Entidades defendem FUNDEB permanente, capaz de expandir as matrículas na Educação Básica e garantir a valorização dos profissionais da área.
Divulgada hoje (24/06), nota técnica pretende informar a sociedade e subsidiar parlamentares para o debate sobre a renovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB).
O FUNDEB é um fundo composto por recursos de tributos estaduais e municipais que são distribuídos de acordo com o número de estudantes matriculados em cada rede. Além dos impostos arrecadados de estados e municípios, o fundo conta também com um repasse da União, que equivale a 10% do total arrecadado pelos outros entes federados. Além disso, ao contrário de outras verbas para a educação, o FUNDEB não está sujeito às regras do Teto de Gastos (EC95/2016), que congelou o investimento em educação até 2026.
O modelo atual do Fundeb (2007-2020) subsidia mais de 40 milhões de matrículas de redes estaduais e municipais, desde à creche até o Ensino Médio. Apesar de ser o principal mecanismo de financiamento da Educação Básica no país, o fundo está com os dias contados: o modelo vence em 2020 e o Congresso deve aprovar uma nova proposta até o próximo ano.
As entidades avaliam que o modelo de fundo em vigor não tem sido capaz de universalizar a Educação Básica obrigatória (para a população de 4 a 17 anos), zerar a demanda de matrículas em creches (para a população de 0 a 3 anos), alicerçar a Educação de Jovens e Adultos (EJA) e garantir um padrão mínimo de qualidade para todas as matrículas ofertadas nas escolas públicas.
Com base nisto, defendem na nota que o fundo seja permanente, com recursos capazes de expandir matrículas na Educação Básica pública em todas suas etapas e modalidades, garantindo um padrão mínimo de qualidade e a valorização dos profissionais da educação.
Para que os recursos sejam suficientes para a adequada efetivação do direito à educação no país, o documento enfatiza a necessidade de incluir o Custo Aluno-Qualidade inicial (CAQi) como referência para o Fundo. O CAQi é um padrão mínimo de investimento que calcula quanto custa por ano, por etapa e modalidade da Educação Básica, por aluno, para se garantir insumos de qualidade em toda escola do país. Esses insumos vão desde a infraestrutura dos prédios, todos inclusivos, passando pelos materiais permanentes, até a garantia de condições de trabalho, formação e valorização das/os profissionais da educação e cumprimento do piso do magistério que atualmente é de R$ 2.577, 74 para 40h semanais. .
Intitulado “Novo Fundeb: em nome de um consenso que promova o direito à educação”, o documento é assinado por: Ação Educativa, Action Aid, Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (FINEDUCA), Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA-CE), Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (MIEIB), União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME), União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME).
Mais de 1200 atividades autogestionadas aconteceram em todo o país em defesa do monitoramento e da implementação do Plano Nacional de Educação (PNE)
Com o tema “Educação: já tenho um Plano! Precisamos falar sobre o PNE”, a Semana de Ação Mundial 2019 promoveu, entre os dias 02 e 09 de junho, mais de 1200 atividades autogestionadas. Durante uma semana, eventos acadêmicos, educativos e políticos foram realizados em escolas, praças públicas, bibliotecas comunitárias, universidades e secretarias de educação para debater o balanço das metas no 5º ano do Plano Nacional de Educação – Lei 13.005/2004.
“As 1200 atividades registradas demonstram muito mais que esse número, dado que o registro é realizado por um responsável pela atividade e muitas outras pessoas se unem ao debate. As ações, em grande parte político-pedagógicas, são de muita qualidade, gerando uma formação desses sujeitos, residentes em todos os estados do país, em torno da principal legislação para a área e isso reverbera através dos participantes para ainda outros, pois se tornam multiplicadores. É a formação de uma onda de cidadãs e cidadãos conscientes e envolvidos pela garantia do direito à educação no país”, analisou Andressa Pellanda, coordenadora executiva da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
Os números do PNE
O Plano Nacional de Educação foi organizado como uma agenda progressiva de cumprimento de suas metas. Isso significa que seus dispositivos estão dispostos em um cronograma de prazos, com tarefas distribuídas ao longo do tempo de sua vigência. Se uma tarefa agendada para 2015 não for cumprida, ela prejudica o andamento de outra tarefa agendada para 2016 e assim por diante. As metas estruturantes do Plano, com prazo até 2019, não foram alcançadas. Essa é a avaliação presente no Relatório de Balanço do PNE, elaborado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação e lançado no último dia 27 de maio, no auditório da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília.
O documento demonstrou que, das 20 metas da Lei, apenas 4 foram parcialmente cumpridas e as outras 16 metas permanecem estagnadas. Entre os destaques do relatório está a estagnação das metas 1, 2 e 3, referentes à universalização do acesso à Educação Básica. O lento avanço dos indicadores evidencia que, todos os anos, milhões de crianças continuam fora da creche, da pré-escola e dos ensinos fundamental e médio.
Em 2017, de acordo com a PNAD Contínua, apenas 34,1% das crianças de até 3 anos estavam matriculadas, bem abaixo da meta, de 50%. Em 2017, o aumento havia sido de apenas 2,2% em relação ao ano anterior. Já o dispositivo da meta 1 que prevê a universalização da Educação Infantil na Pré-Escola até 2016 encontra-se em atraso, pois 7% das crianças brasileiras ainda estavam fora da escola em 2017.
Situação semelhante acontece com os jovens do Ensino Médio, que ainda têm 8% de sua parcela fora da escola – outro dispositivo que previa a universalização do acesso até 2016.
Em relação à necessidade de redução das desigualdades por localização, região, classe social, previstas pela meta 8, pouco se avançou para chegar à meta de 12 anos de estudo para a população do campo, com 9,6 anos de escolaridade média; da região Nordeste, com 10,6; e dos 25% mais pobres do país, que passam, no máximo, 9,8 anos nas escolas.
A Semana de Ação Mundial e o Plano Nacional de Educação
A Semana de Ação Mundial é a maior atividade de mobilização da sociedade civil pelo direito humano à educação no mundo e desde 2003, quando foi criada, a Semana de Ação Mundial já mobilizou mais de 70 milhões de pessoas em todo o mundo, sob iniciativa da Campanha Global pela Educação. Com a coordenação da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, apenas no Brasil, mais de 1,5 milhão de pessoas foram mobilizadas em 16 edições.
O objetivo é fazer uma grande pressão sobre líderes e políticos para que cumpram os tratados e as leis nacionais e internacionais, no sentido de garantir educação pública, gratuita, equitativa, inclusiva, laica, e de qualidade socialmente referenciada para toda criança, adolescente, jovem, adulto e idoso que vive no Brasil.
Desde 2015, a edição brasileira da Semana de Ação Mundial também é dedicada a fazer o debate e o monitoramento do cumprimento das metas do PNE, já que a lei foi amplamente debatida com a sociedade e traz uma proposta de melhorar a educação para todas e todos.
Balanço realizado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação aponta estagnação na maioria dos dispositivos
Em 2019, o Plano Nacional de Educação, previsto pela Lei 13.005/2014, completa cinco anos de vigência – e também de descumprimento. Das 20 metas elaboradas para aprimorar a qualidade da educação no país, apenas 4 tiveram avanços parciais. O restante caminha a passos lentos, o que torna a efetivação do PNE ao fim de 2024 uma realidade cada vez mais improvável.
“A educação está escanteada no Brasil desde 2015, a partir dos cortes de Joaquim Levy. Há uma clara limitação econômica obstruindo a realização do PNE, mas diante da crise iniciada em 2014, todas as decisões políticas tomadas desconsideram a consagração do direito à educação, especialmente sob Michel Temer. E isso tende a piorar com Jair Bolsonaro, inviabilizando o cumprimento do PNE até 2024”, analisou Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
Elaborado pela Campanha, o relatório que analisa a execução dos artigos, metas e estratégias com prazos intermediários revela dados alarmantes. O descumprimento do Plano, consequência dos desinvestimentos dos recursos públicos na área de educação e do escanteio da agenda, necessita ser debatido com urgência pela sociedade e pelos tomadores de decisão.
