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Descumprimento do PNE afeta mais as juventudes negras, indígenas e periféricas e aumenta a urgência da construção de um novo Plano

Com poucos avanços em uma década, desafio é construir novo PNE que diminua desigualdades e não deixe ninguém para trás

Crédito: Fernando Frazão / Agência Brasil

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira 

O Brasil de 2023 é bem diferente do Brasil de 2014, quando entrou em vigor o atual Plano Nacional de Educação (PNE). Mas passada quase uma década, foram poucos os avanços na Educação brasileira: quase 90% dos dispositivos e metas do PNE não vão ser alcançados até o final do prazo, segundo o último balanço da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, prejudicando especialmente a população negra, indígena e dos estados do Norte do país. E não apenas os avanços não são suficientes como mais da metade das metas estão em retrocesso. Este cenário torna mais urgente a construção de um novo Plano que permita superar desigualdades históricas e que seja, de fato, implementado. 

O que é o PNE

O Plano Nacional de Educação (PNE, Lei 13.005/14) é a mais importante política educacional brasileira, fruto de anos de debates com intensa participação social. Aprovado em 2014 após acirrada tramitação no Congresso, foi uma vitória da sociedade civil e dos movimentos sociais da área da Educação, sublinhando a importância do planejamento educacional, orientando o investimento e a gestão, além de referenciar o controle social e a participação cidadã.

O atual PNE tem 20 metas e 254 estratégias a serem cumpridas até junho de 2024. Essas metas dispõem sobre acesso e permanência desde a creche até a pós-graduação, mas também abarcam temas como participação social, valorização de profissionais da educação, combate às desigualdades educacionais e financiamento da educação. O PNE é uma política pública e seu cumprimento deve se dar independente de quem está no governo ou do contexto social, político ou econômico. 

Como está sua implementação

O PNE começou a ser esvaziado já em 2015, um ano após sua aprovação, por medidas de ajuste fiscal do segundo governo Dilma. Em 2016, a Emenda Constitucional 95 (EC 95, ou o “Teto de Gastos”) foi aprovada, constitucionalizando cortes orçamentários por 20 anos e inviabilizando de vez qualquer progresso real, já que sem novos recursos é impossível cumprir várias das metas do PNE (por exemplo, aumentar matrículas em diferentes etapas). Fora a meta 20, que prevê a ampliação do investimento público em educação pública e que, se não é cumprida, afeta todas as outras. 

Depois veio o governo Bolsonaro, que nunca norteou a política educacional pelo PNE. Ao contrário, sua gestão aprofundou as políticas de austeridade que inviabilizam o cumprimento do plano e dificultou de diversas maneiras a participação social, a gestão democrática, a transparência e o acesso a dados. Além do subfinanciamento da Educação que inviabiliza o PNE como um todo, em seu governo avançaram medidas que o impactam negativamente, como a Reforma do Ensino Médio. Outro fator de impacto negativo no PNE foi a pandemia, que interrompeu alguns avanços, como o acesso e permanência no Ensino Fundamental. Agora, na avaliação de Marcele Frossard, assessora de programas e políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, embora o novo governo esteja mais permeável à reconstrução e reorganização de políticas sociais, ainda há dificuldades em relação ao cumprimento do orçamento para a Educação

Todos os anos, a Campanha faz um monitoramento do cumprimento de todas as metas e estratégias do PNE, com resultados cada vez mais preocupantes. Em 2023, o balanço verificou que 13 das 20 metas estão em retrocesso e que mais de 90% dos objetivos não serão cumpridos a tempo. “Até metas que estavam estagnadas ou que caminhavam de alguma maneira passaram ao retrocesso no governo Bolsonaro”, destaca Marcelle. Fora as várias metas que não podem ser totalmente avaliadas porque não há informações públicas atualizadas (há lacuna de dados em cerca de 35% dos dispositivos). A Campanha classifica 3 metas como parcialmente cumpridas, mas entende que elas já estavam avançadas em 2014 e que não há, portanto, exatamente um progresso. 

As metas em retrocesso referem-se a: universalização do atendimento à Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio; oferta da Educação em tempo integral na educação básica; erradicação do analfabetismo; valorização dos profissionais do magistério; acesso ao Ensino Superior; e ampliação do investimento público na educação. 

Ao olhar os dados mais de perto fica evidente que o descumprimento não afeta todos os grupos igualmente. Populações indígenas e quilombolas, do campo, bem como estudantes negras e negros e de estados do Norte e Nordeste têm os piores índices educacionais. Ou seja, a educação brasileira continua profundamente desigual.

Um exemplo é a Meta 12 que se refere às matrículas na Educação Superior, especialmente entre a população de 18 a 24 anos. Os dados evidenciam que as desigualdades entre os mais ricos e os mais pobres persistem, bem como as desigualdades regionais (a taxa de matrícula no Nordeste é quase 20 pontos abaixo da do Sudeste). Essa foi uma meta que piorou na pandemia, quando diminuiu o percentual de pessoas de 18-24 anos que frequentam ou já concluíram cursos de graduação – e persistiu a desigualdade étnico-racial: pretos e pardos acessam a graduação em proporção aproximadamente 50% menor do que a população branca. Ainda,  a expansão das matrículas tem se dado de forma excessivamente concentrada na rede privada, o que também se agravou durante a pandemia.

Quais são os pontos mais problemáticos?

Tudo é preocupante em um cenário de descumprimento generalizado, mas podemos resumir a causa e a consequência: boa parte do PNE foi e é inviabilizado pela falta de investimento público em educação, e o resultado do descumprimento do Plano é o agravamento das muitas desigualdades sociais e educacionais. 

Para Marcelle Frossard, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o cenário não é negligência ou descaso, mas sim “uma escolha política de onde investir ou não e quais áreas são prioritárias”. Opinião compartilhada pela professora Analise da Silva, da UFMG, que diz que o Brasil faz “políticas públicas a conta gotas”, sem real desejo de incorporar a população negra na cidadania, e pelo professor Eduardo Januario, da Faculdade de Educação da USP, para quem as discussões sobre o combate às desigualdades, especialmente as étnico-raciais, ainda estão longe do chão da escola

A falta de investimento deveria ter sido sanada pela Meta 20, que prevê ampliar o investimento público em Educação pública de forma a atingir no mínimo 10% do PIB ao final do decênio. No entanto, hoje o investimento não passa de cerca de 5% do PIB – metade do nível desejado e estabelecido em lei. “Isso, é preciso lembrar, vem desde 1995, no governo Fernando Henrique Cardoso”, lembra Januário, especialista na área de financiamento educacional. “Mesmo quando, no governo Lula, conseguimos concordar na meta de 10%, não conseguimos colocar em prática”. Para o professor, é inconcebível falar de qualquer avanço em PNE e em combate a desigualdades sem caminhar para um financiamento mais robusto. “E o MEC precisa assegurar que as verbas destinadas ao financiamento educacional sejam cumpridas”, acrescenta. Na mesma linha, ele defende ser impossível pensar no PNE e, mais especificamente, na ampliação do Ensino Médio sem investimento maciço na etapa – o que o Novo Ensino Médio não se propõe a fazer. 

O descumprimento das metas do PNE agrava as desigualdades existentes por conta da ausência ou abandono de políticas específicas para combater essas desigualdades. No caso da Educação Integral (EI) e da Educação de Jovens e Adultos (EJA) o cenário foi especialmente dramático: O Mais Educação, de EI, foi descontinuado, e a EJA foi completamente desfinanciada, tendo em 2022 um orçamento que representava apenas 0.44% do orçamento de 2012. 

A EJA abarca uma população (majoritariamente negra) que, por inúmeros motivos, não pôde iniciar ou concluir a Educação Básica. No PNE, as metas 8 e 9 se referem à situação da EJA e das desigualdades e, não por acaso, mostram um cenário desastroso. Em 2022, a Meta 8, focada em reduzir desigualdades, apresentou retrocesso pela primeira vez. A escolaridade média do Nordeste e da população na zona rural caiu, e as populações negra e não-negra continuam com índices inaceitavelmente desiguais (a população negra de 18 a 29 anos tem cerca de 91% da escolaridade da população branca da mesma faixa etária) . Já a meta 9 mostra que o analfabetismo funcional avançou quando deveria ter regredido (era 27.1% em 2014 e agora está em 29.4%, quando deveria estar em cerca de 15%). Ainda, o analfabetismo absoluto é um problema especialmente importante no Nordeste, embora todos os estados da região tenham progredido a níveis acima da média nacional.

Analise da Silva, professora da Faculdade de Educação da UFMG e especialista em EJA, classifica o cenário brasileiro como deprimente. Ela reforça, por exemplo, o vácuo para adolescentes e jovens que têm direito à EJA. “Se o problema fosse apenas o Ensino Médio seria menos pior, mas não temos nem mesmo a alfabetização garantida”, diz. A professora reforça que a ideia de que a Educação de Jovens e Adultos atinge apenas adultos e idosos não é verdadeira – ela deveria abarcar também os jovens que iniciaram a escolarização mas que estão muito longe do chamado “período ideal”. Para ela, esse grupo está abandonado pelo poder público – basta lembrar que a EJA viu o encolhimento de vagas nos últimos anos.

Marcelle Frossard enfatiza que o PNE reverbera as desigualdades sociais, econômicas e populacionais existentes no país. Nesse contexto, destaca ela, a região Norte também merece atenção. “É uma região reconhecida pela forte presença de populações de comunidades tradicionais, povos indígenas e quilombolas, além de questões migratórias. No entanto, ainda faltam muitas informações sobre essas realidades. É uma região com muitas especificidades, o que exige participação conjunta para uma educação contextualizada que é direito dessas populações”. 

E o próximo PNE?

O atual PNE deixa de valer em junho de 2024. Isso significa que um novo projeto para substituí-lo já deveria ter sido enviado para análise do Legislativo em junho deste ano, o que ainda não ocorreu. No momento, os Fóruns, Conselhos e Secretarias de Educação se organizam para a realização da CONAE 2024 que terá como tema “Plano Nacional de Educação (2024-2034): Política de Estado para a garantia de educação como direito humano, com justiça social e desenvolvimento socioambiental sustentável”. As etapas municipais e estaduais estão previstas para ocorrer no segundo semestre de 2023 e a nacional no início de 2024. 

São muitas as tarefas: não apenas construir um novo PNE que responda à altura os desafios da educação brasileira, como construí-lo em um prazo apertado garantindo as vozes da sociedade e das comunidades escolares. “O novo PNE, para ser novo, tem que vir associado à revogação do NEM, à construção de outro Ensino Médio, e não pode ser produzido a toque de caixa sem refletir os interesses da sociedade e das comunidades escolares”, defende Marcele Frossard, assessora de programa e políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. 

Além disso, a promulgação de um novo Plano é só o começo do processo, já que a implementação e o cumprimento das metas têm se mostrado a etapa mais desafiadora dos últimos anos, especialmente em relação ao financiamento educacional. “É comum que o Estado brasileiro incorpore objetivos na lei, mas não os execute de fato. Foi o caso do atual PNE, um Plano que avançou ao incorporar novas perspectivas de combate às desigualdades, mas que não conseguiu avançar no cumprimento dessas metas”, argumenta o professor Eduardo Januário, que defende que o próximo PNE precisa seguir almejando os objetivos ainda não alcançados. “Como criar novas metas sem cumprir as que não foram cumpridas?”, questiona, acrescentando que “não há outra possibilidade senão insistir na destinação de 10% do valor do PIB para a Educação, senão insistir nas discussões de financiamento e equidade”. Para Januário, igualmente importante é garantir o fortalecimento das instâncias de participação social, como Conselhos e Fóruns Municipais e estaduais de Educação, justamente por serem agentes chave no monitoramento das metas. 

Na mesma linha, a professora da UFMG Analise da Silva defende que se as novas metas precisam ser as mesmas ou no mínimo parecidas com as atuais, dado o estado de descumprimento do Plano, as táticas e estratégias de monitoramento e pressão social precisam ser mais ousadas. Ela destaca o contexto extremamente adverso para o cumprimento do Plano, pois é preciso vontade política para “efetivar a EJA como ação afirmativa que seja garantidora do rompimento das desigualdades sociais e para um novo PNE que leve em consideração sujeitos que o Estado brasileiro invisibiliza desde 1500”. “Não podemos ficar parados esperando a política pública”, reforça Analise. 

A falta de compromisso político com o atual PNE nos desafia a aprimorar as formas de participação e de controle social das políticas educacionais para que governos se comprometam com a implementação e com o fortalecimento de Políticas de Estado. Não resta dúvida que, se queremos imaginar e realizar um outro horizonte para a Educação brasileira, é preciso construir o próximo PNE com ampla participação popular, principalmente das comunidades escolares e das/os jovens estudantes e com a garantia de um financiamento adequado, incluindo 10% do PIB, a regulamentação do Custo Aluno Qualidade (CAQ) e de um Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SINAEB) que garanta equidade na distribuição dos recursos. Não há mais tempo a perder.





Novo arcabouço fiscal pode diminuir repasses para Universidades e Institutos Federais de Educação, além da merenda, transporte e livros didáticos

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

Jovens do Edital Em Luta: estudantes por um Ensino Médio de qualidade!

O Congresso brasileiro está analisando o projeto de lei complementar (PLP) 93/2023, o arcabouço fiscal, que nada mais é do que as novas regras de gastos do dinheiro público. A proposta foi enviada pelo Executivo e, após tramitação e aprovação na Câmara e no Senado, vai para sanção presidencial. Como o arcabouço fiscal dita as regras dos gastos públicos inclusive em áreas sociais, impacta diretamente a educação e seu financiamento e pode afetar estudantes desde a creche ao ensino superior. Por isso, é tão importante monitorar este projeto e pressionar para que seu desenho esteja sintonizado com as metas do Plano Nacional de Educação (PNE) que, às vésperas do final de sua vigência, tem uma taxa de descumprimento de 90% de acordo com o último balanço da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Qual a diferença entre arcabouço fiscal e Teto de Gastos (EC 95)?

O novo arcabouço fiscal é um projeto para substituir a Emenda Constitucional 95 (EC 95, que ficou conhecida como o Teto de Gastos), promulgada em 2016. Ou seja, a EC 95 deixará de valer quando o novo arcabouço for aprovado, o que é uma boa notícia para as áreas sociais, já que o Teto congelou os gastos públicos por 20 anos. Segundo a EC 95, os gastos em áreas como saúde e educação só podem subir de acordo com a inflação, não havendo nenhum aumento real no investimento. O governo Bolsonaro descumpriu muitas vezes o Teto de Gastos, mas nunca para investir nas áreas sociais. O arcabouço fiscal proposto pela nova gestão prevê que as despesas podem sim aumentar além da inflação, mas que este aumento deve ser compatível com o aumento do que é arrecadado pelo governo. Ou seja, ainda impõe um limite, mas é mais flexível. 

Uma diferença importante é que o Teto de Gastos em vigor é uma Emenda Constitucional e o novo arcabouço fiscal, se aprovado, será uma lei complementar. Ou seja, a EC 95 está na Constituição, e portanto tem muito peso e preponderância sobre outras leis. Já as leis complementares não estão na Constituição, mas devem obedecê-la. Isso significa que qualquer que seja o desenho do arcabouço fiscal, ele precisa cumprir todas as obrigações constitucionais. Por exemplo, a União deve sempre repassar para a Educação no mínimo 18% do que foi arrecadado em impostos. Com o modelo do Teto de Gastos de 2016 isso podia ser burlado, porque a EC 95 partia de um valor de investimento inicial (do ano que foi promulgada) e autorizava apenas a correção da inflação desse mesmo valor.

