Edital do PNLD 2023 retira a afirmação da defesa dos direitos humanos e privilegia a alfabetização pelo método fônico.Alterações no PNLD são parte de intensificação de ataques a gênero na Educação, segundo aponta relatório da sociedade civil
Texto: Nana Soares
O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) é uma política pública de apoio à produção de materiais pedagógicos que são distribuídos gratuitamente para cerca de 47 milhões de estudantes da Educação Básica. Os livros são selecionados através de editais periódicos que estabelecem os parâmetros para esses materiais.
O atual edital do programa, que terá efeitos a partir de 2023, traz mudanças sutis, mas significativas em relação aos anos anteriores: A violação de direitos humanos deixou de ser um critério eliminatório e priorizou-se a alfabetização pelo método fônico, apesar da diversidade de metodologias existentes e aplicadas no Brasil. Essas alterações estão inseridas em um contexto de ataques aos direitos humanos na Educação com o argumento da “neutralidade ideológica”, que inclui a supressão de temas de gênero, raça e sexualidade.
Os editais anteriores do PNLD excluíam, desde 2013, todo material pedagógico que veiculasse “preconceitos de condição social, regional, étnico-racial, de gênero, de orientação sexual ou de linguagem, assim como qualquer outra forma de discriminação ou de violação de direitos”. Isso mudou na Chamada 2021, quando a não violação de direitos passou a ser um critério avaliativo, mas não eliminatório. E violências específicas deixaram de ser nominadas.
Confira algumas das alterações feitas no PNLD 2023:
PNLD 2023: Exclusão da premissa de não discriminação
A exclusão da premissa da não discriminação está sendo contestada judicialmente por diversas entidades da sociedade civil, como Ação Educativa, Geledés, Campanha Nacional pelo Direito à Educação e ABGLT. As organizações entraram com uma ação civil pública com um pedido de liminar, propondo novas cláusulas para o edital PNLD 2023, com vistas a restaurar os critérios de exclusão de obras que violam direitos humanos e abrir um novo prazo para adaptação das editoras aos efeitos da eventual decisão. O pedido de liminar (que garantiria que as demandas fossem concedidas emergencialmente enquanto o juiz analisa a ação) foi negado, mas o processo segue em andamento seu conteúdo ainda será analisado.
O grupo de entidades destaca que a alteração na redação configura um retrocesso em direitos humanos e um apagamento de grupos minoritários, enfraquecendo sua proteção. “As mudanças buscam, ainda que não explicitamente, combater a chamada ‘ideologia de gênero’”, destaca Marco Aurélio Prado, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e membro do Fórum das Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas, Letras, Linguística e Artes. O Fórum publicou um manifesto em abril contra as alterações e reuniu-se com integrantes do MEC para discuti-las ainda antes da judicialização. “O PNLD reflete e atualiza as discussões de direitos que vieram depois de 1988. Por exemplo, a criminalização da homofobia. Portanto, não basta que o PNLD se atenha ao que está de modo genérico na Constituição e ignore as novas leis”, explica ele.
A cláusula de exclusão por violações de direitos humanos foi um incentivo para as editoras abordarem esses temas. Também por isso, reforça Marco, a mudança é um retrocesso. “Ela retira o fortalecimento dos direitos das minorias e não impede que uma editora se inscreva com um livro que não fala de pessoas LGBTQIA+, por exemplo”. Na avaliação do professor da UFMG, a ação judicial foi fundamental para que a sociedade civil registrasse sua oposição ao retrocesso
PNLD 2023: favorecimento do método fônico
Há ainda outra mudança com efeitos em gênero, sexualidade e direitos humanos – embora não se perceba isso à primeira vista. O Edital 2021 privilegia materiais didáticos formulados sobre o método fônico de alfabetização em detrimento a outras metodologias. Faz isso de maneira indireta, vinculando-se ao Programa Nacional de Alfabetização. O método fônico tem um viés tecnicista, desconsiderando o contexto das crianças em alfabetização ou o uso social da leitura e da escrita. É considerado por educadores um método ultrapassado e ineficaz para a aprendizagem.
Por isso, entidades do campo da linguística e da alfabetização também ajuizaram uma ação contestando a preferência pelo método fônico no novo edital. Elas argumentam que a mudança exclui a pluralidade de metodologias, especialmente as que consideram a contextualização da leitura e escrita a partir da realidade social dos estudantes. Também reforçam que essa pluralidade está garantida na Constituição Federal, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação e na Base Nacional Comum Curricular. Portanto, se o edital desconsidera essas legislações, é inconstitucional e ilegal.
“Nos baseamos em critérios técnicos e nesse caso há um problema muito grave e evidente de inadequação às legislações existentes. Mas o favorecimento do método fônico tem implicações para os direitos humanos, já que a pluralidade de concepções pedagógicas não é apenas um critério técnico. Garantir a pluralidade é garantir que as crianças não apenas consigam decodificar palavras, mas que sejam leitoras aptas a interpretar um texto e o mundo em que ele foi escrito”, diz Lucas Moraes, advogado e integrante do Projeto Liberdade, responsável pela ação judicial. Atualmente, a ação está parada no Superior Tribunal de Justiça, que precisa decidir em que foro ela será julgada.
Ataques a gênero na educação
A “higienização” do PNLD 2023 é apenas um dos ataques a gênero visto nos últimos anos. A publicação “Ofensivas Antigênero no Brasil: políticas de Estado, legislação, mobilização social”, recém lançada por uma coalizão de organizações, detalha esses ataques, bastante pronunciados desde a elaboração do Plano Nacional de Educação. Além disso, o repúdio à linguagem neutra, a agenda pela Educação Domiciliar e pela militarização das escolas compõem esse contexto de ofensivas.
Para se ter uma ideia, no fim de 2020, haviam 23 projetos de lei no Congresso Nacional remetendo ao Escola sem Partido ou a legislações antigênero, além de propostas para criminalizar a “ideologia de gênero” ou que classificam a abordagem de gênero e sexualidade como um incentivo à pornografia infantil. A Educação Domiciliar e as escolas cívico-militares também têm ganhado força. As duas modalidades são defendidas com argumentos de “proteção” das crianças e adolescentes da “desordem” que estaria dominando as comunidades escolares. Mas tanto a educação domiciliar quanto as escolas cívico-militares prezam por lógicas hierárquicas e pelo controle dos corpos e da sexualidade. Assim, tendem a estimular a discriminação, especialmente contra jovens negros e LGBTQIA+.
Também se multiplicaram projetos para proibir a linguagem neutra, fazendo defesa intransigente da norma culta para censurar o debate sobre igualdade de gênero e diversidade e associando a linguagem neutra à “ideologia de gênero”. Isso pode ser uma estratégia para driblar decisões recentes do STF, que já reconheceu a legitimidade da abordagem de gênero e sexualidade na educação.
Mais detalhes dos ataques a gênero na Educação e em outras áreas sociais podem ser lidos na íntegra acessando a publicação