Pautas como a educação profissional, a educação à distância, os itinerários e o notório saber devem mobilizar as disputas mais acirradas no Congresso Nacional
Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira
Em 2023, admitindo as muitas limitações do Novo Ensino Médio (NEM), em especial o aprofundamento das desigualdades educacionais, o Ministério da Educação (MEC) realizou uma consulta pública para avaliar e reestruturar a política para essa etapa em todo o país. A Consulta não deixou dúvidas que a sociedade brasileira quer um outro Ensino Médio, e foram feitas várias propostas para reverter os retrocessos trazidos pela lei atualmente em vigor. No entanto, o que deveria resultar em aprimoramento pode vir a ter o efeito contrário caso seja aprovada a versão em tramitação no Congresso.
O substitutivo do PL 5.230/2023, elaborado pelo deputado Mendonça Filho (União-PE) – ministro da Educação no Governo Temer, que estabeleceu o Novo Ensino Médio -, fragiliza ainda mais a modalidade, abrindo brechas para o ensino à distância (EaD), a privatização e a desescolarização. “Esse projeto fraciona o sistema de tal maneira, sem regulamentar e sem dar garantias, que a partir dele não é possível ter um desenho de como será o Ensino Médio no futuro. Podemos intuir, mas não dá para saber”, resume Debora Goulart, professora da Unifesp e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU).
O projeto em tramitação – aprovado pela Câmara dia 20 de março, o que foi considerada uma vitória para o governo – estabelece a garantia de 2.400 horas na formação geral básica (FGB) dos estudantes, mas mantém vários outros pontos problemáticos. Até mesmo a carga de 2.400 horas não é uma vitória em todos os aspectos, porque não determina como essas horas serão distribuídas entre as disciplinas científicas obrigatórias, e também porque os cursos técnico-profissionais podem ter carga da FGB reduzida.
Além disso, o texto em sua forma atual abre portas para a precarização da educação pública de várias maneiras. Por exemplo, mantém uma brecha para a oferta de ensino à distância na educação básica. As precarizações ficam ainda mais evidentes na regulação do ensino técnico profissionalizante, modalidade em que fica permitida a contratação de docentes por “notório saber” – isto é, sem necessidade de formação em docência e em suas áreas específicas. Também no ensino técnico permanece a possibilidade de que organizações privadas ofertem ou assessorem cursos dos itinerários – um aceno aos interesses privatistas. Ainda, no que talvez seja o retrocesso mais flagrante do texto aprovado, “experiências extraescolares” podem ser validadas como carga horária para o Ensino Médio. Ou seja, até trabalho pode passar a contar como aula.
“É uma precarização na medida em que não há mais obrigação em fornecer aquela carga horária, já que ela pode ser compensada de outra maneira”, explica Débora Goulart. Assim, em vez de garantir as condições necessárias para a oferta de uma educação de qualidade que atenda as necessidades de estudantes trabalhadoras e trabalhadores que têm maiores índices de evasão, a solução para “resolver” o problema é fazer horas de trabalho contarem como carga horária da educação formal. Por isso, para vozes críticas como as do Coletivo em Defesa do Ensino Médio de Qualidade, esse projeto incentiva a desescolarização.
EaD e notório saber: espaço para privatização e precarização
O texto aprovado na Câmara deixa brechas para a privatização em diversos momentos. No ensino técnico profissionalizante, estabelece que a oferta de cursos deve ser dada por instituições “preferencialmente públicas”. Quanto à EaD, fica estabelecido que a carga horária deve ser ofertada de forma presencial “ressalvadas as exceções previstas em regulamento”. Esses casos excepcionais – ainda não descritos -, não apenas preocupam pela possibilidade de precarização, mas também de privatização, uma vez que grande parte da estrutura de EaD vem de instituições privadas.
“As ressalvas, ou excepcionalidades, serão dadas por legislação posterior, e portanto poderão ser qualquer coisa. Mas o ponto é que não há sistema público de oferta de EaD. Por exemplo, no estado de São Paulo, todas as plataformas conectadas ao Centro de Mídias são compradas”, acrescenta a professora Débora Goulart. “E não há interesse [em ter sistema público de EaD], uma vez que é um campo altamente lucrativo e que se expandiu sobretudo na pandemia”, diz ela, ressaltando as péssimas avaliações do ensino ofertado à distância. Em audiência pública realizada no dia 16/04, o próprio MEC admite que as “excepcionalidades” podem ser uma brecha para a oferta de baixa qualidade.
