Valorização das/os profissionais da educação: uma tarefa urgente
O direito à educação na Constituição Federal de 1988 exige a integração de princípios constitucionais para o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para a cidadania e para o trabalho. Dentre esses princípios estão a “igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola”, a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”; a “valorização dos profissionais da educação”, a “gestão democrática”, o “pluralismo de ideias e concepções pedagógicas” e o cumprimento do “piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública” (CF/88, art.206, incisos I, II, V, VI, IV e VIII, respectivamente).
Apesar deste texto aprofundar questões referentes ao inciso V que determina a valorização das e dos profissionais da educação, reafirmado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº. 9.394/96), no seu art. 67; a interpretação da Constituição nos permite afirmar que o direito à educação só será garantido em sua plenitude se todos os princípios constitucionais estiverem integrados. Assim, falar sobre a valorização das/os profissionais de educação percorrerá, inevitavelmente, outas agendas fundamentais para a garantia do direito à educação.
A pandemia COVID-19 trouxe diversas reflexões sobre as políticas públicas que garantem os direitos sociais da população. Para a superação desse contexto dramático é preciso pensar em solução integrada entre as políticas públicas, ou seja, a saída requer a articulação das políticas de saúde, assistência social, moradia, transferência de renda e educação. Problemas complexos necessitam soluções complexas e negar qualquer direito às políticas sociais neste momento trará impactos que serão difíceis de superar a médio e longo prazos.
Não é de hoje que a agenda da valorização das/os profissionais de educação preocupa educadoras/es, organizações de sociedade civil, movimentos sociais e famílias que lutam e exigem do estado a garantia do direito à educação pública para todas e todos. Não à toa o Plano Nacional de Educação (PNE), um documento construído com significativa participação da sociedade civil, tem três metas que tratam da docência (16, 17 e 18). São propostas de aperfeiçoamento da formação (inicial, continuada e de pós-graduação), de formulação de planos de carreira, de equiparação salarial ao rendimento médio de outras áreas e de contratação em regime de provimento efetivo.
No Brasil há uma diferença salarial imensa entre professoras/es e profissionais de outras áreas com mesmo nível de formação. O valor definido em lei federal é de R$ 2.886,24 para uma jornada de 40 horas semanais. E o pior: 45% dos municípios brasileiros sequer cumprem esse piso. Esse valor do piso salarial no Brasil está bem abaixo da média mundial. Um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 2019, evidenciou que no ensino infantil, o Brasil está na 30ª posição entre 33 países em que a organização conseguiu coletar informações sobre salários do magistério. Nos ensinos fundamental e médio, os brasileiros ocupam a última posição entre os 40 países em que há dados salariais.
Além disso há um problema nos mecanismos de contratação. Por exigência constitucional, a contratação de professoras/es deve ser feita por concurso público. Entretanto, é cada vez maior o número de sistemas que promovem vínculos via contratos temporários. Essa forma de contratação é permitida em situações de tamanha urgência, “excepcional interesse público”, que impede a realização de concurso, mas tem se tornado o padrão em muitos sistemas.
As/os professoras/es não realizam seu trabalho por amor ou vocação, elas/es querem ser tratadas/os e valorizadas/os como profissionais, já dizia Paulo Freire, “professora sim, tia não!”. Quanto mais se coloca a docência nesse lugar do voluntarismo e da solidariedade, mais se desvaloriza a profissão reforçando a ideia de que demandas das confederações e sindicatos de professoras/es são regalias.
Para contribuir ainda com esse cenário é importante ressaltar a crescente atuação de grupos fundamentalistas religiosos no Congresso Nacional e nos legislativos estaduais e municipais, como o Movimento Escola Sem Partido, que ameaçam profissionais da educação tentando censurar o debate sobre a valorização das diversidades humanas, mais especificamente nas agendas de combate ao racismo; à violência contra meninas e mulheres, principalmente negras e à homofobia; ferindo outros princípios constitucionais que tratam da liberdade de aprender e ensinar e do pluralismo de ideias e concepções pedagógicas.
O resgate desses pontos é fundamental para reafirmar que profissionais da educação não são valorizadas/os no país, mas em tempos de pandemia é possível constatar um acirramento dessa desvalorização em decorrência da suspensão das atividades presenciais e da exigência de estados e municípios para que profissionais da educação realizem ensino à distância.
Tempos de pandemia
Após a Organização Mundial de Saúde (OMS) ter declarado Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional em decorrência da doença causada pelo coronavírus (COVID-19), governadores e prefeitos brasileiros decretaram o fechamento das escolas e paralisação do calendário escolar.
A incerteza do tempo de duração da pandemia e projeções de que a situação se sustentará por 3 ou 4 meses fez com que gestoras/es, agentes públicos, conselheiras/os e secretários/as de educação buscassem alternativas para a retomada do calendário escolar.
