, deve ser cumprida.

O abandono da Educação Integral

A meta 6 do PNE estabelece que, até 2024, o Brasil deve oferecer educação em tempo integral em no mínimo 50% das escolas públicas, de forma a atender ao menos 25% dos estudantes da educação básica. Mas no período de vigência do PNE o que houve foi um completo abandono por parte do governo federal nessa modalidade, como explica Natacha Costa, diretora-geral da Associação Cidade Escola Aprendiz.

Para se ter uma ideia do quanto a meta regrediu: Entre 2014 e 2020 o número de escolas com jornadas em tempo integral caiu de 42.655 para 27.969 – que representam 29% e 20.5% das escolas públicas – e as matrículas de 6.5 milhões para 4.8 milhões. Nesse período, os principais programas a nível federal para a meta foram descontinuados e o que resta hoje, explica Natacha, resiste porque estados e municípios conseguiram espelhar a meta do PNE em seus próprios Planos de Educação.

“O Mais Educação era a política do governo federal para a educação integral e era focado nos mais vulneráveis. Em 2016, é descontinuado e substituído por um novo desenho que, ao contrário, focava no reforço da língua portuguesa e matemática – ou seja, guiava-se pelo Ideb e não pela redução de vulnerabilidade. Aí já observamos a queda da abrangência da educação integral. E essa queda só não foi maior porque houve crescimento das matrículas de educação integral no Ensino Médio, o que é controverso porque pode acabar agravando as desigualdades educacionais, uma vez que muitos jovens não podem aumentar sua jornada. Por exemplo, porque precisam trabalhar”, resume Natacha. Ou seja, o novo desenho ia contra a concepção da educação integral que pautou o PNE: a de que a modalidade fosse um mecanismo de enfrentamento – e não acirramento – das desigualdades educacionais.

Com o corte de orçamento do MEC e a descontinuidade do programa Mais Educação, a Educação Integral saiu do horizonte de políticas públicas do governo federal. Os estados e municípios, que já arcam com a maior parte do financiamento da educação básica no Brasil, sustentam suas iniciativas com recursos próprios ou com verbas do Fundeb. E vale reforçar que em um contexto de corte de gastos e de Emenda Constitucional 95, cumprir a Meta 6 fica completamente inviável, uma vez que a Educação Integral, por sua natureza (aumento da jornada), exige mais recursos e investimentos.

Natacha lembra ainda que o projeto de destruição da educação no governo Bolsonaro conjuga alianças ultraliberais e ultraconservadoras. Para ela, houve um abandono generalizado em nome de políticas ultraconservadoras e ideológicas. “É quando a educação é assaltada por uma perspectiva de desmonte”.

A EJA e o aprofundamento das desigualdades educacionais

A meta 8 do PNE tem como objetivo diminuir desigualdades educacionais ao aumentar a escolaridade de grupos como a população de 18 a 29 anos, dos 25% mais pobres do país e a educação do campo, bem como igualar a escolaridade média entre pessoas negras e não-negras. A Meta 9 fala sobre erradicar o analfabetismo absoluto e reduzir o analfabetismo funcional pela metade. A Meta 10, por sua vez, diz que o Brasil deve oferecer ao menos 25% das matrículas de Educação de Jovens e Adultos (EJA) integradas à educação profissional. Ou seja, todas estas metas dizem respeito à EJA em alguma medida.

Embora a meta 8 não tenha regredido até o último dado disponível, não avançou no ritmo necessário. A alfabetização de brasileiras e brasileiros prevista na Meta 9 também não deve chegar ao índice necessário previsto no PNE – e os dados oficiais de monitoramento do INEP, de 2018, ainda não consideram os impactos da pandemia. Ainda na Meta 9, o analfabetismo funcional avançou no período de vigência do PNE quando deveria ter diminuído, muito por conta do desmonte de programas como o Brasil Alfabetizado. Por fim, se o objetivo era ter 25% de matrículas da EJA integradas à educação profissional, como prevê a meta 10, estamos muito longe. Ainda em 2014 não chegávamos a 3%. E em 2018 essa porcentagem diminuiu para apenas 1.8%, ou pouco mais de 54 mil matrículas. E o número de matrículas totais da EJA também caiu no período.

