Apesar da grande demanda potencial, há cada vez menos turmas de EJA no estado. Modalidade exige esforços diferenciados para assegurar permanência
Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira
A Educação de Jovens e Adultos (EJA) é direito de qualquer pessoa que não concluiu a educação básica. No Brasil, esse número pode chegar à casa de 80 milhões de pessoas. Apesar da imensa demanda potencial, as notícias mais comuns sobre a modalidade têm sido os anúncios de fechamento ou remanejamento de turmas, o que mantém e agrava desigualdades educacionais e sociais.
No estado de São Paulo, onde quase 12 milhões de pessoas são elegíveis para a EJA, o cenário não é diferente. Em 2023, haviam 85.515 matrículas a menos na EJA presencial do que em 2020, segundo divulgado por nota técnica da Rede Escola Pública e Universidade (REPU). Foi uma queda de 61.9% nas matrículas, além da redução de 35.3% das matrículas na EJA semipresencial. Em abril de 2024, uma matéria do G1 com dados do Censo Escolar também já havia apontado essa tendência no estado, indicando redução de 57% nas matrículas da EJA Ensino Médio entre 2019 e 2023 (135 mil para 56 mil matrículas).
Como comenta a professora sênior da Faculdade de Educação da USP, Maria Clara Di Pierro, o processo de redução de matrículas nas redes municipal e, mais acentuadamente, estadual “é um processo que resulta de uma combinação de diversos fatores, como a inadequação de políticas públicas, o modelo escolar muito pouco atrativo e com questões de qualidade, e a falta de horizontes para jovens e adultos das camadas populares permanecerem na escola”. É um cenário que foi agravado na pandemia, mas que já vinha antes dela.
A tendência de queda no número de matrículas da EJA é nacional, reconhecida pelo Ministério da Educação como o grande desafio da modalidade. Ela reflete o sucateamento e abandono de quase todas as políticas para a modalidade na última década e que fazem com que o país esteja muito longe do patamar desejado para 2024 segundo previa o Plano Nacional de Educação (PNE). Como mostra o último balanço da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, foram mais de um milhão de matrículas perdidas na última década. Apesar de iniciativas recentes, como o Pacto Nacional pela Superação do Analfabetismo e Qualificação da Educação de Jovens e Adultos, o cenário ainda deve demorar a ser revertido. E dadas as especificidades da EJA, para isso acontecer é preciso muita vontade política. Até lá, estudantes, movimentos e demais entidades e membros de comunidades escolares lutam para que o cenário não se agrave ainda mais.
Desafios da EJA
A Educação de Jovens e Adultos é historicamente subfinanciada. Por exemplo, até 2023 o repasse financeiro para cada matrícula de EJA via Fundeb era menor do que para um aluno do ensino fundamental regular. Isso em uma modalidade marcada por acolher estudantes trabalhadores e trabalhadoras, com suas necessidades e desafios próprios de acesso e permanência.
Maria Clara Di Pierro, professora sênior da FEUSP, destaca a necessidade das políticas públicas olharem para a EJA com lentes próprias e não com o mesmo olhar da escolarização obrigatória para crianças e adolescentes. Essa é uma grande demanda de quem está no chão da escola e sabe as condições de vulnerabilidade de grande parte de alunas e alunos da Educação de Jovens e Adultos. “O vínculo dos estudantes da EJA com a escola é intermitente. Eles vão e voltam. São sim persistentes, mas têm dificuldade de conciliar os estudos com o trabalho e outros arranjos de vida e de construir um projeto a médio prazo. E isso é lido como evasão”, exemplifica a professora, reforçando que as respostas para um problema multideterminado precisam ser também múltiplas e intersetoriais.
