Gestoras e sociedade civil mencionam também a ausência de dados e de apoio para a sua obtenção como desafios para a avaliação dos Planos de Educação
Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira
O atual Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado pela lei 13.005, de 2014, teve sua vigência prorrogada em 2024 por mais um ano, enquanto o texto do próximo plano não é votado no Congresso. A prorrogação do PNE impacta a política educacional nos níveis estadual e municipal – cujos planos subsequentes foram formulados há uma década com base no documento nacional. Agora, com os planos municipais e estaduais prestes a entrar em seu último ano de vigência, gestoras/es e sociedade civil elencam incertezas quanto ao futuro do planejamento educacional. Com o fim do decênio se aproximando, falhas e omissões também ficam mais evidentes, como a falta de vontade política, apoio ou transparência para implementar os planos, a falta de coordenação entre entes federados e a ausência de dados para realizar monitoramento e avaliação e, por consequência, planejar a próxima década na educação.
A Iniciativa De Olho nos Planos ouviu depoimentos de pessoas envolvidas na formulação, implementação e monitoramento dos planos de educação em diferentes municípios. As experiências narradas a seguir sintetizam desafios comuns enfrentados em outros locais, mas também podem inspirar novas estratégias em outras realidades. Após os relatos, foram sintetizadas ainda algumas perspectivas apontadas durante o seminário “Planos de Educação: desafios ao monitoramento e à implementação no nível local”, realizado pelo Observatório de Políticas Educacionais do Grande ABC em 30 de outubro e 1º de novembro, que debateu os resultados dos Planos de Educação dos municípios do Grande ABC.
RELATO 1: Angra dos Reis (RJ) – A dificuldade no diagnóstico
Relato de Eliana Teixeira, professora e pedagoga da rede municipal de Angra dos Reis. Ex-membro do Conselho Municipal de Educação, Delegada da Conae 2024 como representante dos profissionais da Educação do Estado do Rio de Janeiro.
O PME de Angra dos Reis foi criado em 2015, seguindo e espelhando orientações do PNE, com vigência até 2025.
No Fórum [Permanente de Educação de Angra dos Reis], conseguimos fazer um relatório bem detalhado de monitoramento do Plano municipal em 2020, usando dados até 2019 levantados por nós mesmos do Fórum, usando indicadores criados por nós mesmos, já que não tínhamos informações suficientes de oficiais. Da pandemia para cá não conseguimos mais fazer, está difícil conseguir essas informações, e ao dialogar com outros municípios, percebemos essa mesma dificuldade para ter dados e indicadores. Em 2019 também não foi simples. Mesmo o dado populacional do município foi difícil de obter, uma vez que o Censo atrasou. E esse é um problema que afeta o Plano Nacional, uma vez que os municípios terão dificuldade de avançar em relação ao cumprimento das metas e objetivos se não têm clareza de seus próprios dados e avanços.
A partir da minha atuação, consigo ver avanços e mudanças, mas não temos dados claros. Por exemplo: vejo aumento do número de escolas de educação integral. Mas foi suficiente para alcançar a meta? Ninguém sabe. Ou seja, nós que atuamos na educação de forma incisiva e militante vamos levantando essas informações, mas elas não vêm de maneira institucional.
Temos buscado dados junto à Secretaria Municipal de Educação, mas não é o suficiente para os indicadores oficiais do PNE. Sofremos com a falta de um órgão que faça a nível municipal o tipo de levantamento que o INEP faz a nível nacional. Pelo INEP, temos dados de referência de 2014/15, mas não temos o acompanhamento – e seria importante que os relatórios de ciclos também tivessem dados municipais, porque assim conseguiríamos de fato monitorar, sabendo que os indicadores são construídos por um órgão de referência.
Estamos recebendo algumas informações [sobre o fechamento deste ciclo e o início do próximo] via Fórum Estadual do Rio de Janeiro – de forma institucional mas também através de comunicação entre nós que fomos delegadas e delegados da Conae 2024. O Fórum convocou uma reunião ampliada, o que foi muito importante para dividir com os municípios o que tem chegado até eles no âmbito estadual. A partir dessa reunião, também criamos um grupo informal só dos fóruns municipais de educação.
