Além do subfinanciamento e abandono, Resolução 01/2021 autorizou que até 80% do conteúdo da EJA para Ensino Médio fosse dado de forma remota.
Texto: Nana Soares / Edição: Claudia Bandeira
No Brasil, há mais de 50 milhões de pessoas que não concluíram o Ensino Fundamental e outras 22 milhões que não concluíram o Ensino Médio, além de cerca de 9 milhões de pessoas não alfabetizadas. Todas elas têm direito à escolarização na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA), mas mesmo que, em um cenário de fechamento de turmas, consigam fazer suas matrículas, será um desafio continuar estudando. E quem conseguir provavelmente vai ter acesso a um ensino precário e de baixa qualidade, não pensado para suas realidades e que pode ser realizado quase todo à distância. Esse é o cenário da modalidade, talvez a mais abandonada do país nos últimos anos e que luta para se recompor.
Cronicamente subfinanciada e muito distante de conseguir atingir as metas previstas para 2024 no atual Plano Nacional de Educação (PNE), a EJA sofreu mais um baque em 2021 com a aprovação da Resolução CNE/CEB nº 1. Essa resolução, ainda em vigor, flexibilizou a oferta de ensino à distância para a modalidade, permitindo que chegasse até 80% no Ensino Médio. O resultado foi o sucateamento ainda maior da EJA, com a explosão de oferta de baixa qualidade.
“Com a resolução, o que vimos foi uma invasão de oferta de Ensino à Distância (EaD) sem muito critério, uma oferta gigante a baixo preço. Isso tanto em redes privadas, como faculdades que abriram plataformas à distância, e em redes públicas, com o desmonte de redes de ensino para ampliar a oferta EaD”, destaca Roberto Catelli, coordenador da unidade de educação de jovens e adultos da Ação Educativa. Fenômeno preocupante pois, como explica Catelli, as e os estudantes da EJA são pessoas para quem a figura da professora ou professor faz muita diferença, uma vez que têm uma trajetória de exclusão escolar. “Não é de EaD que precisam quem nunca foi à escola ou passou muitos anos fora. Em certos casos [ensino à distância] pode ser útil, como em locais onde não há acesso à escola ou a situações muito particulares de trabalho, mas transformar o EaD na principal oferta é muito ruim”, diz.
E esse não é o único ponto da Resolução 01/2021 questionado por entidades e movimentos sociais que lutam por uma educação pública e de qualidade para todas e todos. O alinhamento à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que não foi pensada para escolarização de jovens e adultos, também preocupa. “O documento propor que a BNCC seja a principal referência da EJA é muito grave e não funciona, uma vez que a BNCC pensa as séries iniciais para crianças de 6 e 7 anos de idade em escolas convencionais”, resume.
Não olhar a Educação de Jovens e Adultos como uma modalidade em si mesma, com suas especificidades, e sim como uma adaptação do ensino regular para crianças e adolescentes, é um grande problema para quem está na base. Franciele Busico, diretora do Cieja Perus e integrante do Fórum Estadual EJA de São Paulo, defende que a modalidade tenha carga horária própria, material escolar e didático próprio, e até professoras próprias. “Nosso jovem – porque temos recebido cada vez mais jovens – não está na mesma condição que o do ensino regular”, diz ela. “E as diretrizes nacionais já indicam que é possível flexibilizar tempos e espaços, o erro tem sido fazer a EJA como um ‘puxadinho’ do ensino regular”, defende. A diretora também reforça a necessidade do contato e mediação de docentes para estudantes da EJA, entendendo como absurda a oferta da modalidade à distância, inclusive por questões de acesso à tecnologia. “Estamos falando de pessoas em alta vulnerabilidade que frequentemente não têm equipamento para acessar EaD. Além disso, o acesso a mídias digitais requer um certo letramento. Acreditamos em flexibilização de carga horária e em um currículo adequado ao público, nunca à distância. Quem não teve escolarização tem direito de frequentar a escola, a viver a cultura escolar”, completa ela.