Financiamento da educação em um cenário de retrocessos
Criado em 2007 e previsto no PNE, o mecanismo que calcula os valores necessários para garantir o acesso à educação pública de qualidade – chamado Custo Aluno-Qualidade Inicial e Custo Aluno-Qualidade (CAQi/CAQ) – enfrenta não só o descumprimento, como tem sido fortemente atacado por setores que defendem a lógica da privatização dos recursos educacionais.
A política de cortes que afetam a área da educação, iniciada no governo Temer com a aprovação da Emenda Constitucional 95/2016 e intensificada já nos primeiros meses do governo Bolsonaro, são o grande obstáculo atual para a universalização do acesso à educação de qualidade no país, por colocar em xeque o cumprimento das metas e estratégias estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação atual e impactando severamente também o próximo plano, com vigência entre 2024 e 2034.
O descumprimento do PNE em números
Entre os destaques do relatório está a estagnação das metas 1, 2 e 3, referentes à universalização do acesso à educação básica. O lento avanço dos indicadores evidencia que, todos os anos, milhares de crianças continuam fora da creche, da pré-escola e dos ensinos fundamental e médio.
Em 2017, de acordo com a PNAD Contínua, apenas 34,1% das crianças de até 3 anos estavam matriculadas, bem abaixo da meta, de 50%. Em 2017, o aumento havia sido de apenas 2,2% em relação ao ano anterior. Já o dispositivo da meta 1 que prevê a universalização da educação infantil na pré-escola até 2016 encontra-se em atraso, pois 7% das crianças brasileiras ainda estavam fora da escola em 2017.
Situação semelhante acontece com os jovens do ensino médio, que ainda têm 8% de sua parcela fora da escola – outro dispositivo que previa a universalização do acesso até 2016.
Em relação à necessidade de redução das desigualdades por localização, região, classe social, previstas pela meta 8, pouco se avançou para chegar à meta de 12 anos de estudo para a população do campo, com 9,6 anos de escolaridade média; da região Nordeste, com 10,6; e dos 25% mais pobres do país, que passam, no máximo, 9,8 anos convivendo com a realidade escolar.
O relatório foi lançado nesta segunda-feira, 27/05, por ocasião do Evento Nacional da Semana de Ação Mundial 2019. O painel de lançamento, intitulado “O direito à educação em retrocesso: balanço do Plano Nacional de Educação e quanto custa a educação pública de qualidade no Brasil”, contou com a participação de Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, José Marcelino de Rezende Pinto, Prof. Dr. FFCLRP/USP, membro da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), e Thiago Alves, Prof. Dr. PPGADM/UFG, co-fundador e coordenador do “Laboratório de Dados Educacionais” e coordenador do projeto Simulador de Custo-Aluno Qualidade (SimCAQ).
Com a extinção da secretaria responsável pela EJA, o fim do organismo participativo da modalidade e a interrupção da distribuição de materiais didáticos, modalidade é abandonada pelo Governo Federal.
O órgão era responsável não apenas pela modalidade de EJA em específico, como também por outras modalidades cujos sujeitos, frequentemente, são também estudantes da EJA, como a Educação do Campo e a Educação nas Prisões.
Em seu lugar, foram criadas duas novas secretarias: a Secretaria de Alfabetização e a Secretaria de Modalidades Especializadas da Educação. No decreto que as instituiu, entretanto, não há nenhuma diretoria específica dedicada à modalidade.
As estratégias e princípios da EJA tampouco aparecem no desenho atual da Política Nacional de Alfabetização. Meta dos 100 dias de governo assinada em 11 de abril, o documento tem uma única menção à Educação de Jovens e Adultos: o desenvolvimento de materiais didático- pedagógicos.
O Programa Nacional do Livro Didático (EJA), entretanto, teve sua última distribuição de livros em 2016: é o que afirma Luiz Alves Junior, diretor presidente da Global Editora, única editora no Brasil que atende estudantes de EJA no Ensino Médio.
“Temos um universo grande, de milhões de estudantes que estão marginalizados pelo governo. De jovens e adultos que não têm material para dar continuidade aos estudos, não têm acesso ao material didático há 3 anos. Este é o maior crime com estas pessoas. Eu considero isso uma tremenda traição a este povo. A preocupação da editora é colher neste momento alguma informação do governo sobre a continuidade da atenção à EJA. O próprio MEC não tem ninguém respondendo até o momento como coordenação de EJA”, relata.
Ainda agravando a conjuntura, a Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA), que reunia representantes de movimentos sociais e da sociedade civil para assessorar a política de EJA no MEC, foi extinta no início de abril por um decreto federal que modificou o Sistema Nacional de Participação Social.
Diante deste cenário de incertezas, o especial Educação em Disputa: 100 dias de Bolsonaro ouviu três especialistas no assunto:
Roberto Catelli Jr., pesquisador da EJA, doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador executivo da Ação Educativa
Sonia Couto Feitosa, doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP), professora aposentada da Rede Municipal de Educação de São Paulo e diretora do Instituto Paulo Freire
Miguel Arcanjo Caetano, representante do Fórum EJA na Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA/SECADI/MEC)
Para começar, você poderia fazer um breve panorama sobre a escolaridade de jovens e adultos no Brasil atual?
ROBERTO CATELLI: Sabemos que cerca da metade dos brasileiros com 15 anos ou mais não concluiu o Ensino Fundamental no Brasil. É uma dívida social enorme. Temos cerca de 3 milhões de matrículas e cerca de somente metade dessas pessoas concluindo um período letivo. Falta investimento do Estado na modalidade, que é marginal no país. Tem o menor orçamento e pouco se investe na formação de educadores, metodologias e criação de escolas apropriadas para jovens e adultos.
SONIA COUTO: A maioria é composta por pessoas que não conseguiram se alfabetizar na infância. Algumas tiveram uma passagem pela escola, mas não conseguiram dar continuidade por questões financeiras. É um público bastante diverso na sua faixa etária. É também diverso na questão étnica, tem indígenas e quilombolas. Temos, principalmente, pessoas de origem pobre. Pessoas do campo. Muitas mulheres. Adultos que não conseguiram terminar sua escolaridade. Alguns nunca chegaram a iniciar, outros começaram, mas tiveram que largar. São mais de 12 milhões de brasileiros.
MIGUEL CAETANO: O Brasil tem uma população em torno 25 milhões de jovens entre 15 e 29 anos ou mais de idade que não frequentam a escola e que não têm o Ensino Fundamental completo. O número de estudantes matriculados na modalidade EJA é mais de 3,7 milhões de pessoas. (INEP/MEC,2017). Da população com 15 anos ou mais de idade, há uma estimativa de 11,5 milhões de analfabetas [7,%]. (PNAD/IBGE,2017). Dito isto, é óbvio que o ideal seria fomentar polÍticas públicas para superar o analfabetismo no Brasil, compreendendo que a ação alfabetizadora deve oportunizar a continuidade dos estudos em turmas de Educação de Jovens e Adultos. Pois, do contrário, todo esforço feito a partir de 2003 com o PBA –Programa Brasil Alfabetizado seria inócuo.
E o que é imprescindível para uma boa política de EJA?
ROBERTO CATELLI: É importante levar em conta a diversidade de seus sujeitos, propondo modelos educativos que contemplem a heterogeneidade e não simplesmente um padrão homogêneo que não atende aos diversos sujeitos: idosos, jovens, trabalhadores urbanos e rurais, jovens em liberdade assistida, encarcerados e um grande conjunto de pessoas que. por diversas razões, foram excluídas da escola.
