Profissionais da educação indígena, quilombola e do campo ainda não são valorizados

Mapeamento realizado pela iniciativa De Olho Nos Planos observou contratos precarizados em todas as regiões do país 

Professora de escola quilombola realiza atividade com os alunos em Mato Grosso
Professora de escola quilombola realiza atividade com os alunos em Mato Grosso (Foto: Arquivo da equipe)

De Norte a Sul do país, as comunidades escolares quilombolas, indígenas e do campo convergem em uma afirmação: os concursos para docência nessas modalidades são cada vez mais raros, fazendo com que grande parte das profissionais trabalhe sob contratos precários, sem plano de carreira e frequentemente com salários aquém de suas formações. 

A constatação faz parte do mapeamento realizado pela iniciativa De Olho Nos Planos, que ouviu as comunidades escolares das três modalidades para entender quais os principais desafios por elas enfrentados para assegurar uma educação de qualidade. No mês de outubro de 2020, realizamos 12 entrevistas telefônicas com diferentes atores: professoras, diretoras e diretores, alunas e alunos, ativistas, familiares e um gestor. No contexto da pandemia de Covid-19 e de regulamentação do novo Fundeb, que vai definir diretrizes cruciais para estas escolas, é ainda mais importante entender os principais desafios e gargalos a serem resolvidos.  

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As entrevistas mostraram que, em maior ou menor grau, as escolas ainda não contam com insumos mínimos como bibliotecas, laboratórios ou mesmo acesso a água e saneamento básico. O que já têm é, em grande medida, fruto de anos de mobilização e iniciativas comunitárias que tentam suprir a demora do Estado em garantir o direito à educação destas populações.

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Além disso, a (des)valorização das e dos profissionais, especialmente professoras e professores, foi uma constante. Esta se dá tanto pelos contratos precários como por problemas gerais de infraestrutura que prejudicam o trabalho, como falta de espaços, materiais, laboratórios e salas multisseriadas. Além disso, faltam profissionais como merendeira/o ou profissional de pátio. Estes resultados são explorados abaixo: 

Contratos

Em nosso mapeamento, escolas onde a maioria das professoras são concursadas foram a exceção. Via de regra, a maior parte delas trabalha sob contratos mais curtos, menos estáveis e com menos direitos. A pouca frequência dos concursos específicos é a principal causa, sendo os contratos a alternativa encontrada para suprir a demanda. O problema com os contratos (que têm diferenças entre si) é que estes não oferecem progressão de carreira, benefícios e são de curta duração, o que prejudica o próprio trabalho docente e o Projeto Político Pedagógico das escolas. Seja pela alta rotatividade de professores ou porque eventualmente há atrasos no ano letivo por questões contratuais. Na educação do campo, por exemplo, segundo levantamento de organizações da área, eram mais de 138 mil professores temporários no país em 2019.

Um problema que acomete docentes concursados e contratados destas modalidades específicas é o salário aquém de sua formação. Para contratar docentes quilombolas ou indígenas, os salários são nivelados por nível médio e não ensino superior, por exemplo. Se a estratégia funcionou em uma época com poucos professores formados, hoje ela se mostra defasada, desvalorizando as e os profissionais. Os depoimentos exploram essa questão: 

Na Bahia temos atualmente cerca de 600 professores indígenas atuando em escolas indígenas, todo o corpo docente é indígena. Em 2012 realizamos o primeiro concurso público para professor indígena e aprovamos uma lei que criou a categoria “professor indígena” no quadro ocupacional, o que permitiu, do ponto de vista legal, realizar um concurso específico. Foram 390 vagas inicialmente ofertadas – hoje são 27 escolas indígenas, com 40 anexos – e apenas 109 professores conseguiram ser aprovados. Muitos deles atuam hoje em escolas indígenas, inclusive como gestores. Com os que não conseguiram ser aprovados, fizemos processos seletivos para ocupar essas vagas. O contrato REDA, realizado em 2014 e 2018 com duração de dois anos e prorrogável por mais dois, e um contrato emergencial à medida que se necessita de professor indígena. Os concursados têm plano de cargos e salários, seguindo as normativas das leis correspondentes. O desafio agora é levar essa lei para a Assembleia Legislativa, porque na época a maioria dos professores não tinha formação Superior e o concurso foi para nível médio. Por isso, o salário desses professores não se iguala ao dos outros professores do quadro funcional do estado. A lei hoje precisa mudar.

