A educação antirracista diante do novo ensino médio e da militarização das escolas

Políticas têm sido aprovadas sem atender demandas de estudantes e população negra é a mais prejudicada pelas reformas educacionais 

Gênero, Raça e Laicidade Eleições 2018
EBC/Divulgação

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

Nos últimos anos, estudantes de todo país foram impactadas/os por várias mudanças em seu dia a dia escolar: a aprovação do Novo Ensino Médio (Lei 13.415/17), a explosão de escolas cívico-militares, o fechamento das escolas com a pandemia de Covid-19 – nem sempre apoiado por ações que assegurassem a continuidade dos estudos de forma remota – e as várias alterações na lei do Novo Ensino Médio, nunca acompanhadas de aumento de investimento financeiro. Essas várias mudanças tiveram ao menos uma característica em comum: foram construídas e implementadas “de cima para baixo”, sem atender as demandas das e dos jovens, especialmente estudantes negras e negros das periferias, população que é a mais prejudicada pelas reformas educacionais em curso. 

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2023 mostram que cerca de sete em cada 10 jovens que abandonam a escola no Ensino Médio são negras e negros, sendo a necessidade de trabalhar o principal motivo. Apesar da aprovação de uma nova Política para o Ensino Médio em 2024, seguem os desafios com relação ao atendimento educacional de jovens que trabalham, principalmente daquelas e daqueles que abandonaram a escola. E os impactos das reformas educacionais para o Ensino Médio ainda afetam de forma negativa esses/as estudantes. 


Para ser bem sincera, depois da reforma eu dei até uma desanimada da escola, principalmente por causa da parte digital. Sinto que não aprendo tanto só com a tela de celular, é diferente de ter professor explicando. (…) Os mais afetados somos nós que moramos na periferia e, em maior escala, pretos e periféricos. A gente olha mais de fora e vê que quem tem condições melhores, tipo as escolas particulares, não tem o Novo Ensino Médio como a gente. Estou tendo que fazer cursinho popular por fora, e vou concorrer à mesma vaga, com as mesmas exigências, mesmo não tendo o mesmo estudo. Estou indo para a escola para terminar o Ensino Médio, mas dizer que realmente estou aprendendo alguma coisa, eu não estou. 
Rebeca*, estudante do 3º ano do EM

Sendo preta e periférica, acho que muitos alunos da minha cor, a gente tem dificuldade de até mesmo seguir com essas plataformas [digitais]. Tá sendo horrível, porque a gente acaba não tendo tempo pra fazer as lições gerais dentro da sala de aula, os professores acabam tendo que fazer um trabalho que não é deles, e isso dificulta muito o ensino. 
Lara, estudante do 3º ano do EM 

Nós queremos ensino médio de qualidade, que a gente possa passar no vestibular, porque projeto de vida não vai me ajudar a passar na Fuvest. Quero que foque exatamente naquilo que a gente precisa pra gente ocupar o lugar que é nosso por direito, porque essa coisa do [novo] ensino médio só foi pra afastar mais e mais a periferia da faculdade. Porque vem aquela coisa “preciso trabalhar”. E dando demandas que a gente não precisa, como projeto de vida, empreendedorismo, afastando a gente mais e mais de uma faculdade pública, a pessoa trabalha mais e mais pra poder pagar uma faculdade particular. 
Bianca, estudante do 3º ano do EM


*Nomes fictícios para os depoimentos das jovens e dos jovens que contribuíram com a reportagem

Mas o que há de novo no “Novo Ensino Médio”?

A gravidade da situação levou o Ministério da Educação a realizar uma consulta pública sobre o Ensino Médio logo no começo do novo governo Lula. Da consulta, resultaram propostas de alteração à lei 13.415 que poderiam corrigir vários problemas trazidos por ela – podendo inclusive levar à sua revogação -, mas que foram escanteadas quando chegaram ao Legislativo. A “nova” versão, sancionada no fim de julho de 2024, avança em garantir 2.400 horas para as disciplinas obrigatórias, mas mantém dispositivos que aprofundam as desigualdades raciais e sociais já existentes no Brasil. 

