Além das metas não avançarem, muitas estão regredindo. As que tratam do financiamento, EJA e Educação Integral são as mais afetadas no descumprimento do Plano Nacional de Educação
Por Nana Soares
Edição de texto: Claudia Bandeira
O Plano Nacional de Educação (PNE, Lei 13.005/14) aprovado em 2014 foi uma vitória da sociedade civil e dos movimentos sociais da área da Educação. Reunindo metas a serem cumpridas até 2024 para que o país avance na garantia desse direito, é um marco fundamental ao sublinhar a importância do planejamento educacional, orientar o investimento e a gestão e referenciar o controle social e a participação cidadã. Mas há um problema: está longe de ser cumprido.
O PNE, principal instrumento da política pública educacional, foi fruto de amplo debate em Conferências de Educação e de acirrada disputa na tramitação no Congresso Nacional. Começou a ser esvaziado já em 2015, no ano seguinte da sua aprovação, quando o ajuste fiscal do segundo governo de Dilma Rousseff cortou recursos de políticas sociais. O cenário se agravou com o golpe parlamentar de 2016, que intensificou a política econômica de austeridade com a aprovação da Emenda Constitucional 95 (EC 95, o Teto de Gastos) que constitucionalizou os cortes orçamentários por vinte anos. A situação se torna mais dramática ainda no governo Bolsonaro, que nunca norteou a política educacional pelo PNE. Em 2022, a dois anos do fim de sua vigência, os avanços são marginais. Os retrocessos, em contrapartida, se acumulam, ameaçando, inclusive, as políticas educacionais que já estavam mais estabelecidas e que foram conquistadas ao longo de anos.
Segundo o último levantamento da Campanha Nacional pelo Direito a Educação, apenas 15% dos dispositivos previstos no PNE devem ser cumpridos no prazo previsto. E não é que os outros dispositivos apenas não avancem no prazo esperado: muitas das metas na verdade estão regredindo. É o caso das metas 6, 9, 10 e 20, que tratam, respectivamente, da Educação Integral (EI), alfabetização, Educação de Jovens e Adultos (EJA) e do financiamento público da educação.
Subfinanciamento da Educação: efeito em cascata
A meta 20 do PNE prevê que o Brasil amplie o investimento público em educação pública, o contrário do que temos visto nos últimos anos. A meta de aumentar o investimento progressivamente até o equivalente de 10% do PIB em 2024, conquista histórica dos movimentos e organizações que defendem a educação pública e de qualidade, ficou ainda mais distante, tanto em termos relativos, como absolutos. “Se o percentual estivesse estagnado e a economia estivesse bem, ao menos a quantidade de dinheiro estaria aumentando. Mas é uma redução em um PIB que também está caindo ou estagnado. A inflexão negativa é o mais preocupante”, diz José Marcelino de Rezende Pinto, professor da USP-Ribeirão Preto e vice-presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca).
O PNE previa uma destinação de 7% do PIB em 2019 e de 10% em 2024, mas, segundo o INEP, os gastos estiveram em torno de 5% de 2015 a 2017, caindo 0,1% quando deveria ter subido. O professor Marcelino acrescenta que em 2018 o investimento público em Educação foi equivalente a 4.9% do PIB – uma redução que representa cerca de 16 bilhões de reais a menos para a Educação. Isso porque além do Teto de Gastos a Educação também tem sido uma das áreas com maiores cortes orçamentários anuais. Por exemplo, em 2021 houve redução de 27% no Orçamento da área.
E o não cumprimento da meta 20 atua em efeito cascata em todo o PNE, pois sem novos recursos a implementação das outras metas – que preveem, por exemplo, maior número de matrículas em diferentes níveis – fica inviabilizada.
Nem mesmo conquistas importantes como a aprovação do novo Fundeb, em 2020, amenizam essa tragédia que, como lembra o professor Marcelino, está diretamente relacionada ao papel minoritário do governo federal no financiamento da Educação. Ainda são os governos locais e regionais que arcam com a maior parte do financiamento, embora seja a União quem mais arrecada com impostos. “Quem precisa contribuir mais é o governo federal, os municípios não têm muito de onde cortar pois cumprem os mínimos constitucionais. Por isso é imensa a responsabilidade e a importância da eleição de um governo progressista”, ressalta Marcelino.
Essa participação desigual no financiamento, no entanto, não vem de hoje. Por décadas o Brasil manteve uma média de investimento em educação na casa dos 4% do PIB anual, onde apenas 0.5% vinham da União. Isso aumentou no governo Lula, quando mais que dobrou a participação do governo federal nesse percentual. Mas os investimentos vieram através de transferências voluntárias e de programas que eram políticas de governo – e não de Estado – e que logo foram abandonados ou cortados nos governos seguintes. “No governo Bolsonaro houve uma clara intenção de esvaziar qualquer política educacional, embora a nomeação de ministros tecnicamente muito incompetentes e sem pauta definida tenha “limitado” a gestão a destruir o que já existia, sem conseguir criar políticas novas e irreversíveis”, resume o vice-presidente da Fineduca.