O que diz o arcabouço fiscal?

O mecanismo básico da proposta enviada pelo governo Lula é que o crescimento das despesas deve se limitar a 70% do crescimento da arrecadação. Por exemplo, se o governo arrecada R$ 1 trilhão, pode gastar até 70% disso, ou 700 bilhões de reais. Há também um mecanismo para que épocas de maior ou menor arrecadação tenham também limites de gastos diferentes (saiba mais sobre o arcabouço fiscal aqui). 

A proposta original do novo arcabouço fiscal, enviada pelo Executivo, abria exceções para os gastos instituídos na Constituição, como o piso nacional da enfermagem e o Fundeb, principal mecanismo de financiamento da educação pública brasileira e que foi incorporado à Constituição em 2020. A Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos, de 2016) também abria uma exceção para o Fundeb. 

No entanto, o projeto do arcabouço fiscal está sofrendo alterações durante sua tramitação no Congresso Nacional. A exceção para o Fundeb, assim como a garantia dos pisos constitucionais para educação e saúde, ainda são pontos de disputa. 

Como está a tramitação do arcabouço fiscal? Ele será aprovado?  

O PLP 93/2023 do arcabouço fiscal está sob análise no Congresso. Na Câmara, sofreu alterações, como a inclusão do Fundeb dentro de seu escopo. As mudanças foram aprovadas pela casa e o projeto foi então encaminhado ao Senado que retirou as despesas da União com o Fundeb. 

Agora o projeto volta para a Câmara dos Deputados. Quando o Congresso chegar a um acordo sobre o texto, ele vai para a sanção presidencial – etapa em que também pode ser modificado. Por exemplo, ter trechos vetados. 

Como o novo arcabouço fiscal vai guiar os investimentos do novo governo, há pressa para sua aprovação. Ele está tramitando no Legislativo em regime de urgência, o que significa uma tramitação simplificada e mais acelerada. 

IMPACTOS DO ARCABOUÇO FISCAL NA EDUCAÇÃO

A Educação é uma área que tem sofrido muito com cortes orçamentários na última década. Revogar a EC 95 é o que entidades e movimentos comprometidos com a educação pública e de qualidade vêm demandando desde 2016, mas discutir a proposta substituta é igualmente importante, para que o resultado não seja igualmente prejudicial para a Educação. E o desenho do novo arcabouço fiscal segue tendo problemas e armadilhas a longo prazo. 

Quando o Fundeb foi incorporado no texto do relator da Câmara, o deputado Cláudio Cajado (PP-BA), em maio, causou muita preocupação, já que o fundo é o principal mecanismo de financiamento da Educação básica brasileira. Mas também entraram no arcabouço os mínimos constitucionais da educação e da saúde. Essas adições foram severamente criticadas por parlamentares, entidades da Educação, como a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e comunidades escolares. “O relatório piora ainda mais o programa de Temer e amplia a dificuldade de investimentos no ensino público e a execução do Plano Nacional de Educação (PNE)”, disse a CNTE em comunicado sobre o tema.

Por que a inclusão do Fundeb no arcabouço fiscal impacta a Educação? Quais os impactos? 

O Fundeb é um fundo composto por recursos dos municípios, estados e da União. É uma obrigação constitucional e é de onde vem boa parte dos recursos que financiam a educação básica do país, que hoje atende cerca de 50 milhões de estudantes. Em 2020, quando se discutiu um novo modelo de Fundeb, foi aprovado que o governo federal iria, de maneira gradual, contribuir com cada vez mais recursos, diminuindo assim o peso para estados e municípios, que arrecadam menos. É o que chamamos de “complementação da União”, que deve chegar a 23% em 2026. 

O grande e principal problema do Fundeb ser incluído no arcabouço fiscal é que, por ser um repasse obrigatório e de uma quantia significativa, pode diminuir o que sobra para outras despesas, principalmente aqueles investimentos que não são obrigatórios, como programas de transporte escolar, merenda ou livro didático. Programas que afetam majoritariamente as e os estudantes mais pobres. Foi justamente com o argumento de que o Fundeb é uma contribuição obrigatória que o deputado Claudio Cajado justificou a inclusão do fundo no arcabouço, mas a Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados e os especialistas em financiamento ouvidos para esta reportagem alertam que a medida é mesmo uma ameaça ao aumento do investimento em educação. 

Se o novo arcabouço incluir o Fundeb, o governo federal teria no mínimo duas grandes obrigações: permaneceria obrigado a cumprir os mínimos constitucionais para Educação e saúde – ou seja, de investir [na Educação] no mínimo 18% de tudo que é arrecadado – ; e teria de arcar com a complementação de 23% ao Fundeb. “O que as análises têm mostrado é que é muito provável que manter esses compromissos afete outras despesas, tanto da Educação quanto de outras áreas sociais”, resume Nalu Farenzena, da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca). E mesmo o Fundeb, apesar de ser protegido constitucionalmente, pode ser afetado, já que a complementação de 23% por parte da União é um valor mínimo, e não fixo ou máximo. Ou seja, se o fundo permanece dentro da nova regra fiscal, é muito improvável que a União repasse para ele mais do que o mínimo obrigatório, já que existem outras despesas em Educação. 

Além dessas duas grandes obrigações, a União também precisa pagar todas as trabalhadoras e trabalhadores da administração pública federal da área da educação, como as/os profissionais que atuam nas universidades e institutos federais. E há as despesas não obrigatórias (também chamadas de discricionárias), que incluem programas de alfabetização, alimentação escolar, livros didáticos, transporte escolar, entre outros. “É onde entra a assistência estudantil, os recursos para a manutenção cotidiana das instituições, e que já foram duramente afetados no governo anterior por conta do Teto de Gastos”, explica Nalu. Estes recursos, segundo ela, ficariam pressionados, limitando a possibilidade de serem expandidos. “Ou seja, [a inclusão do Fundeb] compromete como um todo a agenda redistributiva, o que inclui a educação. Não é o Fundeb que está sob ataque, mas todo o setor público federal”, nas palavras de Nalu Farenzena. 

Salomão Ximenes, Professor de Direito e Políticas Públicas da UFABC e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU), destaca também que as universidades e Institutos Federais, que são responsabilidade da União, podem ser muito impactados pela inclusão do Fundeb no mesmo bolo de recursos. “Os institutos são a principal e a melhor experiência que temos de rede pública gratuita de ensino médio de qualidade e integrado à educação profissional. Nossa grande expectativa, inclusive pelo plano de governo do presidente Lula, é que essa rede fosse ampliada. Isso sim mereceria um nome de reforma do ensino médio”, diz. “Mas a inclusão do Fundeb no arcabouço inviabiliza muito rapidamente qualquer margem orçamentária para pensar a ampliação da presença da União no ensino médio profissionalizante”, resume. 

 Para Guelda Andrade, secretária de assuntos educacionais da CNTE, é preciso um olhar progressista na construção de um necessário ajuste fiscal para que ele reflita o projeto de uma nação soberana. “O Brasil tem esse potencial, mas para isso é preciso investir em educação, e investir em educação é também tirar o Fundeb do arcabouço. Ainda estamos construindo um debate sobre democratizar o acesso a educação básica, além da permanência e da qualidade”, ressalta. Ela destaca que a inclusão do Fundeb no arcabouço pode impactar também a valorização das e dos profissionais de educação, pois são necessários mais recursos para construção de planos de carreira. 

É verdade que, sob o desenho do novo arcabouço fiscal, os recursos aumentam (e consequentemente os investimentos também) em épocas de aumento na arrecadação, mas como Nalu Farenzena destaca, “isso é um cenário incerto e não é uma política estratégica de priorização da educação”, porque cria uma dependência das receitas aumentarem para que se possa aumentar os investimentos em Educação. “Não é uma política efetiva de longo prazo do Estado”, resume. E isso afeta ainda mais negativamente o atual e o novo Plano Nacional de Educação (PNE) – que deve ser construído por meio de processos participativos liderados pelo Fórum Nacional de Educação (FNE). 

“Não basta só construir um plano, é preciso pensar estratégias de financiamento para que ele seja exequível, para que consigamos executar as metas que tanto desejamos”, reforça Guelda Andrade, que diz que o Fórum Nacional de Educação está “correndo contra o tempo” para avançar nessa discussão, já que o PNE determina as diretrizes do país para a educação na próxima década. 

E sem o Fundeb, o arcabouço fiscal ainda é ruim para a Educação?

Para Salomão Ximenes, sim. O professor da UFABC e membro da REPU destaca que o novo arcabouço fiscal pode levar a uma alteração regressiva na legislação daqui alguns anos. Isso basicamente porque o texto aprovado até o momento acaba agregando regras diferentes de crescimento de gastos em educação. Assim, uma delas teria que se ajustar. 

As duas regras diferentes são as seguintes: a vinculação mínima constitucional e a própria regra do arcabouço fiscal. A vinculação mínima exige que no mínimo 18% do total arrecadado em impostos vá para a educação, e permite que esse valor cresça 100% de um ano para o outro. Ou seja, se as receitas crescem 100%, a destinação também cresce. Já o arcabouço fiscal, como vimos, limita esse crescimento a 70%. É como se fossem dois carros em uma mesma pista, mas a velocidades diferentes – em algum momento o carro a 100 km/h vai colidir com o que vai a 70. “O principal risco geral do arcabouço é que ele até agora não está prevendo uma regra de adaptação entre esses dois sistemas. Então mesmo que seja aprovado sem o Fundeb, há conflito”, explica. Este conflito não é direto – porque há uma hierarquia a ser cumprida: se um dispositivo é Constitucional, a lei complementar não pode descumprí-lo -, mas acaba sendo um conflito de objetivos. São dois carros que vão se chocar – não por falhas mecânicas, mas pelas velocidades diferentes. Para que não se choquem, o carro que vai mais rápido (100% de crescimento) precisaria se ajustar à velocidade do outro (70% de crescimento). 

“Isso obrigatoriamente traz a necessidade de revisar os repasses mínimos para saúde e educação”, resume Salomão. Se não, para não descumprir a Constituição, todo o recurso arrecadado no país teria que ser destinado apenas para essas áreas. “Ou seja, é possível que este arcabouço esteja encomendando o fim da vinculação como conhecemos”. Seria um “cavalo de troia” embutido no atual projeto. “Mas um cavalo de troia de cabeça para baixo, é uma lei complementar que poderia obrigar uma mudança na Constituição”, ressalta. E essa mudança, na prática, daria menos prioridade orçamentária para saúde e educação, além do possível efeito cascata que isso se reproduza também a nível de estados e municípios. 

Com esse horizonte em vista, é preciso pressionar ainda mais as e os parlamentares e o Executivo e mobilizar as comunidades escolares, jovens e seus coletivos para o debate sobre como a economia impacta a qualidade da escola e das políticas educacionais. O aumento das desigualdades educacionais certamente será o maior impacto da aprovação de um arcabouço fiscal que coloca em risco investimentos essenciais para o avanço, por exemplo, de institutos e universidades federais, alimentação e transporte escolar. 






Novo Ensino Médio, desemprego e racismo: quais os impactos da precarização da vida e da educação na saúde mental da juventude?

Desde a pandemia, jovens relatam piora na saúde mental e demandam atenção para essa questão também na escola. Pesquisas confirmam relação entre precarização da vida e adoecimento psicológico. 

Texto: Nana Soares / Edição: Claudia Bandeira

Oficina sobre Saúde Mental realizada pelo projeto Tô No Rumo, em março de 2023.

“Quando começou a pandemia, fomos pegos de surpresa. Fomos para casa achando que ia passar rápido e logo voltaríamos à rotina, mas acabamos passando 2020 inteiro em casa, com convívio limitado, e percebemos que ia ser difícil recuperar tudo depois. Depois voltamos um dia por semana para a escola e ainda assim percebemos que estava fraco. Quando cheguei ao segundo ano [do ensino médio] veio a bomba do Novo Ensino Médio no nosso colo, no dos professores e de toda a escola. Todo mundo precisou trabalhar com o que tinha. E esse ano, além de ter que correr atrás de tudo que a gente perdeu e ainda se adaptar ao novo ensino médio, tem ENEM. A verdade é que estamos tendo que estudar duas vezes mais porque estamos defasados.”

O relato acima é de Stella Barbosa, estudante do terceiro ano do Ensino Médio de uma escola pública da cidade de São Paulo, e ilustra bem como as e os estudantes brasileiras/os têm sentido os impactos de anos de políticas de austeridade e precarização na educação e nos serviços públicos. Essa piora em condições estruturais tem afetado diretamente a saúde mental das juventudes, que demandam mais atenção e cuidado nessa esfera. 

A pauta da saúde mental tem, de maneira geral, ganhado mais visibilidade nos últimos anos. Mas, além da visibilidade, também tem de fato se tornado mais urgente para jovens que vivem na pele os efeitos de macropolíticas que causam piora na qualidade de vida. Uma pesquisa recente da Plan International realizada com adolescentes meninas de diversos países do sul global atestou que os principais problemas de saúde mental nessa faixa etária têm origem na pobreza, violências e desigualdades de gênero. E que uso abusivo de álcool, tabagismo e sedentarismo são mecanismos acionados para tentar contornar sentimentos de estresse, tédio, ansiedade e depressão. Outra pesquisa, do Instituto Datafolha, também aferiu um cenário preocupante na saúde mental de jovens brasileiras/os, especialmente em meninas e jovens LGBTQIA+, evidenciando a relação entre contextos macropolíticos desfavoráveis e o adoecimento a nível individual. 

“Esse processo foi intensificado pela pandemia e pelo projeto político genocida do governo anterior, que dificultou ainda mais o acesso das juventudes em diversas áreas”, diz Bruno Mota, ​​psicólogo do Instituto Afro Amparo e Saúde e doutorando em Psicologia na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Bruno reforça os impactos das desigualdades raciais na saúde mental da população negra, lembrando que “a precarização e o desmonte dos serviços públicos, além da iniquidade em saúde, fazem com que populações negras e periféricas continuem excluídas de um programa de saúde integral”. O psicólogo reforça que este fenômeno não é novo, bem como não são a violência estatal, a letalidade policial, o desemprego e o racismo, alguns dos principais fatores de adoecimento. 

No Brasil, o instituto AMMA – Psique e Negritude, é pioneiro em abordar essa relação, defendendo que o enfrentamento ao racismo se faz tanto política quanto psiquicamente. “O racismo, além de violar direitos sociais, prejudica a saúde psíquica dos indivíduos: podendo fazê-los desenvolver sintomas psicossomáticos, inibições, impedimentos (de acesso, de participação), especialmente na experiência de negritude; e/ou desenvolver uma autoimagem distorcida, descolada da própria realidade e racialidade, como ocorre principalmente na experiência de branquitude”, como definem em seu site. Por isso, o instituto realiza ações como grupos temáticos de discussão, ciclos formativos sobre efeitos psicossociais do racismo e oficinas de identificação e abordagem do racismo institucional.

Em março de 2023, o Projeto Tô No Rumo, da Ação Educativa, realizou um encontro sobre o tema com jovens do ensino médio – demanda que partiu das e dos estudantes. Cinthia Gomes, jornalista, e integrante da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial e da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, foi uma das facilitadoras dessa formação e reforça que é importante destacar a atitude dos estudantes que reivindicam sua qualidade de vida. “Mas percebo principalmente dois aspectos afligindo a saúde mental das juventudes: as redes sociais e a afirmação das identidades”, diz ela. As redes sociais por conta da comparação com outras vidas e contextos “e a grande angústia de não conseguir atingir padrões – sejam eles de beleza, financeiros, ou de popularidade, ainda que muitas vezes esses não sejam tão verdadeiros assim, mas construídos midiaticamente, para as redes”, lembra. Além disso, há grupos que têm dificuldade de se afirmar plenamente e de viver livremente suas identidades em seus meios ou na sociedade em geral, como mulheres, juventudes negras, LGBTQIA+, pessoas fora do padrão de magreza. “Vivem em meio a essa não aceitação de quem se é é uma grande fonte de sofrimento mental”, enfatiza Cinthia. 

