As gestões do MEC no Governo Bolsonaro “são pautadas pela omissão, pela incompetência e pela priorização de temáticas localizadas” , diz o professor e ativista Idevaldo Bodião

Em entrevista ao De Olho nos Planos, o ativista do CEDECA-CE e professor aposentado da UFC analisa a condução do MEC no governo Bolsonaro

Entrevista: Nana Soares | Edição: Claudia Bandeira

Faltando ainda um semestre para o fim do mandato de Jair Bolsonaro, o Ministério da Educação (MEC) já passou por quatro trocas de comando. Ricardo Vélez Rodríguez, Abraham Weintraub, Milton Ribeiro e Victor Godoy já comandaram a pasta, além de Carlos Alberto Decotelli, que foi nomeado mas não chegou a tomar posse. A Pasta, uma das mais prejudicadas por cortes orçamentários e por políticas ultra neoliberais do governo Bolsonaro, concentra também o que muitos chamam de “ala ideológica” do governo, já que é um espaço importante para o projeto bolsonarista – por exemplo, de criminalização dos debates sobre gênero e sexualidade

A gestão do governo Bolsonaro na área da educação atua – seja por incompetência ou por projeto – no sentido oposto ao de garantir uma escola pública, gratuita, laica, democrática e de qualidade para todas e todos. Para refletir mais sobre estes temas e avaliar pontos de convergência e de diferenciação entre os últimos Ministros da Educação, conversamos com o professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará e ativista do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente – Ceará (Cedeca Ceará) e da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Idevaldo Bodião. Na entrevista, Bodião defendeu que embora o governo Bolsonaro tenha objetivos políticos claros, não consegue por todo seu projeto em prática, entre outras coisas, por falta de competência na gestão. Enfatizou também que, apesar dos ex-ministros terem perfis diferentes, todos se mostraram adeptos às linhas do chefe do Executivo. 

Confira a entrevista abaixo. As perguntas e respostas foram editadas para maior clareza e objetividade. 

De Olho nos Planos: Em linhas gerais, como você classifica a atuação do MEC no governo Bolsonaro? Predomina a implementação de um projeto claro ou a incompetência e negligência que culminam em retrocessos? 

Idevaldo Bodião: Acho que não há um projeto do governo para o Brasil. Falo desde a candidatura e mesmo antes, da atuação de Bolsonaro como parlamentar, onde não há nenhuma proposição relevante. A falta de conteúdo, associada a verbalizações beligerantes, é, mais ou menos, o vazio mais beligerância da proposta de governo do Bolsonaro candidato. Minha visão é que seu mandato na Presidência é uma expressão disso, um misto de incompetência dele próprio e de seu entorno. 

Na Educação, falo com ainda mais clareza que não houve um projeto no Ministério. Vou dar um exemplo: Bolsonaro herdou duas grandes propostas do governo Temer, a BNCC e a reforma do Ensino Médio, e nem mesmo essas pautas avançaram articuladas pelo governo federal como, em princípio, deveria acontecer. Então é um misto de falta de propostas e de incompetência para administrar mesmo aquelas que estão de acordo com as ideias do governo. Acho que vale para o MEC mais ou menos o que tem valido para a Presidência: na falta de proposta, as gestões são movidas por eventos e pautas localizadas, que preenchem os espaços de mídia e, de alguma maneira, escondem ou mascaram a falta de ações e a incompetência. 

De Olho: Mas e pautas como a educação domiciliar (homeschooling) e o incentivo à militarização das escolas? Não seriam parte de um projeto? 

IB: Sem dúvidas são propostas que defendem uma concepção muito clara, que têm uma veia político-ideológica muito clara, bem definida e alinhada com o ideário bolsonarista, mas que não chegam a consolidar um projeto de educação.

Elas atendem a pauta conservadora, são pautas conservadoras, ainda que para públicos distintos, e atendem, em certa medida, as expectativas dos públicos a quem em princípio se destinam. 

