Os desafios para implementar políticas de Estado no Brasil

Falta de planejamento, orçamento e vontade política dificultam implementação de políticas como os Planos de Educação

Representantes das escolas que aderiram ao uso do Indicadores da Qualidade na Educação Relações Raciais em Santo André. Plano de Educação do Município vem sendo escanteado. Foto: Stephanie Kim Abe
Representantes das escolas que aderiram ao uso do Indicadores da Qualidade na Educação Relações Raciais em Santo André. Plano de Educação do Município vem sendo escanteado. Foto: Stephanie Kim Abe

Por Nana Soares

Um dos motivos que torna o Plano Nacional de Educação (PNE) e os planos regionais e locais tão importantes é o fato de serem políticas de Estado e não de governo. Isto é, representam um compromisso do Estado brasileiro com a Educação, compromisso esse que deve ser honrado independente de quem está no poder. Mas essa característica é historicamente um gargalo no país, o que faz com que a implementação das políticas de Estado seja falha e irregular. 

O último balanço da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, de 2020, deixa isso evidente: se o ritmo atual for mantido, 85% dos dispositivos das metas previstas no PNE não serão cumpridos até o fim do prazo (2024). A Meta 6, por exemplo (oferecer educação em tempo integral em, no mínimo, 50% das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% dos(as) alunos(as) da Educação Básica), regrediu em relação a 2014. Já a Educação de Jovens e Adultos (EJA), alvo da meta 10, indica o abandono dessa modalidade. Como afirmou a Campanha, o descumprimento do PNE, consequência dos desinvestimentos na área de educação e do escanteio da agenda, necessita ser debatido com urgência.

Muitos fatores podem atrapalhar o planejamento e implementação das políticas de Estado, não apenas na educação. Para começo de conversa, é preciso ter um diagnóstico da realidade atual para pensar o que deve ser mudado e como. Ou seja, dados. Profissionais qualificados e capacitados para a captação desses dados e para o planejamento, monitoramento e implementação das políticas a partir deles também são parte essencial do processo, que precisa de recursos para ser posto em prática. Além disso, é essencial que haja participação popular efetiva em todas as etapas. Políticas de Estado são construídas pela população em seminários, rodas de conversa, audiências públicas, conferências etc. e por isso devem ser seguidas, independente das trocas de gestão. Cabe aos gestores cumprir sua obrigação de dar continuidade a elas, assegurando seu caráter participativo. 

E se esse processo já apresentava problemas, a tendência é de piora. O cancelamento do Censo 2021 por falta de verbas deve deixar o Brasil no escuro em relação a uma série de dados e indicadores essenciais para pensar políticas de educação, inclusive os planos municipais e estaduais. O Censo, realizado decenalmente pelo IBGE, já havia sido adiado de 2020 para 2021, mas foi cancelado após o Orçamento 2021 não disponibilizar recursos suficientes para sua realização, com cortes de mais de 90% em relação ao orçamento original. Será a primeira vez em 80 anos que o Brasil não realizará o levantamento. 

O Censo “fotografa” a realidade brasileira, subsidiando políticas públicas e sendo também um instrumento para avaliar o impacto de políticas públicas em curso ou do passado. Na educação, o Censo capta dados como o número e a distribuição de pessoas não alfabetizadas, crianças e jovens fora da escola e os dados sobre a escolaridade. Também permite mapear a demanda por escolas ao traçar um perfil etário da população. Tudo isso a nível municipal ou mesmo de bairros. Assim, é uma ferramenta importantíssima, especialmente para os municípios monitorarem seus Planos de Educação. 

O Censo Escolar, feito pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) continua, mas não capta as mesmas informações do levantamento do IBGE, limitando-se a dados de quem já está registrado no sistema. Ou seja, de quem já está na escola. “Os dados do Inep e do IBGE são as maiores fontes de dados para pesquisa, mas eles são complementares”, lembra Adriano Senkevics, doutorando em Educação pela USP. 

“Em um cenário de agravamento da pobreza e da desigualdade, além das outras dificuldades da pandemia, a não realização do Censo terá um impacto muito grande na formação de políticas públicas, porque esta é a pesquisa que, por seu desenho, consegue identificar quem está desassistido. A PNAD também pode oferecer uma estimativa, mas ela é amostral, apenas o Censo tem tanta capilaridade”, complementa ele. Por exemplo, o Censo captaria o abandono e evasão escolar, que estima-se ter aumentado na pandemia. Como resume Adriano, “o Censo fará falta sobretudo porque o cenário mudou. Vivemos um problema que demanda informações inéditas, o Brasil não é o mesmo de 2019”. 