A permanência na escola depende também de fatores como moradia, renda, transporte público e alimentação. Por isso, medidas como transferência de matrículas de EJA para outras unidades, um movimento que tem sido comum em São Paulo e no Brasil, pode ter impactos na permanência e aumentar o abandono escolar. Essas transferências ocorrem sob o nome de “nucleação”, que é quando várias turmas de EJA são transferidas e concentradas em uma única unidade. “É possível dizer que é ‘racional’ nuclear se há, por exemplo, poucos alunos e funcionários à noite. Mas ao fazer isso a EJA deixa de ser ofertada em várias escolas para ser ofertada em apenas uma. Fora o ônus do deslocamento, a falta de vínculo com a comunidade e com o território. Em outras palavras, é uma política contraproducente”, resume a professora Maria Clara Di Pierro, da FEUSP.
O cenário paulista
O sucateamento da modalidade também é realidade o cenário do maior estado do país, onde os números mostram que houve, além de redução na oferta de EJA, redução na oferta do do ensino médio regular no período noturno. A nota técnica “Redução na oferta da Educação de Jovens e Adultos e do ensino noturno na Rede Estadual de São Paulo, 2020-2023”, da REPU, traz vários dados que dão conta do problema:
- A EJA presencial perdeu 61,9% das matrículas entre 2020 e 2023, período no qual desapareceram 85.515 matrículas.
- As turmas da EJA presencial também diminuíram: eram 1945 turmas a menos em 2023, e quase 90% dessas turmas que deixaram de existir eram ofertadas à noite.
- O noturno concentrou 99% do total de matrículas perdidas de EJA no período.
- A EJA semipresencial perdeu 35,3% das matrículas entre 2020 e 2023.
- As matrículas do ensino noturno regular também tiveram queda de 8.7%.
- As perdas de matrículas foram ainda mais acentuadas nas escolas que aderiram ao Programa Ensino Integral (PEI) a partir de 2020. No período, 312 dessas escolas interromperam o atendimento à EJA e 470 deixaram de ofertar vagas no período noturno, levando a uma redução de 90.184 matrículas no período noturno.
- As escolas que aderiram ao PEI a partir de 2020 perderam 84,5% das matrículas da EJA e 50,9% das matrículas do ensino noturno.
A Secretaria de Educação (Seduc) do Estado informou, em nota para essa reportagem, que hoje no estado de São Paulo existem 2,9 mil turmas em 793 escolas que ofertam a EJA, atendendo cerca de 66,7 mil alunos e alunas, e que qualquer estudante elegível para esse nível de ensino pode se matricular a qualquer momento do ano em uma unidade de ensino, em postos do Poupatempo ou pela Secretaria Escolar Digital (SED). A Pasta não comentou sobre as variações no número de matrículas ao longo dos anos.
A nota da REPU, que usa dados fornecidos pela Seduc, reconhece que os anos de 2020 e 2021, os de maior impacto da pandemia de Covid-19, foram atípicos e tiveram maiores índices de desistência e abandono escolar, mas defende que isso não é suficiente para explicar a queda nas matrículas. Isso porque a perda geral das matrículas na rede de ensino no mesmo período foi de 6.2%, muito distante dos mais de 60% na EJA.
O fato da quase totalidade das matrículas e turmas perdidas estarem no período noturno sugere, para as e os pesquisadores, quais políticas educacionais impactam as vagas nesse período, caso do Programa Ensino Integral (PEI). Implementado em 2012, o PEI tem jornada de sete horas e as escolas que aderiram ao modelo representam 45,2% da rede estadual paulista. Em muitos municípios há uma única escola estadual disponível. O argumento de que as escolas PEI aprofundam desigualdades educacionais baseia-se no fato de que estudantes trabalhadores e trabalhadoras muitas vezes só podem frequentar a escola em um turno, e não em período integral. Portanto, acabam se afastando da escola.
A adesão de escolas ao modelo cívico-militar – uma das bandeiras do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) – também impacta a oferta da EJA. A pesquisa da geógrafa Rafaela Miyake mapeou o perfil das primeiras escolas a aderirem ao Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM) observou que, em São Paulo e no resto do Brasil, muitas unidades fecharam turmas da EJA e do noturno ao aderirem o programa. Isso porque as escolas, para serem elegíveis, não poderiam ofertar essas modalidades.