A política de fundos é extremamente importante para o cumprimento da Meta 20 do PNE, inclusive para diminuir as desigualdades educacionais, mas tem suas limitações e precisa receber mais investimento. “Sem mais dinheiro, não adianta muito mexer e fazer ajustes nestes mecanismos porque o total permanece o mesmo. Dá para ir um pouco mais para os municípios, mas a custa de menos para os estados, acaba virando uma briga política”, explica José Marcelino de Rezende Pinto. Na prática, a falta de recursos ocasiona em “escolhas” como fechar turmas de EJA ou de educação no campo para abrir uma creche. Ou seja, é vital que ainda que a Meta 20 não seja cumprida até 2024, a Educação receba novos recursos para que ao menos voltemos a caminhar rumo ao seu cumprimento, ao invés de regredir.
Segundo Marcelino, os mecanismos, diretrizes e percentuais já estão dados, falta realmente a vontade política de investir em educação pública e de lidar com a correlação de forças entre as diferentes instâncias governamentais. “É preciso revogar a EC 95, porque o governo federal precisa gastar. E aí é ampliar o investimento, ainda que progressivamente. Precisamos viabilizar, ver o quanto custa um mínimo por estudante do qual não vamos abrir mão para assegurar a qualidade, aumentar os investimentos na educação superior pública, fortalecer a política de fundos. Nossa tarefa enquanto sociedade civil é estar sempre cobrando. O mercado financeiro e os interesses privados não esperam as trocas de mandato para assediar e cobrar seus interesses”, diz ele, reforçando que o PNE é uma lei e, portanto, deve ser cumprida.
O abandono da Educação Integral
A meta 6 do PNE estabelece que, até 2024, o Brasil deve oferecer educação em tempo integral em no mínimo 50% das escolas públicas, de forma a atender ao menos 25% dos estudantes da educação básica. Mas no período de vigência do PNE o que houve foi um completo abandono por parte do governo federal nessa modalidade, como explica Natacha Costa, diretora-geral da Associação Cidade Escola Aprendiz.
Para se ter uma ideia do quanto a meta regrediu: Entre 2014 e 2020 o número de escolas com jornadas em tempo integral caiu de 42.655 para 27.969 – que representam 29% e 20.5% das escolas públicas – e as matrículas de 6.5 milhões para 4.8 milhões. Nesse período, os principais programas a nível federal para a meta foram descontinuados e o que resta hoje, explica Natacha, resiste porque estados e municípios conseguiram espelhar a meta do PNE em seus próprios Planos de Educação.
“O Mais Educação era a política do governo federal para a educação integral e era focado nos mais vulneráveis. Em 2016, é descontinuado e substituído por um novo desenho que, ao contrário, focava no reforço da língua portuguesa e matemática – ou seja, guiava-se pelo Ideb e não pela redução de vulnerabilidade. Aí já observamos a queda da abrangência da educação integral. E essa queda só não foi maior porque houve crescimento das matrículas de educação integral no Ensino Médio, o que é controverso porque pode acabar agravando as desigualdades educacionais, uma vez que muitos jovens não podem aumentar sua jornada. Por exemplo, porque precisam trabalhar”, resume Natacha. Ou seja, o novo desenho ia contra a concepção da educação integral que pautou o PNE: a de que a modalidade fosse um mecanismo de enfrentamento – e não acirramento – das desigualdades educacionais.
Com o corte de orçamento do MEC e a descontinuidade do programa Mais Educação, a Educação Integral saiu do horizonte de políticas públicas do governo federal. Os estados e municípios, que já arcam com a maior parte do financiamento da educação básica no Brasil, sustentam suas iniciativas com recursos próprios ou com verbas do Fundeb. E vale reforçar que em um contexto de corte de gastos e de Emenda Constitucional 95, cumprir a Meta 6 fica completamente inviável, uma vez que a Educação Integral, por sua natureza (aumento da jornada), exige mais recursos e investimentos.
Natacha lembra ainda que o projeto de destruição da educação no governo Bolsonaro conjuga alianças ultraliberais e ultraconservadoras. Para ela, houve um abandono generalizado em nome de políticas ultraconservadoras e ideológicas. “É quando a educação é assaltada por uma perspectiva de desmonte”.
A EJA e o aprofundamento das desigualdades educacionais
A meta 8 do PNE tem como objetivo diminuir desigualdades educacionais ao aumentar a escolaridade de grupos como a população de 18 a 29 anos, dos 25% mais pobres do país e a educação do campo, bem como igualar a escolaridade média entre pessoas negras e não-negras. A Meta 9 fala sobre erradicar o analfabetismo absoluto e reduzir o analfabetismo funcional pela metade. A Meta 10, por sua vez, diz que o Brasil deve oferecer ao menos 25% das matrículas de Educação de Jovens e Adultos (EJA) integradas à educação profissional. Ou seja, todas estas metas dizem respeito à EJA em alguma medida.