Além disso, é necessário investir em currículos adequados, criação de espaços educativos de fácil acesso para estes jovens e adultos e lançar mão de um conjunto de políticas intersetoriais que possam promover a permanência desses sujeitos nesse espaço educativo.
SONIA COUTO: Primeiro, vontade política de conhecer a EJA como direito, não favor ou caridade. Pensar que essas pessoas tiveram esse direito negado, há uma dívida social com elas. É imprescindível o reconhecimento de que essas pessoas têm direito de ler e escrever, de ter acesso à tecnologia, de ter conhecimentos matemáticos, de conhecer seu território, de saber as questões sociais que permeiam sua vida. Segundo, o financiamento. São duas coisas que andam juntas. Por mais que se tenha boa vontade, não se faz política sem recurso. E a EJA sempre foi privada disso. Teve menor índice de investimento. Às vezes, os políticos entendem a educação como gasto. Mas ela tem que ter uma centralidade e, por isto, precisa de recursos adequados. Aliado a tudo isto tem uma questão social de que muitas escolas não querem ofertar a EJA. Estados e municípios precisam ter incentivo para ofertá-la. Como nos recursos do FUNDEB os percentuais para outras modalidades são maiores, as escolas acabam valorizando outras modalidades.
MIGUEL CAETANO: A EJA necessita de muitas ações políticas para que esta modalidade cumpra seu papel social e resgate o direito à escolarização desta população que foi abandonada pelo estado. Isto exigirá, de gestores e gestoras e dos governos, compressão de que a adoção de uma política pública específica para estes sujeitos não se constrói de forma solitária, mas com a participação da sociedade como um todo, de modo a superar formas veladas, sutis e/ou explícitas de exploração e exclusão, das quais a desigualdade se vale. Para isso, será preciso revisitar os documentos já construídos por todos os movimentos que orbitam em torno da modalidade.
Quais ações, programas e políticas desenvolvidas para a EJA foram implementadas nos últimos anos? Como funcionavam?
ROBERTO CATELLI: Tivemos o Programa Brasil Alfabetizado no campo da alfabetização, programas específicos para a população do campo, como o Saberes do Campo, o Projovem e também o PROEJA, que aliou a formação escolar com a profissional. Elas conseguiram atingir públicos específicos com diferentes perfis, mas não chegaram a ter o alcance que poderiam para fazer com que o país avance no processo de escolarização de jovens e adultos.
SONIA COUTO: No começo do século passado, a preocupação com a EJA era inexistente. Só a partir de 1947 houve um dos primeiros programas que se dedicaram a jovens, adultos e adolescentes. Como outros programas, ocorreu em caráter de campanha. O grande problema que atinge a EJA é que os programas federais não são pautados em uma política, e sim em caráter de campanha, de assistencialismo. Procuram dar respostas imediatas a um problema que é secular e que precisa de uma política centrada em sua resolução.
Tivemos o sistema Paulo Freire, que foi um divisor de águas nessa questão da educação para adultos. Com a saída de Paulo Freire, o Mobral perpetuou até 1985. Foi então fundada a Fundação Educar, gerida pelo governo federal para apoiar as Secretarias na EJA. Aqui em São Paulo, esse trabalho não era desenvolvido pela Secretaria de Educação, mas pela de Bem Estar Social. Então a EJA estava deslocada de seu âmbito, que deveria ser a educação. Depois, com Collor, houve o Programa Nacional Alfabetização e Cidadania (PNAC), seguido pelo Alfabetização Solidária (PAS) do Fernando Henrique. E, desde 2003, temos o Programa Brasil Alfabetizado (PBA).
Todos eles têm caráter de repasse de recursos, não existe uma definição, um alinhamento metodológico. Há uma parceria feita com instituições que se incumbem de fazer o acompanhamento, dar formação, mas cada uma com sua linha metodológica. Então acontece de acordo com os interesses de quem está desenvolvendo. Não existe política nacional que amarre tudo isso.
MIGUEL CAETANO: 1 – O Programa Brasil Alfabetizado – PBA : que possui uma flexibilidade para atender uma diversidade regional e de público em um país com as dimensões do Brasil. Contempla várias metodologias e práticas. Teve seu início em 2003 sem garantir a continuidade da escolarização.
2 – Em 2012, após muita luta dos movimentos sociais, a Resolução/CD/FNDE nº 48, de 2 de outubro de 2012, editada para garantir a abertura de novas turmas de EJA com auxílio do governo federal.
3 – Proeja FIC: Associar cursos de qualificação profissional (FIC) a turmas de EJA (Ensino Médio ou Fundamental) novas ou em desenvolvimento.
4 – Proeja Técnico: Articular EJA e cursos técnicos, nas formas integrada e concomitante.
5 – Pronatec EJA: Matrículas de EJA (ensinos fundamental e médio) articulada à Educação Profissional
E hoje, que ações, programas e políticas têm sido desenvolvidos?
ROBERTO CATELLI: Vivemos hoje uma grande crise, não temos clareza sobre os destinos do programa de alfabetização, o Projovem foi extinto e o programas para o campo vem sendo descontinuados. Nem mesmo material didático para a modalidade está sendo distribuído pelo governo. Não há programas ou propostas no nível federal desde, pelo menos, 2016.
SONIA COUTO: O PBA ainda está sendo ofertado, mas com uma redução absurda. Para se ter uma ideia, em 2013/2014, o PBA atendeu mais de 1 milhão de pessoas. Em 2014, 7961 mil. Hoje, apenas 250. Ou seja, menos de ¼ do que se atendia.
E a população de pessoas não alfabetizadas não diminui. Porque além da oferta para alfabetização ser pequena, não há continuidade. As pessoas aprendem a ler e escrever e não conseguem vagas para seguir sua escolarização. Então, entram em um processo de esquecimento. Chegam a aprender algo, mas com o tempo esquecem. O processo tem que ser contínuo. Terminou a alfabetização, segue ao Fundamental e então ao Médio. Mas, infelizmente, as portas se fecham a cada dia.
Eu dei aula na rede pública por 31 anos. E vi como a escola acaba criando estratégias para não fazer essa oferta. Por exemplo, o aluno chegava perguntando se tinha vaga. Se falava que não. Mas para a Secretaria se falava que não havia demanda. Então, há uma demanda invisibilizada e a falsa ausência de demanda justifica o fechamento da EJA.
MIGUEL CAETANO: A partir de 2017, o retrocesso tem acabado com tudo que conseguimos construir a duras penas no MEC, inclusive permitindo, com sua omissão, o fechamento indiscriminado de turmas de EJA em todo brasil e, agora em 2019, com as indefinições no ministério e o fim da SECADI, a secretaria que se propunha ao menos ouvir os reclames dos movimentos sociais, ficamos órfãos de vez.
E quem está cuidando da EJA no MEC hoje?
ROBERTO CATELLI: Até 2018 havia a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), uma secretaria dedicada ao tema da diversidade. Com a posse de Bolsonaro, um dos primeiros atos do governo foi extinguir a SECADI. Ao que se sabe, decretou-se também o fim da política de EJA no governo federal. Embora ela tenha sido alocada formalmente na Secretaria de Educação Básica (SEB), não há diretoria ou coordenação responsável pela EJA. Ela existe só no papel, não há programa, gestor, proposta para a modalidade. O programa de alfabetização também só se refere às crianças. É trágico, considerando nossa enorme dívida social no campo da educação.
SONIA COUTO: Com a extinção da SECADI, que era a secretaria em que a EJA estava abrigada, foram criadas a SEMESP e a Secretaria de Alfabetização. Então a gente percebe que há um não lugar da EJA. A EJA não tem lugar dentro do MEC atualmente. Se o cenário está complicado para as modalidades que sempre tiveram prestígio, imagina para a EJA, que não tinha prestígio social.