O gráfico acima evidencia o tamanho do desafio para que, no Brasil, seja garantido o direito à educação na modalidade, já que as matrículas da EJA não chegam nem perto de cobrir a demanda, representada em azul.

Não é de agora que a EJA é negligenciada no Brasil. Historicamente, são poucas as políticas e o investimento público direcionado a essa modalidade. Os fatores de ponderação no Fundeb, por exemplo, são de 0.8 e 1.2. Ou seja, a cada R$1 gasto por estudante do Ensino Fundamental regular, são gastos R$0,80 ou R$1,20 por estudante da EJA – sendo que essa é uma modalidade que exige mais recursos por conta das especificidades de seu público-alvo. Segundo o professor José Marcelino de Rezende Pinto, até 3 vezes mais recursos (o que seria um fator de ponderação 3). Ou seja, nos valores atuais, as e os gestores não têm incentivos financeiros para investir na EJA.

Para a professora da Faculdade de Educação da USP Maria Clara Di Pierro, o subfinanciamento histórico e o brutal retrocesso assistido nos últimos anos são sinais de um descaso geral com a Educação de Jovens e Adultos. “A EJA é historicamente negligenciada, assim como modalidades e etapas como a educação infantil e a educação especial. Mas a diferença é que há uma maior mobilização para as políticas que afetam crianças e adolescentes”, diz ela, que também menciona o fenômeno de fechamento de matrículas e turmas de EJA para “priorizar” outras demandas, como creches e educação infantil. “Tenho a impressão que ainda caminhamos em relação à consciência social do direito à educação na vida adulta, o que é um agravante em um contexto de redução do gasto público e contração do papel da União”, completa Maria Clara.

E essa redução foi brutal: pelos dados do SIOP, o pico de investimentos federais na EJA foi em 2012, com quase 1.8 bilhões de reais repassados naquele ano. Em 2020, o número ficou em 8 milhões – 0,44% do investimento de 2012. Como explica Maria Clara Di Pierro, o governo Bolsonaro focou mais em desidratar o financiamento da EJA do que em de fato revogar políticas para a área – mas o resultado não é outro que não praticamente destruir a modalidade no país. “Sobrevivem matrículas residuais. A EJA hoje alcança uma parcela ínfima da população, e se o número aumentar no futuro vai ser mais por conta de mudanças, como a Reforma do Ensino Médio, o Parecer CNE/CEB 6/2020 e a Resolução CNE/CEB nº 1 de 2021, que permitem que até 80% da EJA seja realizada à distância. Ou seja, uma EJA pré-formatada e com seríssimos problemas de qualidade”, alerta. A professora especialista na modalidade ressalta também que, em Censos populacionais futuros, as oscilações na escolaridade da população adulta deverão ser muito mais creditadas a mudanças demográficas do que de fato a políticas de educação de jovens e adultos. “A regra geral hoje é ver as escolas fechando”, resume.

Mais uma vez, a reversão desse quadro necessariamente passa pelo aumento do financiamento na modalidade, embora a professora também destaque a gravidade da diretriz que permite que boa parte da EJA seja realizada à distância. É preciso investir na Educação de Jovens e Adultos, aumentar o fator de ponderação do Fundeb e voltar a financiar outras políticas e programas que afetem a modalidade. E, igualmente importante, fortalecer a noção de que a educação para todas e todos é um direito e de que a qualidade não se mede apenas sob critérios de resultados.“É preciso reverter as lógicas meritocráticas que baseiam a educação por indicadores. A EJA é uma categoria diferente, onde a evasão tem outro significado social, são adultos que têm uma relação intermitente com a escola. Avaliar o desempenho dessa modalidade pelo Ideb, exigir a frequência obrigatória como na educação infantil, não funciona”, finaliza a professora.

Considerações finais

As informações evidenciam um conjunto de medidas, intensificadas no governo Bolsonaro, para inviabilizar o cumprimento do PNE e acirrar ainda mais as desigualdades educacionais no país: corte brutal do financiamento, Programas do Governo Federal descontinuados ou substituídos por outras iniciativas que prejudicam ainda mais o alcance das Metas, os indicadores de avaliações externas em larga escala estruturando cada vez mais as políticas sem considerar contextos e equidade e, pode-se acrescentar, o desmonte das instâncias de participação e controle social das modalidades e do próprio PNE, como o Fórum Nacional de Educação. 

