Sistema Nacional de Educação, previsto no PNE, é alvo de disputas e deve fortalecer a democracia e diminuir desigualdades educacionais
Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira
Dar mais coesão e unidade às políticas públicas educacionais, articular realidades locais com a nacional, integrar o sistema educacional, assegurar a colaboração e a cooperação – inclusive financeira – entre as esferas municipais, estaduais e a União, combater inequidades na Educação, fortalecer a participação social e a gestão democrática em educação, especificar os recursos que integram o financiamento da educação e que formam os padrões de qualidade do CAQ. Todas essas são atribuições do Sistema Nacional de Educação (SNE), que ainda não foi regulamentado.
Por que regulamentar?
Previsto na Constituição Federal (após inclusão da Emenda Constitucional 59/2009) e no Plano Nacional de Educação (PNE) de 2014, o SNE ainda tramita no Congresso, mas sem previsão de votação dos projetos de lei correspondentes. Sua regulamentação vai contribuir com a execução de políticas públicas educacionais, bem como com a implementação do Custo Aluno-Qualidade (CAQ), mecanismo de financiamento que garante insumos nas escolas e valorização das profissionais da educação.
O SNE vai assegurar maior colaboração entre as três esferas de poder. Também explicitará as responsabilidades de cada ente federativo, tanto no âmbito financeiro como na formulação, execução e monitoramento das políticas públicas. Isso fará com que, quando estiver em vigor, o Sistema Nacional de Educação dê mais coesão e unidade às políticas educacionais. Por exemplo: os Conselhos de Educação teriam as mesmas regras de composição. O SNE terá, na Educação, um papel equivalente ao do SUS na saúde. Isto é, de lançar diretrizes da área, coordenar ações e gerenciar as responsabilidades de cada parte. E fortalece o caráter público da Educação e o papel do Estado na coordenação e organização do campo.
O SNE não cria uma lei nova, mas integra e coordena as legislações vigentes. Ele está previsto no artigo 13 do Plano Nacional de Educação (PNE), de 2014, que diz que “o poder público deverá instituir, em lei específica, contados dois anos da publicação desta Lei, o Sistema Nacional de Educação, responsável pela articulação entre os sistemas de ensino, em regime de colaboração, para efetivação das diretrizes, metas e estratégias do Plano Nacional de Educação”. Os dois anos estabelecidos na lei do PNE já se passaram há muito tempo, mas o SNE ainda não avançou.
Os avanços com o Sistema Nacional de Educação
Para saber exatamente quais serão os ganhos trazidos pelo Sistema Nacional de Educação, só com a tramitação, já que os textos devem sofrer alteração (ou tentativas de alteração) ao longo do processo, dado os muitos interesses em jogo. A luta de movimentos, entidades e organizações da sociedade civil que atuam para fortalecer a escola pública, laica e de qualidade para todas e todos é para que prevaleça o interesse público e o cumprimento ao texto Constitucional, com fortalecimento da democracia e uma distribuição mais equitativa de recursos para a Educação.
“O SNE precisa assegurar o princípio da democracia participativa, com participação paritária e não com um modelo hierarquizado de cima para baixo”, defende o professor e ex-presidente da Undime Alessio Costa Lima. Ele explica que o SNE, se democrático e participativo, pode mudar o modelo atual de fazer política, em que as grandes decisões são definidas de forma centralizada e “sem a participação dos demais entes federativos, cabendo aos municípios e estados a mera função de executores de políticas públicas”. Nesse atual modelo, as políticas a serem executadas muitas vezes nem conversam com os contextos locais. Por isso a ideia é aprovar um SNE que garanta maior participação das outras esferas de governo e, consequentemente, maior representatividade para debater nuances que em geral são esquecidas em tomadas de decisão centralizadas. Ao fazer com que a colaboração entre entes federativos (por exemplo, em instâncias de negociação e pactuação) esteja devidamente regulamentada, o SNE pode também transformar a maneira com que essas partes se relacionam, pois a colaboração e a cooperação dependeriam bem menos de vontades políticas e flutuações de contexto.
Para o professor Daniel Cara, um Sistema Nacional de Educação adequado deve pôr a escola pública no centro. “Os gestores acreditam que administram redes de ensino, mas redes são compostas de escolas. Assim como o SUS parte da unidade básica de saúde, acredito que o SNE tem que partir da escola pública”, diz Daniel, que argumenta que para cidadãs e cidadãos, não faz diferença se a escola é municipal, estadual ou federal e sim se ela tem qualidade. “E para isso, a resposta é o CAQ, embora não se esgote nele. Botar a escola no centro é também o projeto político pedagógico, os Indicadores de Qualidade da Educação, a autoavaliação institucional. O processo de tomada de decisão se daria a partir da escola para o território, para a rede pública, depois para os sistemas municipal, estadual e nacional”, defende o professor da FEUSP e dirigente da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação.