Entendo que pensar a construção do próximo plano e a finalização do atual são processos diferentes. Nós fizemos uma conferência para construir um novo plano nacional, mas para construir um novo plano no município precisamos saber a realidade local. E para isso precisamos de informações que dizem respeito ao plano atual. É preciso finalizar esse ciclo, fazer um diagnóstico de como estamos como município para poder pensar o próximo. E nisso não tenho visto orientação – apenas sobre o que vamos fazer para o próximo plano.
Falando como alguém que participou de todas as Conferências de Educação realizadas na cidade, vejo que estamos muito desmobilizados, e já há algum tempo. Especialmente desde a pandemia, e essa desmobilização se reflete em vários órgãos da gestão participativa. Tivemos uma quebra política, porque tínhamos um outro tipo de relação com a SASE (Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino), com pessoas que nos auxiliavam na construção e monitoramento. Foi um período muito proveitoso quando podíamos contar com uma equipe técnica na Secretaria de Educação auxiliando o Fórum, o que não temos mais. A desmobilização da SASE desmobilizou também a rede de monitoramento do Plano, que o tratava como ele deveria ser: um projeto de Estado e não de governo. Nós seguimos bravamente, mas não conseguimos recuperar o empenho de antes – até pelo contexto político que afetou a rede de construção e formação coletiva e de trocas de experiência.
Sem dúvidas, esses são nossos maiores desafios para construir o próximo Plano Municipal de Educação de Angra dos Reis. Para construir é fundamental ter avaliação do período anterior – como o INEP e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação fazem a nível nacional, por exemplo. Precisamos disso a nível de município também. O outro fator é retomar o processo de mobilização, e já tenho visto que é possível na medida que vamos construindo essas redes de delegados, de municípios que compõem o Fórum Estadual. A retomada do apoio do governo federal via SASE também pode nos ajudar a construir essa rede e a nos fortalecer como município, mas para isso é preciso ter escuta não somente nos municípios mas também entre os municípios. Entendo que essa troca de experiências é fundamental para avançar a mobilização.
Pensando nesses apoios, e também no que temos recebido do Fórum Estadual, sou levada a esperançar nos termos de Paulo Freire. Esperançar que, em 2025, nós consigamos ter esse movimento mais coletivo também nos fóruns municipais. Já demos os primeiros passos. Temos que fortalecer a mobilização, tanto de profissionais da educação quanto de gestores e principalmente sociedade cvil, para continuar solicitando e pressionando e conseguir um diagnóstico, mesmo sem todos os dados consolidados. Precisamos fazer nossos próprios diagnósticos, e não esperar de braços cruzados o que vem do nível nacional.
O relato de Angra dos Reis evidencia um problema grave e generalizado: a insuficiência de dados para monitorar e avaliar os planos de Educação. Embora nos municípios essas dificuldades sejam ainda maiores, também são realidade a nível nacional. O Balanço do PNE realizado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação em 2024, por exemplo, destacou essa lacuna, que atrapalhou a avaliação de 11 das 20 metas do Plano. Esse obstáculo, que atravessa o monitoramento de todo o plano, foi motor para que ativistas e entidades de Diadema, no ABC Paulista, pensassem em uma solução mais efetiva para contorná-la.
RELATO 2: Diadema (SP) – Novas alianças para que o Plano resista a flutuações políticas
Relato de Ana Lúcia Sanches, Secretária de Educação de Diadema e coordenadora do GT de Educação do Consórcio Intermunicipal do Grande ABC
Em Diadema, além do Plano Municipal de Educação, temos o Plano Regional do Grande ABC, que cobre os 7 municípios da região. Por aqui, por muito tempo tivemos gestões que não priorizaram o monitoramento dos planos. Então a década passou quase inteira sem instrumentos de monitoramento. Neste contexto, instituímos o Observatório Municipal de Educação de Diadema, justamente para olhar o PME e entender onde nos situamos. É preciso dar muito crédito à equipe do Fórum Municipal de Educação (especialmente na figura da professora Leonarda Barbosa Luna, quem estava à frente do Fórum) que, com toda a dificuldade e com meios limitados, fez um trabalho árduo, mesmo sem indicadores efetivos e com o Censo do IBGE atrasado.