Para revertermos este cenário é preciso recuperar o PNE como norte da Educação Brasileira e eleger um governo comprometido com o principal instrumento da política pública educacional brasileira, cujo cumprimento não é opcional.

O que está em jogo na regulamentação do Sistema Nacional de Educação

Projeto de lei aprovado no Senado que regulamenta o SNE tem falhas graves e não avança na democratização da Educação brasileira

Projeto aprovado no Senado não prevê sociedade civil, sindicatos ou estudantes nas instâncias deliberativas do Sistema Nacional de Educação (Foto: Tô No Rumo/Ação Educativa)

Texto: Nana Soares // Edição: Claudia Bandeira

“Muito político-burocrático, pouco político-democrático”. É assim que Salomão Ximenes, professor de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC) e doutor em Direito de Estado pela USP, resume o projeto de lei complementar 235/19, que regulamenta o Sistema Nacional de Educação. O projeto de lei foi aprovado por unanimidade no Senado no início de março, após alterações do relator Dario Berger (MDB/SC) no projeto original de Flávio Arns (Podemos/PR). Agora, vai entrar em votação na Câmara. A votação ainda não tem data, mas a matéria caminha em regime de urgência, mesmo que apresente falhas graves em pontos importantes como o Custo Aluno-Qualidade (CAQ), gestão democrática e avaliação da educação básica. 

O SNE, previsto na Constituição Federal e no Plano Nacional de Educação (PNE) de 2014, ainda não tem lei que o regulamente. Assim como o SUS na saúde, o SNE teria, na educação, as funções de dar coesão e unidade às políticas públicas, articular realidades locais com a nacional, integrar o sistema educacional, assegurar a colaboração e a cooperação – inclusive financeira – entre as esferas municipais, estaduais e a União, combater iniquidades, fortalecer a participação social e a gestão democrática em educação, além de especificar os recursos que integram o financiamento da educação e que formam os padrões de qualidade do CAQ. Mas para fazer tudo isso precisa de uma lei de regulamentação forte, coerente e que valorize esses aspectos, o que não está acontecendo até o momento. 

>>>>>> Saiba mais: Ainda sem regulamentação, Sistema Nacional de Educação Irá definir responsabilidades de instâncias federativas 

Embora os projetos de lei já existissem há algum tempo, o governo Jair Bolsonaro apressou a regulamentação do PLP 235/2019. O texto foi aprovado conforme versão proposta pelo relator Dário Berger (MDB-SC) e, segundo reportagem do Alma Preta, existe um acordo com o presidente da Câmara, Arthur Lira, para que a matéria seja aprovada. Ele teria dito que é “mais um projeto para o governo chamar de seu”. As votações foram nos dias 23 de fevereiro e 9 de março, quando o projeto foi aprovado por unanimidade, e agora deve ser analisado diretamente no plenário da Câmara, tendo incorporado o PLP 25/2019, de autoria da deputada professora Dorinha Rezende (DEM-TO) e relatoria de Idilvan Alencar (PDT-CE) que também tratava da regulamentação do SNE. Por tramitar em regime de urgência, pode ser colocado em votação a qualquer momento. Para Salomão Ximenes,  um equívoco político, pois uma lei desse porte requer um debate mais amplo na sociedade – e, segundo ele, o texto falho deixa clara a imaturidade da discussão até agora. 

Há vários pontos questionados por organizações, ativistas e pesquisadores comprometidos com o direito à educação pública de qualidade. Um deles é que desigualdades e discriminações a serem combatidas – como racismo estrutural ou desigualdade de gênero – não são explicitamente citadas. Outros problemas são brechas na regulamentação do CAQ e a falta de detalhamento dos insumos mínimos de qualidade, além da falta de participação social e de falhas no detalhamento de mecanismos de avaliação da educação básica – pontos estes levantados em nota técnica da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (Campanha). 