“É um projeto que impacta a agenda da educação antirracista na medida em que mantém o aprofundamento das desigualdades que a reforma do ensino médio de 2017 criou. Aquela desigualdade que vimos crescer se mantém, e vai continuar a ser ampliada. Quando isso acontece, a população negra e pobre é a mais atingida”, resume Débora Goulart, professora da Unifesp e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU). 

Só para dar alguns exemplos: o “novo” Novo Ensino Médio deixa brechas para o ensino à distância (EaD), para a privatização e para a desescolarização. Isso porque agora até trabalho pode contar como carga horária de educação. Dizendo de outra maneira, a Reforma permite que uma atividade fora da escola (o trabalho) seja equivalente à escolarização. 

“Com isso, o que está sendo dito é que para o Novo Ensino Médio, trabalho é uma forma de estudo e que trabalho juvenil substitui a escola. Ou seja, na impossibilidade de garantir só a escola para a população pobre, você faz ela trabalhar e que isso conte como estudo, o que é uma maneira de retirar estudantes da escola”, acrescenta Débora. 

Em relação à oferta de Ensino Médio no período noturno, a lei recém sancionada também deixou uma brecha importante: ficou estabelecido que todos os municípios devem ter ao menos uma escola que disponibilize aulas nesse turno, mas apenas se houver demanda manifestada. Isso, como ressalta Débora Goulart, impacta fortemente a garantia do direito à educação, porque deixa a possibilidade de que essas aulas não sejam ofertadas. Ou seja, que estudantes, em sua maioria trabalhadoras e trabalhadores, não tenham garantida a oferta de ensino. 

A situação também é muito precária no ensino técnico-profissionalizante, pois nessa modalidade houve flexibilização do principal e talvez único ponto positivo da nova lei: a carga horária mínima obrigatória. Depois de muita pressão popular, ficou assegurado o mínimo de 2.400 horas na formação geral básica (FGB) das e dos estudantes, mas para educação profissional o mínimo é de 2.100 horas. Nessa modalidade, também passou a ser permitida a contratação de docentes por “notório saber” – isto é, sem necessidade de formação em docência e em suas áreas específicas.

Todas essas mudanças vêm em um contexto em que a porcentagem de estudantes do ensino superior negras e negros em universidades federais saltou de 17% para 49%. Ou, nas palavras de Débora Goulart: “O NEM aprofunda as diferenças raciais do ponto de vista educacional. É a recolocação de uma barreira educacional para a população negra”, reforça a professora da Unifesp.  


Com o Novo Ensino Médio eu fiquei muito desanimada da escola. Eu amava a escola, ler livros e pegar na biblioteca. Agora, de verdade, só faço porque tenho que fazer e concluir, basicamente vou porque tenho que ir. E são as pessoas da favela e da periferia que estão sofrendo isso. Foi o cursinho [popular, extra] que me animou um pouco mais a acreditar que vou conseguir ter acesso ao ensino superior. Lá eles fazem a gente acreditar de volta nisso, que a universidade pública é pra gente
Rebeca, estudante do 3º ano do EM

[A implementação] foi muito complicada. Um dos motivos de eu ainda estar no primeiro ano foi [problema com] as plataformas, porque mesmo que tenha tirado 10 dentro da sala de aula, se não consegue a nota na prova da plataforma, não adianta. E na pandemia eu tive um problema no sistema, eu não constava no sistema da minha escola. Aí começou a desandar. 
Leandro, estudante do 3º ano do EM

Exclusão, perseguição e racismo 

Outro fenômeno em franco crescimento em todo o Brasil, e em especial no estado de São Paulo, é a militarização das escolas. Um processo de caráter racista, machista, LGBTfóbico e excludente com estudantes mais vulneráveis, já que a militarização prega pela obediência e pela padronização – que é baseada em ideais brancos, heteronormativos e que privilegia apenas um tipo de masculinidade e feminilidade. 