Financiamento e CAQ
Se o SNE tem o papel de coordenar a articulação entre as diferentes instâncias de governo, isso também abrange o financiamento. Atualmente, municípios e estados arcam com boa parte do financiamento da Educação básica, embora não arrecadem tanto quanto a União. Em 2020, a aprovação do novo Fundeb já começou a mexer nisso, mais do que dobrando a participação financeira do governo federal. Como resumiu o professor Aléssio, “o Fundeb é um exemplo prático e real do regime de colaboração entre as três esferas na Educação, fazendo a União cumprir sua função redistributiva. O Fundeb reforça a tese do SNE”.
Tantas garantias – como a destinação de 70% do fundo para os salários dos profissionais da Educação, os mecanismos de redistribuição VAAR, VAAT e VAAF (saiba mais aqui), entre outros pontos, – são necessárias justamente porque o SNE ainda não está regulamentado. É papel do Sistema definir e coordenar a distribuição de recursos, papéis e responsabilidades. Muitos desses mecanismos de redistribuição estão contemplados no novo Fundeb, como os citados acima, mas não todos. O CAQ, por exemplo, ainda precisa de regulamentação complementar – e a definição dos padrões mínimos de qualidade aos quais o CAQ se refere pode vir do SNE. “O que muda é que o sistema ratifica o que já temos em vários marcos legais e joga luz na importância e necessidade de ter o CAQ definido, bem como os elementos que o compõem. Ainda que a lei do SNE não chegue nesse nível de detalhe, precisa assegurar o CAQ como elemento norteador do padrão de qualidade na educação pública, bem como assegurar todos os avanços trazidos pelo novo Fundeb”, diz o ex-presidente da Undime.
Eduardo Januário, professor da Faculdade de Educação da USP, também reitera a urgência de regulamentar o CAQ vinculado ao SNE para assegurar a função de redistribuição dos recursos. Para Januário, pesquisador na área de Educação, Finanças Públicas e Relações Étnico-Raciais, assegurar a função redistributiva significa validar as ideias de cooperação e colaboração entre os estados – ambas previstas na Constituição com a finalidade de organizar as políticas sociais. O reforço seria necessário porque, embora isso não seja unânime, há quem entenda que os termos significam coisas ligeiramente diferentes. Segundo o professor, a cooperação (prevista no Artigo 23 da Constituição) seria um conceito mais incisivo para reafirmar o combate a desigualdades regionais e alocar mais recursos onde é mais necessário. Portanto, não pode ser estrategicamente suprimida do texto. “São sutilezas, mas que na aplicação prática fazem diferença. Nós do campo progressista precisamos lutar para que a cooperação também seja agregada ao texto”, defende ele. “Isso garante que o Custo Aluno-Qualidade de São Paulo não vai poder ser 70% maior do que o da Bahia”.
Tramitação
O CAQ realmente é um ponto importante nesta discussão, porque é o mecanismo que de fato redistribui os recursos educacionais nas diferentes regiões do país. E o atraso na regulamentação do Sistema Nacional de Educação pode atrapalhar sua implementação. Nesse ponto, tanto Alessio, como Eduardo e Daniel concordam que falta vontade política para implementar o CAQ, pois sua implementação exigiria grande aporte de recursos na educação pública, beneficiando quem mais precisa.
Atualmente há duas propostas de tramitação, uma na Câmara e outra no Senado. O Projeto de Lei Complementar 25/19, da deputada Professora Dorinha Seabra Rezende (DEM-TO) tem o deputado Idilvan Alencar (PDT-CE) como relator, e o Projeto de Lei (PLP) 235/2019 – Complementar do senador Flávio Arns (Podemos-PR), tem Dário Berger (MDB-SC) como relator. Além disso, a Câmara tem realizado audiências públicas para discutir o Sistema Nacional de Educação.
Assim como no processo de Regulamentação do Fundeb em 2020, interesses privatistas e conservadores também participam das discussões sobre o SNE e tentam impor suas pautas – como vouchers para alimentação, diminuição da participação social e enfraquecimento da escola pública através do aumento de conveniamentos com instituições privadas sem fins lucrativos e da transferência das creches para a assistência social. Por isso, é preciso considerar o jogo e o atual contexto político brasileiro alinhado a esses interesses privatistas. “A maturidade de discussão já temos, até porque o SNE já está previsto no Plano Nacional de Educação, ele ainda não se materializou por falta de vontade política”, diz Alessio, que teme que a composição conservadora do Congresso – num momento de instabilidade política como o atual – na verdade atue para tirar mecanismos de democratização e participação. Januário endossa essa visão e reforça a necessidade de regulamentar o CAQ para, de fato, garantir a redistribuição de recursos.
Ou seja, é preciso lutar para pautar o SNE, mas não qualquer SNE. Precisamos de um Sistema que esteja à altura dos desafios exigidos pela educação brasileira. E que trabalhe para fortalecer os valores já impressos na Constituição.
Tomara que passe nas discussões sem muitas mutilações, pois como a educação não é mais prioridade do governo federal, acaba que influenciando as opiniões dos interesses privatistas dos desavisados e desprovidos do senso de responsabilidade.