Embora a meta 8 não tenha regredido até o último dado disponível, não avançou no ritmo necessário. A alfabetização de brasileiras e brasileiros prevista na Meta 9 também não deve chegar ao índice necessário previsto no PNE – e os dados oficiais de monitoramento do INEP, de 2018, ainda não consideram os impactos da pandemia. Ainda na Meta 9, o analfabetismo funcional avançou no período de vigência do PNE quando deveria ter diminuído, muito por conta do desmonte de programas como o Brasil Alfabetizado. Por fim, se o objetivo era ter 25% de matrículas da EJA integradas à educação profissional, como prevê a meta 10, estamos muito longe. Ainda em 2014 não chegávamos a 3%. E em 2018 essa porcentagem diminuiu para apenas 1.8%, ou pouco mais de 54 mil matrículas. E o número de matrículas totais da EJA também caiu no período.
O gráfico acima evidencia o tamanho do desafio para que, no Brasil, seja garantido o direito à educação na modalidade, já que as matrículas da EJA não chegam nem perto de cobrir a demanda, representada em azul.
Não é de agora que a EJA é negligenciada no Brasil. Historicamente, são poucas as políticas e o investimento público direcionado a essa modalidade. Os fatores de ponderação no Fundeb, por exemplo, são de 0.8 e 1.2. Ou seja, a cada R$1 gasto por estudante do Ensino Fundamental regular, são gastos R$0,80 ou R$1,20 por estudante da EJA – sendo que essa é uma modalidade que exige mais recursos por conta das especificidades de seu público-alvo. Segundo o professor José Marcelino de Rezende Pinto, até 3 vezes mais recursos (o que seria um fator de ponderação 3). Ou seja, nos valores atuais, as e os gestores não têm incentivos financeiros para investir na EJA.
Para a professora da Faculdade de Educação da USP Maria Clara Di Pierro, o subfinanciamento histórico e o brutal retrocesso assistido nos últimos anos são sinais de um descaso geral com a Educação de Jovens e Adultos. “A EJA é historicamente negligenciada, assim como modalidades e etapas como a educação infantil e a educação especial. Mas a diferença é que há uma maior mobilização para as políticas que afetam crianças e adolescentes”, diz ela, que também menciona o fenômeno de fechamento de matrículas e turmas de EJA para “priorizar” outras demandas, como creches e educação infantil. “Tenho a impressão que ainda caminhamos em relação à consciência social do direito à educação na vida adulta, o que é um agravante em um contexto de redução do gasto público e contração do papel da União”, completa Maria Clara.
E essa redução foi brutal: pelos dados do SIOP, o pico de investimentos federais na EJA foi em 2012, com quase 1.8 bilhões de reais repassados naquele ano. Em 2020, o número ficou em 8 milhões – 0,44% do investimento de 2012. Como explica Maria Clara Di Pierro, o governo Bolsonaro focou mais em desidratar o financiamento da EJA do que em de fato revogar políticas para a área – mas o resultado não é outro que não praticamente destruir a modalidade no país. “Sobrevivem matrículas residuais. A EJA hoje alcança uma parcela ínfima da população, e se o número aumentar no futuro vai ser mais por conta de mudanças, como a Reforma do Ensino Médio, o Parecer CNE/CEB 6/2020 e a Resolução CNE/CEB nº 1 de 2021, que permitem que até 80% da EJA seja realizada à distância. Ou seja, uma EJA pré-formatada e com seríssimos problemas de qualidade”, alerta. A professora especialista na modalidade ressalta também que, em Censos populacionais futuros, as oscilações na escolaridade da população adulta deverão ser muito mais creditadas a mudanças demográficas do que de fato a políticas de educação de jovens e adultos. “A regra geral hoje é ver as escolas fechando”, resume.
Mais uma vez, a reversão desse quadro necessariamente passa pelo aumento do financiamento na modalidade, embora a professora também destaque a gravidade da diretriz que permite que boa parte da EJA seja realizada à distância. É preciso investir na Educação de Jovens e Adultos, aumentar o fator de ponderação do Fundeb e voltar a financiar outras políticas e programas que afetem a modalidade. E, igualmente importante, fortalecer a noção de que a educação para todas e todos é um direito e de que a qualidade não se mede apenas sob critérios de resultados.“É preciso reverter as lógicas meritocráticas que baseiam a educação por indicadores. A EJA é uma categoria diferente, onde a evasão tem outro significado social, são adultos que têm uma relação intermitente com a escola. Avaliar o desempenho dessa modalidade pelo Ideb, exigir a frequência obrigatória como na educação infantil, não funciona”, finaliza a professora.
Considerações finais
As informações evidenciam um conjunto de medidas, intensificadas no governo Bolsonaro, para inviabilizar o cumprimento do PNE e acirrar ainda mais as desigualdades educacionais no país: corte brutal do financiamento, Programas do Governo Federal descontinuados ou substituídos por outras iniciativas que prejudicam ainda mais o alcance das Metas, os indicadores de avaliações externas em larga escala estruturando cada vez mais as políticas sem considerar contextos e equidade e, pode-se acrescentar, o desmonte das instâncias de participação e controle social das modalidades e do próprio PNE, como o Fórum Nacional de Educação.
Para revertermos este cenário é preciso recuperar o PNE como norte da Educação Brasileira e eleger um governo comprometido com o principal instrumento da política pública educacional brasileira, cujo cumprimento não é opcional.
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