Fenômeno observado no município também foi anunciado na rede estadual pelo secretário no início do ano, afetando o dia a dia das comunidades escolares

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira
Desde o início do ano, profissionais da gestão escolar da rede estadual de São Paulo, mesmo efetivos, vão trabalhar sem saber por quanto tempo permanecerão naquele cargo. Segundo os relatos, diretoras e diretores têm sofrido constante assédio das Diretorias Regionais de Ensino e da Secretaria Estadual de Educação (Seduc) para apresentar resultados nas plataformas digitais adotadas pelo estado, independente de quaisquer limitação contextual ou do território. Como resultado da rotina de medo, desvalorização e insegurança laboral, as e os profissionais estão sobrecarregados/as e adoecendo, além de cerceando projetos pedagógicos em nome das métricas desejadas.
“A pressão exercida por esse governo é a maior de todos os tempos, atuando de forma ultraverticalizada, utilizando vigilância e punição sobre o comportamento, o que tem gerado adoecimento na categoria. Parte da minha equipe está doente e não consegue mais produzir. Os diretores estão apavorados e não conseguem trabalhar, temendo, por exemplo, fazer uma atividade que, por ficar mais próxima do aluno, fique mais distante da plataforma – e isso faça a nota baixar e cause afastamento”, resume Diogo*, diretor efetivo de uma escola estadual na grande São Paulo.
Para esta reportagem, a Ação Educativa ouviu quatro profissionais efetivos da rede estadual: três da Direção e um da docência, cujos relatos serão compartilhados a seguir. Todos relataram uma piora nas condições de trabalho desde 2024, além de endurecimento no cerceamento pedagógico e coerção para a adesão às plataformas, com punição para quem não apresentar os números desejados. Todas as pessoas entrevistadas sabiam de vários outros casos de afastamento recentes, e chegaram a nomear oito escolas que teriam tido diretores afastados em um único dia. Entramos em contato com a assessoria de imprensa da Seduc solicitando o número atualizado de afastamentos, entre outros questionamentos, mas não houve resposta.
Afastamentos na rede municipal
O fenômeno de afastamento dos diretores da rede pública ganhou os holofotes porque no dia 23 de maio o Diário Oficial publicou o afastamento de 25 profissionais da rede municipal devido ao desempenho dos alunos em avaliações externas. Segundo o G1, eles foram comunicados um dia antes. A Seduc da capital alegou que as e os servidores foram convocados a participar de um programa de requalificação chamado Juntos pela Aprendizagem e que o afastamento se justificava pelo desempenho obtido no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e no Índice de Desenvolvimento da Educação Paulistana (Idep) de 2023.
No entanto, análise divulgada pela Rede Escola Pública e Universidade (REPU) argumenta que essa justificativa não se sustenta, uma vez que as escolas com diretores afastados não são as que têm os piores resultados, estando na verdade próximas da média municipal. Apenas 12 escolas estão entre as 25 com menor desempenho no Ideb. Além disso, somente três delas estão entre as que têm menor desempenho quando consideradas as metas individuais de cada escola no Ideb. Entre as escolas cujas direções foram afastadas está, inclusive, a 11ª unidade mais bem colocada de toda a rede. A nota técnica da REPU também verificou que critérios diferentes foram considerados para aferir as escolas, considerando-se, em muitos casos, a menor nota entre os dois índices. Por isso, afirmam os autores, a decisão não foi motivada por critérios objetivos.
O afastamento tem sido amplamente questionado, e a Prefeitura recuou com alguns desdobramentos. O Ministério Público de São Paulo pediu que a gestão municipal esclarecesse os motivos que levaram ao afastamento, as bases legais da medida e se os gestores puderam se defender antes da decisão. Universidades, parlamentares e movimentos sociais também têm se movimentado para continuar a pressão. A prefeitura da cidade nega que os afastamentos tenham relação com a privatização da gestão de unidades anunciada meses antes. Em entrevista à Folha, o secretário Fernando Padula afirmou que “não se trata de um processo punitivo, como estão fazendo parecer. É um processo de dar as mãos e apoiar esse processo de desenvolvimento”. Docentes, no entanto, contestam essa ideia.
Em artigo publicado no site Outra Palavras, a educadora Barbara Pontes e o educador Cláudio Marques da Silva Neto relatam a precariedade do curso de formação para o qual os profissionais foram encaminhados e defendem que estes estão sendo responsabilizados por problemas estruturais que vão além do escopo de uma escola. “Se antes os resultados do IDEB e do IDEP eram usados para criar rankings e impor o constrangimento às escolas com baixo desempenho, agora passou a ser usado para responsabilizar e desmoralizar a gestão escolar. Nesse processo (…), abandona-se a ideia de responsabilizar a unidade escolar e passa-se à execração pública de um dos seus profissionais. Com isso, transmite-se a falsa mensagem de que os problemas da educação da cidade de São Paulo são unicamente de natureza endógena ao contexto escolar, sem responsabilizar a política pública municipal (…)”.
O professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP) e doutor em Direito do Estado, Salomão Ximenes, classifica os afastamentos na rede municipal como “um caso típico do que tem sido denominado Legalismo Autoritário: uma estratégia de poder adotada por governos reacionários para debilitar as instituições democráticas, entre elas a gestão pública e democrática das escolas. Trata-se de usar as próprias instituições jurídicas para minar o Estado Democrático de Direito”, explica. Salomão refere-se à Lei 18.221/2024, que embasa essas decisões e prevê o afastamento do/a Diretor/a no âmbito de um Plano de Desenvolvimento Institucional.
Para o professor da FEUSP, essa previsão é contrária aos preceitos de gestão democrática inscritos na LDB e na meta 19 do Plano Nacional de Educação (PNE). “No entanto, até que sua ilegalidade seja reconhecida pelo Judiciário, passa a ser regulamentada e aplicada pelo prefeito, com o objetivo de gerar um fato consumado irreversível”.
Rede Estadual: nova resolução e questionamento das cifras oficiais
O afastamento em massa na capital fez com que aparecessem as primeiras denúncias de que algo parecido também acontecia na rede estadual de São Paulo.
Em maio, o G1 noticiou o afastamento de diretores de escolas estaduais com baixo desempenho no Saresp e no Saeb, duas avaliações de larga escala (de abrangência estadual e nacional, respectivamente). À época, a Secretaria de Educação do Estado afirmou que ao menos seis diretores efetivos tinham sido afastados desde o final de 2024 com base nos critérios estabelecidos pela Resolução nº 12, de 23 de janeiro de 2025 (que altera a Resolução SEDUC nº 4, de 19 de janeiro de 2024), e que a avaliação considera também indicadores como frequência dos estudantes, participação nas provas bimestrais, além das plataformas digitais e da vulnerabilidade da unidade.
A Resolução 4/2024 dispõe sobre a avaliação de Desempenho de Diretores Escolares/Diretores de Escola, determinando que sejam classificados com uma nota baseada nos critérios citados – nota esta que deve ficar disponível em um painel de dados. Bimestralmente, as Diretorias de Ensino avaliam esse desempenho, cabendo reconsideração da/o diretor ou diretora apenas uma vez. Quem tiver desempenho classificado como “Insatisfatório” pode ser removido para outra unidade escolar, cessado e designado para outras funções relacionadas ao cargo de origem (nos casos em que a/o servidor/a não é originalmente diretor/a) ou ser submetido a um curso de capacitação.
“Meu entendimento é que essa resolução fere a estabilidade que a Constituição, o Estatuto do Magistério e planos de carreira garantem ao profissional efetivo. A gestão não teria a prerrogativa de retirar a/o profissional da escola que é sua sede, exceto se há algum fato que implique em processo administrativo – o que não se relaciona com o não atingimento de índices educacionais”, argumenta a professora Márcia Jacomini, da Unifesp e do Grupo Escola Pública e Democracia (GEPUD).
Nenhum dos profissionais afastados está sendo demitido ou exonerado do serviço público. Mas estão sendo removidos, na avaliação de Jacomini, de forma unilateral e com base em uma argumentação frágil. “Por que os índices não foram atingidos? Como fazer um registro nas plataformas se não há professor ou se não há substituto? E, nesse caso (falta de professor), isso é responsabilidade da direção ou da Secretaria?”, questiona. “O que indago é a existência de elementos que provem que o diretor ou diretora efetivamente não está cumprindo suas obrigações do ponto de vista do processo educativo”.
Vários setores, como grupos de pesquisa e sindicatos, têm tentado levantar o real número de afastamentos via Diretorias de Ensino ou Lei de Acesso à Informação, por argumentarem que os seis casos admitidos pela Seduc não condizem com a realidade. Jacomini, no âmbito de uma pesquisa coordenada por ela em parceria com outras universidades e financiada pela FAPESP, também conduz um levantamento. Esse estudo ainda não foi finalizado ou teve resultados publicados, mas já indica que a cifra vai bem além do que foi divulgado oficialmente.