A lógica bolsonarista nessas pautas conservadoras é sempre a do direito individual, que parece negar a convivência coletiva e em sociedade. A escola cívico-militar é uma escola pedagogicamente pobre para pobre e que não alimenta perspectivas de mudanças, como solução para o futuro. Com os militares na escola pública, ainda que possa existir um projeto pedagógico que abranja os conteúdos disciplinares, no que diz respeito a participações, debates e discussões, a escola seguirá a lógica do quartel, da obediência, estrangulando quaisquer preparações para o exercício da cidadania.

O homeschooling, da forma como foi aprovado na Câmara, não é para pobre. Por exemplo, exige que ao menos um dos pais tenha Ensino Superior. Mesmo que considerássemos isso como aceitável, qual é a família cujos membros estão qualificados para tratar dos conteúdos de todas as disciplinas do ensino médio? Será preciso contratar professores, ao mesmo tempo em que se abre um importante mercado para materiais didáticos. Nesse sentido que digo que se destinam a públicos distintos e que não chegam a consolidar um único projeto de Educação. O número de famílias pleiteando a educação domiciliar, por exemplo, é ínfimo perto da população em idade escolar, mas é uma pauta que dá conta das expectativas de um certo segmento, da mesma forma que as escolas cívico-militares acolhem as expectativas de outro segmento social. 

De Olho: Se é um governo marcado pela incompetência, quais episódios ou momentos-chave que demonstram isso?

IB: Poderia citá-los em dois acontecimentos importantes: a tramitação do Fundeb e a pandemia. Com relação à tramitação do Fundeb, o que vimos foi uma omissão total, não foi o governo que o pautou no Legislativo, não houve defesa marcante das suas posições. Naquele momento, quem deu as cartas foram parlamentares, como a deputada Professora Dorinha, o deputado Idilvan Alencar e os senadores Randolfe Rodrigues e Flávio Arns, com uma interlocução intensa com a sociedade civil, onde a Campanha Nacional pelo Direito à Educação teve atuação destacada. O governo esteve omisso, o que é um absurdo, dentro da lógica deles mesmos, uma vez que os encaminhamentos levavam a um aumento da participação da União no financiamento da educação básica. O que de fato ocorreu, ainda que abaixo do que necessitaríamos. Repito que do ponto de vista da própria gestão é incompreensível a omissão numa pauta dessa natureza. Há uma matéria da Folha de São Paulo que mostra, por exemplo, que enquanto mais de 40% dos tweets do Weintraub eram ataques, até aquele momento, apenas 5 mensagens se referiam ao Fundeb, o que corresponde a 0,6% das postagens do período. 

Sobre a pandemia, nós passamos praticamente dois anos inteiros com aulas na modalidade remota e quais foram as ações do MEC? Nenhuma. Pelo contrário, houve uma tentativa justamente de negar a expansão do acesso a internet e tecnologias. E isso fez coro com o Planalto, cuja postura era a de negação das estratégias de isolamento e, posteriormente, de vacinação. Esse é um assunto que, mesmo que o ministro quisesse tomar posições mais condizentes com as orientações da OMS, por exemplo, o presidente atrapalharia, como foi o caso no Ministério da Saúde.

Na Educação, os ministros foram subservientes à forma como o governo encaminhou essas questões, o que, para a população, foi um desastre.

>> LEIA MAIS: ENSINO REMOTO EXCLUDENTE, RETORNO PRESENCIAL INSEGURO: OS DESMONTES NA EDUCAÇÃO DURANTE A PANDEMIA

De Olho: E os ministros? Há diferença substantiva entre as gestões?

IB: Na condução da gestão acho que não houve muitas diferenças, porque todas foram pautadas pelas omissões, incompetências e priorizações das temáticas localizadas, uns mais e outros menos. Uma pauta recorrente é o combate ao “marxismo das escolas” e contra a “ideologia de gênero”. Vez por outra emergem movimentos em favor de grupos privados, ainda que nem sempre explícitos.Vamos um por um.