Processos participativos e o caso de Santo André 

Os Planos de Educação foram construídos através de processos participativos, sendo a participação da sociedade civil assegurada em diversos mecanismos de monitoramento, como os Fóruns Municipais de Educação, responsáveis pelas Conferências de Educação, e os Conselhos Municipais de Educação. Além disso, ferramentas como os Indicadores de Qualidade na Educação preveem que comunidades escolares de uma rede de ensino apresentem recomendações e propostas às políticas educacionais e aos planos de educação construídas por meio de processos participativos

Como isso tem se dado na prática é outra história. Em Santo André (SP), o Plano Municipal de Educação (PME) e, particularmente, a participação popular efetiva nas instâncias de monitoramento estão ameaçados. O PME do município, de 2015, tem 19 metas e 252 estratégias. A Prefeitura desenvolveu, à época, um projeto destinado a organizar o processo de monitoramento do plano de forma participativa. Dois anos depois, em 2017, no início de uma nova gestão, a então Secretária Municipal de Educação, Dinah Zekcer, comprometeu-se publicamente com o cumprimento das metas do PME

Para implementar a lei 10.639/03 e as metas 7 e 8 do PME, o município realizou ações formativas direcionadas à superação do racismo e outras discriminações, como a aplicação pelas escolas dos Indicadores da Qualidade na Educação-Relações Raciais na Escola, uma metodologia de autoavaliação institucional que visa avaliar a implementação da Lei 10.639 com participação de toda comunidade escolar.

Apesar destes marcos importantes, Elly Bayó, educadora e integrante do Conselho Municipal de Educação do município, denuncia que a participação da sociedade civil está sendo limitada, bem como o PME vem sendo abandonado e que a pandemia tem sido usada como muleta para não se tocar no assunto. “Está muito difícil retomar o Plano Municipal de Educação. Mesmo no âmbito do Conselho, dificilmente o documento é referenciado. E há um aparelhamento dos mecanismos para que a sociedade civil não tenha peso. No Conselho, estamos em número muito menor e há interferência das escolas privadas, inclusive nas nomeações”, diz Elly.

E isso se repete em outras instâncias, como no Fórum Municipal de Educação: “O Fórum, por ter sido um espaço de cobrança, foi cooptado, inclusive por meio de decreto, que diminuiu a participação da sociedade civil. São medidas para controlar o quê, quando, como e para quem a sociedade civil fala”, denuncia Elly, que também lembra que as Conferências Municipais de Educação já não acontecem desde antes da pandemia.

No site da Secretaria de Educação do município, a composição atual do Conselho não está disponível na seção correspondente. Nós, da iniciativa De Olho Nos Planos, tentamos contato com a Secretaria de Educação por e-mail, mas até a publicação desse texto não obtivemos resposta. 

O último relatório de monitoramento do PME do município é de 2017, e há apenas um relatório de avaliação do cumprimento do PME em Santo André, que utiliza dados consolidados entre agosto de 2017 a dezembro de 2018. Neste relatório, a Secretaria de Educação avaliou que 56% do PME havia sido executado.

Quanto ao cumprimento das leis 10.639/2003 e 11.645/2009, que tratam da valorização da história e cultura africana e indígena nas escolas e nas políticas e da igualdade racial na educação, a educadora também diz que os processos iniciados em 2015 já não têm continuidade a nível municipal. “Minha unidade é uma das únicas que ainda fazem a avaliação institucional anualmente, o que se deve muito às minhas cobranças. E mesmo aqui isso está fragilizado, porque há tentativas de mudar a metodologia proposta pelos Indiques, como ao abrir mão dos subgrupos com participação das famílias. Está sendo preciso insistir que a metodologia foi construída a partir de muita pesquisa e estudo”, narra ela. “Não deveria ser assim, porque a Secretaria se comprometeu”. 

“A aplicação da metodologia dos Indicadores da Qualidade na Educação – Relações Raciais na Escola na rede de ensino de Santo André foi uma das estratégias de monitoramento participativo do PME que resultou em um Documento de Recomendações para a implementação das metas que visam a redução das desigualdades educacionais no município. Este é um ano estratégico para cobrarmos a implementação dos Planos porque se iniciam as Conferências de Educação. As gestões municipais têm a obrigação de cumprir o Plano que é Lei e o principal instrumento da política pública educacional”, diz Claudia Bandeira, assessora de Educação da Ação Educativa. 