Estimulados/as pela Medida Provisória 934 publicada no dia 1 de abril que desobrigou, até o final do ano de 2020, as escolas de educação básica a cumprirem os 200 dias letivos, mas manteve as 800 horas letivas anuais e também pelo Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE), aprovado no dia 28 de abril, que trata de diretrizes sobre reorganização dos calendários escolares e sobre a implementação de atividades não presenciais; estados e municípios têm se organizado para que as atividades escolares sejam realizadas à distância.
A partir daí várias medidas foram implementadas pelas redes: material impresso enviado pelo correio às casas das/os estudantes; plataforma virtual cedida por grandes empresas intituladas GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft) que comercializam informações a fim de gerar tendências de comportamento futuro de usuários, aulas pela TV e professoras/es online durante o horário das aulas e fora do horário das aulas também.
O primeiro ponto a ser destacado é que para tomar decisões sobre reorganização do calendário letivo e ensino à distância as/os professoras/es devem ser consultadas/os, princípio da gestão democrática na educação. No inciso IV do art. 12 da LDB, os estabelecimentos de ensino receberam a incumbência de velar pelo cumprimento do plano de trabalho de cada docente. Assim, na organização da educação nacional, as/os docentes são importantes agentes na construção dos Projetos Políticos Pedagógico das escolas, o que exige, da parte da gestão escolar, o zelo pelo seu plano de trabalho e pelas condições de realização do mesmo, já que as/os docentes são participantes da organização da educação nacional.
A exigência de formação continuada também está presente na LDB como orientação de uma política para o magistério que busca a valorização da/o profissional da educação escolar. A formação continuada é considerada direito de todas/os as/os profissionais que trabalham em qualquer estabelecimento de ensino, uma vez que fortalece a relação ensino-aprendizagem e possibilita a adequação, no contexto de suspensão das aulas, dos Projetos Políticos Pedagógicos das escolas para buscar alternativas de trabalho que garantam “igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola” (Art. 206 da CF).
Hoje no Brasil a tecnologia – pensando em laboratórios de informática e internet banda larga – não está acessível a cerca de metade das escolas públicas de ensino fundamental, de acordo com o Censo Escolar. Se professoras/es não praticam tecnologia no cotidiano escolar seja com seus pares, seja com estudantes, como exigir que, de uma hora para outra, transfiram seus planejamentos de aulas presencias para aulas à distância? Há relatos de professoras/es sobre a falta de familiaridade com a internet e com as ferramentas tecnológicas.
Outro ponto importante e que também dificulta a implementação do ensino à distância durante o período de interrupção das aulas por causa da pandemia COVID-19 se refere às condições socioeconômicas dos e das estudantes e também das/os profissionais da educação, já que o ensino à distância em tempos de pandemia requer equipamento e internet banda larga também em suas casas.
Desde o início de maio o Ministro da Economia vinha tentando junto ao Senado Federal congelar salários de servidores públicos até 2021, incluindo profissionais da educação. Por pressão de deputados da oposição e de trabalhadoras/es da educação a exclusão do magistério das carreiras que terão congelamento foi aprovada.
Apesar de estarem trabalhando na educação básica para implementar as propostas de ensino à distância impostas por estados e municípios, inúmeros são os relatos de demissões, cortes de carga horária, de benefícios como vale alimentação e vale transporte e de diminuição de salários de profissionais da educação em todo o país, mesmo o Brasil estando na liderança do ranking de pior piso salarial do magistério se comparado a outros países (OCDE).
Os relatos das/os professoras/es da educação básica é que estão muito mais sobrecarregadas/os do que antes do fechamento das escolas. Vários fatores contribuem para isso: o replanejamento em tempo recorde de suas práticas pedagógicas para desenvolverem atividades à distância, fiscalização para reproduzirem tarefas muitas vezes pré-definidas e enviarem documentos que comprovem a realização dessas tarefas para a supervisão, disponibilização e liberação de whatsapp pessoal para familiares e colegas tirarem suas dúvidas e/ou proporem algo novo, trabalho à distância com crianças pequenas da educação infantil, alfabetização à distância, aulas para estudantes deficientes à distância. E a Educação de Jovens e Adultos (EJA) ainda em processo inicial de letramento?
Sobre a EJA vale destacar que no final do mês de abril foi publicada uma Portaria onde o prefeito da cidade de São Paulo suspendeu o repasse da ajuda de custo financeiro às educadoras e educadores do MOVA (Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos) até o retorno das aulas presenciais. A medida afetará educadoras e educadores do MOVA que não irão receber ajuda de custo da prefeitura de São Paulo durante a pandemia. Em sua página do Facebook a educadora e integrante do Fórum EJA, Iva Mendes, denunciou “suspender o pagamento d@s educador@s nesse período de pandemia, onde a maioria perdeu seu emprego formal e essa verba é o que garante o sustento de muitas famílias. Devido a essa mesma verba, muit@s educador@s não conseguiram o auxílio emergencial. Cortar essa ajuda de custo nesse momento, é um ato criminoso contra a humanidade”.