Hoje temos o Observatório estruturado: construímos uma ferramenta de monitoramento, apresentamos para o Conselho Municipal de Educação, temos parceiros fundamentais. Acredito que a universidade, a UFABC, recuperou a tarefa e desafio do monitoramento e de ajudar gestores a enxergar suas fragilidades. Hoje, em Diadema, a partir da parceria com a UFABC e com organizações como a Ação Educativa, somos mais maduros para monitorar o plano daqui para a frente, seja como governo ou como sociedade civil. E isso é importante, porque esses interesses são diferentes, mas todos temos a oportunidade de ter um mapa muito mais lúcido sobre os desafios a serem enfrentados.
É indiscutível o papel do Coletivo, liderado pela UFABC, para chegarmos nesse estágio. A criação do Observatório Regional de Educação foi um esforço para que conhecêssemos nossas realidades, com suas fragilidades e forças, e hoje conta com uma boa estrutura que permite que tenhamos noção do quanto avançamos e do que falta. Na minha leitura, a experiência do Observatório é o principal mecanismo contemporâneo de acompanhamento dos planos.
Outro ponto a ser destacado nos últimos 10 anos é a importância do governo federal. Na verdade, de todos os entes federados. O impulsionamento feito no âmbito federal ajuda e mobiliza os municípios, e por isso o Sistema Nacional de Educação não pode ser apenas uma boa intenção ou ser regido pelo pensamento de que basta enviar dinheiro – embora, é claro, não adiante falar de Planos e definir estratégias se não houver recursos. Mas articulação federativa não é sobre isso e sim sobre instruir políticas públicas para que tenham efetivamente conexão entre financiamento, concepção e implementação. É nessa linha que não posso deixar de falar da ausência do governo estadual, que está absolutamente inexistente na vivência pública de qualquer gestor de educação nesse momento no que diz respeito a cumprir metas dos Planos de Educação. Dessa forma, qualquer implementação de plano sempre será falha e incompleta, uma vez que um ente fundamental não se posiciona.
No plano regional, estamos mais robustos, apostando muito na construção coletiva e na universidade como um terceiro ente que vai ser um sujeito mais permanente nessa conversa, independente dos ciclos eleitorais. Mas em relação à construção dos próximos planos, no âmbito estadual não temos qualquer orientação ou interlocução para falar do Plano de São Paulo, e há algo ainda incipiente sobre o plano nacional. Especificamente em Diadema, as informações acabam chegando, mas muito mais por vínculos afetivos do que por uma cadeia institucional estruturada. Essa nossa cadeia se agrega nos períodos de conferências, mas depois desidrata, o que pode ser um alerta para a nossa militância. Para a próxima década, o que confio é que avançamos bastante no processo de mobilização e organização, deixamos um Fórum Regional de Educação mais forte e mais ativo, e municípios com Fóruns municipais mais fortes.
Congregar forças é muito importante. Para manter os planos em dia é preciso sociedade civil atenta, fóruns funcionando e efetivo controle e denúncia de todo tipo de violação. As ferramentas de monitoramento só funcionam se os fóruns estiverem ativos e atuantes, e estes podem utilizar as ferramentas que o Observatório constrói para nos instruir na defesa e monitoramento dos diferentes segmentos envolvidos e do financiamento da educação. Já os gestores precisam olhar no olho do problema, porque quem não reconhece a realidade está fadado ao fracasso. E a sociedade civil precisa estar atenta e forte para que o trabalho se sustente com o tempo. A sociedade precisa ser sujeito da construção de um mundo mais humanizado, consciente que devemos zelar pela educação. Talvez, olhando para os últimos 10 anos, nossa força tenha sido justamente essa vigilância, o efetivo monitoramento.
O que fazer agora nos municípios e estados?