A gente ainda tem alguma coisa de PRONATEC, em parceria com o Sistema S, mais voltado ao Ensino Técnico. Em São Paulo, tem o Movimento de Alfabetização de Adultos (MOVA). Mas, em nível federal, apenas o PBA.
Lastimo muito que vários órgãos de participação popular tenham sido extintos, entre eles a Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA), que era uma comissão que eu e o Catelli fazíamos parte, composta por diferentes segmentos, e que tinha por responsabilidade assessorar o Ministro da Educação no estabelecimento de uma política pública para a EJA. Mesmo em governos mais progressistas era uma missão difícil, mas tínhamos um momento de escuta. Íamos até o MEC, ouvíamos as propostas, falávamos das nossas pautas. Construímos um documento de Política Nacional de EJA, que delineava quais os pontos e diretrizes necessárias para a melhoria da qualidade da EJA no Brasil. Com a extinção desse órgão, nem este momento de escuta existe mais. Nem nós sabemos como se está pensando a política, nem o MEC ouvirá nossas demandas e pautas. Infelizmente, essa ausência de diálogo vai comprometer muito a qualidade e a oferta de EJA no Brasil.
MIGUEL CAETANO: De janeiro para cá fomos jogados no vento, não sabemos nem se ainda existimos na estrutura do MEC, pois o mesmo não se pronuncia oficialmente.
Silêncio institucional
O especial tentou contato com o Ministério da Educação e enviou à assessoria de imprensa do órgão alguns pedidos de esclarecimento sobre a política para a modalidade. Até hoje, entretanto, não houve resposta. As informações solicitadas foram:
Após a dissolução da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), as atribuições da Educação de Jovens e Adultos (EJA) migraram, formalmente, para a Secretaria de Educação Básica (SEB). No organograma do Ministério da Educação (MEC) disponível no site do governo federal, entretanto, não há nenhuma diretoria ou profissional dedicado exclusivamente à modalidade. Quem é atualmente responsável pela EJA? Em que diretoria a modalidade está alocada?
Que ações, programas e políticas serão realizadas para esta modalidade?
No site do Ministério, não há nenhuma informação recente sobre o Programa Brasil Alfabetizado. Qual é a perspectiva para o programa?
O PNLD EJA desde o ano passado não distribui livros. Ele será descontinuado?
Reportagem: Júlia Daher Revisão: Ana Luiza Basílio e Denise Eloy
O governo Bolsonaro incentiva a militarização das escolas, mas o modelo está longe de ser a solução para a educação no País
Tão logo aconteceu o ataque à escola Raul Brasil, em Suzano, na Grande São Paulo, o governo apresentou a “solução” para o ocorrido, que deixou um saldo de 10 mortos: militarizar a escola. A intenção foi sinalizada pouco mais de uma semana depois, no dia 22 de março, pelo então ministro da educação Ricardo Vélez Rodríguez, afastado do cargo no início do mês de abril.
Dias antes, o governo federal havia anunciado a liberação de 10 milhões de reais para o Distrito Federal militarizar mais 36 estabelecimentos de ensino até o fim do ano. Desde a posse do governador Ibaneis Rocha (DEM), em janeiro, o entusiasta do modelo inaugurou quatro escolas do tipo.
No início do ano, uma reformulação no Ministério da Educação (MEC) também deu origem a um subórgão dedicado exclusivamente à militarização das escolas. Braço da Secretaria de Educação Básica (SEB), o órgão tem como atribuição a promoção de parcerias com a PM, os bombeiros e o Exército.
A expansão das escolas militares não é novidade. Entre 2013 e 2018, inclusive sob gestões petistas, houve um aumento de 212% no número de unidades: de 39 para 122 em todo o País. A tendência é que este número cresça ainda mais.
Com a nova composição do Ministério da Educação, agora chefiado pelo economista Abraham Weintraub, especialistas em educação acreditam que o tema da militarização deve ter menor ênfase, dada a perda de espaço dos militares no poder, e o crescimento da intenção de privatizar a educação. Ainda assim, fica a pergunta: militarizar as escolas é um caminho para melhorar a qualidade da educação brasileira?
Militarizar impacta a qualidade?
Desde a campanha eleitoral, Bolsonaro tem citado o bom resultado das escolas militares para defender o modelo. Mas será a transposição para o ambiente escolar da disciplina dos quartéis a responsável pelo “milagre”?
Alesandra de Araújo Benevides e Ricardo Brito Soares, da Universidade Federal do Ceará, se debruçaram sobre os números das unidades existentes no estado e fazem algumas ponderações. O estudo atesta: em testes de desempenho, os alunos de escolas militares alcançam de fato melhores indicadores. “No Enem de 2014, a pontuação média em Matemática das escolas militares estaduais foi de 514,15 pontos contra 454,13 nas não militares”, anota a pesquisa.
Tudo resolvido, então? Longe disso. As/os pesquisadoras/es buscaram as causas dessa diferença. Uma delas está no fato de que as unidades militares recebem mais investimentos do que as escolas regulares.
“As escolas do Ceará contam com alguma autonomia financeira, uma vez que recebem recursos não só da Secretaria da Educação Básica, mas também da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social”, explica Alesandra Benevides. Além disso, as famílias dos alunos são obrigadas a pagar uma taxa anual, o que amplia as receitas. Pergunta: com mais recursos, as escolas não militarizadas não alcançariam índices semelhantes de aprendizado?
Há ainda outro fator importante: o acesso às escolas militares não é tão fácil. Uma espécie de vestibular seleciona os melhores estudantes, processo inexistente nos demais estabelecimentos públicos.
Para testar o impacto da seleção dos alunos no resultado do modelo, as/os pesquisadoras/es compararam o desempenho dos estudantes com o mesmo nível de proficiência em escolas militares e não militares. A desvantagem, neste caso, despenca: “No Spaece [Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica do Ceará], a distância cai de 50 para 18 pontos”, afirma Benevides.
Como funciona?
Quando as redes públicas aderem à proposta, as escolas passam a ter uma gestão compartilhada entre as secretarias de Educação e as Polícias Militares ou o Exército. A parte administrativa fica nas mãos dos PM ou de oficiais das Forças Armadas, que assumem postos na diretoria, administração e inspeção disciplinar. A pedagogia, ao menos por enquanto, continua sob responsabilidade de especialistas em educação.
A melhora tão pouco significativa no desempenho escolar não parece compensar os danos colaterais. No sistema militarizado, os alunos convivem com regras rígidas: apresentam-se diariamente em ordem-unida (formação de tropa). As meninas são obrigadas a usar coque e os meninos, cabelos curtos. Os PM ou militares fardados atuam como bedéis e costumam transformar os intervalos de aulas e o recreio em uma imitação dos banhos de sol em penitenciárias.
A rigidez extrema preocupa os educadores. Segundo o pesquisador da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), André Lázaro, “a escola não é ambiente de obediência e hierarquia cega, mas de diálogo. No sistema militarizado, não se discute, se obedece. Não se constitui cidadania se os alunos não pensam. Alimenta-se uma ditadura”.
Andressa Pellanda, coordenadora executiva da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, estudou em uma escola militar federal por sete anos e afirma que estes colégios têm uma estrutura pedagógica – quadro de profissionais e estrutura física – melhor que a dos colégios militarizados e passados para a PM. Ainda assim, pondera questões importantes sobre sua vivência:
“O colégio militar federal tem estrutura física e de quadros profissionais excelente. Mas vivemos lá dentro, de forma estrutural, uma educação que não ensina a ter voz e a debater as estruturas. O que salvava eram os professores que, dentro da sala de aula, tornavam o ambiente mais crítico e democrático”.