Por exemplo: em março de 2022, uma estudante baiana negra foi impedida de entrar em sua escola por conta do cabelo crespo, recebendo a ordem de alisá-lo. No mesmo mês, em Santa Catarina, alunas receberam advertência por levar uma bandeira LGBT para a escola. Como destacou Denise Carreira, professora da Faculdade de Educação da USP e integrante da Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação, a militarização “põe a escola a serviço de uma lógica racista de perseguição, de vigilância permanente e de contenção da juventude negra compreendida como uma ameaça à sociedade”. Isso se dá através da imposição de comportamentos rígidos e do silenciamento dos espaços de crítica ao modelo disciplinar militar, além do esvaziamento da gestão democrática e repressão à atuação de coletivos juvenis.

E os dados mostram a urgência de se debater e combater o racismo nas escolas: segundo a pesquisa Percepções do Racismo no Brasil, esse é o tema mais importante a ser debatido, com 69% das pessoas considerando-o prioritário. E cerca de 2 em cada 3 estudantes apontam justamente a escola como o ambiente onde mais o experienciam.

Um dos discursos utilizados para vender o modelo militarizado é de que essas escolas seriam “melhores”. Mas o que os dados mostram é que elas recebem muito mais investimento e que, na verdade, elas já tinham infraestrutura e nota do Ideb acima da média antes de serem militarizadas. E se a adesão à militarização não mudou substantivamente a “qualidade” do ensino nessas unidades, serviu para deixá-las mais excludentes. Isso porque, para aderir ao Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM), as escolas tiveram que cumprir requisitos como fechar turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA) e de ensino noturno – caracterizadas por receberem estudantes trabalhadoras e trabalhadores. 

“Em geral, o perfil das escolas muda depois da militarização: embranquecem, atendem pessoas com mais condições financeiras, passam a ter congestionamento de carros”, descreve Catarina Almeida dos Santos, professora da UnB e especialista em militarização. Catarina ainda pontua o paradoxo de, por questões de segurança, se cogitar ou implementar um modelo liderado pelas mesmas forças responsáveis pela repressão à juventude negra: “É contraditório militarizar a escola com o discurso de garantir segurança e colocar dentro dela exatamente quem não garante a segurança do lado de fora, especialmente para quem é pobre e negro. É porque a sociedade está insegura que a escola também está, e não o contrário. Chamar os responsáveis por essa falha para resolvê-la não resolve nada”. 

A professora da Unifesp e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU), Débora Goulart, complementa: “o que significa para um estudante negro, que tem medo da polícia na rua, tê-la na escola? Sendo a escola esse ambiente que, com todos seus problemas, em geral é onde os jovens conseguem se expressar, se coletivizar e expressar suas identidades. A figura militarizada na escola enfraquece a possibilidade desses grupos se fortalecerem”. 


Na minha escola, em comunidade, não ia dar certo. Os alunos estariam em risco. 
Giovana, estudante do 1º ano do EM. 

A militarização nas escolas afeta o jovem negro acho que não só na parte estudantil, mas também o psicológico. Porque querendo ou não essas escolas querem que nós sejamos moldados ao que eles querem, na vestimenta, no cabelo. Então essas escolas são voltadas para que as pessoas percam a capacidade de pensar contra o sistema, entende? Porque pensando contra o sistema vem a revolução e eles não querem a revolução. Com essas escolas eles moldam os alunos pretos e periféricos pra que eles comecem a pensar exatamente da forma que eles querem que a gente pense. E com toda essa revolta contra a militarização isso pra eles está causando uma revolta do caramba, porque pra eles não deveria ser assim, preto não deveria ter voz. Periférico não tem voz. Como assim você tá indo contra o que eu tô falando?  
Bianca, estudante do 3º ano do EM

