Movimentos sociais apresentam a situação da educação brasileira para a relatora da ONU para o direito à educação

O encontro ocorreu em reunião fechada realizada em São Paulo, durante a visita extraoficial da relatora ao Brasil na semana passada

Boly Barry, relatora da ONU para o direito à Educação (Créditos: Gutierrez de Jesus/Campanha Nacional pelo Direito à Educação)

Em visita extraoficial ao país para participar de um seminário, a relatora especial pelo direito à educação da Organização das Nações Unidas (ONU), Koumbou Boly Barry, esteve presente em uma reunião especial fechada com movimentos sociais e organizações da sociedade civil atuantes no campo da educação na última terça-feira (04/04) em São Paulo. O objetivo da iniciativa, organizada pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação e pela Ação Educativa, foi apresentar um panorama atual da educação brasileira, pela voz de estudantes, professores(as), acadêmicos(as) e ativistas. Na ocasião, a relatora, devido às regras da ONU, não falou com a imprensa e não realizou nenhum pronunciamento oficial, mas não mediu esforços para escutar atentamente as diferentes vozes levadas a ela pelos movimentos sociais.

Em sua fala durante o evento, a relatora parabenizou a iniciativa da sociedade civil em fazer chegar até ela as informações, agradeceu aos que lutam pela garantia do direito à educação e compartilhou com os presentes parte de sua trajetória de vida, sua visão e suas experiências no campo educacional, em especial em seu país. Afirmou ainda que não é fácil ser uma mulher africana ou vir de grupos sociais e étnicos discriminados.

Barry assumiu missão junto à ONU como relatora em 2016. Foi Ministra da Educação de Burkina Faso, seu país de origem, e consultora de diversas organizações governamentais e internacionais. Sua atuação é marcada fortemente pela agenda da educação de jovens e adultos e pelas questões de gênero e raça. Desde que assumiu seu mandato, a relatora tem se empenhado muito em escutar diferentes representações da sociedade civil e de quem de fato atua dentro da escola, incluindo estudantes.

Uma de suas funções como relatora é visitar países, conhecer seus sistemas educacionais e desafios internos e aconselhá-los com caminhos para superá-los. Estando no Brasil, em visita extraoficial, valorizou a criação de espaços de diálogo entre sociedade civil e governo e afirmou que essas pontes precisam de fato funcionar. Para Barry, o país tem que ser um exemplo em seu sistema educacional destacando que o Brasil não deve retroceder, mas sim avançar. Durante o evento ela reiterou que sua presença ali era para ouvir a sociedade civil brasileira e que também manterá sempre diálogo construtivo com o Governo Brasileiro.

Sobre o Brasil, destacou a importância de seu lugar histórico nos processos de alfabetização, lembrando Paulo Freire como uma referência mundial na efetivação do direito à educação e no combate à pobreza. Ela disse que Paulo Freire é importante para o sistema educacional, não só para o Brasil, não só para as populações da América Latina, mas para o mundo.

Estudantes que participaram das ocupações no ano passado falaram sobre as suas preocupações para a relatora (Créditos: Stephanie Kim Abe/Ação Educativa)

 

Cenário brasileiro apresentado pelos movimentos sociais

Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, trouxe um panorama das conquistas para a área desde a Constituição Federal de 1988, especialmente na última década, cujas políticas vêm sendo sistematicamente desmontadas e sofrendo graves retrocessos que impactam a garantia do direito à educação, especialmente no que tange a aprovação da Emenda Constitucional 95/2016, que impõe um Teto de Gastos. “O momento atual é delicado, porque nos traz constrangimentos muito claros à garantia do direito humano à educação no Brasil”, afirmou.

A coordenadora executiva da Ação Educativa e integrante da Plataforma DHESCA-Brasil, Denise Carreira, apontou a política econômica atual como violadora de direitos humanos, em especial do direito humano à educação de todas e todos. “É necessário questionar o fundamentalismo econômico. O que está em xeque no momento brasileiro é a noção de que a educação é um direito humano de todas as pessoas. A ideia da educação como mercadoria, como algo que deve ser somente de alguns, está no centro da disputa educacional”, disse Denise.