Ela acrescenta: “só fui aprender o que é ter a prerrogativa de fazer reivindicação na universidade. E isso diz muito sobre o que se ensina para esses jovens de colégios militares a respeito da democracia. Não somos nós que construímos e refundamos as instituições, elas são como são e, como nos falavam no colégio quando estávamos fora da regra ou quando questionávamos algumas ‘ordens’, ‘aqui é assim, se não gosta, vai pra outro colégio’. Aceite ou deixe. Não tente mudar ou dialogar. E isso é fundamentalmente antidemocrático.”
Também não convence a comunidade educacional o discurso de que as escolas militares seriam capazes de conter a violência. A educadora social e doutora em educação pela Faculdade de Educação da USP, Irandi Pereira, entende ser necessário levar em conta não só o contexto escolar. “A violência é estrutural e está ligada a diferentes demandas da sociedade que muitas vezes não são cumpridas.”
Irandi acrescenta: “Precisamos discutir a segurança da população, da comunidade, do entorno onde estão não só as escolas, mas os centros de saúde, de cultura, lazer. A violência está em todos os lugares por ausência de políticas públicas. O que quero dizer é que discutir o ocorrido em Suzano é avaliar o que se passa em uma sociedade refém da ausência do Estado e o que de fato são ações públicas qualificadas que cuidem do cidadão, o considere, pense na evolução de uma sociedade que reduza as desigualdades sociais.”
Esse tipo de preocupação passa longe dos gabinetes de Brasília. Segundo Bolsonaro e sua turma, a fórmula para a melhoria da qualidade da educação brasileira resume-se a bater continência, hastear a bandeira e cantar o Hino Nacional. A tendência é o País continuar a produzir analfabetos funcionais, mas disciplinados.
Reportagem: Ana Luiza Basilio Revisão: Denise Eloy e Júlia Daher
Como o mote “Educação: já tenho um Plano! Precisamos falar do PNE”, a Semana de Ação Mundial (SAM) ocorrerá entre os dias 2 e 9 de junho e já conta com mais de 900 atividades inscritas
Anualmente, durante uma semana, diversas atividades coordenadas pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação são promovidas em escolas, creches, universidades, sindicatos, praças, bibliotecas, conselhos e fóruns de educação e secretarias.
Chamada de Semana de Ação Mundial (SAM), a mobilização tem como intuito de fazer pressão sobre líderes e políticos para que cumpram os tratados e as leis nacionais e internacionais de garantia de uma educação pública, gratuita, equitativa, inclusiva, laica, e de qualidade para todas as crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos que vivem no Brasil.
Em cada ano, um tema específico é escolhido. Neste ano, como o mote “Educação: já tenho um plano! Precisamos falar sobre PNE”, a semana pautará o monitoramento e a implementação deste grande marco legal.
O Plano Nacional de Educação é um documento aprovado em 2014 que contém metas e estratégias para a garantia efetiva do direito à educação no Brasil. Ele tem validade de 10 anos, ou seja, em 2019 o PNE completa 5 anos. Mesmo na metade do percurso, nenhuma meta foi integralmente cumprida até agora. Por isto, é importante exigir o cumprimento dos compromissos firmados pelo governo brasileiro.
Como participar da SAM 2019?
Qualquer pessoa, grupo ou organização pode participar da SAM, discutindo o tema e realizando atividades em creches, escolas, universidades, sindicatos, praças, bibliotecas, conselhos, e secretarias, envolvendo todas e todos os que se interessam pela defesa da educação pública, gratuita e de qualidade no Brasil.
As inscrições para o recebimento de materiais estão abertas até o dia 1 de maio, por este formulário. Como o envio de materiais é limitado, é recomendável não deixar para se inscrever de última hora.
Quem quiser fazer download dos arquivos digitais , pode baixar as artes para divulgação e o manual técnico da semana no site da SAM. Neste ano, o manual conta com versões acessíveis de interpretação de Libras e QR Code para facilitar a leitura por meio de aplicativos para pessoas cegas ou portadoras de baixa visão.
Com o apoio das informações contidas no Manual, é possível desenvolver atividades, rodas de conversa, seminários, atos públicos, mesas, debates e palestras.
Em videoconferência, Ednéia Gonçalves e Denise Carreira, coordenadoras da Ação Educativa, analisam os principais fatos da educação nos 100 dias de governo Bolsonaro
“A escola não é só um prédio com parede e teto. É um ponto de encontro, de construção de conhecimento. É um espaço em que se articulam os diferentes grupos e possibilidades de se construir algo comum a partir das culturas, das pessoas e do território”, sustenta Edneia Gonçalves.
Para a socióloga e educadora, os 100 primeiros dias de governo Bolsonaro apresentaram uma repulsa pelo caráter agregador da escola e nenhum avanço nas políticas educacionais. “Não é possível ver nenhum ganho, nem para o acesso, nem para a permanência, nem para a qualidade da educação”, analisa.
Estes e outros pontos são discutidos em uma videoconferência do especial Educação em Disputa: 100 dias de Bolsonaro, realizada na última quarta-feira (10/04), data em que a gestão completou 100 dias de mandato. Assista:
A professora emérita da UFMG, Magda Soares, rebate as críticas feitas pelo secretário de Alfabetização, Carlos Nadalim
Um dia após completar 100 dias de governo, Jair Bolsonaro assinou o decreto da Nova Política Nacional de Alfabetização. A proposta já tinha sido anunciada entre as metas prioritárias da gestão.
Segundo apuração da Folha de S. Paulo, o texto do decreto mantém o foco no método fônico – que prevê a alfabetização através da associação entre um símbolo (a letra, ou grafema) e seu som (o fonema).
A diretriz vem causando polêmica entre educadores, que consideram o método ultrapassado e ineficaz para a aprendizagem das crianças. A defesa é que o método fônico faça parte do processo de alfabetização, mas não seja o único método. Entre os especialistas é defendida a dimensão do letramento, que prevê – além da associação de grafemas e fonemas – o uso social da leitura e escrita.
Um dos grandes entusiastas do método fônico é o novo secretário de alfabetização do Ministério da Educação (MEC), Carlos Nadalim. Em suas redes sociais, ele condena o letramento como o vilão da alfabetização. “Uma reinvenção construtivista da alfabetização, fruto de uma preocupação exagerada com a construção de uma sociedade igualitária, democrática e pluralista em formar leitores críticos, engajados e conscientes”, classifica.
O secretário também critica a atuação da professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Magda Soares. Pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), Magda tem mais de 60 anos dedicados à área da alfabetização – entre pesquisas, formação de professores e atuação direta em redes de ensino.
Seu acúmulo deu origem a várias publicações e livros, três dos quais publicados pela Editora Contexto: Alfabetização e Letramento (2017); Alfabetização, a questão dos métodos (2016) e Linguagem e Escola, uma perspectiva social (2017).
Em entrevista, Magda Soares rebate as críticas feitas pelo novo secretário, fala sobre os desafios do País frente à agenda da alfabetização e afirma que defender o método fônico como alternativa para a agenda é uma atitude “simplista e ignorante”.
“Ocorre nesse País inteiro a predominância de escolas públicas com infraestrutura muito insatisfatória, professores mal formados, salários miseráveis. Pensar que se resolve a alfabetização com o método fônico é um simplismo, uma ingenuidade, uma ignorância, que me deixa indignada”.
Confira a entrevista:
O que é alfabetizar?
É ensinar a criança o sistema alfabético de escrita, a ler e a escrever, que significa levá-la a se apropriar de um sistema de representação dos sons da língua, da fala, em grafemas, sinais e símbolos. É aprender uma tecnologia, fruto de uma invenção cultural que, ao contrário da fala, que a criança adquire naturalmente, tem que ser aprendida porque é um sistema de representação de sons da fala em sinais.
O que é letrar?