Precarização da Educação

A educação pública brasileira vem há anos sofrendo com o subfinanciamento, a precarização, a influência do setor privado, a austeridade e o acirramento das desigualdades regionais, raciais e de gênero. Além disso, um projeto ultraconservador fez avançar a militarização das escolas, que desencoraja as e os estudantes a expressarem suas identidades e opiniões. Para completar, o Novo Ensino Médio (NEM) entrou em vigor, aumentando ainda mais o abismo entre as escolas públicas e privadas, já que a maior parte da rede pública não consegue ofertar o que o NEM exige, e alunos mais pobres e trabalhadores são os mais prejudicados. Na pandemia, a falta de acesso à internet ou a celulares/computadores para assistir as aulas remotas também prejudicou estudantes da rede pública, que não tiveram a infraestrutura garantida pelo Estado. O resultado é que disparou a evasão escolar e o ENEM de 2021 foi o mais branco de sua história. 

Este contexto, é claro, impacta negativamente na saúde mental dos estudantes diretamente afetados. “Desde o ano passado, o grêmio da escola começou a apontar sobre isso, porque a pandemia defasou muito os alunos, e isso fez com que pesasse muito, além da surpresa do novo ensino médio”, relata Stella Barbosa, do terceiro ano do EM. “Percebemos esse baque quando voltamos ao presencial, foi quando vimos a defasagem e ficamos preocupados, porque é o nosso futuro. Foi uma coisa nova pra todo mundo. A escola chegou a colocar uma psicóloga para atender grupos de estudantes, mas não deu certo porque as pessoas queriam privacidade”, conta ela. Adelmo Vitóryo, aluno de escola pública e que ingressou este ano no curso de Ciências Sociais na USP, participou de um desses encontros com psicólogos e criticou a medida. “Foi apenas uma sessão e depois nunca continuaram, como se isso fosse resolver o problema dos alunos”, diz. Ele, que quando estava no ensino médio foi presidente do grêmio estudantil, também entende que a urgência do atendimento em saúde mental aumentou durante a pandemia, e que os governos ainda não olham para isso com a seriedade que o tema pede. “E acredito que pessoas trans e jovens negros são especialmente afetados. Todo mundo merece cuidado, mas acho que esses dois grupos estão ainda mais tensionados e não recebendo o acolhimento necessário”. 

A pesquisa “A educação de meninas negras em tempos de pandemia: o aprofundamento das desigualdade”, realizada pelo Geledés em 2021 de fato constata a situação de vulnerabilidade das meninas negras no município de São Paulo no período. Como mostrou o estudo, são elas que menos receberam material didático/recursos pedagógicos durante o ensino remoto, o que afetou a realização das atividades escolares. Ainda, tanto docentes como organizações da sociedade civil ouvidos pela pesquisa consideram que gênero e raça incidiram sobre o impacto da pandemia na vida de estudantes, e os dados apresentados pelas famílias participantes da pesquisa reafirmam esta hipótese. E alguns dos principais motivos elencados foram trabalho precário, incluindo o aumento de tarefas domésticas; vulnerabilidade social; desigualdades; baixa autoestima; violência; racismo; e sexismo.

O psicólogo e professor Bruno Mota ressalta que a sequência de precarizações causa um processo de “desesperançar”, ou “a falta de esperança por conta da impossibilidade de acessar o ensino público de qualidade, especialmente com o Novo Ensino Médio. Essa precarização prejudica e interrompe os sonhos da juventude, mina seus horizontes. Como pensar um projeto de vida?”, questiona. “Qual o amanhã possível com o sufocamento de um projeto profissional?”. 

“Os dados desta pesquisa, que representa diferentes regiões do município de São Paulo, demonstram que, se considerarmos as variáveis de raça, gênero e renda, as consequências da pandemia atingem de forma desigual os diferentes grupos sociais. Por exemplo, nenhuma das famílias brancas aponta como dificuldade “aumento dos conflitos e/ ou situações de violência intrafamiliares”, “diminuição do número de refeições realizadas pelos membros da família”, “mudança ou perda de residência/território”, “membros da família contaminados e/ou falecidos pela Covid-19”, problemáticas estas que afetaram apenas as famílias negras e inter-raciais entrevistadas.” – trecho da pesquisa “A educação de meninas negras em tempos de pandemia: o aprofundamento das desigualdade”. 

Possíveis saídas

A já citada pesquisa da Plan International que constatou a relação entre pobreza, desigualdades e piora da saúde mental traz a necessidade das discussões abertas sobre saúde mental e bem estar. Além disso, é importante acessar serviços de apoio – que precisam incluir uma ampla gama de serviços, não apenas atendimento psicológico. No entanto, uma pesquisa realizada pelo UNICEF sobre saúde mental de adolescentes e jovens constatou que mais da metade das e dos jovens sente necessidade de pedir ajuda, mas que também cerca de metade não conhece serviços ou profissionais dedicados a apoiá-las/os. Há, portanto, a necessidade de ampla divulgação e disseminação em espaços escolares e não-escolares de serviços e redes existentes nos territórios para que  jovens possam conhecer e acessar. 

Estratégias de autocuidado a nível individual existem e são muito importantes, mas também estão conectadas a uma dimensão coletiva, como explica o psicólogo Bruno Mota.  Não adianta, por exemplo, sobrecarregar-se mentalmente em sua atuação política a tal ponto que não seja possível cuidar de você e de suas redes. “É preciso reconhecer limites, reconhecer até onde o indivíduo consegue ir, priorizar o que promove vida e afetividade”, recomenda ele. Ele também lembra que o descanso e o lazer são atitudes políticas. “Retome o que te faz bem: um baile funk, roda samba, show de hip hop, um rolezinho no shopping. Tudo isso é promover vida”, diz. 

Por outro lado, se os processos que levaram à precarização da vida e da educação e colaboraram para um adoecimento são estruturais, eles não serão resolvidos apenas com ação individual. Envolvem organização e luta coletiva – e estas estratégias também acabam fortalecendo pessoas de grupos discriminados a nível psíquico. “Organizações coletivas são espaços de fortalecimentos de identidades individuais, de lutas que passam a ser coletivas. É de fato um instrumento para aliviar a alma”, lembra Cinthia Gomes, jornalista e parte da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo. “É claro que, por organizações e coletivos serem compostos por pessoas, não são perfeitos e eventualmente podem ter situações prejudiciais, mas isso é pelas imperfeições humanas. O potencial é da organização ter uma força transformadora. Vale a pena a gente tentar, a gente se aquilombar, estarmos juntos”, defende. 

Na mesma linha, o psicólogo Bruno Mota reforça: “cada um pega a mão do outro e da outra. A violência – racial, misógina, classista, etc – continua existindo, mas os arranhões não se direcionam a um só corpo e sim são diluídos para um coletivo. E também são nesses espaços de comunidade que nos permitimos redesenhar estratégias e rotas políticas”. E finaliza: “A situação estar ruim não significa que vamos esmorecer. As juventudes negras periféricas são e sempre foram pólos de resistência e enfrentamento às violencias. Produzem vida nesse cenário catastrófico. Nossa comunidade não sucumbe”.  

Para quem quiser ler mais sobre a relação entre racismo e saúde mental, recomendamos a biblioteca do Instituto AMMA: http://www.ammapsique.org.br/biblioteca.html 



Governo Lula ainda não revogou Programa de Escolas Cívico-Militares; projeto acirra ainda mais a violência nas escolas

Prioridade de Bolsonaro, a militarização das escolas, ainda não foi freada pelo MEC e o modelo avança em diversas regiões do país. 

Primeiro dia de aulas no CED 01 da Estrutural, uma das escolas públicas do DF onde foi implementado o modelo cívico-militar. Modelo impulsionado no governo Bolsonaro intensifica exclusões no ambiente escolar

Texto: Nana Soares / Edição: Claudia Bandeira

Uma das principais agendas do governo Bolsonaro na Educação, a militarização das escolas, instituída pelo decreto 10.004, de 2019, que trata do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM) ainda não foi revogado no governo Lula, apesar de pressão da sociedade civil e movimentos estudantis. A ausência de posicionamento do MEC não interrompe a expansão do modelo, que vai contra diretrizes constitucionais para a educação, acirra desigualdades e reforça o racismo, o machismo e a LGBTfobia nas escolas. 

O PECIM

O Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM) foi instituído por decreto presidencial em 2019, logo no início do governo Bolsonaro. Ele não é a única forma de militarizar escolas e nem inaugurou este processo, mas o impulsionou fortemente, mais que triplicando o orçamento destinado às escolas cívico-militares – R$64 milhões em 2022, ante R$18 milhões em 2020. As unidades que aderiram a este programa também foram de 120 (2018) para 215 (2022), embora este número seja apenas uma parcela do total, porque há também os programas instalados em âmbito estadual ou municipal. Há, por exemplo, ao menos 199 escolas públicas militarizadas na rede estadual do Paraná e outras 98 na Bahia

GLOSSÁRIO 
Militarização das escolas é a transferência do processo de gestão das escolas civis públicas para diferentes forças de segurança, como a Polícia Militar, Bombeiros, Guarda Municipal, Exército, Aeronáutica, Marinha e Polícia Rodoviária Federal. 

O PECIM é uma parceria com o Ministério da Defesa, e parte dos recursos da educação é destinada a pagar os militares da reserva que passam a atuar nas escolas. Entre as muitas críticas ao programa está justamente o desvio de função dos militares e a desvalorização, inclusive salarial, das e dos profissionais da educação que decorre deste processo. Além disso, as escolas cívico-militares funcionam sob uma lógica de obediência a um único modelo, de rígida hierarquia e padronização. 

Efeitos da militarização

Não são poucas as denúncias de assédio ou repressão a estudantes quando manifestam individualidades que fogem do rígido e estrito padrão imposto pela escola militarizada. Padrão esse que se baseia em ideais brancos, heteronormativos e privilegia apenas um tipo de masculinidade e feminilidade. Somente meninas podem usar brincos, por exemplo. Em março de 2022, uma estudante baiana negra foi impedida de entrar em sua escola [militarizada] por conta do cabelo crespo, recebendo a ordem de alisá-lo. No mesmo mês, em Santa Catarina, alunas receberam advertência por levar uma bandeira LGBT para a escola. “[A militarização] é um retrocesso porque põe a escola a serviço de uma lógica racista de perseguição, de vigilância permanente e de contenção da juventude negra compreendida como uma ameaça à sociedade”, resume Denise Carreira, professora da Faculdade de Educação da USP e parte da Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação. “São impostos comportamentos rígidos, valorizadas masculinidades autoritárias, silenciados os espaços de crítica ao modelo disciplinar militar, esvaziada completamente a gestão democrática e reprimida a atuação de coletivos juvenis, de grupos culturais e de produções que manifestem posições de denúncia contra o racismo, a LGBTQIA+fobia e o autoritarismo”, completa. 

No Paraná, um dos estados onde esse processo foi impulsionado com mais vigor nos últimos anos sob a gestão de Ratinho Junior (PSD), 18 entidades organizaram-se para criar o Observatório de Escolas Militarizadas (OEM) a fim de monitorar, receber denúncias e combater as violações de direitos contra as comunidades escolares. Segundo Vanda Bandeira Santana, integrante do OEM, um dos efeitos da militarização no estado é o enfraquecimento da gestão democrática nas escolas. Isso porque as unidades que aderiram ao processo de militarização a âmbito estadual (cerca de 200, ou 10% da rede) passaram a funcionar sob outro regimento, onde diretoras e diretores não são mais eleitos pela comunidade escolar mas sim nomeados. “E isso está atrelado a um outro movimento do governador de implementar metas para as escolas tendo o Ideb como referência”, explica Vania. 

De fato, um dos argumentos do governador é que as escolas cívico-militares são um “modelo vencedor”, com o Ideb maior do que nas escolas regulares. Um argumento contestado por Catarina de Almeida Santos, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) e referência na temática de militarização. Ela defende que militarizar uma escola é na verdade transformá-la em lugar de privilégio e exclusão: “Essas escolas transferem aqueles e aquelas que não se adequam ao projeto, o que inclui o ‘não concordar’ mas também tem a ver com o rendimento do aluno. Então quem em geral tem problemas de rendimento, o que sabemos ser influenciado por fatores sociais, será excluído”. 

No próprio Paraná, como denuncia Vanda Santana, as escolas que passaram pela militarização foram majoritariamente as que já tinham melhor estrutura física e pedagógica. Ainda segundo Catarina de Almeida Santos (leia a entrevista completa aqui), “os dados das primeiras escolas públicas militarizadas de Goiás mostram que estudantes que já tinham rendimento médio continuaram tendo rendimento médio após a militarização, e a mesma coisa para o de rendimento alto, mas os alunos de baixo rendimento são transferidos. Há ainda muitas escolas que exigem a compra de farda, traje de gala, ou até mesmo cobram uma pequena mensalidade para que a escola fique mais bonita”. 

Outro efeito narrado por Vanda, que é professora de história do Ensino Fundamental e secretária educacional da APP Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras em Educação Pública do Paraná, é a intensificação do monitoramento do comportamento de estudantes paranaenses. “Começamos a receber denúncias de que, sob o regimento militar, expressividades como piercing, cortes de cabelo, comprimento de cabelo, entre outros, estão sendo perseguidas. De que estudantes que ‘não se enquadram’ são transferidos para outra escola”, conta. Tendência que só piora se o processo de militarização no Paraná continuar se expandindo – o que é o plano do atual governador

Continuidade ou revogação?

Sendo parte crucial do projeto ultraconservador de Bolsonaro para a educação, a expectativa era que o novo governo Lula prontamente revogasse o decreto do PECIM e, ainda mais importante, que a gestão liderasse um processo de desmilitarização das escolas já militarizadas. Até o momento, nenhuma dessas coisas aconteceu. 

“Já passou – e muito – da hora da revogação do PECIM”, defende Catarina de Almeida Santos, professora da UnB, que não vê justificativas para a demora. “Quanto mais tempo leva, mais as unidades federativas se sentem tranquilas para continuar militarizando as escolas, porque a não revogação também dá esse recado”, complementa.

Durante o processo de transição, a equipe de Lula descartou novos acordos para escolas cívico-militares, mas não mencionou a reversão do processo em curso. O relatório final da equipe de transição também incluiu o PECIM na seção de medidas para revogação e revisão, mais especificamente na sugestão de revogações e revisões de “atos contrários aos direitos de crianças, adolescentes e da juventude”. Apesar do relatório reconhecer que nos anos Bolsonaro a Educação foi “tratada como instrumento para a guerra cultural e com aparelhamento ideológico” e que o MEC “implementou diversas ações educacionais alinhadas a uma pauta atrasada e com uma visão divergente das políticas que, comprovadamente, asseguram uma educação pública de qualidade a todas e todos”, o documento, quando fala especificamente do PECIM, sugere avaliar o “custo-benefício” do programa para então decidir sobre seu orçamento e continuidade. Não menciona os impactos da militarização nas agendas racial , de gênero, sexualidade e gestão democrática, por exemplo. 