(Coordenador de Educação Escolar Indígena da Bahia) 

Temos poucos professores concursados, o último concurso foi em 2014. A maioria hoje é contratado pelo REDA, não apenas professores mas também serviços gerais, merendeira, zeladora, assistente administrativo, todos. Antes tinha empresa terceirizada que contratava serviço de apoio, mas hoje é via sistema REDA, que dá menos problema para a gente. (….) Mas tenho professor que não tem nem telefone, porque o salário é salário mínimo. A gente ainda está nessa do Magistério, mesmo sendo graduado, pós-graduado, a gente ganha como professor de magistério. (…) Sobre a formação, temos usado o projeto Saberes Indígenas na Escola desde 2015. Fazemos atividades continuadas, trabalhamos leitura, escrita e interpretação, produção de material didático…  Conseguimos protagonismo, porque desenvolvemos um material didático que é nosso. O currículo da escola hoje é voltado para as nossas tradições e todos os professores e funcionários são indígenas.

(Diretora de escola indígena em Glória-BA) 

A escola funciona como escola urbana no que se refere a contratação. Faz tempo que não há concurso, mas cerca de metade dos nossos professores são estatutários. A outra modalidade é contrato PSS, que é emergencial e mais precarizado. O salário é bem mais baixo e a contratação anual. Para os estatutários há plano de cargos, carreiras e salários, um sistema de progressão na carreira. Sobre formação, até governos passados tínhamos liberdade de fazer a nossa formação continuada, mas o governo do estado engessou demais a autonomia da escola. Os planos de educação não respeitam a diversidade e as propostas do estado inteiro são padronizadas como se todas as regiões fossem iguais, então sinto dificuldade na formação e autonomia para liberdade pedagógica.

(Diretor de escola do campo em Lapa-PR)

Não faltam profissionais capacitados, mas falta capacitação, principalmente aos professores que não são oriundos do quilombo. Estamos na luta para garantir formação em temas étnico-raciais e educação quilombola. Há poucos profissionais concursados, e dos concursados a maioria ainda não é quilombola. Nossa luta é para que sejam quilombolas. O fato da maioria dos professores ser contratados faz com que muitos aceitem condições indignas de trabalho. É preciso implementar uma política pública, luta a nível nacional para garantir política de ação afirmativa para que concursos e seleções públicas tenha cota para quilombolas.

(Ativista quilombola e técnica em educação de Salvaterra-PA)

Nós trabalhamos a metodologia da educação do campo. A Secretaria de Educação coloca alguns dias de formação no decorrer do ano, mas há anos o estado não oferta formação  continuada específica oferecida na modalidade. Sempre que podemos e há disponibilidade dos docentes, participamos das formações oferecidas pelo Movimento [dos Sem Terra], mas em geral os professores da escola já têm a especialização, porque isso inclusive conta pontos no edital de contratação.

(Diretora de escola do campo em Santa Maria d’Oeste-PR) 

Temos professores concursados e outros contratados por um processo simplificado. Lutamos pela permanência dos professores na escola porque temos uma proposta diferente, mas nem sempre conseguimos dar continuidade por causa disso. Todos os professores têm graduação, muitos têm pós-graduação e temos um professor doutor, a formação deles é muito boa.

(Diretor de escola do campo em Cascavel/PR)

Aqui todos os profissionais são da comunidade e a maioria é contratado. Através de luta da comunidade conseguimos fazer com que a seleção fosse específica, ou seja: só pode se inscrever para dar aula se for do território. Assim conseguimos gerar renda e emprego na comunidade e motivar a juventude de que podem continuar estudando porque há formas de trabalhar. Também lutamos pelo concurso específico. A gente quer ser concursada como professora quilombola e conseguimos o concurso específico. Tem várias pessoas da comunidade concursadas como professores e professoras quilombolas. E mesmo assim, com a criação em lei do cargo de professora e professor quilombola, as vezes precisamos recorrer ao Ministério Público para assegurar esse direito.

(Professora quilombola de Salgueiro-PE)

Os professores são majoritariamente contratados. Todos têm graduação e a maioria tem pós-graduação ou especialização, alguns têm mestrado. E os professores são polivalentes, as vezes dão sua disciplina e outras disciplinas fora da formação. A maioria é quilombola, da própria comunidade. Trabalhamos com a universidade (UFMT) a formação de etnosaberes, de valorizar os saberes da comunidade e transformar em conteúdo na sala de aula.