CAQ: falta de detalhes e brechas políticas 

O CAQ, mecanismo que de fato redistribui os recursos educacionais nas diferentes regiões do país e que tem o potencial de reduzir desigualdades ao assegurar um padrão mínimo de qualidade, não está sendo detalhado como deveria no projeto do SNE aprovado pelo Senado. Em outras palavras, o detalhamento do que seriam, de fato, os insumos mínimos para garantir um padrão de qualidade nas escolas (como água, saneamento básico, computador, acesso à internet, biblioteca, quadra poliesportiva coberta, número adequado de alunos por turma, etc), não é feito no substitutivo de Dario Berger. A sugestão da Campanha é justamente fazer esse detalhamento para que estes padrões sejam explicitados. 

“Em resumo, é preciso detalhar mais o CAQ e amarrar qual seria a contribuição ou participação da União na garantia desse CAQ”, explica Nalu Farenzena, vice-presidenta da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca). “Não é que o CAQ não está sendo contemplado no texto, mas é preciso reforçar a noção de Custo Aluno-Qualidade ligado a referenciais e insumos que sejam redistribuídos de forma equitativa. E é preciso vincular o CAQ ao Fundeb, porque não se trata de criar mais um mecanismo de complementação da União, mas sim vincular ao que já temos”, completa. Caso o texto final continue sem fazer esse detalhamento, ela alerta que a lacuna pode levar a mais discussões e disputas em torno da regulamentação do CAQ, que já é alvo de disputas há anos e não faz parte da agenda dos setores empresariais na educação. “O CAQ precisa ser operacionalizado. Se não for detalhado nesse momento, a regulamentação vai ter que vir de outro modo, e isso pode ser por decreto ou por processos mais amplos. Ou seja, se não se resolve agora o mecanismo ainda fica vulnerável a uma regulamentação centralizada vindo do Executivo”, finaliza Nalu. 

Mas para além do detalhamento dos insumos, Salomão Ximenes enxerga ainda outros problemas – técnicos e políticos – no texto em relação ao CAQ, de modo que correm o risco de esvaziar o mecanismo. Estes problemas estão presentes nos Artigos 38, 39 e 40 do texto aprovado no Senado. Dizem, respectivamente, que a complementação se dará conforme os fatores de ponderação (saiba mais aqui), que estará sujeita à disponibilidade financeira da ocasião, e que a suplementação da União tem caráter facultativo. Como Salomão explica, essas redações invertem o sentido do CAQ e o que já está previsto em lei sobre ele. Por exemplo, é o CAQ que estabelece os parâmetros de ponderação do FUNDEB, e não o contrário. Além disso, a disponibilização do recurso é obrigatória e não depende da disponibilidade financeira. “Ou seja, se aprovado dessa forma é um texto com constitucionalidade bastante questionável, uma vez que o CAQ está previsto na Constituição”. Por isso, acredita o professor da UFABC, ainda que o CAQ seja detalhado, o projeto de Lei Complementar 235/19 ainda pode representar um retrocesso em relação à regulamentação desse mecanismo. 

Gestão democrática

Ao regulamentar o Sistema Nacional de Educação e a cooperação interfederativa, o PLC 235/19 também estabelece os mecanismos de governança, monitoramento e avaliação do Sistema. E aqui há mais um problema sério: o texto não contempla a participação de sociedade civil, sindicatos, estudantes ou comunidades escolares nessas esferas, apenas gestores. Embora reconheça mecanismos que já existem, como o Fórum Nacional de Educação, as comissões tripartite e bipartite contariam apenas com governo em sua composição, sendo portanto um retrocesso no aspecto da gestão democrática e da participação social na educação. 

“Há menção a instâncias com participação social, mas não naquelas que de fato são deliberativas e permanentes, onde isso precisa ser reforçado. É preciso que a participação social esteja nos meios do SNE e não apenas como um princípio, e para isso já temos um instrumento jurídico muito forte para lançar mão, que é o fato da Emenda 108, do Fundeb, ter inserido na Constituição o preceito de que a sociedade deve participar da formulação, monitoramento, controle e avaliação das políticas sociais, inclusive a educacional”, explica Nalu Farenzena, explicando que, mais uma vez, as propostas em tramitação no Congresso não contemplam mecanismos já previstos em outras leis e marcos.