O letramento tem relação com a alfabetização, mas é diferente. Não basta a pessoa só aprender a ler e a escrever. Quando ouvimos que uma criança sabe ler e escrever, precisamos saber: ela sabe tirar consequências, escrever um texto que tenha coesão, coerência, que seja adequado ao destinatário? Para aprender isso, não é só com a alfabetização, mas em contato com outros procedimentos e métodos que receberam o nome de letramento, conceito incorporado nos anos 1980 exatamente para destacar a importância não só da criança aprender a ler e a escrever, mas também aprender a fazer uso da leitura e da escrita nas demandas sociais.
O secretário de Alfabetização do MEC, Carlos Nadalim, declarou em um vídeo que o letramento é o grande vilão da alfabetização. Como você avalia essa colocação?
Ele se mostra completamente ignorante na questão da alfabetização e letramento, faz uma grande confusão, não distingue como acabei de fazer o que é uma coisa e outra. Ele diz que o letramento é o vilão como se você só tivesse que ensinar a criança a ler e a escrever e não tivesse que, contemporaneamente, fazer isso vivenciando o seu uso social. Isso foi uma reação aos métodos artificiais criados para alfabetizar as crianças, como as cartilhas do “Eva viu a uva”. O letramento não é vilão, é um parceiro da alfabetização, são componentes indissociáveis da aprendizagem da língua escrita pela criança.
O secretário também afirma que o letramento “é uma reinvenção construtivista da alfabetização” e o atrela a uma “preocupação exagerada com a construção de uma sociedade igualitária, democrática e pluralista em formar leitores críticos”…
Aí ele faz outra confusão de letramento com construtivismo. Não tem a menor lógica. O construtivismo não é um método de ensino, é uma teoria de aprendizagem da área da psicologia cognitiva que se aplica não só à língua, mas a qualquer outro conteúdo. A origem está em Piaget, que desenvolveu uma pesquisa para entender como a criança vai formando conceitos, tomando como base fatos matemáticos e científicos. A Emília Ferreiro resolveu fazer uma pesquisa nessa mesma linha, mas tomando como objeto de estudo a língua escrita. Piaget mostrou que a criança vai construindo progressivamente o seu conceito de objetos e processos culturais, a isso foi dado o nome construtivismo. Isso se aplica a qualquer disciplina, não é um método de alfabetização, é um processo de aprendizagem que a Psicologia estuda.
O construtivismo chegou ao Brasil, sobretudo, pela obra e pela ação da Emília Ferreiro e entendeu-se que ela estava sugerindo um método construtivista de alfabetização, coisa que ela mesma rejeitava com firmeza. Ela não propunha um método, mostrava como a criança ia construindo o conceito do que é a língua escrita.
O que o construtivismo trouxe para nós é que a criança aprende progressivamente conceitos culturais e isso acontece em todas as áreas, até para amarrar o sapato há essa construção. E aprender a ler e a escrever é mais ou menos isso, a professora orienta a criança a como construir. Resumindo, são coisas diferentes, letramento, alfabetização e construtivismo. Nadalim faz uma verdadeira salada disso, que mostra a sua falta de clareza entre teorias, aprendizagem do princípio alfabético e uso social da língua escrita.
O secretário também defende o método fônico como uma metodologia capaz de superar o analfabetismo funcional. Como avalia essa afirmação?
A questão é que, para a criança aprender a língua escrita, ela precisa aprender as relações entre os fonemas e as letras. Se a língua escrita é a representação da língua oral, você tem que aprender como ocorre essa representação, como os sons são representados por letras e grafemas. O processo de alfabetização inclui e tem que incluir forçosamente a aprendizagem pela criança das relações fonemas e grafemas, mas não é só isso. Tem muita coisa que antecede esse momento em que a criança se sente capaz de entender essas relações.
Aí é que entra o processo de construção do conceito de língua escrita pela criança. Ela demora a perceber, por exemplo, que quando escreve, está escrevendo o som, e não representando o objeto. Tanto que é comum que, ao pedir para uma criança de três anos escrever a palavra casa, ela desenhe a casa. Esse salto é fundamental, mas um tanto abstrato para as crianças.
O grande erro do chamado método fônico é que ele parte de um princípio linguisticamente equivocado, porque o fonema não se pronuncia, os consonantais, você não pronuncia um t, d, m sem se apoiar numa vogal ou semivogal. Então essa é questão do método fônico, ele parte com a criança de um momento em que ela não está suficientemente desenvolvida cognitivamente e linguisticamente para conseguir entender as relações entre fonemas e grafemas. É preciso que ela chegue nesse momento, e aí temos uma questão de interação entre desenvolvimento e aprendizagem, até que a criança consiga identificar que, numa sílaba, você tem mais de um som e que cada um deles é representado por uma letra.
A questão não é ser contra o método fônico, mas considerar que ele não dá conta do processo de alfabetização. Trata-se de um procedimento necessário, indispensável, usado no momento em que a criança está pronta cognitivamente e linguisticamente para fazer as relações do fonema com a letra.
Existe um único método para alfabetizar?
No livro “Alfabetização, a questão dos métodos” que eu escrevi o ano passado [a obra ganhou o primeiro lugar na categoria Educação do prêmio Jabuti, concedido pela Câmara Brasileira do Livro], eu exponho as facetas do processo de aprendizagem da língua escrita pela criança, linguística, socio-linguística, psicológicas, para que se entenda que alfabetização não é uma questão de método., não se trata de escolher um método.
A questão é alfabetizar o método, que implica em conhecer o processo de desenvolvimento cognitivo-linguístico da criança, orientando-o até que ela compreenda o princípio alfabético.
No livro Linguagem e escola, uma perspectiva social, você relaciona linguagem, escola e sociedade. Do que se trata?
Eu explico que o processo de alfabetização e letramento depende muito do contexto social e cultural da criança. Nesse país terrivelmente desigual, temos que levar em consideração que as crianças das camadas populares, que estão nas escolas públicas. Com elas, o trabalho tem que ser ainda mais amplo e significativo, porque muitas vezes as escolas têm que fazer por elas o que as famílias não têm condições de fazer, por também não terem recebido o que precisavam.
O Nadalim, por exemplo, tem experiência em escola particular, certamente para a classe média, média alta. É diferente você pegar uma criança para alfabetizar que, em geral, já fez pré-escola, tem livros em casa, ou pais que já começaram a ensinar a letra do nome. É muito diferente das crianças das camadas populares, a enorme maioria desse País.
O que ocorre nesse país inteiro é a predominância de escolas públicas, com infraestrutura muito insatisfatória, com professores mal formados, com salários miseráveis, e ele pensando que resolve a alfabetização com o método fônico…É um simplismo, uma ingenuidade, uma ignorância, que me deixa indignada.
Qual o cenário brasileiro frente à agenda do analfabetismo funcional?
O Indicador de Analfabetismo Funcional (Inaf) mostra que há uma parcela da população que, embora alfabetizada, ou seja, saiba ler e escrever, não se letrou, não aprendeu a interpretar o que lê, a inferir sobre o que lê, a fazer avaliação crítica e nem a escrever. [dados do Inaf apontam que, em 2018, 3 em cada 10 brasileiros eram analfabetos funcionais.] Isso deve piorar se insistirmos na ideia de que o letramento é o vilão da alfabetização.
Quais são as políticas fundamentais para reverter o quadro?
A política fundamental e indispensável é a formação de professores. Nós não temos professores formados para alfabetizar. O curso de pedagogia, que forma para a educação infantil e séries iniciais, não ensina praticamente nada sobre como alfabetizar, qual é o processo da criança para aprender a ler e a escrever. Não há nenhum elemento de linguística ou psicolinguísticas nos cursos de pedagogia. São professores que saem sem saber o que fazer em sala de aula, sobretudo com as crianças das camadas populares.
A primeira providência seria mudar o formato dos cursos de Pedagogia ou criar um curso de formação para professores das séries iniciais. Apesar de ser esse o objetivo dos cursos de Pedagogia, não é isso que eles têm feito. É necessário aprender sobre a psicogênese da língua escrita, ou seja, como a criança vai evoluindo no seu conceito de língua escrita e que intervenções podem ou devem ser feitas para que ela avance mais rapidamente e com mais eficiência.