Na avaliação da professora Maria Clara Di Pierro, especialista em Educação de Jovens e Adultos na FEUSP, há uma “contrapolítica” no estado de SP em relação à EJA, que resulta na diminuição das matrículas. A nível nacional, a professora critica a falta de sanções – por exemplo, financeiras – aos municípios e estados brasileiros que descumprem suas obrigações constitucionais de ofertar Educação de Jovens e Adultos, já que em muitos municípios essa modalidade não é oferecida.
Na nota enviada à reportagem, a Seduc informa que tem “investido na ampliação das oportunidades de ingresso para estudantes na Educação de Jovens e Adultos” e que a Secretaria “também realiza constantemente campanhas de busca ativa para incentivar o retorno de estudantes que interromperam os estudos, em qualquer série oferecida pela rede estadual, incluindo a modalidade de EJA. Caso haja demanda, novas turmas podem ser abertas”.
A professora da FEUSP, Maria Clara Di Pierro, pontua que as pesquisas na área mostram que a demanda tem nuances. Embora gestores sempre citem a baixa demanda como motivo para fechamento de turmas, ela lembra que é preciso mobilizar e construir essa demanda, com ações mais eficazes de divulgação e busca ativa. “É preciso ação sistemática e organizada do poder público para pensar promoção e a permanência, porque hoje não há políticas de permanência e nem um modelo que considere a intermitência do vínculo”, critica. “Os dados mostram que há milhões de pessoas de demanda potencial, o que acontece é que essa demanda não está manifestada, não bate na porta da escola no momento do planejamento do ano letivo”, diz. A professora lembra que, dado o tamanho da demanda no estado de São Paulo, é possível [e desejável] investir em vários modelos da EJA que se adaptem aos diferentes públicos, inclusive o autoinstrucional. “O desafio é fazer uma oferta diversificada de modelos altamente flexíveis sem rebaixar a qualidade, sem ser majoritariamente à distância”, finalizou.
Comunidades escolares resistem
As comunidades escolares afetadas pelos fechamentos ou remanejamentos têm se manifestado contra esse movimento. É o caso do CIEJA Rose Mary Frasson, cuja comunidade tem se mobilizado em vários protestos nas últimas semanas, e também da escola estadual Dr. Décio Ferraz Alvim, que ganhou visibilidade após um protesto de estudantes em setembro ser interrompido pela entrada da Força Tática da Polícia Militar. O ocorrido foi divulgado por parlamentares como o deputado estadual Carlos Gianazzi (PSOL), e o protesto foi tema de audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) no mesmo mês. Na audiência, que também abordou fechamentos e supostas perseguições em outras unidades da rede estadual, vários estudantes e professores da EE Dr. Décio Ferraz Alvim narraram os acontecimentos da escola, acusando os gestores responsáveis de perseguição política em represália à movimentação comunitária pela permanência da EJA e do noturno.
A Secretaria de Educação do Estado informou, por nota, que não houve fechamento de turmas da EJA na unidade, que ela continua oferecendo o modelo e está com matrículas abertas. “Todos os estudantes têm vaga garantida na rede estadual, que ajusta o atendimento conforme a demanda”, diz o comunicado. A informação de que a EJA segue em vigor é confirmada por estudantes da unidade ouvidos para esta reportagem. O que explicam – e isso também é mencionado na audiência pública – que o que foi comunicado não era o fechamento imediato e sim que não seriam abertas novas turmas a partir de 2025 – portanto, a unidade não ofertaria mais EJA após a formatura dos atuais educandos e educandas. Além disso, profissionais relatam que o número de turmas na escola já vem diminuindo ao longo dos anos, apesar da demanda.
Segundo os e as estudantes – que são de turmas e modalidades diferentes – essa notícia foi dada à gestão da escola pela diretoria de ensino, e o então coordenador pedagógico visitou todas as salas para informar a situação. Isso mobilizou estudantes, que realizaram assembleia onde foi deliberada uma visita à Diretoria de Ensino responsável pela unidade. A caravana foi ouvida pela entidade – e após essa visita algumas vagas de EJA que tinham sido remanejadas para outra escola reabriram -, mas pouco tempo depois dois profissionais da escola foram afastados: a diretora e, logo em seguida, o coordenador pedagógico.