(Coordenadora pedagógica de escola quilombola em Nossa Senhora do Livramento-MT)

No Brasil, não há muito investimento na formação de professores indígenas, especialmente desde a extinção da SECADI. Muitos professores indígenas ainda estão em formação, e acreditamos, enquanto movimento indígena, que precisamos ter professores indígenas dentro das escolas. Para isso, precisa investimento na formação de professores. (…) A valorização [se dá] através de concursos público, o profissional precisa estar efetivado, porque não está seguro quando não é efetivo. Sem isso e sem estrutura para as escolas não há como garantir que a pedagogia seja instituída. (…) É preciso pensar metodologias mais aproximadas das crianças indígenas, pensar disciplinas diversas. Se vários indígenas não conseguem concluir ensino fundamental é também porque falta estrutura da escola, material didático, incentivo pra ir a escola. E um incentivo fundamental é garantir tanto profissionais que falem a língua da comunidade. Ainda, há duas iniciativas fundamentais para a educação escolar indígena de qualidade: a formação de professores nas licenciaturas interculturais indígenas, e a ação Saberes Indígenas na Escola. Ambas deveriam se tornar políticas públicas.

(Ativista e antropóloga indígena, especialista na formação de professores indígenas). 


Falta de pessoal e de estrutura em sala de aula

Os depoimentos colhidos em diferentes lugares do Brasil também mostram que a insuficiência de profissionais nas escolas e a falta de insumos – como laboratórios de ciências, informática, quadra poliesportiva ou mesmo falta de água e energia elétrica – limitam o trabalho das professoras e professores de escolas quilombolas, indígenas e do campo. Embora comum, a ocorrência de salas multisseriadas também dificulta o trabalho de docentes e tem impactos na aprendizagem. 

No município a multissérie é uma realidade, principalmente nas séries iniciais. A dificuldade começa em dar atenção para esses diferentes públicos dentro da sala de aula. Os alunos sentem a dificuldade do sexto ano em diante, quando veem que houve defasagem, que está faltando parte do conteúdo que deveria ter aprendido antes. Outro problema em relação a recursos humanos é ter professor que também é gestor, como é o caso da minha comunidade. Em algumas escolas a professora também é merendeira e faz serviços gerais.

(Ativista quilombola e técnica em educação de Salvaterra-PA)

Nos anos iniciais do ensino fundamental é multissérie dado o baixo número de alunos. Até quatro anos atrás não era, então conseguimos ver a diferença. Há uma defasagem [na aprendizagem], percebemos quando os alunos chegam no sexto ano. O professor dos anos iniciais é a base, e por mais que o número de alunos total não seja grande, tratar séries diferentes acaba prejudicando o trabalho, não é a mesma qualidade.

(Diretora de escola do campo em Santa Maria d’Oeste-PR). 

Em 2020 temos 117 estudantes matriculados em 10 turmas diferentes. Conseguimos manter o número reduzido de estudantes por turma porque a estrutura da escola e das salas não comporta mais. No fim do ano, quando fazemos a solicitação ao estado é sempre uma briga, mas em geral aceitam nossos argumentos depois de verem a infraestrutura da escola. É melhor e mais tranquilo para os professores trabalharem. 

(Diretor de escola do campo em Cascavel/PR)

Temos funcionários suficientes, mas precisamos de cuidadores, porque temos algumas crianças com deficiência. Precisamos de cuidadores porque dar conta da turma toda e mais da especificidade do aluno dificulta a vida do professor. E é um direito do aluno c ter esse cuidador para orientar nas atividades. No anexos da escola ainda temos salas multisseriadas porque são poucos alunos. Em um deles, são 8 alunos de Fundamental I, do primeiro e segundo e terceiro anos. No outro, são 4 alunos de quarto e quinto ano em uma sala. Juntamos para poder dar um numerozinho de alunos mais significativo, porque até pra fazer as atividades é difícil com pouco aluno.

(Diretora de escola indígena em Glória-BA)

Secretaria de Escola do Campo no Paraná: construída do zero pela própria comunidade.

Reportagem: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

Uma ideia sobre “Profissionais da educação indígena, quilombola e do campo ainda não são valorizados

  1. ANAEL TSERE OMOWI

    Na verdade, ainda existe desvalorização dos povos indígenas no Brasil, os professores ganham apenas salário mínimo, isso é absurdo, são micharias. Eu já não aguento mais. Os autoridades devem mudar suas ideias, para melhorar a qualidade do ensino e também a estrutura física da escola.

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