O caso de Santo André mostra como a vontade política e o compromisso com a população são essenciais para dar continuidade às políticas de Estado. Ainda que tenha havido comprometimento público em mandatos anteriores, é preciso que as gestões trabalhem ativamente para cumprir as metas dos Planos de Educação. Quando isso não acontece, a sociedade pode pressionar em instâncias como o Fórum Municipal de Educação e o Conselho Municipal de Educação.

Em Santo André, o Conselho tem sido o espaço mais efetivo para comunicação direta com a gestão atual. “É onde conseguimos resistir e pressionar no sentido de pautar as discussões importantes, como o fomento ao ensino remoto, e também encaminhar ofícios, ainda que a proporção de sociedade civil esteja defasada e que a nós seja dispensado um tratamento diferente”, conta Elly Bayó. A educadora se refere ao uso de um linguajar “difícil” a fim de constranger e/ou reduzir a participação popular. Segundo ela, isso já fez com que estudantes se retirassem do órgão. “Se é tão necessário assim ter o conhecimento específico, deveríamos receber formações. Estamos fazendo essa cobrança”, diz ela, que garante que na atual configuração não há fomento à participação da sociedade civil. No entanto, ela reafirma que a presença popular nessas instâncias é essencial para articular planos e políticas de Educação no município, para o controle social e inclusive para começar a mudar essa estrutura. 

Leia Mais >>>> Iniciativa De Olho Nos Planos lança material com recomendações para avançar na Implementação dos Planos de Educação. Orientações são voltadas para momentos de transição das gestões educacionais

O receio da educadora e ativista é que não apenas o PME não seja cumprido, como ainda seja alterado por manobras legislativas e a população perca seu referencial de reivindicações. E por isso a importância de fazer-se presente em todas as instâncias possíveis de controle social. “A raiz do problema, da dificuldade de garantir que uma política seja de Estado e não de governo, é justamente a negação da participação popular”, resume Elly. 

Judicialização e financiamento 

Quando o Conselho não age para implementar o Plano de Educação ou para implementar outras políticas, a sociedade civil atuante em Santo André aciona o Ministério Público. Essa estratégia de judicialização é, na opinião da Procuradora de Contas do Ministério Público de São Paulo, Élida Graziane, talvez a única estratégia efetiva no atual contexto brasileiro para garantir a destinação de recursos para direitos fundamentais como a saúde e a educação. “

Por que não se cumpre o planejamento? Porque ninguém responsabiliza o descumprimento. O PNE entrar em seu sétimo ano com quase 90% das metas não cumpridas merece um debate mais aprofundado. O PNE regulamenta diretamente a Constituição, então não cumpri-lo não é descumprir uma lei ordinária, mas sim a própria Constituição”, explica Élida, que, por isso, defende uma atuação mais enérgica dos órgãos de controle. “A judicialização não substitui a política, isso é preciso deixar claro, mas o debate precisa lidar com o contexto, e em um contexto em que o debate democrático está cada vez mais raro e onde o Congresso está absolutamente tomado pelo Centrão, não vejo outra saída”.

A preocupação de Élida é garantir o financiamento de políticas de Estado. Afinal de contas, não é possível pensar políticas duradouras sem dinheiro. No caso da Educação, a aprovação do novo Fundeb em 2020, agora permanente, foi uma vitória, garantindo mais recursos para a área, embora ainda falte regulamentação e outras medidas ameacem o financiamento da educação. “Essa desculpa de desviar recursos porque ainda falta regulamentação é muito antiga e me parece uma estratégia de má fé. Enquanto não há leis regulamentadoras, gestores de todas as esferas se sentem no direito de burlar o repasse, mas o Artigo 10 do Plano Nacional de Educação obriga que as leis orçamentárias sejam orientadas ao cumprimento do PNE. Portanto, todo dinheiro da educação, não só do Fundeb, tem que ser orientado nesse sentido”, diz a procuradora. 

Dito de outro modo: os desvios de recursos que deveriam ser para políticas de Estado as inviabilizam financeiramente e se somam a não possibilidade de captar informações de qualidade, como é o caso do cancelamento do Censo e a um processo de destruição de processos participativos e de substituição de equipes técnicas por profissionais alinhados ao governo. A descontinuidade de políticas de Estado não é acidental e sim parte do projeto. 

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