Prioridade de Bolsonaro, a militarização das escolas, ainda não foi freada pelo MEC e o modelo avança em diversas regiões do país.
Texto: Nana Soares / Edição: Claudia Bandeira
Uma das principais agendas do governo Bolsonaro na Educação, a militarização das escolas, instituída pelo decreto 10.004, de 2019, que trata do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM) ainda não foi revogado no governo Lula, apesar de pressão da sociedade civil e movimentos estudantis. A ausência de posicionamento do MEC não interrompe a expansão do modelo, que vai contra diretrizes constitucionais para a educação, acirra desigualdades e reforça o racismo, o machismo e a LGBTfobia nas escolas.
O PECIM
O Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM) foi instituído por decreto presidencial em 2019, logo no início do governo Bolsonaro. Ele não é a única forma de militarizar escolas e nem inaugurou este processo, mas o impulsionou fortemente, mais que triplicando o orçamento destinado às escolas cívico-militares – R$64 milhões em 2022, ante R$18 milhões em 2020. As unidades que aderiram a este programa também foram de 120 (2018) para 215 (2022), embora este número seja apenas uma parcela do total, porque há também os programas instalados em âmbito estadual ou municipal. Há, por exemplo, ao menos 199 escolas públicas militarizadas na rede estadual do Paraná e outras 98 na Bahia.
GLOSSÁRIO Militarização das escolas é a transferência do processo de gestão das escolas civis públicas para diferentes forças de segurança, como a Polícia Militar, Bombeiros, Guarda Municipal, Exército, Aeronáutica, Marinha e Polícia Rodoviária Federal. |
O PECIM é uma parceria com o Ministério da Defesa, e parte dos recursos da educação é destinada a pagar os militares da reserva que passam a atuar nas escolas. Entre as muitas críticas ao programa está justamente o desvio de função dos militares e a desvalorização, inclusive salarial, das e dos profissionais da educação que decorre deste processo. Além disso, as escolas cívico-militares funcionam sob uma lógica de obediência a um único modelo, de rígida hierarquia e padronização.
Efeitos da militarização
Não são poucas as denúncias de assédio ou repressão a estudantes quando manifestam individualidades que fogem do rígido e estrito padrão imposto pela escola militarizada. Padrão esse que se baseia em ideais brancos, heteronormativos e privilegia apenas um tipo de masculinidade e feminilidade. Somente meninas podem usar brincos, por exemplo. Em março de 2022, uma estudante baiana negra foi impedida de entrar em sua escola [militarizada] por conta do cabelo crespo, recebendo a ordem de alisá-lo. No mesmo mês, em Santa Catarina, alunas receberam advertência por levar uma bandeira LGBT para a escola. “[A militarização] é um retrocesso porque põe a escola a serviço de uma lógica racista de perseguição, de vigilância permanente e de contenção da juventude negra compreendida como uma ameaça à sociedade”, resume Denise Carreira, professora da Faculdade de Educação da USP e parte da Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação. “São impostos comportamentos rígidos, valorizadas masculinidades autoritárias, silenciados os espaços de crítica ao modelo disciplinar militar, esvaziada completamente a gestão democrática e reprimida a atuação de coletivos juvenis, de grupos culturais e de produções que manifestem posições de denúncia contra o racismo, a LGBTQIA+fobia e o autoritarismo”, completa.
No Paraná, um dos estados onde esse processo foi impulsionado com mais vigor nos últimos anos sob a gestão de Ratinho Junior (PSD), 18 entidades organizaram-se para criar o Observatório de Escolas Militarizadas (OEM) a fim de monitorar, receber denúncias e combater as violações de direitos contra as comunidades escolares. Segundo Vanda Bandeira Santana, integrante do OEM, um dos efeitos da militarização no estado é o enfraquecimento da gestão democrática nas escolas. Isso porque as unidades que aderiram ao processo de militarização a âmbito estadual (cerca de 200, ou 10% da rede) passaram a funcionar sob outro regimento, onde diretoras e diretores não são mais eleitos pela comunidade escolar mas sim nomeados. “E isso está atrelado a um outro movimento do governador de implementar metas para as escolas tendo o Ideb como referência”, explica Vania.