Ano passado trabalhei com mais pessoas da minha escola para ela não virar cívico-militar nem PEI, por conta da estrutura dela e da própria comunidade que está. Não seria bom para a escola e nem para os professores. E ficaram insistindo para virar, mandaram alguns alunos para outras unidades ver para como eram. Mas na nossa realidade não funciona. Eu agora no pré-exército já estou vendo que se você prestar atenção percebe que é um ambiente muito controlador, tem que seguir tudo à risca, querem bonequinhos. Ou segue à risca ou é humilhado, tem a voz calada.
Leandro, estudante do 3º ano do EM

Acho que seria difícil [se a escola se militarizasse], porque a gente já tem que seguir regras, às vezes a gente não tem muito a oportunidade de dar nossas opiniões, expressar o que a gente pensa, fala, sente. Acho que isso ficaria muito difícil. Acaba tendo muita regra e são pessoas que deveriam proteger nosso povo, nossa periferia, mas acabam prejudicando muito. Acho que isso não funcionaria muito nas escolas. tanto pra nós como pretos ou como qualquer pessoa em geral, LGBTs…acho que não funcionaria muito bem. 
Lara, estudante do 3º ano do EM 

Apostas e caminhos

As juventudes, especialmente as negras, periféricas e LGBTQIA+, sempre encontraram muitas formas de se expressar e de resistir aos sucessivos desmontes. E seguem resistindo à imposição do Novo Ensino Médio, das escolas militarizadas e de políticas que as afetam diretamente. Seguem lutando por uma educação de qualidade, que abra caminhos e oportunidades para o futuro e que as/os escute – por que uma educação antirracista é uma educação que interrompe e corrige desigualdades históricas, o que também inclui assegurar a gestão democrática e a participação efetiva de estudantes


Vai ser a gente pela gente pra tentar mudar a realidade. Se a gente não fizer nada, pra eles tá bom. Então os próprios estudantes que têm que se mover de alguma forma pra mudar a realidade. 
Rebeca, estudante do 3º ano do EM

O adolescente negro tá na base, tentando ainda entender os assuntos. E desde que me entendo por gente não vejo recompensa por debater, muitas vezes as escolas não querem que você pense e conheça seu próprio país. Isso é muito frustrante, ir colocando na cabeça das pessoas que se você é de classe baixa, pobre, negro, não pode ser ouvido. Acho que as pessoas deveriam ter mais compaixão, isso ir escalando para quem tem cargos públicos, porque ninguém é melhor do que ninguém, isso foi colocado para a gente seguir regras e ter medo de mudar, de ter um pingo de esperança. 
Leandro, estudante do 3º ano do EM

Acho que a gente deveria se unir mais. Com tudo isso que está acontecendo é mais um direito pra gente se unir e dizer que nós temos vozes, que nós temos direito de fazer o que a gente quer na escola porque nós somos os alunos, temos o direito de expor nossa opinião e falar o que a gente sente.
Lara, estudante do 3º ano do EM 

O que a gente pode fazer enquanto estudante periférico é ir pras ruas mesmo. Por que a gente é movimento social né? Pretos e periféricos são movimento social sim, vão pra rua, vão alcançar. Eu e você aqui fazendo reclamação não vai ter voz nenhuma, mas junta um monte de pessoas e vai pra Paulista pra você ver. Vai ter atenção, e quanto mais atenção melhor. Acho que a gente como estudante tem que sim reivindicar nosso direito e ir atrás porque aquela faculdade pública é nossa por direito.  (…) Encontros como o de hoje [dos Projetos SETA e Tô No Rumo] ajudam os jovens a pensar. Todo mundo já pensa nisso, mas ajuda a formular o que tá pensando, sabe? Vai juntando ideias que talvez uma pessoa só não consiga pensar. Todo mundo quer a mesma coisa, uma melhoria, mas só como um todo podemos fazer diferença. 
Bianca, estudante do 3º ano do EM


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