“Nossa hipótese para a demora na revogação é que o governo – apesar de ter se manifestado pela interrupção do programa –  esteja evitando acabar com o PECIM  para não aumentar o tensionamento com os militares, considerando o contexto de responsabilização dos envolvidos na tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro.  Somam-se a isso os ataques às escolas no último período, que mobilizaram o pânico nas famílias e junto aos profissionais de educação e reaqueceram o debate sobre o papel das forças de segurança pública nas instituições educativas”, explica Denise Carreira. 

Logo nos primeiros dias da gestão, o Ministério da Educação acabou com a diretoria responsável pelas escolas cívico-militares, vinculada à Secretaria de Educação Básica. Mas não revogou o PECIM, que continua vigente. Contatado pela reportagem, o MEC, via equipe de Coordenação Geral do Ensino Fundamental, informou que o PECIM “está em análise pela equipe técnica da Secretaria de Educação Básica, que apresentará ao Ministro de Estado da Educação suas conclusões a fim de subsidiar sua decisão a respeito da continuidade, revisão, reestruturação ou extinção do referido Programa”. No entanto, a Pasta não informou nenhum prazo para as próximas etapas. Também não houve nenhum movimento nesse sentido nas ações comemorativas dos 100 dias da gestão. A pergunta que fica é: qual o plano do MEC para o PECIM?

Como reverter a militarização?

No contexto dos recentes ataques às escolas brasileiras, algumas unidades da federação têm recorrido justamente à militarização como resposta ao crescente de violência. No estado de São Paulo, tramita um projeto de lei que permite que policiais militares de folga possam fazer a segurança armada das escolas públicas estaduais. No mesmo mês de abril, proposta similar foi apresentada pelo governador de Santa Catarina. Em nota, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação alerta que é preciso analisar a questão de forma mais profunda e que o debate sobre a falta de segurança e a violência nas escolas não pode se limitar a uma questão de segurança pública, devendo passar “pela discussão sobre o fim da militarização das escolas, sobre o desarmamento da sociedade, sobre a ausência do Estado na promoção de uma cultura de paz, de políticas públicas da saúde mental para sua população”. A Campanha também recomenda que as escolas criem parcerias com instituições que atuam na rede de proteção de crianças, adolescentes e jovens. 

Na avaliação de Vanda Santana, do Observatório de Escolas Militarizadas (OEM) do Paraná, a resposta pela via da militarização – o “caminho mais fácil” –  apenas reforça a raiz do problema:  “É justamente o movimento de impor regras comportamentais, da repressão, que leva a atos violentos. Aumentar a repressão vai fazê-los diminuir?”, questiona. “O processo da desmilitarização não é fácil, mas é necessário”. Denise Carreira, da Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação, reforça ainda que a segurança pública é um direito humano e constitucional, mas que não pode ser “a” resposta ao problema da violência nas escolas através de cerceamento e controle dos corpos. Ela aponta que, entre as muitas ações necessárias para enfrentar este problema, está a valorização das profissionais da educação para que tenham condições de vida e de trabalho adequadas e que sejam então estimuladas a se fixarem a uma única escola, superando a alta rotatividade, especialmente em territórios de extrema vulnerabilidade.  “Precisamos fortalecer as escolas garantindo menos estudantes por turma, mais professores concursados, equipes que consigam conhecer os estudantes, suas famílias e o território no qual a escola está inserida. Precisamos de um programa nacional de saúde mental robusto voltado para estudantes, famílias e profissionais de educação”, elenca ela. 

Mais de 200 entidades da sociedade civil compartilham do horizonte da desmilitarização da educação e a favor da vida e vêm pressionando o governo a tomar medidas concretas neste sentido. Em março, elas lançaram um manifesto conjunto demandando a revogação do PECIM e indicando uma série de propostas para dar fim ao processo de militarização. Entre a extensa lista de razões pela revogação do decreto do PECIM, estão: o programa não estar amparado pelo Plano Nacional de Educação (PNE); as inúmeras violações de liberdades de expressão, de organização e de associação sindical dos professores; o fato de que militares não estão no rol de profissionais autorizados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional a atuar na gestão das escolas ou em qualquer outra função típica dos trabalhadores da educação; e de que a militarização fere princípios constitucionais do ensino, como a liberdade de aprender e ensinar, o pluralismo de ideias, a valorização de profissionais da educação e a gestão democrática, além de ferir o respeito à identidade e à diversidade individual e coletiva da juventude (Estatuto da Juventude, art. 2º, inciso VI).

Por outro lado, as ações propostas para reverter a desmilitarização incluem: Elaborar políticas públicas nas áreas da convivência e gestão democrática na escola; Retomar planos e programas para educação em direitos humanos; mobilizar campanhas de estímulo à mudança de nomes de escolas públicas vinculadas a personagens das ditaduras militares e da colonização violenta do país; propor medidas de justiça de transição para superação do legado autoritário do Brasil; convocar o CNE a se manifestar sobre a incompatibilidade entre os processos de militarização da escola pública e as diretrizes da educação básica do país. 

A professora Catarina de Almeida Santos ressalta que este processo deve ser liderado pelo Ministério da Educação, embora em articulação com outros órgãos e ministérios. “Este papel [de capitanear a agenda de desmilitarização] é da União. Ainda que estados e municípios continuem, o governo federal mostra ação e pode tomar uma série de medidas jurídicas e orçamentárias. Se Bolsonaro pode impulsionar a agenda, Lula pode reverter”, resume. 


Semana de Ação Mundial 2023 abre inscrições para a maior atividade pela educação do planeta

Inscrições para a Semana de Ação Mundial 2023 são prorrogadas até 28 de maio

A 20ª Semana de Ação Mundial, maior ação coletiva em prol da educação do planeta, vai acontecer entre os dias 19 e 26 de junho e está com as inscrições abertas até 28 de maio!

De 2003 a 2022, a Semana já mobilizou mais de 90 milhões de pessoas em todo o mundo, sendo cerca de 2 milhões de pessoas apenas no Brasil.

Como acontece a cada edição, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, como realizadora da SAM, fará o envio gratuito de materiais e certificados para as/os participantes.

INSCREVA SUA ATIVIDADE JÁ: A DISTRIBUIÇÃO DE MATERIAIS IMPRESSOS É LIMITADA ÀS 1.000 PRIMEIRAS INSCRIÇÕES!

As inscrições para realizar uma atividade da SAM 2023 e para receber os materiais impressos gratuitamente pelos correios podem ser feitas neste link. Haverá certificado de participação mediante envio de relatório das atividades realizadas. Veja mais informações abaixo.

A 20ª Semana de Ação Mundial, maior ação coletiva em prol da educação do planeta, vai acontecer entre os dias 19 e 26 de junho e está com as inscrições abertas até 28 de maio!

Novo PNE e descolonização do financiamento da educação!

Com o tema Descolonização do financiamento da educação e o último ano do Plano Nacional de Educação (2014-2024), a SAM 2023 vai promover a participação democrática e a mobilização popular em torno da renovação do PNE, mostrando a importância da atualização da Lei do PNE sem retrocessos, com ousadia para a garantia de uma educação pública de qualidade a todas as pessoas. 

Descolonizar o financiamento significa que os Estados devem financiar a educação, e devem fazê-lo usando o máximo de recursos disponíveis, sejam eles recursos internos contínuos (PIB, impostos, empréstimos) como externos (cooperação internacional), bem como aquelas que possivelmente poderiam ser mobilizados (através de uma reforma tributária progressiva e outras reformas). Saiba mais na página “O que defendemos?”.

Com uma série de materiais disponíveis no site, como o Manual da SAM 2023 (a ser disponível em breve), a SAM propõe temas a serem trabalhados em atividades autogestionadas realizadas por professores, famílias e responsáveis, e estudantes, toda a comunidade educacional, gestores, conselheiros, tomadores de decisão e todas as pessoas preocupadas com a garantia do direito à educação. 

Plano Nacional de Educação

Os dias de evento também incluem a data de aniversário do Plano Nacional de Educação (PNE), dia 25 de junho de 2014, quando foi sancionado (Lei 13.005/2014). Assim, a SAM brasileira continua dedicada ao monitoramento da implementação do PNE, que é o nosso principal caminho para que toda a população brasileira possa ter acesso a uma educação pública de qualidade, da creche à universidade.

Este é o último ano do PNE. É também neste ano que o governo federal terá de enviar ao Congresso Nacional um novo Projeto de Lei com o PNE para o próximo decênio — o atual finda sua vigência em junho de 2024. 

Junto com os materiais disponibilizados no site da SAM, haverá a divulgação de uma série de cartelas do Balanço do PNE, que atualiza diversos dados educacionais e aponta patamares de cumprimento e, infeliz e especialmente, de descumprimento de cada uma das 20 metas do PNE. É também um valioso material para as atividades realizadas. Estamos na reta final do período para o cumprimento das metas (2014-2024) e ainda nenhuma delas foi integralmente cumprida.

Inscreva-se na SAM 2023

Para participar, acesse o portal da SAM 2023 e baixe os materiais digitais de divulgação virtual para já começar a mobilização para suas atividades. Basta acessar a aba “Materiais”. Em breve, disponibilizaremos também o Manual da SAM 2023 e mais subsídios.

Assim que realizar as atividades, o participante deve postar as fotos, vídeos e relatos! Assim como divulgar nas redes sociais usando as hashtags #SAM2023, #DescolonizaFinanciamento, #PNEpraValer e #SemRetrocessoComOusadia.

Certificado

Para receber um certificado de participação, a/o participante deve preencher o formulário no site semanadeacaomundial.org, indicando as atividades que pretende realizar com os materiais de apoio.

Logo após a Semana de Ação Mundial, a/o participante deve escrever um breve relatório das atividades realizadas, informando também o número de pessoas mobilizadas – anexando fotos e vídeos, autorizando ou negando sua divulgação. Para mais informações, escreva para sam@campanhaeducacao.org.br.

Realização

Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Comitê Técnico da SAM 2023

Claudia Bandeira – Ação Educativa
Ana Paula Brandão – ActionAid
Liz Ramos – Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF)
Nesly Lizarazo – CLADE – Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação
Guelda Andrade – CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação
Liliane Garcez – Coletivxs
Luana Rodrigues  – Escola de Gente – Comunicação em Inclusão
Nelson Cardoso Amaral / Rubens Barbosa de Camargo – Fineduca – Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação
Thais Martins – Mais Diferenças
Ingrid Ribeiro – REPU – Rede Escola Pública e Universidade
Gilvânia Nascimento – UNCME – União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação

Jhonny Echalar – Comitê GO da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Jhonatan Almada – Comitê MA da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação  

Maria Lima – Comitê MS da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação  

Felipe Baunilha – Comitê PB da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação  

Sandra Teresinha  – Comitê PR da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação  

Rita Samuel – Comitê RN da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação  

Walterlina Brasil – Comitê RO da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação  

Angelita Lucas – Comitê RS da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação  

Darli de Amorim Zunino – Comitê SC da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação  Raquel Maria Rodrigues – Comitê SP da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Jhonny Echalar – Comitê GO da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Apoio

Campanha Global pela Educação
CLADE – Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação
Trindade Tecnologia

Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Ação Educativa
ActionAid
Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF)
Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA-CE)
Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE)
Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca)
Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (Mieib)
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Rede Escola Pública e Universidade (Repu)
União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme)
União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime)

ASSESSORIA DE IMPRENSA

Renan Simão – assessor de comunicação da Campanha Nacional pelo Direito à Educação
comunicacao@campanhaeducacao.org.br
(11) 95857-0824 




Uma reforma irreformável: por que o novo Ensino Médio precisa ser revogado

Aprovado no governo Temer e implementado desde o ano passado, modelo acirra as desigualdades educacionais e pode aumentar a evasão escolar

Estudantes protestam desde 2016 contra o Novo Ensino Médio, que acirra desigualdades educacionais. Na foto, protesto em São Paulo em 2016. Deniel Mello/Agência Brasil

Texto: Nana Soares | Edição: Claudia Bandeira

Estudantes com um número ainda maior de disciplinas, mas frequentemente sem aulas porque não há professores para ministrá-las. Estudantes trabalhadoras/es, com mais dificuldade para acompanhar a carga horária, passam a assistir aulas no celular, ou sem professor, ou exibidas em uma televisão. Disciplinas obrigatórias e exigidas nos vestibulares, como Geografia, Sociologia e Física, passam a ser quase uma raridade, substituídas por disciplinas como culinária, empreendedorismo ou mídias sociais. Docentes, para cumprir sua carga horária, são obrigados a lecionar áreas ou temas para os quais não têm formação. O acesso ao Ensino Superior fica ainda mais distante. 

Este é o retrato do Novo Ensino Médio nas escolas públicas brasileiras, que representam 80% das matrículas em todo o país. O “Novo” Ensino Médio (NEM, Lei 13.415/2017, que vem da Medida Provisória 746/2016) começou a ser implementado em 2022 e os retrocessos trazidos por ele ficaram logo evidentes. “O NEM é basicamente uma reforma curricular, e no entanto é vendido como a solução para todos os problemas dessa etapa de ensino. É como se não houvesse historicamente uma dificuldade da universalização da educação básica, do acesso, permanência e qualidade. É uma solução barata e que não mexe nos problemas estruturais. Pelo contrário, devolve esses problemas para as escolas e para as professoras de maneira ainda mais complexa”, argumenta Débora Goulart, professora da Unifesp e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU).

Instituído por Medida Provisória, sem debate com estudantes, professoras e profissionais da educação, o “Novo” Ensino Médio aumenta a carga horária de 800 para 1.400 horas anuais e inclui a oferta de itinerários formativos, dando ênfase na formação técnico-profissional, com itinerário específico para esse fim sob a justificativa de que isso aumentaria o interesse das e dos estudantes pela escola e faria com que caísse a evasão dessa etapa de ensino. Mas, adotada no contexto das medidas de austeridade do governo Temer, a reforma nunca veio acompanhada de aporte de recursos – pelo contrário, já que a Educação sofreu cortes orçamentários sucessivos desde 2015 -, e logo se mostrou incompatível com um projeto de Educação pública de qualidade para todas e todos. 

As novas regras acabam por agravar as desigualdades educacionais, pois não garantem as condições de oferta de todos os itinerários em todas as escolas, dificultam o acesso à educação formal de jovens que trabalham, afasta estudantes de redes públicas do ensino superior, entre outros aspectos. O acirramento das desigualdades ocorre não apenas entre as redes pública e privada, mas também dentro da rede pública, já que a oferta dos conteúdos depende das condições das unidades educacionais e das redes de ensino. 

“Defendo a revogação da Reforma do Ensino Médio porque ela elitiza ainda mais a educação. Os alunos dos colégios privados têm toda a formação básica e ainda têm o privilégio de acessar aulas complementares de tudo que se possa imaginar, enquanto os estudantes das escolas públicas estão tendo defasagens na sua formação, aulas vagas e dificuldades para, por exemplo, utilizar o ENEM como possibilidade de acesso ao ensino superior”, defende a deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP). 

Um estudo da REPU de junho de 2022, por exemplo, já mostrou que no estado de São Paulo a falta de professores para cumprir os itinerários formativos fazia com que os estudantes da rede pública tivessem o equivalente a um dia letivo a menos de aula por semana – ou 1,5 dia no caso de estudantes dos períodos vespertino ou noturno, onde em geral se concentram aqueles/as que trabalham. 