Em Nota Técnica lançada recentemente, a REPU e GEPUD analisaram dados até meados de junho de 2025 do Diário Oficial do Estado de São Paulo, indicando que apenas 20 casos foram publicados – sendo 18 diretores com designação do cargo cessada e 2 diretores efetivos removidos de suas escolas. Segundo a nota, “o processo de punição pelo não cumprimento das metas estabelecidas para as plataformas tem se dado de forma pouco transparente, estando totalmente à margem do debate público”.
Isso também é o que afirmam os profissionais ouvidos ao longo desta reportagem. Por exemplo, um professor de Ensino Médio relata que a diretora de sua escola foi pega de surpresa com a notícia de seu afastamento e alegou ter sido coagida a assinar documentos que afirmavam que a iniciativa partiu dela.
“No dia seguinte à notícia do afastamento já tinha uma outra pessoa para iniciar a transição e ao fim da semana, a antiga diretora já não estava mais na escola. Ou seja, não foi uma transição feita de forma planejada. Ela [diretora afastada] contou que foi constrangida a pedir o afastamento, provavelmente para não constar no Diário Oficial, por isso tenho certeza que no estado os números passam os 25 da rede municipal, e sem gerar nenhum desgaste político”, diz Chico*. “A notícia nos pegou de surpresa porque em tese nossa nota estava subindo nas plataformas. A nova profissional ainda não teve tempo de conversar com toda a escola, mas o que fica claro é que é uma pessoa que chega com a missão de subir índices, sem outros compromissos”, acrescenta. “E o medo já foi instaurado na escola, sobretudo nas e nos professores da categoria O (sem estabilidade), porque ficam na mão da nova gestão. Ou seja, os docentes já estão com medo, já se antecipam para ‘andar na linha’”.
Um ponto reforçado por Márcia Jacomini, professora da Unifesp, é que o problema não é a possibilidade de afastar profissionais, mesmo concursados, e sim com base em quê e como têm se dado esses afastamentos. “Nunca se defendeu que um servidor fique no cargo independente de qualquer comportamento. O que acontece é que as justificativas pedagógicas, educativas e políticas para o processo que vemos agora não se sustentam. Os motivos pelos quais as escolas não atingem as metas não estão relacionadas ao trabalho da direção”, reforça.
Há espaço para autonomia?
Em uma live direcionada a professores e gestores realizada no início deste ano letivo, o Secretário de Educação do estado, Renato Feder, ressaltou que 2025 seria o ano da “autonomia” nas unidades, e que o grande objetivo da Secretaria eram os resultados – principalmente no Saresp e no Saeb. “O que esperar da secretaria esse ano? Apoiar, dar as ferramentas e cobrar resultados. Eu vou cobrar resultado, então foquem no resultado. (…) Entregamos resolução semana passada: diretor que não entregar Saresp está passível de cessão. (…) Resultado, eu preciso de resultado”, diz ele.
A Nota Técnica lançada no dia 3 de julho pela REPU e GEPUD mostra que não há correlação positiva entre uso de plataformas e melhoria no Saresp. Ou seja: maior uso de plataformas não necessariamente implica em melhores índices em avaliações de larga escala. “Estamos diante de uma política de plataformização que tem sido denunciada inclusive pelos alunos, que reclamam que não estão aprendendo nada”, defende a professora Márcia Jacomini. “A própria política educacional está produzindo esses resultados [mau desempenho] e os professores e diretores estão sendo responsabilizados”.
A avaliação de Márcia encontra eco no relato de Rodrigo*, diretor de uma escola na capital que é enfático em afirmar que a autonomia propagada pelo Secretário no início do ano não faz parte de sua realidade.
“Isso foi um discurso vazio, não é o que acontece no dia a dia. Nós estamos cada vez mais sem autonomia, a pouca que resta é a que a legislação nos garante, de aceitar alguma coisa ou não. No mais, é só ameaça e pressão cotidiana. Hoje, por exemplo, recebi uma reclamação porque na semana passada não conseguimos acompanhar todas as 18 aulas que devemos acompanhar semanalmente. Mas a vice-diretora ficou doente e uma outra profissional está de licença, então não conseguimos assistir 6 aulas, fora que a semana foi mais curta pelo feriado. Nada disso é levado em conta. E nós recebemos essas atualizações em tempo real, o que aumenta a pressão o tempo todo. Ou seja, temos muito pouca autonomia para pensar projetos pedagógicos alternativos, ou atividades como um sarau, uma roda de conversa. Tem que ser sempre tablet na mão, plataformas, plataformas e plataformas. E os alunos reclamam que não aprendem com elas”.