Diante de um cenário como esse, de dificuldade de obtenção de dados para monitoramento e avaliação e com pouca clareza quanto aos prazos para a próxima etapa, já que nem mesmo o PNE possui data estimada para votação, representações de municípios e estados podem estar desmobilizadas ou sem orientações quanto aos próximos passos. Esse foi um dos pontos abordados no seminário “Planos de Educação: desafios ao monitoramento e à implementação no nível local”, recentemente realizado pelo Observatório de Políticas Educacionais do Grande ABC, coordenado pela UFABC e o Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, em parceria com outras organizações, como a Secretaria Municipal de Diadema e a Ação Educativa. Na ocasião, gestoras e gestores, movimentos sociais, entidades representativas, academia e sociedade civil reuniram-se para refletir sobre aprendizados do decênio que está se encerrando e desafios para o próximo.
Selma Rocha, da Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino do Ministério da Educação (MEC), reforçou que os próximos meses serão de encontros regionais com as instâncias responsáveis pelo monitoramento e avaliação dos planos a nível estadual e municipal (Secretarias de Educação, Conselhos, Comissões de Educação dos Legislativos e Fóruns de Educação). “É muito importante nesse momento que todos os segmentos da sociedade se organizem para terminar de monitorar os planos em vigência e começar a discutir os problemas, objetivos, metas e estratégias para os próximos. O MEC estará no próximo ano em todos os estados do país desenvolvendo esse apoio”, garantiu ela.
A importância do diagnóstico nos níveis municipal e estadual enquanto o novo PNE não fica pronto foi reforçado por diversas pessoas participantes, e a professora Leonarda Barbosa Luna, do Fórum Municipal de Educação de Diadema, também valorizou a experiência do município, compartilhando aprendizados que podem ser úteis para novas gestões a partir de 2025. Para os territórios que ainda não fizeram monitoramento, ressaltou que esse não é um passo simples. “Precisamos de conhecimentos técnicos. A implementação do Observatório e as parcerias são importantes para ter quem conhece as políticas públicas, que sabe tratar os dados do Censo e os dados que são difíceis para muitas pessoas. O Observatório é o pontapé inicial para começar a monitorar”. Além disso, Leonarda destacou a importância de envolver instâncias como o Fórum e o Conselho Municipal de Educação. “Ninguém faz nada sozinho”.
A professora da Faculdade de Educação da USP, Denise Carreira, ressaltou ainda que a avaliação e diagnósticos devem ser participativas. “É importante que as gestões municipais estimulem a construção do diagnóstico participativo de seus planos de Educação. Que possam estimular a autoavaliação participativa pelas escolas, porque é muito importante que esse diagnóstico mobilize as escolas para também dialogarem com seus Projetos Políticos Pedagógicos e com o Plano do município”, ressaltou Denise. “Um plano de verdade é um plano assumido pela sociedade e pelas comunidades escolares. Ou seja, a gente precisa que o debate sobre os planos possa ser discutido com as famílias, com os estudantes, com o conjunto das profissionais de educação. Esse é o desafio”.
O papel do financiamento adequado e equitativo para o cumprimento dos planos e para a garantia do direito à educação também foi levantado pela professora Adriana Dragoni, integrante da Fineduca e do Grupo que desenvolveu o simulador de Custo Aluno-Qualidade. Por isso, a pesquisadora estimulou o uso da ferramenta SimCAQ para construir planos baseados nas realidades de cada local. Especificamente, sobre quanto custa assegurar os Planos Municipal, Estadual e o PNE em cada local. Na plataforma, é possível preencher e alterar os parâmetros baseados em cada território.
As ações possíveis não acabam aí: fortalecer Fóruns e Conselhos de Educação para que possam trabalhar conjuntamente no monitoramento dos Planos, tornar o debate sobre os planos mais acessível com amplo envolvimento da população e das comunidades escolares, democratizar o debate sobre financiamento educacional e estabelecer parcerias e diálogo permanente com diferentes entes federados são outras possibilidades. É preciso valorizar os legados e ampliar a mobilização para que os Planos de Educação sejam um avanço na garantia de direitos e na redução de desigualdades.