Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira
O Congresso brasileiro está analisando o projeto de lei complementar (PLP) 93/2023, o arcabouço fiscal, que nada mais é do que as novas regras de gastos do dinheiro público. A proposta foi enviada pelo Executivo e, após tramitação e aprovação na Câmara e no Senado, vai para sanção presidencial. Como o arcabouço fiscal dita as regras dos gastos públicos inclusive em áreas sociais, impacta diretamente a educação e seu financiamento e pode afetar estudantes desde a creche ao ensino superior. Por isso, é tão importante monitorar este projeto e pressionar para que seu desenho esteja sintonizado com as metas do Plano Nacional de Educação (PNE) que, às vésperas do final de sua vigência, tem uma taxa de descumprimento de 90% de acordo com o último balanço da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
Qual a diferença entre arcabouço fiscal e Teto de Gastos (EC 95)?
O novo arcabouço fiscal é um projeto para substituir a Emenda Constitucional 95 (EC 95, que ficou conhecida como o Teto de Gastos), promulgada em 2016. Ou seja, a EC 95 deixará de valer quando o novo arcabouço for aprovado, o que é uma boa notícia para as áreas sociais, já que o Teto congelou os gastos públicos por 20 anos. Segundo a EC 95, os gastos em áreas como saúde e educação só podem subir de acordo com a inflação, não havendo nenhum aumento real no investimento. O governo Bolsonaro descumpriu muitas vezes o Teto de Gastos, mas nunca para investir nas áreas sociais. O arcabouço fiscal proposto pela nova gestão prevê que as despesas podem sim aumentar além da inflação, mas que este aumento deve ser compatível com o aumento do que é arrecadado pelo governo. Ou seja, ainda impõe um limite, mas é mais flexível.
Uma diferença importante é que o Teto de Gastos em vigor é uma Emenda Constitucional e o novo arcabouço fiscal, se aprovado, será uma lei complementar. Ou seja, a EC 95 está na Constituição, e portanto tem muito peso e preponderância sobre outras leis. Já as leis complementares não estão na Constituição, mas devem obedecê-la. Isso significa que qualquer que seja o desenho do arcabouço fiscal, ele precisa cumprir todas as obrigações constitucionais. Por exemplo, a União deve sempre repassar para a Educação no mínimo 18% do que foi arrecadado em impostos. Com o modelo do Teto de Gastos de 2016 isso podia ser burlado, porque a EC 95 partia de um valor de investimento inicial (do ano que foi promulgada) e autorizava apenas a correção da inflação desse mesmo valor.
O que diz o arcabouço fiscal?
O mecanismo básico da proposta enviada pelo governo Lula é que o crescimento das despesas deve se limitar a 70% do crescimento da arrecadação. Por exemplo, se o governo arrecada R$ 1 trilhão, pode gastar até 70% disso, ou 700 bilhões de reais. Há também um mecanismo para que épocas de maior ou menor arrecadação tenham também limites de gastos diferentes (saiba mais sobre o arcabouço fiscal aqui).
A proposta original do novo arcabouço fiscal, enviada pelo Executivo, abria exceções para os gastos instituídos na Constituição, como o piso nacional da enfermagem e o Fundeb, principal mecanismo de financiamento da educação pública brasileira e que foi incorporado à Constituição em 2020. A Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos, de 2016) também abria uma exceção para o Fundeb.
No entanto, o projeto do arcabouço fiscal está sofrendo alterações durante sua tramitação no Congresso Nacional. A exceção para o Fundeb, assim como a garantia dos pisos constitucionais para educação e saúde, ainda são pontos de disputa.
Como está a tramitação do arcabouço fiscal? Ele será aprovado?
O PLP 93/2023 do arcabouço fiscal está sob análise no Congresso. Na Câmara, sofreu alterações, como a inclusão do Fundeb dentro de seu escopo. As mudanças foram aprovadas pela casa e o projeto foi então encaminhado ao Senado que retirou as despesas da União com o Fundeb.
Agora o projeto volta para a Câmara dos Deputados. Quando o Congresso chegar a um acordo sobre o texto, ele vai para a sanção presidencial – etapa em que também pode ser modificado. Por exemplo, ter trechos vetados.
Como o novo arcabouço fiscal vai guiar os investimentos do novo governo, há pressa para sua aprovação. Ele está tramitando no Legislativo em regime de urgência, o que significa uma tramitação simplificada e mais acelerada.