Apesar do curto tempo de implementação, os fracassos do modelo já são evidentes, e até mesmo seus defensores iniciais admitem sua inviabilidade e defendem uma “reforma da reforma”. Por outro lado, estudantes, comunidades escolares, entidades e movimentos comprometidos com a defesa da educação pública de qualidade para todas e todos capitaneiam o crescente movimento pela sua completa revogação. Esse foi um compromisso de campanha do presidente Lula, mas o Ministério da Educação ainda não defendeu a revogação abertamente. Até o momento, a principal pressão vem da sociedade civil e do legislativo

O que mudou com a Reforma e o que isso significa?

No “Novo” Ensino Médio (NEM), as disciplinas passam a ser agrupadas nas quatro áreas do conhecimento previstas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) –  Linguagens, Ciências da natureza, Ciências humanas e sociais, e Matemática -, e as e os estudantes deixam de ter um único itinerário comum no Ensino Médio. Sessenta por cento da carga horária deve ser comum, mas os outros 40% vão depender dos itinerários formativos, que teoricamente ficam à escolha dos jovens com base em seu interesse, e que podem ser das 4 áreas de conhecimento previstas na BNCC, de ensino técnico, ou uma combinação de mais de uma área. O NEM aumenta a carga horária mínima de aulas, mas somente Português e Matemática permanecem obrigatórios em toda a etapa. Além disso, há o “Projeto de Vida”, ferramenta que deve ajudar as e os estudantes a escolher seus itinerários a partir de diálogos com educadores. 

O problema é que as escolas que conseguem de fato ofertar isso aos estudantes e com qualidade são a exceção e não a regra no país. É consenso entre diferentes agentes das comunidades escolares que as alunas e alunos estão tendo menos aula do que antes, apesar do suposto aumento da carga horária. Além disso, o modelo não foi construído ou sequer debatido junto às comunidades escolares, jovens e à população, não injetou novos recursos na educação pública e tem sido implementado sem diálogo e às pressas. O resultado é que o tiro sai pela culatra: se o objetivo é aumentar o interesse pela escola, a evasão pode aumentar justamente entre a população mais pobre. Se é oferecer educação profissionalizante, essa não cumpre a carga horária suficiente para um diploma, mas sua inserção retira as disciplinas que caem em vestibulares. Ou seja, o novo Ensino Médio agrava o cenário já devastador de antes e vai na contramão de suas próprias justificativas. 

Como relata Catherine da Silva Costa, que a partir do segundo ano do EM teve as aulas no novo modelo, “ir embora duas horas mais cedo ou ter o Projeto de Vida era a mesma coisa”. Ela, estudante da rede pública de São Paulo/SP, fez o itinerário formativo na área de Mídias, mas relata que não foi exatamente uma escolha, já que a oferta de opções era restrita. “No itinerário de Tecnologia e Inovação, os professores é que pediam ajuda para os alunos. E não é culpa deles, que não tiveram qualquer preparo para esse modelo”, diz ela. 

Essa experiência é corroborada por Vanessa Cândida, professora de Sociologia da rede estadual de São Paulo. Em sua vivência, o novo Ensino Médio tem desestimulado estudantes e docentes. Professoras e professores porque suas disciplinas de formação tiveram carga reduzida e, para cumprir suas cargas horárias, as e os profissionais acabam tendo que ensinar temas para os quais não têm formação. Vanessa dá como exemplo um caso na escola que leciona: o itinerário formativo de jornalismo ficou sob responsabilidade do professor de Educação Física, que, para poder trabalhar com algo que lhe era familiar, passou a lecionar práticas corporais. Ou seja, estudantes de Jornalismo não tinham, de fato, as aulas que pensaram que iam ter ao fazer essa “escolha”. “E pense que um profissional pode pegar 3 ou 4 disciplinas diferentes, de vários anos diferentes, então a sobrecarga também vem nesse sentido”, diz Vanessa. Situação que pode ser ainda mais grave caso a escola não tenha profissionais suficientes, tendo que deixar os/as alunos/as sem aula. 

Sob a reforma, a estudante Catherine, que estudava no período noturno, tinha apenas uma aula de Geografia por semana, em contraponto às duas de Mídias que, segundo ela conta, limitavam-se a ler e interpretar textos. Mudança de currículo que foi sentida inclusive no ENEM, onde ela avalia que teve prejuízos. “Foi um sentimento generalizado, todos da minha turma sentiram a diferença comparando com o modelo antigo. E não estamos nem falando de escola particular, mas de outras escolas estaduais mesmo, que estavam muito à nossa frente”, alerta. 

Vale lembrar que durante a pandemia o ENEM foi o mais branco e elitista da história, já que muitos estudantes negros, indígenas ou mais pobres se sentiram desencorajados a fazer a prova dada a precariedade do ensino no período. Fator que pode se tornar uma constante com o novo Ensino Médio. “Pense em um contexto que os itinerários não têm professores, o número de matérias se multiplicou, adicionando muita pressão nos alunos, e vindo de um contexto de pandemia. Muitos alunos nem foram fazer o ENEM”, relata a professora Vanessa Cândida, para quem fica evidente o processo de expulsão escolar, especialmente para estudantes pobres, negras e negros, trabalhadoras e trabalhadores dentro e fora do espaço doméstico. “E esse é um outro ponto da reforma: [ao aumentar a carga horária] ela ignora que os e as estudantes têm vida e outras demandas além da escola”.

Mas isso não significa que os conteúdos científicos sejam a prioridade, já que o Novo Ensino Médio diminuiu justamente essas disciplinas em detrimento de outras mais mercadológicas. “O que vemos é uma grande miscelânea de conteúdos voltados para o chamado saber fazer, para a aplicabilidade no mercado. Não há sequer problema em dizer que tudo bem não aprender, por exemplo, Física, porque não vai usar para nada. Ou seja, é ofertar menos conteúdo e menos conhecimento, é deixar a escola mais precarizada e o professor mais enlouquecido por ter que dar aula de algo que não sabe o que é. É uma reforma irreformável”, resume Débora Goulart. 

Mas revogar significa voltar para o que era?

Não. Ao menos não se os Poderes fizerem agora o que não fizeram em 2016/17: fomentar um amplo debate com estudantes, professoras e profissionais da educação e consulta popular para a construção de um novo modelo que, de fato, faça sentido e possa começar a corrigir os problemas existentes nessa etapa de ensino. O ponto é que não é possível fazer isso sem revogar o novo modelo vigente. 

“Se não interrompemos a reforma agora podemos cristalizar um projeto de crueldade de dar menos escola para quem mais precisa”, resume Debora Goulart, da Unifesp e da REPU, que alerta que ainda há tempo sim de revogar o Novo Ensino Médio. “Talvez a mudança do ENEM, isto é, a adaptação da prova a esse modelo, é que seja o ponto de não retorno. Revogar agora significa estancar o processo de deterioração do ensino médio e reconduzi-lo para seu caráter de aprofundamento da ciência e da cultura e que pode sim ter elementos da cultura local e do interesse da comunidade, desde que isso seja construído pela própria comunidade”, complementa. Em suma: a ideia não é voltar para o que estava ruim, mas sim parar, com urgência, o que está ainda pior e então de fato avançar para um novo modelo. 

“A revogação é um ponto de partida, é o mínimo para que a gente consiga debater de fato a qualidade no Ensino Médio no Brasil” – Sâmia Bomfim (PSOL-SP). 

E na prática, é possível revogar? O que posso fazer? 

Sim. Há projetos de lei em tramitação propondo a revogação do NEM, como o PL 10682/2018, do Deputado Bacelar (Podemos-BA) – e um dos caminhos é a aprovação de um desses projetos. Eles podem ser votados em caráter de urgência pelas casas do Congresso e, se aprovados, basta a sanção do Presidente da República. Se seguirem a tramitação tradicional, tramitam antes nas Comissões correspondentes para depois irem à votação no plenário. 

 Neste processo, a pressão da sociedade civil é parte fundamental. Atualmente, há um abaixo-assinado (https://nossaluta.com.br) com mais de 120 mil assinaturas organizado pelo deputado Glauber Braga (PSOL-RJ), e que deve ser utilizado como instrumento de pressão no Congresso e junto ao Ministério da Educação. Quem quiser se envolver nesta luta pode começar assinando e compartilhando este abaixo-assinado, bem como pressionando os parlamentares de seu estado “porque é na ponta que as articulações têm o maior impacto”, lembra a deputada Sâmia Bomfim. 

ASSINE AQUI O ABAIXO-ASSINADO PELA REVOGAÇÃO DO NOVO ENSINO MÉDIO

Estudantes demandam discussões sobre gênero, raça e sexualidade na escola

Projetos elaborados por estudantes comprometidos com um Ensino Médio de qualidade reforçam a necessidade da abordagem das agendas, apesar de resistências da comunidade escolar

Projetos elaborados por estudantes comprometidos com um Ensino Médio de qualidade reforçam a necessidade da abordagem das agendas, apesar de resistências da comunidade escolar
Arte: Dillasete

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira 

Se desde 2013, nas discussões sobre o atual Plano Nacional de Educação (PNE), setores conservadores tentam retirar a discussão de gênero das escolas, as comunidades escolares, especialmente estudantes, nunca deixaram de pautar e reivindicar as agendas que consideram primordiais no ambiente escolar, ainda que encontrem resistência. Prova disso são as formações de redes contra a censura na educação e as muitas iniciativas estudantis que seguem demandando discussões sobre gênero, raça e sexualidade para promover o respeito com todas as pessoas, prevenir violências e avançar na melhoria da qualidade educacional. 

Algumas dessas iniciativas se inscreveram e foram contempladas pelo Edital “EM LUTA – Estudantes por um Ensino Médio de Qualidade!”, promovido pelo projeto Tô no Rumo, da Ação Educativa, em 2022. Nelas, estudantes da grande São Paulo receberam apoio para levar suas demandas para a escola pública: organizaram palestras, oficinas, slams e debates, muitas vezes sem o apoio da diretoria ou coordenação pedagógica. E reafirmaram que escola é sim um espaço para combater o racismo, sexismo e a LGBTfobia.  

O projeto “Lute como uma garota” é um exemplo da persistência das estudantes. Duas alunas do terceiro ano do Ensino Médio, com base em experiências pessoais e de outras meninas dentro da escola, viram a urgência de debater e combater o assédio sexual e moral, principalmente contra jovens negras. Em 2022, conseguiram organizar 3 dias de palestras sobre gênero, raça e sexualidade, realizadas por uma facilitadora externa, além de fazer intervenções pela escola (no Jardim Varginha/SP) com informações sobre legislação e sobre como procurar ajuda em caso de violência, inclusive psicológica. 

“Dar início ao projeto foi bem difícil, e acabamos atrasando porque a direção, apesar de formalmente apoiar o projeto, resistiu muito. Nós apresentamos o projeto em todas as reuniões com os professores, além da direção, e o diretor não estava presente para apoiar. Mas depois que conseguimos realizar a primeira palestra correu com mais facilidade”, relata Bianca*, de 18 anos, uma das idealizadoras do “Lute como uma garota”. 

Em contrapartida, tanto as alunas e alunos impactados pela iniciativa como o corpo docente demonstraram grande aceitação. “A resistência veio justamente daqueles que praticavam assédio, mas foi uma minoria”, conta Bianca. Os três dias de oficina, segundo ela, fomentaram e muito a discussão sobre assédio na escola – um problema que partia de professores ou funcionários contra alunas, mas também de alunos contra professoras. A questão era tão presente na escola que até mesmo alunos do ensino fundamental fizeram parte do projeto (as conversas com esse público tiveram linguagem e conteúdo adaptado para a faixa etária e etapa). Uma intervenção que se mostrou tão necessária que mesmo que as idealizadoras do projeto tenham concluído o Ensino Médio em 2022, a comunidade escolar se movimenta para dar seguimento ao “Lute como uma garota”. 

Já em uma escola estadual de Sumaré, quatro estudantes do segundo ano do EM interviram para trazer discussões de autoconhecimento e educação sexual para os colegas. “Percebia que a falta de autoconhecimento e de conhecimento sobre essas questões estava atrapalhando as relações sociais dentro da escola. Notamos que no local onde mais temos interações sociais, éramos reprimidos”, lembra Julia*, que idealizou o projeto “Em busca do seu eu”. A iniciativa tinha o objetivo de falar abertamente sobre raça, igualdade de gênero, orientação sexual, capacitismo e temas correlatos, a fim de acolher estudantes, trabalhar a autoestima e incentivar uma cultura de respeito e de combate a preconceitos e discriminações. 

Neste caso, planejar foi a parte fácil. Difícil foi vencer a resistência de pais e responsáveis em tocar no assunto. Foram, por exemplo, veementemente contra a distribuição de um kit de prevenção a ISTs e gravidez, e conseguiram vetar a iniciativa. Ou melhor, a própria escola achou melhor vetar com medo das represálias. “Tivemos que ter esse cuidado por conta da resistência da comunidade escolar, que não permitiu que fizéssemos tudo que estava originalmente previsto”, conta Julia. Ela, que inscreveu mais de um projeto no Edital, conta que o “Em busca de seu eu”, por tratar de temas tabus, era sempre visto com algum medo, desconfiança ou “pé atrás”. Mas ainda foi possível concretizar várias ações: levaram uma psicóloga para falar com as/os/es estudantes, fizeram gincanas de autoconhecimento, trabalharam as emoções, realizaram uma intervenção artística e distribuíram a cartilha “Por que discutir gênero na escola?”. 

“A palestra da psicóloga foi muito boa, especialmente porque fazia tempo, por conta da pandemia, que não tínhamos essa atividade presencial. No fim, tanto estudantes como familiares gostaram. A apresentação da artista Lila May foi muito interativa, e foi seguida por uma roda de conversa sobre como as mulheres são tratadas na sociedade e na escola”, relembra Julia. A estudante, agora no último ano do Ensino Médio, avalia que o projeto foi bem-sucedido com base no retorno das/dos/des jovens e também da equipe da escola, que, segundo ela, começou a tocar mais nestes assuntos. O professor de biologia do Ensino Médio, por exemplo, viu na iniciativa a deixa perfeita para falar de educação sexual e prevenção a ISTs nas aulas. “Mostramos que dá para abordar um assunto ‘pesado’ para a comunidade escolar. Faltava alguém colocar a ideia na mesa para as pessoas abraçarem”, resume a estudante. 

Essa conclusão vai inteiramente ao encontro do que mostrou a pesquisa “Educação, Valores e Direitos”, realizada em 2022 pelo Centro de Estudos em Opinião Pública (Cesop/Unicamp) e coordenada pela Ação Educativa e pelo CENPEC. Os resultados deste amplo estudo, que ouviu mais de 2.000 pessoas de 16 anos ou mais em todas as regiões do país, mostram que, na verdade, a população brasileira apoia a discussão sobre gênero, raça e sexualidade na escola, bem como tem opiniões progressistas em relação à militarização das escolas e à educação religiosa. Por exemplo, sete em cada dez entrevistados acreditam que a escola está mais preparada que os pais para explicar temas como puberdade e sexualidade, e nove em cada dez concordam que a discriminação racial deve ser debatida pelos professores. Quase 90% de quem respondeu à pesquisa concorda com a discussão sobre desigualdades entre homens e mulheres e quase 80% concorda que os pais não devem ter o direito de tirar seus filhos da escola e ensiná-los em casa. E o apoio da população à abordagem da igualdade de gênero e da educação sexual se torna ainda maior quando esse termo é concretizado em questões como o enfrentamento ao abuso sexual contra crianças e adolescentes e a violência contra mulheres.