Na alfabetização estão envolvidos processos cognitivos de compreensão de objetos culturais, a linguística, ou seja hoje se ensina um objeto, no caso o sistema alfabético, que os próprios professores desconhecem.
Esta reportagem foi atualizada para integrar o Especial Educação em Disputa: 100 dias de Bolsonaro, uma iniciativa do Carta Educação, em parceria com a Carta Capital, Ação Educativa e De Olhos nos Planos.
Para Daniel Cara, a estratégia da política ultraliberal é precarizar a oferta de serviços públicos para argumentar incompetência do Estado
A nomeação mais recente do Ministério da Educação alçou ao cargo de presidente do Instituto Nacional de Pesquisas e Estudos Educacionais (INEP) o delegado de Polícia Federal, Elmer Coelho Vicenzi. Mais um entre a equipe de não educadores designada à pasta, capitaneada pelo economista Abraham Weintraub. Ligado às figuras de Ônix Lorenzoni e Paulo Guedes, Weintraub atuou como secretário executivo da Casa Civil.
Longe de ser ao acaso, o arranjo dá corpo a uma das principais estratégias governamentais, segundo análise do coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara: “a privatização da educação como parte de uma política ultraliberal”.
Cara explica que a tática para justificar o projeto de privatização é a de precarizar o Estado e a oferta de serviços públicos para então atribuir incompetência à máquina. “É uma radicalização do projeto neoliberal, que já prevê a redução do Estado”, atesta o especialista.
A linha de atuação preocupa Daniel, que vê a nova composição do MEC mais nociva às políticas educacionais do que a anterior, protagonizada pelo colombiano Vélez Rodríguez.
“Embora eu discordasse 100% de sua visão de política educacional e, sem dúvida, Vélez era incompetente em termos de gestão, existia uma possibilidade de saber o que ele pensava, pois ele sistematizou meia dúzia de ideias em novembro de 2018. Já Weintraub pensa em seguir Olavo de Carvalho na pauta da propaganda de governo e implementar a política ultraliberal de Paulo Guedes, que sofre oposição até de figuras neoliberais que o consideram exagerado”, avalia.
Como você avalia os 100 primeiros dias do governo Bolsonaro na educação?
Foi um período caótico. Primeiro, tivemos o ministro Vélez Rodríguez que atuou na linha da guerra cultural e que, claramente, não foi capaz de administrar as forças que subsidiaram a sua gestão, os militares e os olavetes, como o próprio Olavo de Carvalho denomina seus seguidores. O resultado foi que, no primeiro revés dos militares dentro do governo, o Olavo de Carvalho conseguiu emplacar um segundo ministro. Em uma entrevista recente dada ao Pedro Bial, o Olavo falou que ele conhecia o trabalho do Vélez, mas que Vélez não conhecia o seu trabalho e que, agora, existe um ministro [Weintraub] que de fato conhece as suas ideias. Esse é um fator importante na consolidação do governo.
Vejo que, de um lado, o Ministério da Educação está entregue como um instrumento de propaganda pela guerra cultural bolsonarista. Do outro, dada a diminuição da força dos militares e a menor ênfase na agenda da militarização das escolas, o que vai imergir é a privatização da educação.
Há uma concepção de educação em disputa?
Não se tem uma concepção de educação. Há uma concepção de política educacional, o que é diferente. A política educacional que eles planejam é, em primeiro lugar, reduzir a área a uma esfera de propaganda da ultradireita. Quando o Olavo de Carvalho diz que é preciso fazer uma guerra cultural, ele quer dominar as universidades e as escolas como um espaço de convencimento da sociedade para agregar novos militantes para a causa da ultradireita, que é ultrareacionária. Não tem preocupação sobre a política educacional pautada nos ditames da Constituição Federal de 1988.
Outra questão que vejo na forma como o governo Bolsonaro enxerga a educação é que a militarização das escolas era uma proposta pedagógica, ou antipedagógica, mas educacional. Eles acreditavam que a disciplina autoritária era o melhor substituto para a Pedagogia, não importando o processo de ensino-aprendizagem, a formação integral de seres humanos.
Agora, com essa nova composição do Ministério da Educação, eles vão tentar pautar a guerra cultural, até para chamar a atenção da militância bolsonarista. A nomeação de um delegado de polícia para o INEP diz sobre isso, mas reforço que a grande aposta em termos de política educacional vai ser a privatização. Esse é o objetivo estratégico de Weintraub, o desserviço que ele vai prestar.
Como se constrói essa narrativa pela privatização?
São três etapas para chegarmos ao cenário. A Emenda Constitucional 95 que determina um teto de gastos foi a primeira delas. Ela foi apoiada pelo mercado, mas é insuficiente para as preocupações do mercado financeiro, para os patamares de dívida pública aceitáveis para um investimento especulativo no Brasil.
Então, a segunda estratégia é reduzir ainda mais a ação do Estado e, por fim, acabar com as vinculações constitucionais. No projeto de Guedes, o padrão ouro é acabar com vinculações constitucionais e aprovar a reforma da Previdência que ele quer. O padrão prata é aprovar uma reforma mais ou menos e aprovar as desvinculações constitucionais. O padrão bronze é aprovar uma Reforma mais ou menos e reduzir ainda mais as vinculações constitucionais – radicalizando a agenda da Emenda Constitucional 95, de Michel Temer e Henrique Meirelles.
Esse é o caminho que ele quer trilhar. Quando se tem um processo de precarização do serviço público, se constrói a ideia de que o poder público não é competente para dar conta das necessidade das pessoas. Qual o resultado disso? A argumentação de que o caminho é a privatização. Com a defesa de que o setor privado é mais dinâmico, faz mais com menos. No começo, vai parecer que a privatização da educação vai gerar economia. Mas na renovação dos contratos ela vai custar muito mais. Ademais, a razão dos serviços públicos responsáveis pela consagração de direitos, especialmente a razão pedagógica, se opõe à razão mercantil. Ou seja, a educação privada é de pior qualidade.
A Emenda Constitucional 95 e o fim das vinculações constitucionais são estratégias de precarização: o Estado deixa de crescer para depois dizer que é incompetente. É uma estratégia discursiva que mata o serviço público. O torna extremamente ineficaz pelo pouco financiamento, para então justificar a privatização. Isso aconteceu em todos os lugares do mundo que viveram o processo de privatização, passando por países extremamente desenvolvidos como EUA, Reino Unido, Suécia. No mundo escandinavo, a Suécia, que foi a única a mergulhar em certo ultraliberalismo já retrocedeu, com pressão da própria Coroa que determinou que era preciso rever essa perspectiva.
Você fala em uma radicalização do projeto neoliberal. O que isso significa?
Sim, estamos diante de uma radicalização da agenda neoliberal que, embora preveja a redução do Estado em todas as suas funções, não assume que a condição de vida das pessoas não importa. No ultraliberalismo esse tipo de preocupação não existe. É a radicalização do que o George Soros disse, de maneira crítica, que a democracia é o sistema que governa quem o mercado permite.
A pauta de alfabetização é uma das prioridades do governo. Como tem visto a condução dessa agenda?
O Brasil precisa olhar para a agenda da Alfabetização, mas a partir da perspectiva correta que é a científica, que toma como base o trabalho da psicologia, da sociologia e da filosofia da educação que já desenvolveu uma série de análises e vem aperfeiçoando métodos. Isso está sendo totalmente abandonado por esse debate medíocre do método fônico.