De fato, um dos argumentos do governador é que as escolas cívico-militares são um “modelo vencedor”, com o Ideb maior do que nas escolas regulares. Um argumento contestado por Catarina de Almeida Santos, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) e referência na temática de militarização. Ela defende que militarizar uma escola é na verdade transformá-la em lugar de privilégio e exclusão: “Essas escolas transferem aqueles e aquelas que não se adequam ao projeto, o que inclui o ‘não concordar’ mas também tem a ver com o rendimento do aluno. Então quem em geral tem problemas de rendimento, o que sabemos ser influenciado por fatores sociais, será excluído”.
No próprio Paraná, como denuncia Vanda Santana, as escolas que passaram pela militarização foram majoritariamente as que já tinham melhor estrutura física e pedagógica. Ainda segundo Catarina de Almeida Santos (leia a entrevista completa aqui), “os dados das primeiras escolas públicas militarizadas de Goiás mostram que estudantes que já tinham rendimento médio continuaram tendo rendimento médio após a militarização, e a mesma coisa para o de rendimento alto, mas os alunos de baixo rendimento são transferidos. Há ainda muitas escolas que exigem a compra de farda, traje de gala, ou até mesmo cobram uma pequena mensalidade para que a escola fique mais bonita”.
Outro efeito narrado por Vanda, que é professora de história do Ensino Fundamental e secretária educacional da APP Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras em Educação Pública do Paraná, é a intensificação do monitoramento do comportamento de estudantes paranaenses. “Começamos a receber denúncias de que, sob o regimento militar, expressividades como piercing, cortes de cabelo, comprimento de cabelo, entre outros, estão sendo perseguidas. De que estudantes que ‘não se enquadram’ são transferidos para outra escola”, conta. Tendência que só piora se o processo de militarização no Paraná continuar se expandindo – o que é o plano do atual governador.
Continuidade ou revogação?
Sendo parte crucial do projeto ultraconservador de Bolsonaro para a educação, a expectativa era que o novo governo Lula prontamente revogasse o decreto do PECIM e, ainda mais importante, que a gestão liderasse um processo de desmilitarização das escolas já militarizadas. Até o momento, nenhuma dessas coisas aconteceu.
“Já passou – e muito – da hora da revogação do PECIM”, defende Catarina de Almeida Santos, professora da UnB, que não vê justificativas para a demora. “Quanto mais tempo leva, mais as unidades federativas se sentem tranquilas para continuar militarizando as escolas, porque a não revogação também dá esse recado”, complementa.
Durante o processo de transição, a equipe de Lula descartou novos acordos para escolas cívico-militares, mas não mencionou a reversão do processo em curso. O relatório final da equipe de transição também incluiu o PECIM na seção de medidas para revogação e revisão, mais especificamente na sugestão de revogações e revisões de “atos contrários aos direitos de crianças, adolescentes e da juventude”. Apesar do relatório reconhecer que nos anos Bolsonaro a Educação foi “tratada como instrumento para a guerra cultural e com aparelhamento ideológico” e que o MEC “implementou diversas ações educacionais alinhadas a uma pauta atrasada e com uma visão divergente das políticas que, comprovadamente, asseguram uma educação pública de qualidade a todas e todos”, o documento, quando fala especificamente do PECIM, sugere avaliar o “custo-benefício” do programa para então decidir sobre seu orçamento e continuidade. Não menciona os impactos da militarização nas agendas racial , de gênero, sexualidade e gestão democrática, por exemplo.
“Nossa hipótese para a demora na revogação é que o governo – apesar de ter se manifestado pela interrupção do programa – esteja evitando acabar com o PECIM para não aumentar o tensionamento com os militares, considerando o contexto de responsabilização dos envolvidos na tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro. Somam-se a isso os ataques às escolas no último período, que mobilizaram o pânico nas famílias e junto aos profissionais de educação e reaqueceram o debate sobre o papel das forças de segurança pública nas instituições educativas”, explica Denise Carreira.
Logo nos primeiros dias da gestão, o Ministério da Educação acabou com a diretoria responsável pelas escolas cívico-militares, vinculada à Secretaria de Educação Básica. Mas não revogou o PECIM, que continua vigente. Contatado pela reportagem, o MEC, via equipe de Coordenação Geral do Ensino Fundamental, informou que o PECIM “está em análise pela equipe técnica da Secretaria de Educação Básica, que apresentará ao Ministro de Estado da Educação suas conclusões a fim de subsidiar sua decisão a respeito da continuidade, revisão, reestruturação ou extinção do referido Programa”. No entanto, a Pasta não informou nenhum prazo para as próximas etapas. Também não houve nenhum movimento nesse sentido nas ações comemorativas dos 100 dias da gestão. A pergunta que fica é: qual o plano do MEC para o PECIM?