Rodrigo, que já foi chamado à Diretoria de Ensino para avaliação, acredita que o objetivo é reduzir o número de diretores efetivos para que políticas como de militarização ou ensino integral tenham mais adesão sob a gestão de novos profissionais. “Aqui estamos todos empenhados para melhorar nas plataformas, mas a pressão é o tempo todo. Há muito estresse, momentos de clima muito ruim por causa dessa pressão. A direção pressionada pressiona a coordenação, que pressiona o professor, que pressiona o aluno. A cada dia há mais controle e gerencialismo, a escola sendo administrada como se fosse uma empresa”, diz ele, que reforça a incompatibilidade do processo educativo com a centralidade das plataformas: “Não dá para pensar a médio e longo prazo. E educação é processo, não existe mágica, mas nós estamos fazendo o contrário. A plataforma poderia ser uma ferramenta tecnológica incrível, mas o objetivo não é aprendizagem, é financeiro e de controle. O aluno apenas clica, não raciocina ou elabora em cima do conteúdo. É a plataforma pela plataforma. Dali não se tira planejamento ou reflexão, é só o índice que interessa”.
A nota mencionada anteriormente também questiona os usos dos recursos públicos – quase R$ 500 milhões em 2024, entre plataformas próprias da Seduc e contratadas de empresas privadas – “com insumos didático-pedagógicos cuja aquisição é justificada sem embasamento teórico, sem discussão com as comunidades escolares, sem considerar a realidade das escolas e que, ainda por cima, não produzem a esperada melhoria nos resultados de aprendizagem”.
Relatos de adoecimento e pressão em diversas instâncias
Outro ponto trazido pelos profissionais ouvidos para essa reportagem, além do medo, pressão e estresse cotidianos, foi a dificuldade em cumprir as metas estabelecidas pela Secretaria Estadual de Educação. Seja porque desconsiderariam contextos e nuances (por exemplo: licenças médicas, feriados, ou mesmo falta de infraestrutura e profissionais nas escolas), seja por desorganização na apresentação às unidades e suas gestões. A diretora Jaqueline*, que dirige uma escola na grande São Paulo, relata, por exemplo, dificuldades na aplicação do Saresp.
“Minha escola ficou com participação insuficiente no Saresp, mas no primeiro dia de provas de uma turma nós ficamos sem internet. Também tivemos caso de mudança no Wi-fi em dias de outra prova, além de confusões na avaliação institucional. Então há muita desorganização, de o que foi orientado um dia deixar de valer, coisas assim. Talvez a desorganização seja o projeto”, critica ela, que também diz que não existe “não fazer” plataformas, havendo pouca autonomia.
Do mesmo reclama o diretor Diogo*: “essa gestão vem estabelecendo metas impossíveis de serem cumpridas, como se fosse uma lógica para justificar o fracasso dos diretores e dos profissionais de educação. O diretor pode ser punido tanto por não atingir o Idesp como as metas semanais de plataformas. Então não tem outro caminho além do medo como prática, como metodologia. Há uma transferência de responsabilidade para a escola de demandas que seriam do governo e que ali são impossíveis de cumprir. Assim, na minha opinião, fica mais fácil tornar as escolas em PEI, parceria público-privada, ou militarizá-las”.
Jaqueline relata também – e não foi a única a fazê-lo – que o afastamento não se limita à direção. “A Resolução 4/2024 é um marco, mas ela ganhou força com a saída de dirigentes regionais, que também foram pressionados. Temos relatos de dirigentes afastados porque não concordavam com o afastamento de algum diretor/a. O que sentimos é que as cabeças vão sendo penduradas para todo mundo ver que pode ser o próximo”, diz. “Qualquer detalhe pode causar o rebaixamento da nota, e por consequência o afastamento dos diretores. E o que eu queria enfatizar é que os afastamentos estão sendo feitos em cima de uma farsa, porque temos profissionais afastados por conta de um ou dois décimos. O que significa isso a longo prazo? Provas como o Saresp e o Saeb são uma fotografia de um momento – se aquela escola realmente funciona na sua integralidade de acolhimento, considerar só essa nota é um retrato embaçado da realidade. Não é o décimo a mais que atesta a qualidade”, matiza Jaqueline. Ela, assim como o professor Chico, ainda ressaltam a falta de laços com a comunidade escolar dos novos profissionais e, principalmente, a quebra do vínculo construído ao longo de anos.
Apesar da situação dramática de profissionais e estudantes da rede de ensino estadual paulista, o diretor Rodrigo, de uma escola da capital, lembra que há muita luta e resistência aos ataques do Governo Tarcísio e Feder: “A luta coletiva vai fazer a gente reverter essa situação. É sindicato chamando o povo, é a sociedade civil se mobilizando, os alunos protestando contra isso. É desse jeito que a gente vai vencer, isso não será eterno não. Eu tenho muita esperança que logo essa tempestade passe”, disse.