Felizmente, após muita pressão da sociedade civil e diversas entidades e movimentos educacionais, essa regra pode estar com os dias contados. A Resolução 01/2021, que flexibilizou o aumento da oferta de ensino à distância para EJA, é alvo de protestos desde que entrou em vigor – e ainda não foi possível substituí-la mesmo quase dois anos depois do governo Bolsonaro. Tratando-se de uma resolução aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), para deixar de valer ela não deve ser revogada e sim substituída por outra que a invalide. Esse processo pode entrar na agenda em breve, pois o Ministério da Educação (MEC), por meio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi), construiu um novo texto, que já chegou ao CNE para apreciação.
O MEC informou que, após análise da Resolução pela Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA), a recomendação foi a “necessidade, urgente, de elaboração de novas diretrizes operacionais para a EJA, que atendam as orientações das políticas formuladas na atual gestão, que têm como eixo central a garantia da equidade nas condições de acesso e permanência à escola, e garantia dos direitos de aprendizagem”. Agora, de acordo com Mariângela Graciano, Coordenadora-Geral de Educação de Jovens e Adultos na SECADI, a expectativa é que a proposta “seja aprimorada quando submetida a audiências e consultas públicas, organizadas pelo CNE, e que o Conselho, nosso parceiro na elaboração da proposta construída na CNAEJA, proceda o ciclo de audiências e consultas públicas o mais rapidamente possível”.
O Conselho reúne representantes de diversos segmentos – inclusive aqueles beneficiados pelo aumento da oferta de EaD. Ou seja, há uma batalha técnica e política pela frente. “EaD é uma pauta que envolve muita gente e muitos atores que investiram dinheiro para montar a estrutura”, adianta Roberto Catelli, coordenador da Ação Educativa, prevendo possíveis embates políticos na discussão dessa agenda. “Deve haver disputas sobre o quanto é possível restringir o ensino à distância, porque não é possível impedir 100%, e nem seria recomendável, mas é preciso restringir para que não desmonte o atendimento e crie situações distorcidas, como acabou acontecendo”, completa. Além disso, a desvinculação da EJA da BNCC também deve entrar em pauta.
EJA nas políticas educacionais
O atual Plano Nacional de Educação (PNE) termina sua vigência nos próximos meses, com descumprimento quase total de suas Metas e Estratégias. Naquelas que versam sobre a Educação de Jovens e Adultos, o cenário é desolador: a EJA foi completamente desfinanciada na última década, tendo um orçamento em 2022 que representava apenas 0.44% do que foi o orçamento de 2012. A Meta 8, focada em reduzir desigualdades, foi do crescimento insuficiente, estagnação até chegar ao retrocesso em 2022. E a meta 9 mostra que o analfabetismo funcional avançou quando deveria ter regredido, resultado do desmonte de programas como o Brasil Alfabetizado. O número de matrículas na EJA caiu muito na última década, não chegando nem perto de atender toda a população que tem direito a continuar os estudos.
EJA no ATUAL PNE:
A meta 8 do PNE tem como objetivo diminuir desigualdades educacionais ao aumentar a escolaridade de grupos como a população de 18 a 29 anos, dos 25% mais pobres do país e a educação do campo, bem como igualar a escolaridade média entre pessoas negras e não-negras. A Meta 9 fala sobre erradicar o analfabetismo absoluto e reduzir o analfabetismo funcional pela metade. A Meta 10, por sua vez, diz que o Brasil deve oferecer ao menos 25% das matrículas de Educação de Jovens e Adultos (EJA) integradas à educação profissional.
Para coroar, o subfinanciamento é crônico. Até mesmo no Fundeb, principal mecanismo de financiamento da Educação Pública, um aluno da modalidade recebia menos repasses do que um aluno da rede regular – distorção que só começou a ser corrigida com os novos fatores de ponderação, vigentes a partir de 2024. Ainda longe do ideal, mas uma melhora em relação ao repasse anterior.
“A EJA é historicamente abandonada por não ser escolarização obrigatória, mas nossa luta é para que isso mude, que tenhamos uma política de fato, articulada com os sistemas de ensino, que a EJA seja considerada em toda sua singularidade e importância, inclusive como política antirracista. Fechar salas de EJA é o contrário de combater o racismo”, afirma Franciele Busico. A diretora do CIEJA Perus e ativista da EJA é enfática ao afirmar que, como resultado desse desmonte, o maior desafio para a modalidade hoje é a permanência estudantil. “Nós até temos conseguido matrículas, mas a permanência é muito difícil para o trabalhador que estuda, seja ele jovem, adulto ou idoso. A condição não é nada favorável para permanecer na escola, a EJA hoje não atende as necessidades da classe trabalhadora”, reforça ela, referindo-se às limitações de oferta, material didático e currículo próprio a essas e esses estudantes e acrescentando que a pandemia piorou esse cenário, com o empobrecimento de uma população já mais vulnerável economicamente.