Vale lembrar que o método fônico já vinha sendo defendido em círculos da ultradireita desde o governo Fernando Henrique Cardoso, a partir do João Batista, dono do Instituto Alfa e Beto. Como ele [João Batista] nunca teve espaço real em um conjunto de gestões que eram dominadas por pensamentos de centro direita e centro esquerda, que era o que representava PSDB e PT, ele começa a fazer alianças com setores ultrareacionários e agora tem muito espaço dentro do governo.
Eles semearam e agora estão colhendo. Mas é extremamente pobre imaginar que o método fônico é a salvação da lavoura, ele é arcaico em termos pedagógico e seu resultado vai ser medíocre. É um caminho anti-científico, mercadológico, de tentar retomar uma experiência metodológica do passado numa época em que as escolas públicas eram muito mais produtoras de fracasso do que de formação e acham que essa perspectiva será válida no século XXI, que deveria ser o século do conhecimento.
E o encaminhamento da proposta da educação domiciliar, como a avalia?
É mais uma agenda de honra para a bancada evangélica e para a católica ultraconservadora. Mas vale destacar a mudança que houve no encaminhamento desta pauta. O governo queria tramitar com uma medida provisória [embora o instrumento tenha força de lei, precisa passar por aprovação do Congresso] e recuou porque percebeu que perdeu apoio. Pode passar, mas essa aprovação não será fácil.
Outro ponto que vale considerar na mudança da pauta é o fato do projeto ter começado a tramitar pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Não faz sentido algum tramitar por ali um assunto claramente educacional, o que deixa claro que o problema por trás não é da educação.
A estratégia utilizada pelo governo foi de esperar que o desgaste acerca da pauta passasse e isso não aconteceu, então o lançam como projeto de lei. Eles já perceberam que não vai ser tão fácil passar as pautas ultraconservadoras. Acho que o ultraconservadorismo vai ter ações muito pontuais, uma intervenção no Enem, em políticas específicas. Isso vai ser muito mais pautado pelo twitter dos Bolsonaros como um discurso de propaganda e, por baixo, o que se tem é a tentativa de consolidar uma política ultraliberal na educação, privatizar radicalmente, tanto que as fundações e institutos empresariais já estão com agenda marcada com o novo ministro.
Na atual conjuntura, o sentimento diante à educação pública é de pessimismo?
Eu não tenho pessimismo porque a educação brasileira tem uma grande vantagem comparativa. Enquanto para as outras áreas resistência é uma palavra de ordem, na educação é cotidiana, desde a época do Império. O professor resiste, precisa resistir porque nunca teve condições de trabalho adequadas, nunca teve boa remuneração e essa capacidade de resistência nesses momentos de enorme crise consegue fazer com que a área se mantenha pelo esforço profissional.
O que precisamos, com certa urgência, é reivindicar a área para os educadores, de fato. Não dá pra ter um delegado de polícia no Inep, nenhum demérito quanto à função, mas não é o lugar dele. Não dá pra ter mais um ministro da Educação que nunca pisou em uma escola pública, que não sabe o que é o calor de um intervalo de uma escola pública, a sua realidade.
Mas eu não tenho pessimismo com a área de educação porque a crise não é uma novidade, é cotidiana. Como dizia Darcy Ribeiro: a crise da educação não é uma crise, é um projeto.
Ao todo, 35 organizações foram atingidas. Em entrevista para o De Olho, a cientista política Carla Bezerra analisa o impacto e a constitucionalidade do decreto.
Publicado na quinta-feira (11/04), decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo ministro da Casa Civil Onyx Lorenzoni altera as diretrizes e regras de colegiados da administração pública além de extinguir vários dos atualmente existentes.
Segundo levantamento realizado pela pesquisadora Carla Bezerra, 35 órgãos foram afetados. Entre eles estão órgãos centrais da política educacional e de direitos humanos, como a Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA), a Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena, a Comissão Nacional de Educação em Direitos Humanos (CNEDH), a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti) e o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT (CNCD/LGBT).
Por terem sido instituídos por legislação superior ao decreto, o Conselho Nacional de Educação e o Fórum Nacional de Educação permanecem em funcionamento.
Para ter acesso à lista completa de órgãos atingidos e entender os efeitos do documento, o De Olho conversou com Carla Bezerra, doutoranda em Ciência Política pela USP e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM). Confira o resultado:
O que o decreto altera?
O Decreto extingue todos os órgãos colegiados criados por Decretos ou Portaria de toda a administração Pública. De forma detalhada, órgãos colegiados são instâncias que elaboram, fiscalizam e decidem sobre uma certa política pública. Elas são compostas por representantes de mais de um ministério, podendo ou não contar com representantes da sociedade civil.
Um decreto é editado unilateralmente pelo presidente (não passa pelo congresso) e está hierarquicamente abaixo de uma lei. Portanto, ele só pode extinguir colegiados previstos em outros decretos ou em portarias. Aqueles previstos em lei continuam existindo.
O Decreto se estende para toda a Administração Pública direta, autárquica ou fundacional. Isto é, além dos ministérios, se aplica também a instituto, universidades, dentre outros.
Qual é o efeito disso? Qual é a importância desses órgãos?
O efeito imediato disso é uma enorme insegurança jurídica. Existem inúmeros órgãos colegiados que tem atribuições essenciais para a execução de várias políticas públicas. Por exemplo, um Comitê passível de extinção por este Decreto é o COPOM (Comitê de Política Monetária). Ele é um comitê composto estritamente pelo governo e responsável por definir toda a política monetária do governo. Ou seja, no momento, não é claro quem definirá tais diretrizes a partir de segunda.
Existe base constitucional para o desmonte desses órgãos de controle?
Como o decreto é editado unilateralmente pelo presidente (não passa pelo congresso) e está hierarquicamente abaixo de uma lei, o presidente pode revogar atos anteriores. Em cada caso, será preciso ver os efeitos e se há medidas judiciais cabíveis para questionar o Decreto de Bolsonaro. Isso depende muito das especificações e competências de cada órgão colegiado.
Há algo mais que você acredita que seja importante acrescentar?
É provável que a partir de segunda vários desses órgãos sejam recriados. Mas agora deverão observar as regras mais restritivas de funcionamento do Decreto, como restrição ao tempo de duração da reunião.
Há alguma possibilidade de efeito cascata disto para instâncias de participação em outros entes federativos, como os conselhos estaduais, por exemplo?
A princípios, os Estados e Municípios tem autonomia para regulamentar suas próprias instâncias. Esse efeito só haveria se outros Governadores ou Prefeitos decidirem “imitar”o Presidente. Mas juridicamente não há esse efeito.
O decreto entra em vigência imediatamente. Mas estabelece 60 dias para os órgãos enviarem a relação de órgãos colegiados em atuação, justificando a sua necessidade de existência. Então, os órgãos colegiados passíveis de revogação estão em um limbo jurídico no momento.
Em defesa da participação
Após a assinatura repentina do decreto, entidades e indivíduos se mobilizaram pela manutenção dos órgãos. Na sexta-feira, foi criada a página de facebook O Brasil Precisa de Conselho. Nela, é possível encontrar um levantamento sobre os efeitos da normativa e notícias sobre o tema. Há também a divulgação de um ato público em defesa da participação da sociedade nos conselhos.
Ainda na sexta-feira, a Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (ABONG) divulgou uma moção contra a medida. Na nota, a entidade aponta o caráter antidemocrático da ação e receia um aumento da falta de transparência na aplicação dos recursos públicos.
“Segundo a Constituição Federal de 1988, todo poder emana do povo – que o exerce por meio de seus representantes ou diretamente. A participação autônoma das organizações e movimentos sociais nos conselhos de políticas públicas é a melhor forma da sociedade civil envolver-se na definição dessas políticas, definir prioridades e fiscalizar a atuação do Governo Federal”, defende a nota.
A Abong irá acionar a Frente Parlamentar Mista pela Democracia e Direitos Humanos para construir uma pressão coletiva pela revogação do decreto.