IMPACTOS DO ARCABOUÇO FISCAL NA EDUCAÇÃO
A Educação é uma área que tem sofrido muito com cortes orçamentários na última década. Revogar a EC 95 é o que entidades e movimentos comprometidos com a educação pública e de qualidade vêm demandando desde 2016, mas discutir a proposta substituta é igualmente importante, para que o resultado não seja igualmente prejudicial para a Educação. E o desenho do novo arcabouço fiscal segue tendo problemas e armadilhas a longo prazo.
Quando o Fundeb foi incorporado no texto do relator da Câmara, o deputado Cláudio Cajado (PP-BA), em maio, causou muita preocupação, já que o fundo é o principal mecanismo de financiamento da Educação básica brasileira. Mas também entraram no arcabouço os mínimos constitucionais da educação e da saúde. Essas adições foram severamente criticadas por parlamentares, entidades da Educação, como a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e comunidades escolares. “O relatório piora ainda mais o programa de Temer e amplia a dificuldade de investimentos no ensino público e a execução do Plano Nacional de Educação (PNE)”, disse a CNTE em comunicado sobre o tema.
Por que a inclusão do Fundeb no arcabouço fiscal impacta a Educação? Quais os impactos?
O Fundeb é um fundo composto por recursos dos municípios, estados e da União. É uma obrigação constitucional e é de onde vem boa parte dos recursos que financiam a educação básica do país, que hoje atende cerca de 50 milhões de estudantes. Em 2020, quando se discutiu um novo modelo de Fundeb, foi aprovado que o governo federal iria, de maneira gradual, contribuir com cada vez mais recursos, diminuindo assim o peso para estados e municípios, que arrecadam menos. É o que chamamos de “complementação da União”, que deve chegar a 23% em 2026.
O grande e principal problema do Fundeb ser incluído no arcabouço fiscal é que, por ser um repasse obrigatório e de uma quantia significativa, pode diminuir o que sobra para outras despesas, principalmente aqueles investimentos que não são obrigatórios, como programas de transporte escolar, merenda ou livro didático. Programas que afetam majoritariamente as e os estudantes mais pobres. Foi justamente com o argumento de que o Fundeb é uma contribuição obrigatória que o deputado Claudio Cajado justificou a inclusão do fundo no arcabouço, mas a Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados e os especialistas em financiamento ouvidos para esta reportagem alertam que a medida é mesmo uma ameaça ao aumento do investimento em educação.
Se o novo arcabouço incluir o Fundeb, o governo federal teria no mínimo duas grandes obrigações: permaneceria obrigado a cumprir os mínimos constitucionais para Educação e saúde – ou seja, de investir [na Educação] no mínimo 18% de tudo que é arrecadado – ; e teria de arcar com a complementação de 23% ao Fundeb. “O que as análises têm mostrado é que é muito provável que manter esses compromissos afete outras despesas, tanto da Educação quanto de outras áreas sociais”, resume Nalu Farenzena, da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca). E mesmo o Fundeb, apesar de ser protegido constitucionalmente, pode ser afetado, já que a complementação de 23% por parte da União é um valor mínimo, e não fixo ou máximo. Ou seja, se o fundo permanece dentro da nova regra fiscal, é muito improvável que a União repasse para ele mais do que o mínimo obrigatório, já que existem outras despesas em Educação.
Além dessas duas grandes obrigações, a União também precisa pagar todas as trabalhadoras e trabalhadores da administração pública federal da área da educação, como as/os profissionais que atuam nas universidades e institutos federais. E há as despesas não obrigatórias (também chamadas de discricionárias), que incluem programas de alfabetização, alimentação escolar, livros didáticos, transporte escolar, entre outros. “É onde entra a assistência estudantil, os recursos para a manutenção cotidiana das instituições, e que já foram duramente afetados no governo anterior por conta do Teto de Gastos”, explica Nalu. Estes recursos, segundo ela, ficariam pressionados, limitando a possibilidade de serem expandidos. “Ou seja, [a inclusão do Fundeb] compromete como um todo a agenda redistributiva, o que inclui a educação. Não é o Fundeb que está sob ataque, mas todo o setor público federal”, nas palavras de Nalu Farenzena.
Salomão Ximenes, Professor de Direito e Políticas Públicas da UFABC e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU), destaca também que as universidades e Institutos Federais, que são responsabilidade da União, podem ser muito impactados pela inclusão do Fundeb no mesmo bolo de recursos. “Os institutos são a principal e a melhor experiência que temos de rede pública gratuita de ensino médio de qualidade e integrado à educação profissional. Nossa grande expectativa, inclusive pelo plano de governo do presidente Lula, é que essa rede fosse ampliada. Isso sim mereceria um nome de reforma do ensino médio”, diz. “Mas a inclusão do Fundeb no arcabouço inviabiliza muito rapidamente qualquer margem orçamentária para pensar a ampliação da presença da União no ensino médio profissionalizante”, resume.