Como reverter a militarização?
No contexto dos recentes ataques às escolas brasileiras, algumas unidades da federação têm recorrido justamente à militarização como resposta ao crescente de violência. No estado de São Paulo, tramita um projeto de lei que permite que policiais militares de folga possam fazer a segurança armada das escolas públicas estaduais. No mesmo mês de abril, proposta similar foi apresentada pelo governador de Santa Catarina. Em nota, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação alerta que é preciso analisar a questão de forma mais profunda e que o debate sobre a falta de segurança e a violência nas escolas não pode se limitar a uma questão de segurança pública, devendo passar “pela discussão sobre o fim da militarização das escolas, sobre o desarmamento da sociedade, sobre a ausência do Estado na promoção de uma cultura de paz, de políticas públicas da saúde mental para sua população”. A Campanha também recomenda que as escolas criem parcerias com instituições que atuam na rede de proteção de crianças, adolescentes e jovens.
Na avaliação de Vanda Santana, do Observatório de Escolas Militarizadas (OEM) do Paraná, a resposta pela via da militarização – o “caminho mais fácil” – apenas reforça a raiz do problema: “É justamente o movimento de impor regras comportamentais, da repressão, que leva a atos violentos. Aumentar a repressão vai fazê-los diminuir?”, questiona. “O processo da desmilitarização não é fácil, mas é necessário”. Denise Carreira, da Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação, reforça ainda que a segurança pública é um direito humano e constitucional, mas que não pode ser “a” resposta ao problema da violência nas escolas através de cerceamento e controle dos corpos. Ela aponta que, entre as muitas ações necessárias para enfrentar este problema, está a valorização das profissionais da educação para que tenham condições de vida e de trabalho adequadas e que sejam então estimuladas a se fixarem a uma única escola, superando a alta rotatividade, especialmente em territórios de extrema vulnerabilidade. “Precisamos fortalecer as escolas garantindo menos estudantes por turma, mais professores concursados, equipes que consigam conhecer os estudantes, suas famílias e o território no qual a escola está inserida. Precisamos de um programa nacional de saúde mental robusto voltado para estudantes, famílias e profissionais de educação”, elenca ela.
Mais de 200 entidades da sociedade civil compartilham do horizonte da desmilitarização da educação e a favor da vida e vêm pressionando o governo a tomar medidas concretas neste sentido. Em março, elas lançaram um manifesto conjunto demandando a revogação do PECIM e indicando uma série de propostas para dar fim ao processo de militarização. Entre a extensa lista de razões pela revogação do decreto do PECIM, estão: o programa não estar amparado pelo Plano Nacional de Educação (PNE); as inúmeras violações de liberdades de expressão, de organização e de associação sindical dos professores; o fato de que militares não estão no rol de profissionais autorizados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional a atuar na gestão das escolas ou em qualquer outra função típica dos trabalhadores da educação; e de que a militarização fere princípios constitucionais do ensino, como a liberdade de aprender e ensinar, o pluralismo de ideias, a valorização de profissionais da educação e a gestão democrática, além de ferir o respeito à identidade e à diversidade individual e coletiva da juventude (Estatuto da Juventude, art. 2º, inciso VI).
Por outro lado, as ações propostas para reverter a desmilitarização incluem: Elaborar políticas públicas nas áreas da convivência e gestão democrática na escola; Retomar planos e programas para educação em direitos humanos; mobilizar campanhas de estímulo à mudança de nomes de escolas públicas vinculadas a personagens das ditaduras militares e da colonização violenta do país; propor medidas de justiça de transição para superação do legado autoritário do Brasil; convocar o CNE a se manifestar sobre a incompatibilidade entre os processos de militarização da escola pública e as diretrizes da educação básica do país.
A professora Catarina de Almeida Santos ressalta que este processo deve ser liderado pelo Ministério da Educação, embora em articulação com outros órgãos e ministérios. “Este papel [de capitanear a agenda de desmilitarização] é da União. Ainda que estados e municípios continuem, o governo federal mostra ação e pode tomar uma série de medidas jurídicas e orçamentárias. Se Bolsonaro pode impulsionar a agenda, Lula pode reverter”, resume.