Velez Rodriguez, em sua posse, verbaliza claramente que tinha uma proposta: combater o comunismo, que estaria presente nas escolas, e a “ideologia de gênero”. Nada disso vingou. É alguém sem experiência na gestão de uma pasta pública; parte da ala ideológica do governo, foi indicado por Olavo de Carvalho. Perdeu-se em meio a fortes disputas entre os militares e os olavistas.

Quem entra? Abraham Weintraub, também olavista. É o mais espalhafatoso, o do estardalhaço, o mais midiático, e que, também, tem como pauta “desconstruir o marxismo”. É dele a frase de que as universidades são uma balbúrdia e um antro do esquerdismo, portanto a pauta é a mesma. Também é na gestão Weintraub que se aprova o Programa Nacional de Escolas Cívico Militares (PECIM).

Em relação ao que vou chamar aqui de “pauta liberal”, uma proposta de sua gestão era o Future-se, um programa que pretendia trazer recursos do mercado para financiar pesquisas nas instituições. O receio com o programa – e essa era justamente a intenção da gestão – era que diminuísse o financiamento em áreas como as ciências humanas, porque não é onde a iniciativa privada vai financiar. Aqui há uma inversão, é o mercado que vem para a universidade para pautar o que ela deve fazer, o resultado final seria a diminuição dos recursos públicos e, ao mesmo tempo, o fortalecimento de uma pauta liberal; podem ser nomes distintos, mas a pauta é a mesma. É importante frisar que o Future-se não vinga porque é desidratado pelo próprio Paulo Guedes, e é a isso que me refiro quando falo da incompetência: é uma gestão onde não há articulação sequer para avançar suas próprias agendas. Se de Vélez Rodriguez, que só ficou três meses no cargo, ainda se poderia justificar não ter tido uma política clara, com Weintraub isso não existe, porque era tempo para ao menos sinalizar uma política.

Vou dar mais um exemplo do que chamo de incompetência: a gestão Weintraub tinha mais de um bilhão de reais recuperados de acordos da Lava-Jato, que obrigatoriamente precisariam ser usados na educação infantil, na implantação de creches, por exemplo, que é, sabidamente, um gargalo na expansão de vagas, mas o dinheiro não foi usado por falta de projeto. Àquela altura, o ministério já cogita em expansões de vagas na educação infantil na forma de “vouchers”. O dinheiro existia e a necessidade também, e eles poderiam ter faturado politicamente com recurso a custo zero para o orçamento, mas nem isso foram capazes de encaminhar. 

De Olho: E os outros ministros? 

IB: Uma das coisas que o Weintraub primou foi comprar brigas, sobretudo e principalmente com o STF. Com isso, ele sai. Entra quem? Ninguém! Um caso escandalosamente vergonhoso. Com as mentiras no currículo e a acusação de um possível plágio, tornou-se impossível manter a nomeação de Carlos Alberto Decotelli. Vem aí Milton Ribeiro, ungido pela bancada evangélica. Aí o Centrão já é um aliado de Bolsonaro e negociações, que não aconteceram nas nomeações dos outros ministros, já fizeram parte do pacote. Ele assume no “lockdown” e não faz nada, o que, insisto, significa um alinhamento com a política do Planalto. 

Milton Ribeiro expressou com clareza seu desejo de criar filtros ideológicos no ENEM, inicialmente trazendo para si a tarefa de controlar o ENEM, declinando-a, em seguida, para uma comissão; na sua gestão é publicado um edital do Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), que, entre outras coisas, relativiza a defesa dos direitos humanos. Essas medidas, sim, considero que tenham horizontes diferentes das escolas cívico-militares ou do homeschooling, pois atingem algumas dezenas de milhões de estudantes. Cada um dos ministros aponta para um local onde acham que está o “comunismo” ou o esquerdismo: para Weintraub era na universidade, para Ribeiro é na entrada da universidade, por isso o desejo de controlar o ENEM e assim controlar toda a educação básica. Talvez aí, de fato, podemos dizer que havia um plano no governo: acabar o “esquerdismo” na escola brasileira. 