“Uma das grandes contribuições da pesquisa é evidenciar o poder da vivência cotidiana para tensionar e, muitas vezes, desmontar discursos conservadores”, ressalta Denise Carreira, professora da Faculdade de Educação da USP/SP que coordenou a pesquisa pela ONG Ação Educativa e integrante da Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala. “Na perspectiva da educação popular, constatamos que quando aterrissamos o debate em experiências das pessoas em suas famílias e comunidades, as posições muitas vezes mudam. Posições contrárias às agendas de direitos humanos são repensadas quando se ativa casos concretos que mostram como, por exemplo, a educação sexual integral tem um papel decisivo na prevenção de casos de abuso sexual de crianças e adolescentes. Há complexidade, contradições e brechas que favorecem a retomada e o fortalecimento de uma agenda comprometida com a educação em direitos humanos, uma educação em prol da igualdade de gênero, raça e sexualidade, que estimule uma perspectiva crítica frente às nossas profundas desigualdades e à história autoritária e violenta do país”, completa. 

O projeto “Diversidade e inclusão na prática: educação igualitária e de qualidade para todos”, executado em uma escola em Poá/SP, é ilustrativo dessa complexidade. Proposto pelo coordenador pedagógico em parceria com alunas do segundo ano do ensino médio, tinha como objetivo promover a reflexão da comunidade escolar sobre temas urgentes como racismo, homofobia, diversidade de gênero, inclusão, violência, intimidação, saúde mental e qualidade da educação, especialmente considerando o contexto de retorno às aulas presenciais pós pandemia de COVID-19 e da reforma do Ensino Médio. Mais uma vez, familiares e responsáveis se opuseram à iniciativa, que tinha boa aceitação entre os corpos docente e discente. A tentativa de coação chegou a tal ponto que o projeto foi “denunciado” para o mandato da deputada Carla Zambelli, que enviou um e-mail para a escola acusando-a de “ideologia de gênero” e de tentar “doutrinar” estudantes. Felizmente, a escola não embarcou na tentativa de represália e o projeto seguiu mesmo assim. 

“Nós pensamos no projeto para tentar abrir a cabeça dos alunos, para ter uma visão mais abrangente sobre o que é viver em sociedade”, define Patrícia*, uma das idealizadoras do projeto. “Tínhamos muitas denúncias de brincadeiras de mau gosto ou ações violentas contra alunos da comunidade LGBTQ, por exemplo. E achamos que um dos motivos disso é a falta de informação ou de iniciativa da escola de ensinar sobre isso”, explica ela, que ressalta que nenhuma dessas agendas constava na nova grade da escola de acordo com o Novo Ensino Médio. “Esse modelo está sendo horrível. O que vemos é só uma sobrecarga dos professores, isso quando há professores. Eu escolhi o percurso de artes, mas não tive uma única aula de artes no ano porque não havia professores. Tentaram colocar mais coisa onde não se tem o básico”, critica. 

Neste contexto, as ferramentas encontradas pelo projeto para suscitar o debate foram a realização de palestras participativas, uma excursão até a USP e uma batalha de slam – com participação de uma slammer LGBT convidada para disparar a reflexão, intervenção que deu tão certo que não se encerrou com o projeto. As denúncias de agressão dentro da escola diminuíram, alguns alunos pediram desculpas por comportamentos passados e, segundo Patrícia, algumas “piadas” ou “brincadeiras” pararam. 

Ou seja, mesmo em contextos adversos é possível pensar em soluções e iniciativas para discutir temas urgentes na escola – e as estudantes mostram que querem falar sobre isso. E que tais intervenções podem sim fazer a diferença. Como ressalta Denise Carreira, da FEUSP e rede Malala, “os coletivos e movimentos juvenis têm sido decisivos por alimentar esse debate no cotidiano escolar, pressionando às escolas, às universidades e às políticas educacionais a transformarem seus currículos. Têm sido decisivos por empurrar estas agendas pra frente em um contexto adverso, caracterizado por ataques diversos à laicidade de Estado e pela censura e grande autocensura nas escolas. Precisamos que a política educacional reconheça as demandas, as propostas e acúmulos juvenis e estudantis, em articulação com o estímulo e a valorização de experiências promovidas por coletivos docentes, com a urgente retomada de políticas de formação para profissionais de educação sobre essas agendas. A política educacional precisa enfrentar a atmosfera de medo e insegurança nas escolas, decorrente da ação de grupos ultraconservadores, afirmando a necessidade fundamental da retomada e fortalecimento do debate sobre gênero, raça e sexualidade em creches e escolas”.

*Os nomes das estudantes foram alterados para sua proteção. 

Os grandes desafios para a educação no governo Lula

Abandonado e inviabilizado desde o golpe de 2016, PNE volta ao horizonte na transição do governo. Desafio é revogar medidas de austeridade que o sufocaram

Movimentos sociais e entidades da Educação reúnem-se na CONAPE 2022, em Natal, em defesa da educação pública, democrática, laica inclusiva e de qualidade para todas e todos. Foto: Jordana Mercado/CNTE

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

O novo governo Lula ainda não começou, mas tem inúmeros e urgentes desafios pela frente. Em todas as áreas, como apontam os boletins do gabinete de transição, o cenário deixado por Bolsonaro é de terra arrasada. A educação não apenas é um dos campos mais afetados pelos cortes orçamentários, mas também sofre com a ausência  da participação social e da gestão democrática. No centro dessa tempestade, um completo abandono do Plano Nacional de Educação (PNE) que, embora tenha vigência até junho de 2024, nunca norteou as políticas educacionais do atual governo – e desde o golpe parlamentar de 2016 tem sido, na prática, descontinuado pelas sucessivas políticas de austeridade.

O primeiro relatório da equipe de Educação do gabinete de transição corrobora essa percepção. De acordo com o colegiado, o Ministério da Educação (MEC) durante o governo Bolsonaro “perdeu protagonismo na execução orçamentária de programas, ações e investimentos” e teve sua condução marcada pela “inaptidão técnica, aversão ao diálogo e improviso”. O relatório, entregue no dia 30 de novembro com diagnósticos e recomendações para o novo governo, não é público (os trechos acima foram obtidos pelo G1), e um novo documento ainda deve ser entregue durante o mês de dezembro. “A Comissão de Transição tem como objetivos fazer um diagnóstico da situação em cada área e propor ações imediatas que o governo pode fazer logo após a posse. Mas não é possível ter certeza de que as recomendações serão acatadas, porque elas ainda precisam ser aprovadas pela Coordenação Geral, que filtra o que é ou não encaminhado ao novo governo que, por sua vez, também dá seu aval sobre colocar a recomendação em prática ou não”, explica Heleno Araújo, Presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e membro da equipe de transição em educação. Ou seja, ainda há muito espaço para disputa das pautas. 

“As agendas prioritárias se dividem entre aquelas a serem recolocadas na centralidade e voltarem a avançar, como o PNE, regulamentações e orçamento, e aquelas a serem revogadas  – como o Teto de Gastos e novo Ensino Médio”, resume Andressa Pellanda, coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que também destaca a centralidade das pautas de recomposição do orçamento e recuperação dos impactos da pandemia de Covid-19. Heleno também destaca a defesa intransigente do uso de recursos públicos para a educação pública. “Todos os atores que quiserem contribuir são bem-vindos, mas não podem receber dinheiro público. Não podemos continuar com a política de entregar as escolas públicas ao setor privado, aos militares da reserva, às famílias”, reforça. “Precisamos retomar o Plano Nacional de Educação como epicentro das políticas educacionais do nosso país”. 

Outros pontos abordados no primeiro relatório já entregue foram a redução de recursos para as políticas educacionais e o desmonte de programas como o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), o Programa Universidade Para Todos (Prouni) e o Proinfância. O gabinete de transição na área converge também em reverter projetos ultraconservadores da agenda de Bolsonaro, como a educação domiciliar e a militarização. 

Mas, apesar dos muitos consensos, a composição heterogênea do GT reflete as disputas do campo e são um prenúncio de que a luta por uma educação pública, gratuita, laica e de qualidade para todas e todos seguirá no novo governo. Tópicos como o Sistema Nacional de Educação (SNE), o Custo Aluno-Qualidade (CAQ) e a revogação da Emenda Constitucional 95 (EC 95, do Teto de Gastos) e do Novo Ensino Médio continuarão em disputa, bem como a urgência em assegurar os mecanismos de participação e controle social. “Pelo cenário posto na Transição e frente ampla de coalizão formada ao redor de Lula, com inclusão de representações do campo empresarial que gestaram e sustentaram as reformas de Estado e na área da educação desde Temer, vejo com preocupação como serão encaradas essas agendas, já que apoiam tais reformas”, alerta Andressa. “Desde antes de começar o novo governo já estamos vendo que o reformismo neoliberal não deve ser deixado tão enfaticamente quanto deveria para a retomada da centralidade das políticas sociais com financiamento adequado e gestão democrática”, completa. 

Centralidade do PNE e financiamento da educação pública

Como a Iniciativa De Olho nos Planos vêm reportando ao longo de anos, a mais importante política educacional brasileira e fruto de anos de debates com intensa participação social, foi escanteada no governo Bolsonaro. O último monitoramento da Campanha Nacional pelo Direito à Educação mostrou que 86% das metas e indicadores não serão cumpridas até o fim da vigência do PNE se o ritmo atual for mantido. E além do descumprimento há metas em retrocesso. Ou seja, retomar a centralidade dos Planos no próximo mandato é primordial para o país voltar a avançar em educação e reduzir as desigualdades educacionais e sociais.

O Plano Nacional de Educação (PNE, Lei 13.005/14) aprovado em 2014 após acirrada tramitação no Congresso foi uma vitória da sociedade civil e dos movimentos sociais da área da Educação, sublinhando a importância do planejamento educacional, orientando o investimento e a gestão, além de referenciar o controle social e a participação cidadã. Mas começou a ser esvaziado já em 2015 com medidas de ajuste fiscal do segundo governo Dilma. E a aprovação da EC 95 em 2016, que constitucionalizou os cortes orçamentários por 20 anos, inviabilizou qualquer progresso real, já que sem novos recursos é impossível cumprir várias das metas do PNE que preveem, por exemplo, aumento de matrículas. Fora o efeito em cascata do descumprimento da meta 20,  que ​​versa sobre a ampliação do investimento público em educação pública. O resultado deste abandono é que persistem as desigualdades educacionais entre brancos e negros no país, bem como as desigualdades regionais e disparidades entre rede pública e privada. 

A boa notícia é que a proposta de governo de Lula para seu terceiro mandato não apenas mencionava a retomada do PNE, mas também a necessidade de investir em educação de qualidade e de revogar o Teto de Gastos. Uma preocupação ausente, por exemplo, na proposta da então candidata Simone Tebet, que agora compõe um dos GTs da equipe de transição. Lula também prometeu assegurar a continuidade das políticas de cotas sociais e raciais na educação superior e nos concursos públicos federais, bem como sua ampliação para outras políticas públicas. Um ponto de atenção é que sua proposta não cita as Leis 10.639/03 que completará 20 anos em 2023, e a 11.645/08, que tornaram obrigatório o ensino e a cultura africana, afrobrasileira e indígena em todas as escolas públicas e privadas do Brasil. Isso evidencia o enorme desafio no reconhecimento do racismo como estruturante das desigualdades no país. 

Apesar da aprovação do Novo Fundeb no final de 2021 com aumento da contribuição da União ao Fundo, o novo governo deve se atentar à regulamentação do VAAR (Valor Aluno Ano por Resultado) no Fundeb como ponto estratégico de entrada da luta contra o racismo no financiamento. Assim, a distribuição de 2,5% da complementação da União deve ser feita conforme indicadores de atendimento e melhoria da aprendizagem que visem reduzir as desigualdades nos termos do  Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SINAEB), incorporando dimensões e processos avaliativos que envolvam a participação das comunidades escolares e captem desafios referentes às desigualdades educacionais, aos insumos (CAQ) e aos processos pedagógicos. 

E além do desafio de retomar a centralidade do atual PNE, o terceiro mandato de Lula abarcará o período final de sua vigência, tendo ainda que construir e propor um novo Plano Nacional de Educação para entrar vigorar a partir de julho de 2024.

“Entendo que os maiores desafios para o próximo mandato são reestabelecer o financiamento, que foi diminuindo ano a ano principalmente por conta da EC 95, e reestabelecer a participação social, muito afetada por exemplo pela Portaria 577 do MEC, que desconfigurou o Fórum Nacional de Educação ao retirar a participação da sociedade civil. Revogar a EC 95, reestabelecer a previsão orçamentária e  o retomar o diálogo são os objetivos, sempre tendo o PNE como norte”, destaca Heleno Araújo. 

EJA e Ensino Médio

Não há modalidade ou etapa de ensino que tenha passado ilesa pelo governo Bolsonaro. As universidades federais não têm verbas para pagar residentes e bolsistas, a alimentação escolar teve reajustes vetados, sobrecarregando ainda mais estados e municípios. A Educação de Jovens e Adultos (EJA) foi quase totalmente desfinanciada – em 2022 o orçamento de 8 milhões de reais é apenas 0.44% do que foi em 2012. Esses desafios dão a urgência da revogação da EC 95 para que o país volte a investir em educação de qualidade para todas e todos e não deixe ninguém para trás. 

Os últimos balanços do PNE também mostram que nesse cenário geral de desmonte e destruição, algumas metas estão particularmente prejudicadas. Entre elas, as que se referem à  redução de desigualdades, o combate ao analfabetismo e o Ensino Médio. O novo Ensino Médio, como destacou a Campanha em balanço, é um marco negativo para o cumprimento da Meta 3, que diz respeito à universalização do atendimento escolar para a população de 15 a 17 anos e ao aumento das matrículas nesta etapa. Mas a reforma dá margem à privatização e não garante as condições necessárias nas escolas como infraestrutura e falta de professoras/es com formação adequada. Na prática, como destaca a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) em nota técnica sobre o tema, acirra as desigualdades educacionais, aumentado o fosso entre estudantes da rede pública e da rede privada e mesmo dentro da rede pública. “A reforma do ensino médio continuará em pauta porque está se destruindo por si própria – além de ser totalmente descabida em termos de educação, não há condições para implementá-la”, destaca a coordenadora geral da Campanha, Andressa Pellanda.

Por isso, em 2022, diversas organizações, incluindo a Ação Educativa, assinaram uma carta aberta pela revogação da Reforma do Ensino Médio. Essa não é uma posição unânime no campo da educação, e por isso embates nesse tema podem acontecer no governo Lula. Mais uma vez, será necessária grande mobilização e pressão dos setores progressistas da Educação para garantir que visões privatistas não se imponham na discussão. 

Pautas ultraconservadoras

Muitas foram as agendas ultraconservadoras na Educação impulsionadas por Bolsonaro ao longo de seu mandato: a militarização das escolas, a educação domiciliar, enfraquecimento da laicidade e a criminalização de debates sobre gênero, raça e direitos humanos são alguns deles. 

A militarização, por exemplo, foi intensificada logo no início do governo, através de portaria de 2019 que criou o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim). Nesse modelo, o estado ou o município assinam termo de cooperação com o MEC e policiais militares ou das Forças Armadas podem atuar dentro das escolas, com função pedagógica, administrativa e disciplinar. E foi consenso entre a equipe de transição que o novo governo deve revogar essa portaria e tentar reverter o processo de militarização tão impulsionado por Bolsonaro. Como enfatizou a professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UNB), Catarina de Almeida Santos, em webinário promovido pela Iniciativa De Olho nos Planos, tão importante quanto não fomentar essa agenda é tentar reverter o processo de militarização. 