Para Guelda Andrade, secretária de assuntos educacionais da CNTE, é preciso um olhar progressista na construção de um necessário ajuste fiscal para que ele reflita o projeto de uma nação soberana. “O Brasil tem esse potencial, mas para isso é preciso investir em educação, e investir em educação é também tirar o Fundeb do arcabouço. Ainda estamos construindo um debate sobre democratizar o acesso a educação básica, além da permanência e da qualidade”, ressalta. Ela destaca que a inclusão do Fundeb no arcabouço pode impactar também a valorização das e dos profissionais de educação, pois são necessários mais recursos para construção de planos de carreira.
É verdade que, sob o desenho do novo arcabouço fiscal, os recursos aumentam (e consequentemente os investimentos também) em épocas de aumento na arrecadação, mas como Nalu Farenzena destaca, “isso é um cenário incerto e não é uma política estratégica de priorização da educação”, porque cria uma dependência das receitas aumentarem para que se possa aumentar os investimentos em Educação. “Não é uma política efetiva de longo prazo do Estado”, resume. E isso afeta ainda mais negativamente o atual e o novo Plano Nacional de Educação (PNE) – que deve ser construído por meio de processos participativos liderados pelo Fórum Nacional de Educação (FNE).
“Não basta só construir um plano, é preciso pensar estratégias de financiamento para que ele seja exequível, para que consigamos executar as metas que tanto desejamos”, reforça Guelda Andrade, que diz que o Fórum Nacional de Educação está “correndo contra o tempo” para avançar nessa discussão, já que o PNE determina as diretrizes do país para a educação na próxima década.
E sem o Fundeb, o arcabouço fiscal ainda é ruim para a Educação?
Para Salomão Ximenes, sim. O professor da UFABC e membro da REPU destaca que o novo arcabouço fiscal pode levar a uma alteração regressiva na legislação daqui alguns anos. Isso basicamente porque o texto aprovado até o momento acaba agregando regras diferentes de crescimento de gastos em educação. Assim, uma delas teria que se ajustar.
As duas regras diferentes são as seguintes: a vinculação mínima constitucional e a própria regra do arcabouço fiscal. A vinculação mínima exige que no mínimo 18% do total arrecadado em impostos vá para a educação, e permite que esse valor cresça 100% de um ano para o outro. Ou seja, se as receitas crescem 100%, a destinação também cresce. Já o arcabouço fiscal, como vimos, limita esse crescimento a 70%. É como se fossem dois carros em uma mesma pista, mas a velocidades diferentes – em algum momento o carro a 100 km/h vai colidir com o que vai a 70. “O principal risco geral do arcabouço é que ele até agora não está prevendo uma regra de adaptação entre esses dois sistemas. Então mesmo que seja aprovado sem o Fundeb, há conflito”, explica. Este conflito não é direto – porque há uma hierarquia a ser cumprida: se um dispositivo é Constitucional, a lei complementar não pode descumprí-lo -, mas acaba sendo um conflito de objetivos. São dois carros que vão se chocar – não por falhas mecânicas, mas pelas velocidades diferentes. Para que não se choquem, o carro que vai mais rápido (100% de crescimento) precisaria se ajustar à velocidade do outro (70% de crescimento).
“Isso obrigatoriamente traz a necessidade de revisar os repasses mínimos para saúde e educação”, resume Salomão. Se não, para não descumprir a Constituição, todo o recurso arrecadado no país teria que ser destinado apenas para essas áreas. “Ou seja, é possível que este arcabouço esteja encomendando o fim da vinculação como conhecemos”. Seria um “cavalo de troia” embutido no atual projeto. “Mas um cavalo de troia de cabeça para baixo, é uma lei complementar que poderia obrigar uma mudança na Constituição”, ressalta. E essa mudança, na prática, daria menos prioridade orçamentária para saúde e educação, além do possível efeito cascata que isso se reproduza também a nível de estados e municípios.
Com esse horizonte em vista, é preciso pressionar ainda mais as e os parlamentares e o Executivo e mobilizar as comunidades escolares, jovens e seus coletivos para o debate sobre como a economia impacta a qualidade da escola e das políticas educacionais. O aumento das desigualdades educacionais certamente será o maior impacto da aprovação de um arcabouço fiscal que coloca em risco investimentos essenciais para o avanço, por exemplo, de institutos e universidades federais, alimentação e transporte escolar.