Durante o período de suspensão das aulas em decorrência da pandemia COVID-19 constituem direito dos/as estudantes e da sociedade em geral uma educação pública de qualidade que garanta os direitos trabalhistas das/os profissionais da educação, manutenção de salário e plano de carreira, além da formação continuada e das condições apropriadas de trabalho.
Sobre a gestão democrática, formação continuada das/os profissionais de educação, manutenção de salário e plano de carreira e garantia de condições adequadas de trabalho para a diminuição dos prejuízos educacionais num contexto de pandemia, nenhuma recomendação para estados e municípios no Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE).
Uma questão de gênero
Para falar sobre valorização das profissionais de educação é preciso considerar o recorte de gênero, já que hoje no Brasil mais de 80% das professoras da educação básica são mulheres.
Segundo dados divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 2019, mulheres dedicam em média 18,5 horas semanais aos afazeres domésticos e cuidados de pessoas, na comparação com 10,3 horas semanais gastas nessas atividades pelos homens, considerando ocupações iguais no mercado de trabalho.
Entre as atividades em que a taxa das mulheres foi maior, as três com as maiores diferenças entre os sexos foram cozinhar (34,7%), lavar roupas e calçados (36,9%) e limpar o domicílio (13,9%). Entre os homens em coabitação nas condições de responsáveis ou cônjuges, o percentual foi bem menor do que o das mulheres nessas mesmas condições evidenciando a desigualdade de gênero quando se trata de trabalho doméstico, como demonstram os Gráficos (Fonte IBGE 2019).
O percentual de mulheres (37%) que realizavam cuidados com crianças, idosos ou pessoas enfermas – moradores do domicílio ou parentes não moradores – também se manteve maior do que o dos homens (26,1%).
As medidas de contenção do novo coronavírus, como a suspensão de aulas e a exigência de que famílias fiquem em casa, têm deixado muitas mulheres ainda mais sobrecarregadas. Para aquelas que estão em regime de home office, como é o caso das professoras que precisam adequar seus planejamentos para realizar ensino à distância, equilibrar o trabalho remunerado com as milhares de tarefas domésticas, contando com pouca ou nenhuma ajuda de companheiros e outros membros da família, tem sido uma tarefa bastante árdua.
Há ainda a situação das mais de 11 milhões de famílias no Brasil compostas por mães solo (IBGE 2015), que podem não ter com quem compartilhar o trabalho dentro de casa. Muitas contam com o apoio de parentes, entre eles pessoas mais velhas, com quem não podem contar no momento atual – pessoas idosas fazem parte do grupo de risco da COVID-19 e as autoridades recomendam que elas não se encontrem com pessoas mais novas para evitar contaminação.
Além das desigualdade de gênero no que se refere ao trabalho doméstico não remunerado, a Justiça Estadual do Rio de Janeiro, no final do mês de março, já havia registrado um aumento de 50% nos casos de violência doméstica nos dias anteriores, em que muitas pessoas passaram a adotar o confinamento.
A preocupação com as vítimas de violência doméstica durante o período de distanciamento social e quarentena não é só brasileira, mas global. A OMS (Organização Mundial da Saúde) estima que uma a cada três mulheres no mundo sofrem violência física ou sexual, na maioria das vezes perpetrada por um parceiro íntimo. Para essas mulheres, ficar em casa para conter a disseminação do vírus significa estar trancada com seu agressor.
Se, como já explicitado, a grande maioria das professoras de educação básica são mulheres, as informações sobre desigualdade e violência de gênero precisam ser consideradas pelos sistemas em suas propostas para a educação escolar em tempos de pandemia.
O retorno às atividades presenciais será bastante desafiante após o período de isolamento. Nós, profissionais da educação precisamos estar preparadas para repor aulas, rever conteúdos, buscar estudantes que eventualmente desistiram de estudar por causa do período de suspensão das aulas presenciais (isso é muito comum no caso da EJA, por exemplo), fazer reforço junto aos estudantes que mais precisam, enfim, retomar os processos de ensino-aprendizagem depois de um período tão dramático de pandemia COVID-19.
Para que isso ocorra da melhor maneira possível a agenda da valorização das/os professoras/es precisa ser assumida urgentemente pelos sistemas de ensino neste momento de pandemia. É dever do estado garantir participação efetiva das professoras nos debates para impactar a elaboração das propostas educacionais durante a suspensão das aulas, formação continuada, condições de trabalho, salário digno e carreira. Tudo isso como parte do que se entende por qualidade na educação.
Claudia Bandeira, pedagoga, mestre em Educação pela PUC São Paulo e assessora da Iniciativa De Olho nos Planos pela organização Ação Educativa. Compõe o Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e atua na área da educação principalmente com políticas públicas educacionais, educação popular, direito à educação de pessoas privadas de liberdade, desigualdades e diversidades na educação.
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