Resta saber se isso, de fato, acontecerá, e se o novo governo Lula será bem sucedido em desmobilizar uma demanda que tem certo apoio popular e que também pode ser implementada a nível estadual ou municipal. Um exemplo: em 2020, o estado do Paraná sozinho anunciou a adesão de 216 escolas da rede estadual a esse modelo, processo implementado sob a gestão de Renato Feder, recentemente anunciado por Tarcísio de Freitas  como futuro Secretário de Educação em São Paulo a partir de 2023, um risco para a qualidade das escolas no Estado. 

INEP

O primeiro relatório da equipe de transição, segundo o G1, também apontou  fragilidades na coordenação do MEC para a elaboração das provas do Enem. Isso pode ser um sintoma das sucessivas tentativas de desmonte do órgão responsável por elas, o  Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Na gestão Bolsonaro, foram muitas as intervenções no Inep na tentativa de deixar o Enem com “a cara do governo” – e se não houve intervenção ideológica na escolha das questões, o ano de 2021 foi palco do Enem mais branco da história. Além disso, microdados do Censo Escolar foram descartados pelo Inep, o que causou reação de entidades, redes de pesquisa e movimentos sociais. 

O INEP teve sucessivas trocas de dirigentes e ataques à burocracia – por exemplo, uma proposta de Reforma Administrativa que retira a estabilidade dos servidores que foram cruciais na resistência ao desmonte. A pressão foi tanta que 35 funcionários entregaram seus postos de chefia na semana do Enem 2021, sinalizando que não queriam participar do projeto em curso.

Sendo o INEP fundamental para a produção de dados sobre a realidade educacional brasileira, frear os desmontes, fortalecer o órgão e retomar coletas de dados e bases de informações mais sólidas para o monitoramento das políticas educacionais é também um dos grandes desafios do terceiro governo Lula. 

Sistema Nacional de Educação (SNE) 

O SNE já está previsto na Constituição e no PNE, mas ainda não tem lei que o regulamente, colocando-o como um dos grandes desafios do novo governo na área de Educação. Em março de 2022, o projeto de lei complementar 235/19, que regulamenta o SNE, foi aprovado por unanimidade no Senado após ter sido apressado pelo governo Bolsonaro. Agora, o projeto – que tem falhas graves em pontos como o Custo Aluno-Qualidade (CAQ), gestão democrática e avaliação da educação básica – aguarda análise na Câmara. 

Assim como o SUS na saúde, o SNE teria, na educação, as funções de dar coesão e unidade às políticas públicas, articular realidades locais com a nacional, integrar o sistema educacional, assegurar a colaboração e a cooperação – inclusive financeira – entre as esferas municipais, estaduais e a União, combater iniquidades, fortalecer a participação social e a gestão democrática em educação, além de especificar os recursos que integram o financiamento da educação e que formam os padrões de qualidade do CAQ. Mas para fazer tudo isso precisa de uma lei de regulamentação forte, coerente e que valorize esses aspectos, o que não aconteceu até o momento. Como detalhamos em matéria de abril, um dos desafios da lei do SNE é regulamentar o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica e vincular o CAQ ao Fundeb. Mas caso o texto final continue sem fazer esse detalhamento, a lacuna pode prolongar os embates em torno da regulamentação do CAQ, que já é alvo de disputas há anos e não faz parte da agenda dos setores empresariais na educação. Além disso, o texto não contempla a participação de sociedade civil, sindicatos, estudantes ou comunidades escolares nas esferas de decisão e monitoramento, apenas gestores. Embora reconheça mecanismos que já existem, como o Fórum Nacional de Educação, as comissões tripartite e bipartite contariam apenas com governo em sua composição, sendo portanto um retrocesso no aspecto da gestão democrática e da participação social na educação.

Novo balanço do PNE mostra que persistem as desigualdades raciais na educação: população negra tem piores índices e faltam dados sobre indígenas

Recente balanço da Campanha com dados desagregados por sexo e por raça mostra que, além do cenário geral de descumprimento do Plano, persistem as desigualdades educacionais

Estudantes de Viçosa-MG protestam dia 18/10/22 contra cortes na educação. Foto: Raoni G https://www.instagram.com/raonigf/

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

Os balanços anuais que monitoram o cumprimento do Plano Nacional de Educação (PNE) realizados pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação vêm mostrando, ano após ano, um cenário generalizado de descumprimento da mais importante política educacional brasileira. A edição divulgada em junho de 2022 mostrou que 86% das metas e indicadores não seriam cumpridas até o fim da vigência do PNE (2024) se o ritmo atual for mantido. E para além do descumprimento, há metas em retrocesso e até mesmo aquelas sem dados disponíveis para que a sociedade monitore seu andamento. 

Um novo balanço divulgado no último mês adicionou mais nuances a este cenário já bastante desfavorável ao trazer os dados das metas e indicadores desagregados por raça/cor, sexo e por estado. A análise detalhada evidencia o grande desafio de fazer com que a Educação de qualidade seja uma realidade para todas e todos os brasileiros, já que persistem as desigualdades educacionais entre brancos e negros em praticamente todos os indicadores. Em contrapartida, sequer é possível dar o mesmo diagnóstico sobre a educação da população indígena e de pessoas com deficiência, uma vez que não há dados suficientes sobre elas. Ainda, as desigualdades regionais e disparidades entre rede pública e privada mostram que há muito a ser feito mesmo nas metas e indicadores que à primeira vista caminham bem.

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“O balanço detalhado nos dá a possibilidade de aprofundar o panorama nacional. Dito isso, o que ele traz de mais negativo é o que já estava posto nacionalmente: estamos distantes de cumprir as metas e estratégias do Plano Nacional de Educação a menos de 2 anos de seu fim. E o que temos de dados novos se destacam em termos das desigualdades”, resume Andressa Pellanda, coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Por exemplo: a região norte é a que tem indicadores mais alarmantes nas metas de acesso, permanência e qualidade, seguida pelo nordeste; a população negra ainda está em situação de exclusão e desigualdade em relação à população branca, ainda que as distâncias tenham diminuído; e embora as mulheres sejam mais escolarizadas e a maioria entre as profissionais da educação, persistem desigualdades nas metas de valorização das profissionais. 

O impacto da pandemia também pode ser visualizado. Por exemplo, no indicador 2A (Percentual da população de 6 a 14 anos que frequenta ou já concluiu o Ensino Fundamental). Se antes o indicador estava próximo da meta de cumprimento, em 2021 caiu para um nível menor do que o de 2014, quando começou o período de vigência do PNE. E com um agravante: essa queda foi mais acentuada entre a população preta. Ou seja, em um cenário geral de retrocesso, as desigualdades por raça/cor se intensificaram. Jaqueline Santos,  diretora de projetos para ações programáticas em justiça racial e justiça de gênero da Fundação Friedrich Ebert Stiftung (FES) Brasil, destaca que o retrocesso nesse indicador é gravíssimo e exige um olhar mais cuidadoso. “Precisamos pensar nessa grande lacuna: o que aconteceu na transição do ensino fundamental 1 para o ensino fundamental 2 que perdemos tantos alunos? Como isso impacta as desigualdades?”, questiona. Como ela sintetiza, “a média não mede desigualdades”. Ou seja, agendas prioritárias para planejar estratégias e ações muitas vezes podem ser invisibilizadas olhando-se apenas para os números gerais. 

Já que estamos quase no fim da vigência do atual PNE, Jaqueline defende que um novo Plano Nacional de Educação foque mais explicitamente em metas de equidade, almejando a redução de desigualdades raciais, de gênero, regionais, entre outras. Ou, em outras palavras, que tanto o PNE quanto os planos estaduais e municipais subsequentes sejam políticas orientadas pelas diferentes necessidades e especificidades de diversos grupos sociais e dos territórios brasileiros. 

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Desigualdades por raça/cor e sexo 

Essa necessidade é evidente uma vez que os dados do último levantamento mostram, por exemplo, que tanto o analfabetismo absoluto como o funcional são mais prevalentes entre pretos e pardos do que em brancos (ainda que os últimos avanços tenham sido mais pronunciados entre os negros) e que a população negra ainda não atinge a média de 12 anos de estudo obrigatório na população de 18 a 29 anos. Invisibilizada nas pesquisas, os dados disponíveis mostram que a população indígena tem muito menos acesso à educação integral, além de um percentual muito baixo de professores da educação básica com pós-graduação (12%, ante 50% da população branca). Para Andressa Pellanda, esses dados mostram que “a especialização em educação no Brasil ainda é pouco decolonial e restrita ou quase a alguma política de incentivo à progressão de carreira e especialização de docentes indígenas”. 

Um dado positivo em relação à raça/cor é a diminuição de desigualdades no acesso à educação básica. No entanto, permanecem os desafios de permanência, como a queda do indicador 2A durante a pandemia demonstra para o ensino fundamental, e também o indicador 3B para o Ensino Médio. Mas o avanço mais significativo vem do Ensino Superior, como no indicador 12A (Porcentagem de matrículas na Educação Superior em relação à população de 18 a 24 anos): ainda que persista a desigualdade no acesso entre brancos e negros, de 2014 para cá a variação da matrículas de pessoas pretas na universidade aumentou 9,4 pontos (ante 5 da população branca). Similarmente, o indicador 12B, que trata sobre conclusão do ensino superior, também mostra avanços maiores na população preta.

 A redução dessas desigualdades, que embora não aconteçam no ritmo necessário para cumprir o PNE no prazo adequado, pode ser creditada às políticas de ações afirmativas como a Lei de cotas. Não à toa, ela está sob ameaça. “Fica nítido que as tendências de reversão de antigas desigualdades se dão por conta das políticas de ações afirmativas. E a nível federal são as cotas raciais, e não as sociais, que estão ameaçadas”, reforçou Jaqueline dos Santos, da FES Brasil, evidenciando a centralidade da pauta racial para o cumprimento do PNE. Além disso, no lançamento da publicação ela também chamou a atenção para nuances que só aparecem quando dados são desagregados. Por exemplo, as mulheres negras tiveram grande inserção nas universidades públicas, mas seguem concentradas em áreas como pedagogia, enfermagem e outras profissões de cuidado, com pouca representação em áreas como engenharia e ciências exatas. Ou seja, é preciso pensar inclusão também nos termos da representação em todas as áreas. 

Diferenças regionais e problemas de qualidade 

O Brasil tem disparidades regionais muito significativas em praticamente todas as metas e indicadores analisados pela Campanha. Norte e Nordeste têm índices piores em vários indicadores, como os de analfabetismo absoluto e funcional. As metas de ensino superior também mostram forte concentração nas unidades da federação mais ricas – como os estados do sudeste e o Distrito Federal, que concentram, por exemplo, a titulação de mestres e doutores (meta 14). 

Por outro lado, o detalhamento mostrou uma situação alarmante no estado de Roraima, que apresentou retrocessos e/ou estagnações em diversas metas de acesso e conclusão na Educação Básica, incluindo a Meta 12 de matrículas, frequência e conclusão do Ensino Superior. Já o Rio Grande do Norte, estado onde houve recente política de valorização de profissionais da educação (meta 17 do PNE), vai melhor do que a média nacional. Lá, docentes com ensino superior completo recebem, em média, o dobro do que outros profissionais com a mesma escolaridade. “[O Rio Grande do Norte] é um estado em que o balanço detalhado evidencia melhorias de indicadores na progressão de pontos percentuais em quase todas as metas que dependem do governo do estado, tendo tido em geral progressões equivalentes ou melhores que os demais estados da região Nordeste, com destaque para a Meta 3, de ensino médio, em que o RN atinge a melhor variação do Brasil, e para a Meta 9 com redução significativa do analfabetismo absoluto”, ressalta Andressa Pellanda, coordenadora da Campanha. 

A nível federal, houve um completo abandono da modalidade da Educação Integral, com o fim do programa Mais Educação e sua substituição pelo Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, que tem problemas sérios de qualidade e que não dialoga com as demandas juvenis. No estado de São Paulo, o projeto de “expansão da carga horária” associado ao novo Ensino Médio tem na verdade o efeito de ampliar ainda mais as desigualdades educacionais ao reduzir o ensino presencial dos mais pobres e estimular a privatização na rede estadual, como defende o professor de políticas educacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC) e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU), Fernando Cássio. “Desde 2018 as pesquisas da REPU mostram que o Programa Ensino Integral (PEI), que atende um número limitado de estudantes, amplia as desigualdades educacionais, separa negros e brancos, ricos e pobres e exclui estudantes com deficiência, criando uma ilha de excelência em meio a um mar de exclusão”, critica o professor. Isso porque tendem a atender aqueles já em melhores condições dentro do ensino público. “Os estudos já mostram que a abertura de uma PEI faz com que os estudantes mais pobres migrem para a escola regular mais próxima, que começa a ficar superlotada. Isso fez com que esse ano faltassem vagas na rede estadual para alunos do ensino fundamental, o que não acontecia há décadas. Ou seja, é uma política que vai na contramão da concepção do PNE”, resume Cássio. 

No ensino médio, a precarização e sucateamento vêm por efeito das PEIs mas também por uma política aliada: o Novo Ensino Médio. Essas políticas, têm, na prática, aumentado o fosso entre estudantes da rede pública e da rede privada e mesmo dentro da rede pública. A Reforma do Ensino Médio, como mostram balanços da Campanha e estudos da REPU, dá margem à privatização da educação e não garante as condições necessárias nas escolas, como infraestrutura e professoras/es com formação adequada. O resultado é que estudantes mais pobres da rede estadual, particularmente do Ensino Médio noturno, têm menos possibilidades de escolha, mais aulas sem professores e a oferta de expansão da carga horária mais precarizada. “O estado de SP, o mais rico do país, sequer consegue entregar as mil horas letivas anuais, quem dirá debater currículo, projeto de vida. O nível de precariedade é absoluto. O Novo Ensino Médio é publicizado como dando liberdade de escolha, mas na verdade é um barateamento da educação dos mais pobres – uma reforma que não equipou escolas, não contratou professores, não construiu sala de aulas”, sintetiza Fernando Cássio, enfatizando a perversidade de uma política que precariza ainda mais a escola de quem mais precisa dela. Em 2022, diversas organizações, incluindo a Ação Educativa, assinaram uma carta aberta pela revogação da Reforma do Ensino Médio

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PNE em risco? 

A meta 20 do PNE prevê que o Brasil amplie o investimento público em educação pública, o contrário do que tem acontecido nos últimos anos. A meta de aumentar o investimento progressivamente até o equivalente de 10% do PIB em 2024, conquista histórica dos movimentos e organizações que defendem a educação pública e de qualidade, tem ficado estagnado na faixa dos 5% de 2015 a 2020. E o não cumprimento da meta 20 atua em efeito cascata em todo o PNE, pois sem novos recursos a implementação das outras metas – que preveem, por exemplo, maior número de matrículas em diferentes níveis – fica inviabilizada.

No governo Bolsonaro, a Educação sofreu sucessivas reduções orçamentárias, seja com corte ou bloqueio de verbas. No início de outubro, por exemplo, foi anunciado um novo bloqueio de mais de 2 bilhões de reais, dos quais parte seria retirada do Ensino Superior, que já tem funcionado no limite do orçamento. Fernando Cássio, professor da UFABC e membro da REPU, destaca que, no governo Bolsonaro, as universidades públicas – responsáveis pela maior parte da produção científica brasileira – passaram a ter que lidar com mais do que os cortes orçamentários, já intensificados desde 2016. “Os cortes em geral se davam no começo do ano, não ao longo dele, quando os contratos já estão em curso. Sob o nome ‘corte’ ou ‘bloqueio’, o que interessa é o efeito prático: as universidades estão sem recursos. Se não por cortes no MEC, pelos cortes na área de ciência e tecnologia. É um vale tudo para fechar o ano, porque o governo se comprometeu tanto com o orçamento secreto que agora não consegue fechar as contas”, diz Cássio. 