Por exemplo, uma pesquisa realizada por UNESCO, UNICEF, Banco Mundial e OCDE em 2021 mostrou altos índices de exclusão durante a pandemia. Nesse mesmo período, a pesquisa “A Educação de Meninas Negras em Tempos de Pandemia: O aprofundamento das desigualdades”, realizada pelo Geledés, também atestou o aprofundamento das desigualdades, sendo as dificuldades de acesso ao ensino remoto um dos fatores primordiais.
“A privatização no ensino público hoje se dá de forma combinada. Vem pela tecnologia, pelo conteúdo e, sobretudo, pela organização do currículo escolar. Por exemplo, um itinerário formativo tem a liberdade de descrever quais são as disciplinas que o compõem, o que permite assessorias privadas, ou que o material seja produzido por empresas privadas, além da formação dos professores. É possível ter uma cadeia de entidades privadas na construção da relação pedagógica” – Débora Goulart |
E essa precarização também afetará as profissionais da educação, uma vez que no substitutivo de Mendonça Filho fica regulada a contratação por notório saber na educação técnico profissionalizante – prática que, como ressalta Débora Goulart, da Rede Escola Pública e Universidade, já é largamente utilizada na rede pública, salvo poucas exceções, para sanar falta de professores. Uma vez autorizada na legislação, não há qualquer incentivo para resolver esse problema ou para assegurar condições dignas de trabalho às professoras e professores concursados.
Descumprimento de legislações, falta de participação social e tramitação acelerada
Não bastasse o texto insuficiente para enfrentar os problemas do Ensino Médio no Brasil, o substitutivo do PL 5.230/2023 tem ainda o agravante de desrespeitar os processos participativos de escuta das demandas de estudantes e profissionais da educação para esta etapa da educação básica. O documento final da Conferência Nacional de Educação (CONAE) de 2024, por exemplo, é explícito sobre a necessidade e urgência de revogar o Novo Ensino Médio e de construir um novo Plano Nacional de Educação com mais investimento em educação pública. E a Consulta Pública realizada pelo MEC em 2023 não tem impactado de maneira efetiva o projeto que tramita no Congresso Nacional.
Em 2024, as decisões da plenária da CONAE tiveram caráter vinculante reconhecido pelo MEC. Isto é, o que foi acordado na conferência não é meramente consultivo mas sim uma decisão a ser respeitada pelo Estado. E vai na direção oposta do que foi aprovado no Congresso até agora.
Fora isso, o PL 5230/2023 tramitou em regime de urgência, sem passar pelas devidas avaliações e votações das Comissões da Câmara, indo direto a plenário, o que reduziu significativamente o debate sobre a matéria. Uma tramitação que, nas palavras de Tânia Dornellas, assessora de advocacy da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, “reproduziu as mesmas condições de criação da reforma do novo Ensino Médio, pela MP 746/2016: sem o tempo necessário para um debate aprofundado e responsável sobre os impactos na vida de aproximadamente 8 milhões de estudantes matriculados na última etapa da Educação Básica”. Não é a única semelhança entre os dois períodos, já que Mendonça Filho, relator do PL, é ex-Ministro da Educação do governo Temer, o próprio criador do atual modelo da reforma do Ensino Médio. “Sem o prazo adequado para o debate e a efetiva participação social, o texto do substitutivo aprovado na Câmara é insuficiente e ruim”, avalia Tânia.
Agora o texto será apreciado no Senado, onde espera-se que seja modificado – é para isso que se mobilizam dezenas de movimentos sociais comprometidos com uma educação pública de qualidade., “Embora o Ministro da Educação, Camilo Santana, já tenha deixado claro em entrevistas, que a expectativa do MEC seja aprovar rapidamente o texto no Senado, entendemos que o texto pode e deve ser aprimorado”, enfatiza Tânia Dornelles. Para a assessora da Campanha, temas como a educação profissional, a educação à distância, os itinerários e o notório saber são as pautas que devem mobilizar as disputas mais acirradas.
Apesar do contexto desfavorável, a própria recomposição das 2.400 horas na formação geral básica, bem como o adiamento da votação do PL para março deste ano são resultados da mobilização popular. Ou seja, por mais que interesses privatistas estejam atuantes para aprovar um Novo Ensino Médio condizente com o que acreditam, as juventudes, profissionais da educação, comunidades escolares também estão. E também têm impacto no Congresso.