Destacando a retração econômica e a crise política, Daniel Cara afirmou que desde a Constituição de 1988 o país vive um processo forte de tentativa de expansão de direitos, trazendo uma série de responsabilidades para o Estado brasileiro.

“A luta da sociedade civil somada a uma sensibilidade do governo – ou mesmo em processo de disputa com o governo -, construiu uma série de políticas que são fundamentais para a realização do direito humano à educação”. Como exemplos, Daniel citou a lei que regulamentou o Fundeb – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais de Educação (Lei n° 11.494/2007), avanços na determinação de um piso salarial para o magistério (Lei n° 11.738/2008), lei de cotas (Lei n° 12.711/2012), aprovação da destinação de 75% dos royalties do petróleo e de 50% do fundo social do pré-sal para a educação (Lei n° 12.858/2012), e o Plano Nacional de Educação 2014-2024 (Lei n° 13.005/2014).

Segundo ele, o Brasil vinha conquistando leis importantes. Mesmo em disputa com o governo, a sociedade civil organizada construiu vitórias dentro do Congresso Nacional. Esse processo está interrompido por uma série de determinações, mas especialmente por uma: a aprovação da Emenda Constitucional 95/2016, do Teto dos Gastos Públicos. Em dezembro de 2016, o relator da ONU para extrema pobreza e direitos humanos, Philip Alston, e a relatora Barry se pronunciaram publicamente contra o congelamento dos gastos sociais no Brasil.

De acordo com Denise Carreira, o golpe institucional e a depressão econômica vêm gerando uma rápida deterioração dos indicadores sociais, o aumento das desigualdades, do desemprego e da violência, do número de crianças e adolescentes fora da escola, a descontinuidade de políticas e programas públicos, a ampliação da força política de grupos conservadores, o fortalecimento de propostas de privatização da educação pública e a criminalização dos movimentos sociais e de organizações da sociedade civil, das quais foi destacada a repressão sofrida pelo movimento secundarista das ocupações das escolas de ensino médio.

Sobre o crescimento da força política de grupos conservadores no país, Denise destacou a tramitação no Congresso Nacional do Projeto de Lei de iniciativa do movimento Escola Sem Partido como uma grande ameaça à educação pública democrática. “Um projeto inconstitucional, de um movimento autoritário, contrário às conquistas democráticas, que esconde sua própria ideologia na tentativa de censurar e silenciar visões de mundo divergentes, principalmente visões que questionam as profundas desigualdades que estruturam a sociedade brasileira”. Denise ainda chamou a atenção da Relatora para a articulação do movimento Escola sem Partido com grupos religiosos fundamentalistas que vêm ameaçando e perseguindo estudantes, profissionais de educação, escolas e gestões educacionais que desenvolvem ações, programas e políticas de promoção da igualdade de gênero, raça e sexualidade na educação. “Algo retrógrado, que fere frontalmente todos os compromissos internacionais assinados pelo Brasil”, afirmou.

 

Agendas da educação

No encontro, movimentos e organizações* apresentaram suas denúncias relacionadas às diversas etapas e modalidades da educação brasileira. Com diagnósticos contundentes**, os representantes das entidades e movimentos trouxeram informações e entregaram documentos para a relatora:

– É crescente a criminalização de militantes e movimentos sociais que defendem o direito à educação. Estudantes secundaristas trouxeram relatos de repressão e perseguição de jovens, em especial os que participaram ativamente do movimento de ocupação nos últimos anos em diversos estados e cidades brasileiras. Relataram também problemas de infraestrutura e de didática aplicada nas escolas, que não atende à necessidade dos alunos. Frisaram a importância de um ensino libertador e emancipatório.

– No Brasil, em torno de 9% da população é analfabeta e 47 milhões de pessoas com mais de 20 anos não concluíram o ensino fundamental. Essa população é a mais vulnerável e o atendimento educacional a ela tem sido ainda mais precarizado nos últimos tempos. São homens e mulheres trabalhadores/as, que enfrentam a redução de oferta de ensino noturno, gerando um alto índice de evasão. Concomitante a essa situação, o baixo investimento na educação de jovens e adultos em nosso país agrava o quadro.