Para Salomão Ximenes, o texto aprovado no Senado se concentra demais na regulamentação interfederativa. Isto é, em como as diferentes esferas (União, estados e municípios) deverão interagir e se articular entre si. E sobra pouco espaço para outras regulamentações. “Esse é um aspecto importante, mas não é o único que deveria ser tocado pelo Sistema Nacional de Educação. Nesse sentido, a proposta é deficitária porque ela em alguma medida confunde a relação interfederativa com o próprio Sistema, que vai além disso, e não mexe em gargalos importantes, como o Conselho Nacional de Educação, além de mencionar as escolas apenas uma vez. É um Sistema Nacional de Educação que não fala de escola. Está mais preocupado em resolver um conflito federativo”, critica Salomão. 

Em relação ao Conselho Nacional de Educação (CNE), o PLP não altera sua composição – hoje dependente de nomeações da Presidência da República através de lista tríplice. Por isso, seria mais um aspecto em que o projeto aprovado no Senado e defendido pelo governo Bolsonaro não avança na gestão democrática. O Conselho Nacional de Saúde, em comparação, tem sua composição dividida entre usuários do SUS (50%), trabalhadores do sistema (25%) e gestores (25%). “Particularmente, acho descabido dizer que não compete a essa proposta regular isso, pois o CNE é central para o Sistema”, finaliza Salomão. 

SINAEB 

Por fim, o projeto de lei que agora vai à Câmara também precisa fortalecer o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SINAEB), que amplia o sentido da avaliação ao avaliar também a qualidade, a equidade e a eficiência da educação básica. 

Além da necessidade de ser um sistema de avaliação permanente, como destacou Salomão, o SINAEB precisa prever processos participativos de avaliação junto às comunidades escolares, por meio da autoavaliação institucional participativa, para que as realidades e demandas das escolas sejam consideradas nos processos avaliativos e nas políticas educacionais. É necessário também prever a articulação do SINAEB com o CAQ de modo a fornecer indicadores para a avaliação da qualidade e equidade na educação.

O substitutivo do relator Dario Berger precisa agora ser corrigido na Câmara para definir os princípios, as diretrizes e as dimensões avaliativas do SINAEB retomando a Portaria 369 de maio de 2016 que instituiu o Sistema e que foi construída pelo INEP em diálogo com organizações da sociedade civil, movimentos educacionais e com profissionais da educação.     

Em resumo: o SNE é fundamental para fazer avançar a educação brasileira pública e de qualidade para todas, todos e todes. E sua regulamentação está atrasada. No entanto, os textos aprovados até agora estão muito aquém do que a educação brasileira precisa, e seu debate está sendo encurtado e apressado no processo de tramitação. Na pressa de regulamentar o trabalho interfederativo, princípios cruciais como a participação social estão sendo deixados de lado. Cabe à mobilização popular tentar barrar, ou ao menos amenizar, mais esse retrocesso.

Em semana de apagão de dados educacionais pelo Inep, mais de 80 entidades lançam nova versão do Manual Contra a Censura nas Escolas

O Manual inclui decisões recentes do STF que reforçam a inconstitucionalidade de leis inspiradas no movimento Escola sem Partido e o dever do Estado em abordar gênero e sexualidade nas escolas.

Em resposta às intimidações, ameaças e notificações dirigidas a docentes e escolas e à escalada do autoritarismo no país, um grupo de mais de 80 entidades de educação e direitos humanos lança, nesta quarta-feira, 23 de fevereiro, uma nova versão do Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas. A publicação apresenta orientações jurídicas e estratégias político-pedagógicas em defesa da liberdade de aprender e de ensinar, baseadas em normas nacionais e internacionais e na jurisprudência brasileira.

“O Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas articula duas estratégias complementares: por um lado, fornece subsídios para que as comunidades escolares possam, em seu cotidiano, enfrentar as ameaças concretas ou anunciadas. Por outro, valoriza o debate público sobre essas situações como forma de enfrentamento de um conflito social gerado pela manipulação das ideias”, explica a apresentação do material.