“Fiquei muito bravo [com o fechamento] por conta do trabalho sério de conscientização que tínhamos conseguido fazer. Alunos e professores começaram a discutir a questão, e eu me coloquei ao lado dos alunos. Eles fizeram assembleia na escola pra decidir passos a serem tomados e uma das deliberações foi uma manifestação em frente à Diretoria de Ensino, da qual participei. Fui o único membro da gestão lá [na manifestação]”.
Ex-coordenador pedagógico da E.E Dr. Décio Ferraz Alvim.
Com a troca de quadros docentes em meio à mobilização estudantil, estudantes do noturno se organizaram para um protesto pacífico. O objetivo era, segundo elas e eles, conseguir conversar com a nova diretoria sobre o ocorrido e compreender o que estava por trás do afastamento, além de manifestar apoio à manutenção das salas da EJA e ao ex-coordenador.
“Um dia após minha cessação os alunos não voltaram para a sala de aula, pois queriam saber da diretoria o que estava acontecendo. Eu havia dado a minha palavra que estaria junto com eles contra o fechamento e reivindicando o retorno das matrículas que tinham sido tiradas daquela unidade. Foram os alunos que cobraram diretamente a nossa gestão quando souberam que algumas vagas não seriam mais abertas.
Ex-coordenador pedagógico da E.E Dr. Décio Ferraz Alvim.
O corpo discente se organizou para, após o intervalo, não voltar às salas de aula até conseguirem dialogar com a Direção. O diálogo não veio, mas um grupo de estudantes foi recebido na sala da Direção. Não muito tempo depois, a Força Tática apareceu na porta da escola, entrou na unidade e, segundo estudantes, agiu para tirá-los de dentro. Todas as pessoas ouvidas relataram truculência policial e confirmam que ao menos um aluno da EJA, que é negro, foi revistado pelos policiais, situação que teria sido interrompida somente após ação de outros professores e professoras. O caso foi denunciado na Audiência Pública da ALESP, que também exibiu vídeos de estudantes, com medo, saindo às pressas da escola.
Também foi relatado que a direção aceitou conversar com um pequeno grupo de estudantes, e que, passada a confusão inicial, alguns alunos e alunas que ficaram na escola foram convidados e convidadas a dar depoimento aos policiais sobre o que aconteceu. Na manhã seguinte, houve outra movimentação estudantil e dessa vez a polícia, embora acionada, não chegou a entrar na escola, por ação de profissionais da unidade. Desde o episódio, segundo as pessoas ouvidas, impera o medo entre estudantes e profissionais, e a escola agora convive com patrulhas policiais.
Por telefone, a assessoria da Seduc informou que o protesto estudantil era motivado pela saída de um membro do corpo docente e não pelo fechamento de turmas de EJA, e não comentou o caso. Na audiência pública realizada na ALESP no dia 25 de setembro, o deputado Carlos Gianazzi informou que o Dirigente de Ensino havia sido convocado para depor na Comissão de Educação do Estado e que o comando geral da Polícia Militar também teria que dar explicações sobre a ação ocorrida na escola. Além disso, o deputado afirmou que o caso foi encaminhado à Defensoria Pública do Estado, ao Ministério Público Estadual e ao Tribunal de Contas.
Na unidade, as turmas seguem abertas, mas a mobilização foi afetada pelo clima de medo, perseguição e autocensura instalado após a intervenção policial. Ao mesmo tempo, um sentimento de revolta e injustiça:
A EJA está funcionando, mas nos dizem que vai fechar. Nós vemos fechar em outras escolas e temos medo que ano que vem esse assunto seja retomado e não tenha ninguém para nos proteger. Nosso medo é que fechem a EJA. (….) A escola está bem diferente, o clima bem pesado. Todo mundo ficou muito assustado, tanto que no dia seguinte [ao protesto] muita gente faltou. Quando eu vi a Força Tática fiquei em choque, não sabia o que esperar, quais seriam os próximos passos da polícia. Está todo mundo acuado, mas revoltado.
Estudante da E.E Dr. Décio Ferraz Alvim.