– Os índices da educação no campo são historicamente piores. 60% dos professores do campo não tem formação superior e vivem contratos precários; 90% das escolas do campo não têm internet; 15% não têm energia elétrica, 10% não possuem água potável e 14% não têm nenhuma forma de saneamento básico. 8 escolas do campo são fechadas por dia em nosso país: em 2002, existiam 107 mil escolas no meio rural. Esse número diminui para 64 mil escolas em 2015. São mais de 40 mil escolas fechadas e uma redução de mais de 2 milhões de matrículas, enquanto 3 milhões de crianças, adolescentes e jovens são obrigados a se deslocar para as cidades para dar continuidade aos seus estudos.

– A luta de mais de uma década pela implementação da Lei n° 10.639/2003, que versa sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana, e o avanço de um movimento conservador organizado que impede a discussão sobre gênero e sexualidade nas escolas (citando aqui o movimento Escola Sem Partido) também foram pautados. Sendo assim, as entidades trouxeram a necessidade de as questões de gênero e diversidade sexual estarem na formação inicial de professores/as e do combate à evasão escolar dessa população, que de maneira recorrente sofrem agressões e violências no ambiente escolar. A desigualdade de gênero também não está resolvida. O desigual acesso e continuidade dos estudos das mulheres brasileiras depende de seu pertencimento racial, localização geográfica e renda. E um percentual expressivo das crianças fora da escola são crianças que possuem algum tipo de deficiência.

– A crescente privatização da educação no Brasil também foi destaque, através de reformas que impedem o acesso e permanência na educação e o corte de orçamentos e programas.

– Ressaltou-se a falta de valorização profissional e salarial dos trabalhadores/as em educação. A média salarial dos professores no Brasil não chega a 60% de outros profissionais que têm a mesma formação de nível universitário. A maior parte dos estados e municípios brasileiros ainda não cumprem a lei do Piso Nacional Salarial. Programas de formação inicial e continuada estão congelados e há uma crescente política de controle docente, com a centralização curricular, os exames padronizados e as avaliações excludentes.

– Apontou-se a dificuldade de criação de espaços de participação de alunos, de pais e da comunidade escolar e o constante ataque aos espaços de participação conquistados, como os Conselhos Escolares.

– O Brasil tem hoje a quarta maior população carcerária do mundo – entre 2005 e 2014, o número de pessoas presas mais que duplicou. Grande parte da população carcerária tem baixa escolaridade, 63,8% dos encarcerados não concluíram o ensino fundamental e apenas 19 mil presos participavam de alguma atividade educacional em 2012 (8,8% do total). Há uma urgência de aumentar a oferta de educação nas prisões em todos os turnos, sobretudo o noturno, pensando uma formação específica dos educadores que atuam nesse sistema. Abordou-se igualmente a educação de jovens em privação de liberdade e as constantes violações que os adolescentes sofrem em centros de medida socioeducativas.

– A garantia da qualidade da educação, o acesso de crianças na educação infantil, a universalização do atendimento na educação básica e a expansão do ensino superior também foram abordados.

*Participaram do encontro: ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais), Aliança LBGTI, APEOESP (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo), Cedeca Ceará, CEDES (Centro de Estudos de Direito Econômico e Social), Cidade Escola Aprendiz, CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação), Contee (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino), CRECE (Conselho de Representantes de Conselhos de Escolas), Estudantes secundaristas em luta, Faculdade de Educação da UnB (Universidade de Brasília), Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo), Fineduca (Associação Nacional de Pesquisadores em Financiamento da Educação), Fórum de Diversidade Étnico-racial, Geledés – Instituto da Mulher Negra, Mais Diferenças, Cedes (Centro de Estudos Educação e Sociedade), MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), MOVA (Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos), Rede Escola Pública e Universidade, Uncme (União Nacional dos Conselheiros Municipais de Educação), e Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação).

**Os dados aqui apresentados foram expostos durante o encontro e algumas organizações e movimentos entregaram à relatora documentos de diagnóstico detalhados.

***Com informações da Ação Educativa e Campanha Nacional pelo Direito à Educação

 

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