Lançada em 2018, a primeira versão do documento contou com mais de 150 mil downloads. Na nova versão, foram incluídas decisões recentes do Supremo Tribunal Federal que reforçam a inconstitucionalidade de leis inspiradas no movimento Escola sem Partido e o dever do Estado em abordar gênero e sexualidade nas escolas como forma de prevenir a violência doméstica e o abuso sexual contra crianças e adolescentes.

A nova versão também apresenta estratégias de como responder a novos tipos de ameaças que têm sido promovidas por movimentos e grupos ultraconservadores contra comunidades escolares. Além disso, são esmiuçadas as alterações recentes de normativas nacionais e internacionais de direitos humanos, além de novas possibilidades no campo das estratégias jurídicas, políticas e pedagógicas de enfrentamento ao acirramento do autoritarismo na educação.


Apagão de dados educacionais

O lançamento ocorre na mesma semana em que microdados do Censo Escolar foram descartados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) com base na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Em nota de posicionamento, entidades, redes de pesquisa e movimentos sociais afirmam que o descarte é inadmissível, carece de fundamento legal e, como resultado, impede a avaliação e elaboração de políticas públicas que respondam às necessidades da população.

O Manual também está sendo lançado como forma de prevenção e enfrentamento de possíveis ataques às escolas, educadores, estudantes e famílias em um ano eleitoral dramático, marcado por ameaças diversas à democracia, desinformação e disputas acirradas.


Casos-modelo, seus desdobramentos e estratégias de defesa

Manual, que pode ser baixado gratuitamente clicando aqui, descreve 19 casos-modelo baseados em situações reais, seus desdobramentos e estratégias jurídicas e político-pedagógicas que podem ser usadas por profissionais de educação.

Entre os casos, são apresentadas situações de ameaças pelo Poder Público, como a aprovação de legislações antigênero; a interferência do Legislativo ou Executivo nas instituições educacionais; o constrangimento de docentes por diretorias de ensino e a militarização de escolas públicas. São também abordados casos de ameaças por membros da própria comunidade escolar e de seu entorno, como a perseguição por meio de notificações extrajudiciais, a ocorrência de constrangimentos ao uso de nome social, a censura ao uso de linguagem neutra, a violação da laicidade e o cerceamento das discussões sobre racismo e do ensino – previsto em lei – das histórias e culturas indígena, africana e afro-brasileira em escolas públicas e privadas.

O Manual trata ainda do tema fortemente recorrente, mas pouco comentado, da autocensura, isto é, da interrupção da abordagem de gênero, raça e sexualidade nas escolas pelos próprios docentes em decorrência do pânico moral e do medo de perseguição decorrentes da atuação autoritária de movimentos ultraconservadores contra professores. 


Marcos legais nacionais, internacionais e decisões do Supremo Tribunal Federal

A primeira versão do Manual foi lançada no final de 2018 como parte de uma estratégia de incidência junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que a Corte julgasse um conjunto de ações que questionavam a constitucionalidade de leis de censura na educação.

Ao longo do ano de 2020, dez ações foram julgadas positivamente, reafirmando a inconstitucionalidade da censura e o dever do Estado em abordar as questões de gênero e sexualidade na Educação Básica como forma de prevenir o abuso sexual de crianças e adolescentes. As decisões reforçaram também que a ideia de neutralidade ideológica é antagônica ao pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, pilar constitucional da legislação educacional brasileira.

Outro aspecto importante referendado pelo STF foi a interpretação a respeito do lugar das famílias na gestão democrática da educação. Na compreensão da Corte, a participação das famílias na vida escolar de crianças e adolescentes é fundamental, mas  não pode ser usada como artifício para limitar o direito constitucional de crianças e adolescentes a uma educação que contemple várias visões de mundo, estimule a capacidade de refletir e de pesquisar a realidade e que prepare os e as estudantes para uma sociedade sempre mais complexa e desafiante.

“Muitas vezes, mobilizadas pelo desejo de proteção de suas filhas e filhos, algumas famílias acabam contribuindo para que crianças e adolescentes cresçam despreparados e vulneráveis para enfrentar o mundo e atuar conscientemente pela superação das desigualdades, discriminações e violências nas suas vidas e na sociedade brasileira”, destaca o Manual.


Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação

Com apoio do Fundo Malala, do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e da Defensoria Pública da União (DPU), a publicação é resultado do trabalho de uma ampla articulação de sociedade civil, que inclui organizações não governamentais e redes que atuam pelo direito humano à educação, entidades sindicais, associações científicas, redes de pesquisa, organizações vinculadas ao movimento feminista, negro e LGBTQI+, setores religiosos progressistas defensores da laicidade do Estado, coletivos políticos e órgãos públicos comprometidos com a defesa dos direitos humanos.

Confira a lista completa de entidades signatárias:

  • Ação Educativa
  • Ação Educação Democrática
  • ABEH – Associação Brasileira de Pesquisa em Ensino de História
  • ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos
  • ABIA – Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS
  • ABPN – Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as
  • AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros
  • Agência Pressenza
  • Aliança Nacional LGBTI
  • ANAÍ – Associação Nacional de Ação Indigenista
  • ANAJUDH-LGBTI – Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos de LGBTI
  • Andes-SN – Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior
  • Anfope – Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação
  • Anpae – Associação Nacional de Política e Administração da Educação
  • ANPEd – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
  • Anpocs – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
  • Anpof – Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia
  • Antra – Associação Nacional de Travestis e Transexuais
  • Articulação de Mulheres Negras Brasileiras
  • Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais
  • Campanha Nacional pelo Direito à Educação
  • Cedeca-CE – Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Ceará
  • Cedes – Centro de Estudos Educação e Sociedade
  • CENDHEC – Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social
  • Cenpec
  • Centro das Mulheres do Cabo
  • Centro de Cultura Professor Luiz Freire
  • Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza
  • CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria
  • Cidade Escola Aprendiz
  • Cladem – Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher
  • CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação
  • Coletivo de Advogad@s de Direitos Humanos
  • Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia
  • Comissão Pastoral da Terra
  • Comitê Goiano de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno
  • Conic – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs
  • CONTEE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino
  • Dom da Terra AfroLGBTI
  • Fineduca – Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação
  • Forumdir – Fórum Nacional de Diretores de Faculdades, Centros de Educação ou Equivalentes das Universidades Públicas Brasileiras
  • Fórum Ecumênico ACT-Brasil
  • Gajop – Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares
  • Geledés – Instituto da Mulher Negra
  • GPTEC – Grupo de Pesquisa em Tecnologia, Educação e Cultura (IFRJ)
  • Grupo Dignidade
  • IDDH – Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos
  • Inesc – Instituto de Estudos Socioeconômicos
  • Instituto Alana
  • Instituto Pólis
  • Instituto Vladimir Herzog
  • Intervozes
  • Justiça Global
  • LAVITS – Rede Latinoamericana de Estudos em Tecnologia, Vigilância e Sociedade
  • Mais Diferenças – Educação e Cultura Inclusivas
  • Marcha das Mulheres Negras
  • Mirim Brasil
  • Movimento Humanista
  • Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio
  • MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
  • Núcleo de Consciência Negra – USP
  • NUDISEX – Núcleo de Estudos e Pesquisas em Diversidade Sexual
  • Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras de Belo Horizonte
  • Odara – Instituto da Mulher Negra
  • OLÉ/UFF – Observatório da Laicidade na Educação
  • Plataforma Dhesca Brasil
  • Professores contra o Escola sem Partido
  • Projeto Mandacaru Malala
  • QuatroV
  • Rede Brasileira de História Pública
  • Rede Liberdade
  • REPU – Rede Escola Pública e Universidade
  • SBEnBio – Associação Brasileira de Ensino de Biologia
  • SBEnQ – Sociedade Brasileira de Ensino de Química
  • Sinpeem – Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São Paulo
  • Sinpro Guarulhos – Sindicato dos Professores e Professoras de Guarulhos
  • Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos
  • SPW – Observatório de Sexualidade e Política
  • Terra de Direitos
  • UNCME – União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação
  • Undime – União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação
  • UPES – União Paranaense dos Estudantes Secundaristas