Apesar da gravidade do cenário, em 2022 foram poucas as candidaturas, tanto presidenciáveis quanto a nível estadual, que mencionaram ou se basearam nos atuais Planos de Educação. Em âmbito nacional, apenas Lula (PT) se compromete a retomar as metas do PNE e reverter os desmontes do atual governo, inclusive revogando a Emenda Constitucional 95, que inviabilizou o cumprimento do PNE tão logo ele foi aprovado. Já entre candidatas e candidatos a governos estaduais, apenas 1 em cada 4 propostas de governo mencionava os Planos de Educação em alguma instância. Ou seja, é preciso que a população, organizações e movimentos sociais exijam em âmbito nacional, estadual e municipal a avaliação e construção participativas dos Planos de Educação, uma vez que os decênios de vigência acabarão durante o próximo mandato do Executivo. “A luta pela aprovação e pela centralidade dos planos de educação nas políticas governamentais segue sendo crucial, não só por conta do cenário de eleição de candidaturas que marginalizam os planos, mas por conta do desafio ainda enorme de compreensão da necessidade de construção de políticas de Estado, em detrimento de políticas de governo, e de falta de gestão democrática e formação política da sociedade, que não tem espaço e não está acostumada a participar das decisões e do monitoramento de políticas públicas, diminuindo a possibilidade de cobrança para a efetivação dessas políticas”, reforça a coordenadora da Campanha. 

A gestão de Jair Bolsonaro, por exemplo, nunca norteou a política educacional pelo PNE. Ao contrário, deu seguimento às políticas de austeridade que o inviabilizaram já em 2015, um ano após sua aprovação. Bolsonaro não apenas manteve a Educação subfinanciada e sofrendo com sucessivos cortes orçamentários, como também avançou em medidas que impactam o PNE negativamente, como o Novo Ensino Médio e a militarização das escolas. Para um eventual novo mandato, o atual presidente mantém o alinhamento com políticas neoliberais e de austeridade. Em contrapartida, o ex-presidente Lula (PT) quer “investir em educação de qualidade, no direito ao conhecimento e no fortalecimento da educação básica, da creche à pós-graduação, coordenando ações articuladas e sistêmicas entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, retomando as metas do Plano Nacional de Educação e revertendo os desmontes do atual governo”. O candidato promete assegurar a continuidade das políticas de cotas sociais e raciais na educação superior – implementadas nas gestões petistas – e nos concursos públicos federais, bem como sua ampliação para outras políticas públicas. 

O compromisso com a construção participativa de Planos de Educação e com a garantia de financiamento adequado para o cumprimento de suas metas e estratégias são critérios que devem ser levados em consideração pelas pessoas que defendem a redução das desigualdades e a melhoria da qualidade da educação para todes no Brasil. 

Eleições 2022: 75% das candidaturas aos governos estaduais não mencionam Planos de Educação

Documentos, que deveriam nortear políticas públicas, raramente são referenciados nas principais candidaturas estaduais. Em contrapartida, militarização das escolas está presente em um quarto das propostas analisadas

Texto: Nana Soares

Os Planos de Educação – seja o Nacional, os estaduais ou municipais -, que deveriam nortear as políticas públicas da área até 2024, são citados por apenas 25% das principais candidaturas aos governos estaduais, e ainda mais raras são as menções que posicionam os Planos como documentos de referência. A análise é da Iniciativa De Olho Nos Planos, que leu as propostas dos principais candidatos e candidatas a governos estaduais de todas as unidades da federação. 

A análise considerou, em cada estado e no Distrito Federal, as duas ou três candidaturas com mais intenções de voto de acordo com pesquisas de agosto de 2022. No total, foram 59 candidatas e candidatos (confira a lista no fim da matéria), dos quais três sequer enviaram propostas de governo ao TSE. 

Destas 59 candidaturas, apenas 15 fazem menção aos Planos de Educação – nenhuma no Centro-Oeste e cerca de 30% nas outras regiões. Quando o assunto é avaliação educacional, candidatos de 7 estados não fazem qualquer menção – e os que fazem, norteiam-se apenas pelas avaliações externas e em larga escala de desempenho dos estudantes, como o Ideb. Também é preocupante a ascensão das propostas de militarização das escolas, pauta fortemente encorajada por Bolsonaro. Elas são explicitamente mencionadas em 15 propostas de governo, fora as candidaturas que mencionam aumento de disciplina, austeridade e parcerias militares. 

Planejamento e financiamento educacional: Planos de Educação e EC 95

Como nossa análise das candidaturas presidenciáveis já mostrou, a retomada do PNE e de mecanismos que garantam sua implementação não são prioridade para os candidatos – apenas Lula e Tebet mencionam o PNE e somente o ex-presidente busca revogar a EC 95, que inviabilizou o cumprimento do Plano. Essa tendência permanece nas candidaturas estaduais. Apenas uma candidatura (de Roberto Requião, do PT-PR) menciona a Emenda Constitucional 95 como um obstáculo para o investimento público em áreas sociais. 

A Procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo, Élida Graziane, reforça que essa deveria ser uma agenda também dos governadores. Isso porque estados e municípios são mais onerados pelo teto de gastos a nível federal. Por exemplo, o recente veto de Bolsonaro à correção de valor repassado ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) faz com que o valor de referência, de 2017, esteja fortemente defasado pela inflação do período. “Isso faz com que quem tenha que pagar essa diferença sejam os governadores e prefeitos. Quando o governo federal não corrige essas tabelas, quando gastos básicos estão asfixiados, a responsabilidade é transferida para estados e municípios. Afinal, não dá para não ofertar merenda escolar, para não oferecer saúde pública e universal. Nesse sentido, a Emenda Constitucional 95 acirra a guerra fiscal na federação brasileira”, resume Élida.

Especificamente sobre os Planos, algumas menções ao PNE nas propostas de governo estadual referem-se na verdade a algumas de suas metas específicas, como a alfabetização, universalização do acesso à educação infantil, fundamental e Ensino Técnico Profissionalizante ou metas de Educação Integral. Apenas Roberto Requião (PT-PR) menciona as metas de participação popular e gestão democrática previstas no PNE, reafirmando o compromisso com a realização das Conferências Municipais, Regionais e Estaduais de Educação e de um amplo debate social para os próximos planos decenais. Ainda, algumas poucas propostas mencionam a construção dos novos Planos de Educação ao fim do decênio ou versam sobre o fortalecimento/revisão dos atuais Planos Estaduais, não detalhando como pretendem fortalecer os planos ou fazê-los serem cumpridos. 

Sobre isso, Élida Graziane pontua que o próximo plano já deveria, de fato, estar sendo discutido, mas que os Planos de Educação estão fora da agenda da sociedade, de gestores e de órgãos de controle. “Estamos no oitavo ano de vigência do PNE e com 86% de descumprimento das metas. É preocupante que não haja qualquer constrangimento, principalmente de candidatos que concorrem à reeleição, sobre o não cumprimento. Que não haja a necessidade de justificar porque os planos não estão sendo cumpridos. Os órgãos de controle não conseguem sequer implementar a responsabilização pelo não cumprimento para quem descumpre. E, para completar, a Emenda Constitucional 119 chancela o déficit da aplicação em educação. Então temos, neste processo eleitoral, a percepção clara de que a educação não é prioridade”, avalia a Procuradora. 

Na mesma linha, o apoio aos municípios na implementação dos Planos Municipais de Educação aparece em algumas propostas, mas sem detalhamento. E apenas cinco candidaturas entre as 59  mencionam a articulação dos planos em mais de uma instância: nacional, estadual e/ou municipal. Fátima Bezerra (PT-RN), por exemplo, pretende, em um eventual segundo mandato, “avaliar e monitorar o cumprimento das metas e estratégias do Plano Estadual de Educação em sintonia com o PNE e os Planos Municipais de Educação, fortalecendo ações articuladas, sistêmicas e colaborativas entre Estado, Municípios e União, com encaminhamentos para renovação desses Planos, a partir de 2024”. 

Puxada por Bolsonaro, militarização avança

A militarização das escolas, ou a transferência da gestão das escolas civis públicas para a Polícia Militar, é uma das facetas do projeto ultraconservador em curso para a Educação. Está explicitamente presente em uma de cada quatro candidaturas analisadas pela Iniciativa De Olho Nos Planos, um número alarmante e que reflete os incentivos da gestão de Jair Bolsonaro a essa agenda. Embora seja um processo antigo, intensificou-se em 2019 com a criação do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim). Apenas na gestão de Ratinho Junior (PSD), no Paraná, 199 escolas passaram por este processo. E o governador, que tenta a reeleição em 2022, quer ampliar este número, como deixa explícito em sua proposta de governo. 

Como lembra Catarina de Almeida Santos, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) e uma das coordenadoras da Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação (REPME), a militarização vem em um processo de expansão que data do fim da década de 1990, e entre os primeiros decretos do governo Bolsonaro estava o Nº 9.465, de 02/01/2019, que criou a Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares (Secim). “A partir daí não apenas observamos uma expansão do processo, especialmente  nos municípios, mas também a mudança na nomenclatura, porque até então o processo de militarização não utilizava essa denominação”, explica ela.  “O Pecim até hoje não conseguiu cumprir seu objetivo de militarizar 54 escolas por ano, mas fez com que a militarização entrasse na agenda nacional, o que impulsiona o processo no país ainda que a escola não se militarize via Pecim”. Para Catarina, incentivar a militarização é, ainda que inconscientemente, criminalizar a comunidade escolar. “Em nosso imaginário, a polícia cuida de marginais. Levar a polícia para a escola é uma autodeclaração que são essas pessoas que estão na escola, porque é com quem a polícia teoricamente lida”, complementa. 

Além da expansão no Paraná, todas as principais candidaturas no Distrito Federal, Goiás, Acre e Roraima ou citam diretamente metas de militarização ou versam com o aumento da disciplina, vigilância e austeridade. Também encorajam a pauta, no nordeste: Fernando Collor (PTB) em Alagoas, Carlos Brandão (PSB) no Maranhão, Fabio Dantas (Solidariedade) no Rio Grande do Norte e Nilvan Ferreira (PL) na Paraíba. No Sudeste são dois casos: Carlos Manato (PL) no Espírito Santo, e Tarcísio de Freitas (Republicanos) em São Paulo, ambos aliados de Bolsonaro. Também aliado de Bolsonaro, Onyx Lorenzoni (PL), candidato no Rio Grande do Sul, é outro favorável à agenda. 

A proposta de Carlos Manato é a que mais se dedica a defender o projeto de militarização nas escolas. O candidato argumenta que parte da sociedade “perdeu o respeito pela escola, pelo professor e pela educação” por conta de uma cultura de “não disciplina” e de “sobrepor as ideologias em relação às matérias que serão exigidas no âmbito profissional”. Em resposta, propõe um incentivo a bandas marciais, um resgate de símbolos nacionais, típicos do pensamento militar, e a ampliação das Escolas Cívico-Militares (ECMs) em alinhamento com o MEC. O candidato defende que as ECMs não têm “qualquer tipo de ideologia” e baseia-se no desempenho positivo dessas escolas em avaliações externas. 

Catarina de Almeida Santos, no entanto, contesta fortemente a associação entre escolas militarizadas e bom desempenho escolar. Esse bom desempenho, lembra ela, parte de uma lógica de exclusão. “Em geral, o perfil das escolas muda depois da militarização: embranquecem e atendem pessoas com mais condições financeiras”, descreve a pesquisadora. “É comum que essas escolas transfiram quem não se adequa ao projeto, o que engloba tanto o não concordar mas também tem a ver com o rendimento do aluno. Então quem em geral tem problemas de rendimento, o que sabemos ser influenciado por fatores sociais, será excluído”, explica. Catarina também chama a atenção para a ausência de candidaturas cujas propostas enfrentem a militarização: “Sem dúvida é muito preocupante ter tantos planos de governo prevendo a ampliação das escolas militarizadas, tendo em vista que já temos tantas e não deveríamos ter nenhuma. Mas não me parece menos preocupantes as propostas que falam da gestão democrática e da valorização de profissionais da educação e do protagonismo dos estudantes não falarem nada ou não preverem a desmilitarização das escolas já militarizadas. O silêncio é também muito revelador em uma questão tão grave. Quem se cala pretende não ampliar, mas pretende manter as já existentes? Não pretende fazer uma gestão para reverter o quadro?”. 

Avaliação educacional: abordagens limitadas e parciais do que a lei prevê

Outra lacuna importante nas propostas de governos estaduais enviadas ao TSE é a da avaliação educacional. As principais candidaturas de sete estados (Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Amazonas, Pará, Roraima, Rondônia e Amapá) não mencionam nenhuma proposta nesse sentido, e, em linhas gerais, quando este tópico é abordado, não há muitos detalhes ou então a avaliação fica totalmente pautada por avaliações externas em larga escala de desempenho de estudantes. Neste caso, quase 70% das propostas estão alinhadas a uma lógica da meritocracia na educação, vinculando seus resultados a premiações e bonificações de escolas e profissionais da educação. Em outras palavras, escolas e redes com melhor desempenho teriam mais aporte financeiro do estado. E o processo de avaliação, ao invés de reduzir as desigualdades educacionais, as acirraria ainda mais.

Para Claudia Bandeira, pedagoga e assessora da Iniciativa De Olho nos Planos pela Ação Educativa, essa análise evidencia o “enorme desafio que temos no país com relação à avaliação educacional”. “Chama a atenção que nenhum Plano de Governo faz referência à avaliação institucional e à autoavaliação da escola realizada com participação das comunidades escolares como um importante mecanismo de diagnóstico, inclusive para contextualizar resultados das avaliações externas em larga escala de desempenho de estudantes, na medida em que considera como qualidade na educação outras dimensões como a valorização das profissionais da educação; as condições de infra-estrutura das escolas; a gestão democrática; o acesso, permanência e sucesso dos/as estudantes na escola; as relações raciais e de gênero na educação; entre outros”, completa. 

Pelo contrário, algumas propostas vão de encontro a essa ideia. A já citada proposta de Carlos Manato (PL-ES) utiliza o desempenho escolar para justificar um processo de militarização, e ACM Neto (União Brasil-BA), Fábio Dantas (Solidariedade-RN), Paulo Dantas (MDB-AL), Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) e Eduardo Leite (PSDB-RS) falam em vincular o repasse de ICMS aos resultados obtidos nas avaliações externas de larga escala. 

No entanto, o arcabouço legal de referência para a Educação no país já explicita que os mecanismos de avaliação educacional devem ir além das avaliações externas de desempenho. O Plano Nacional de Educação, em seu artigo 11, quando trata do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SINAEB) prevê a avaliação e a autoavaliação institucional. “Nesse sentido é fundamental retomarmos a discussão sobre a Portaria 369, de maio de 2016, que regulamentou o SINAEB, por meio de processos participativos liderados pelo Inep e que foi revogada logo após o golpe parlamentar de 2016”, complementa Claudia (saiba mais aqui). “Para que a avaliação educacional contribua com a redução das desigualdades educacionais é preciso que Planos de Governo estabeleçam processos avaliativos mais amplos, participativos e diversificados que considerem insumos e processos pedagógicos no debate sobre qualidade na educação”. 

CONFIRA A LISTA DE CANDIDATURAS ANALISADAS PELA INICIATIVA DE OLHO NOS PLANOS