Para Mariângela Graciano, Coordenadora-Geral de Educação de Jovens e Adultos na SECADI/MEC, o maior desafio da modalidade é a constante queda do número de matrículas, uma realidade que vem se afirmando há mais de uma década, “impondo a necessidade de implementar ações para estancar a perda de estudantes e, ao mesmo tempo, estimular a busca pela escolarização na EJA”. Nesse sentido, a Pasta informa que “o conjunto de estratégias previstas no âmbito do Pacto Nacional pela Superação do Analfabetismo e Qualificação da EJA está sendo construído para responder a este desafio”. O Pacto, que prevê políticas intersetoriais, deve contar com a participação de diversos Ministérios e da sociedade civil, mas também do setor privado. Especificamente em relação à permanência, ela destaca o programa Pé de Meia, que também contempla estudantes na faixa dos 18 aos 24 anos das famílias que recebem o Bolsa Família.
O princípio do Programa Pé de Meia, de auxílio financeiro para estimular a permanência, é elogiado pela diretora Franciele Busico, mas ela reforça que ainda é insuficiente pois só contempla estudantes do Ensino Médio, defendendo uma política de auxílio que contemple todas e todos que têm direito à EJA. Franciele defende que tais políticas podem ser a virada de página da EJA – e devem ser necessariamente intersetoriais, uma vez que a permanência escolar depende também de moradia, renda, transporte público, alimentação etc.
E na próxima década?
No fim de fevereiro, o Ministro da Educação, Camilo Santana, recebeu a Coordenação Executiva Nacional dos Fóruns de Educação de Jovens e Adultos (EJA), que reivindicou a Política Nacional para a Educação de Jovens e Adultos. Segundo ativistas, na ocasião o ministro foi receptivo a essa ideia e confirmou a substituição da Resolução 01/21.
O encontro do movimento social da EJA com o ministro Camilo Santana foi realizado algumas semanas após a Conferência Nacional de Educação (CONAE), que nesse ano debateu as bases do próximo PNE. No documento referência da CONAE, a EJA é contemplada em vários pontos e tem destacada a necessidade de se constituir, nas políticas públicas, como uma modalidade própria, que exige medidas específicas. Entre os pontos levantados estão a reabertura de turmas, a manutenção e o fortalecimento de programas como o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem), o respeito a especificidades dos diferentes públicos, adaptando horários, calendário escolar e garantindo transporte noturno; a integração da EJA com setores da saúde, do trabalho, meio ambiente, cultura e lazer, entre outros, na perspectiva da formação integral dos cidadãos e cidadãs. O documento faz referência ainda à descontinuidade da educação à distância (EaD) na EJA, “já que o seu uso na educação básica deve ser de maneira excepcional, de acordo com a legislação vigente”, destaca o documento.
Há também a preocupação com uma política de educação de jovens, adultos e idosos (EJA) para as pessoas em situação de privação de liberdade. Segundo dados que constam no documento referência da CONAE, 82,24% das pessoas nessa situação têm essa necessidade, mas apenas 15% da demanda potencial está matriculada. Segundo o MEC, há em curso um Acordo de Cooperação Técnica em parceria com o Ministério da Justiça e Segurança Pública para, em 36 meses, ampliar a oferta de vagas da EJA para o ensino fundamental e o ensino médio nas unidades prisionais, priorizando a oferta de maneira integrada à Educação Profissional Tecnológica (EPT).
Para Franciele Busico, as demandas do movimento social por uma EJA de qualidade foram contempladas no texto final da CONAE, que reflete uma discussão progressista e necessária para o próximo decênio. “O temor é o que vai acontecer quando o texto chegar no Congresso”, diz. “Provavelmente não vamos conseguir passar tudo que conseguimos colocar, mas se conseguirmos, serão muitos avanços. Conseguimos fazer um texto que contempla as necessidades da EJA pensando no país”, resume a diretora.