No mais, é um Ministro que tem incompreensão do que é sua tarefa e que mistura incompetência com subserviência a Bolsonaro, por exemplo, negando a gravidade da pandemia e, com isso, omitindo-se em relação a medidas que poderiam mitigar seus impactos. Curiosamente, o ministro “terrivelmente evangélico” caiu justamente em função de declarações de favorecimento a certos atores também “terrivelmente evangélicos”. 

Estamos há alguns meses com um outro Ministro (Victor Godoy) que ninguém sabe quem é, mas vindo de onde vem, não devemos esperar nenhum tipo de correção de rota, uma vez que desde 2020 ele já trabalhava no MEC, como Secretário-Executivo. Talvez não sejam os mesmos movimentos, mas, certamente, a mesma política, por isso aumentam nossas responsabilidades em derrotar esse governo nas próximas eleições. 

De Olho: O PNE foi fruto de amplo debate em Conferências de Educação e de acirrada disputa na tramitação no Congresso Nacional, mas não será cumprido até o final de sua vigência. Quais fatores, na sua opinião, contribuem com o desmonte do Plano Nacional de Educação? 

IB: Nós temos uma ruptura, um divisor de águas importante em relação aos processos conferenciais e aos planos decenais de educação com o impeachment da presidenta Dilma. Em 2017, o Ministro Mendonça Filho desconfigurou o Fórum Nacional de Educação, instância que organizava o processo conferencial, ao mesmo tempo em que impôs que a supervisão, a articulação e coordenação da Conae passariam a ser exercidas pela Secretaria-Executiva do Ministério da Educação. Tratam-se de mudanças de ordem qualitativa, pois até então, nos governos Lula e Dilma, o Fórum era um importante espaço de participação social, com os embates políticos ocorrendo dentro de instâncias democráticas. A mensagem é clara, a partir desse momento é o governo quem conduz o FNE e com ele o processo conferencial, o que levou as entidades do campo democrático-popular da sociedade civil a se afastar daquela instituição e criar o Forum Nacional Popular de Educação, o que levou a, neste momento, termos, também, distintas Conferências. Dito de outro modo, é uma cisão entre governo e sociedade civil. 

Essa mudança nos leva de volta a 1997, quando governo e sociedade civil tinham propostas e projetos distintos para o Plano Nacional de Educação. Nesse sentido, reafirmo a importância das próximas eleições, também para as casas legislativas, pois precisamos garantir substantivas mudanças na Câmara dos Deputados (que poderá alterar toda a sua composição) para termos forças políticas para fazer avançar a proposta de PNE a ser construída pelo campo progressista da sociedade civil. Isto considerando o cenário que espero que aconteça, que é a eleição de Lula para presidente, o que levará à construção de um novo PNE; com uma nefasta, e por isso indesejada, reeleição de Bolsonaro não sei se teríamos um PNE, com tudo o que pode vir junto com isso. 

Volto a insistir, o governo Bolsonaro tem sido extremamente nefasto para o país e há um conjunto de matérias que o atestam; ainda assim, é importante lembrar que, do ponto de vista das participações populares na educação, o divisor das águas ocorreu no governo Temer, com uma ruptura nos processos de democratização da gestão – refiro-me à desconstrução do FNE e suas decorrências. Não se pode esquecer, também, que a Emenda Constitucional 95 é outra herança do governo Temer que tem imposto substantivas restrições ao financiamento da educação, dentre outras áreas do governo. 

Se considerarmos as pautas dos direitos sociais (Capítulo II da Constituição Federal) é fácil perceber que temos tido muitas derrotas depois de 2016; é nossa tarefa política pavimentar o caminho de reconquista desses direitos, percurso que tem um marco vital nas eleições de outubro de 2022 e ao lhe dizer isso me vem à memória uns versos do poeta espanhol, Antonio Machado, que deve ser um lema para muitos de nós: “Caminante, no hay caminho, se hace caminho al andar”. 

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.