Didático da rede municipal de Santo André é adotado sem critério e destoa do estabelecido no Plano Nacional de Educação e na Lei 10.639/2003. Autor é publicitário, dono da editora e político do partido que ocupa o executivo municipal.
“O material chegou na calada da noite e foi guardado em uma sala. Banners sobre o projeto foram colocados na escola e os pacotes foram entregues fechados às professoras”, relata Vania, professora da EMEIEF Fernando Pessoa. Nos kits, havia, além dos livros, camisetas do projeto para uso pela equipe. Apesar do alto investimento em propaganda, a adoção da Coleção Ler Faz Bem, da Editora Brasileirinho Educacional, tem sido criticada por professoras(es) e integrantes do Fórum Municipal de Educação. Segundo o relato de docentes, o projeto foi apresentado às escolas como obrigatório, sem possibilidade de discussão, reflexão e escolha e sem articulação com os Projetos Políticos Pedagógicos, o que fere o princípio da Gestão Democrática da Educação (Meta 18 – PME/ Meta 19-PNE / Artigo 14 LDB). Além dos incômodos quanto ao modo de seleção, o material apresenta erros conceituais e reproduz estereótipos racistas e sexistas.
O direito à educação para a igualdade de gênero, raça e orientação sexual tem base legal na Constituição Brasileira (1988), na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/1996), nas Diretrizes Nacionais de Educação e Diversidade. O próprio Plano Nacional de Educação (2014-2014), em seu art. 2º, prevê a implementação de políticas educacionais destinadas a combater “todas as formas de discriminação” existentes nas escolas, entre elas, as que se referem às desigualdades de gênero, raça, orientação sexual e identidade de gênero.
Mesmo determinada nas leis e normativas, a promoção dos direitos humanos e da diversidade na educação brasileira é completamente descumprida pelo material. Há atividades que reproduzem estereótipos de gênero como uma apresentada na apostila “O primeiro momento da leitura”, que propõe ligar as pessoas às suas leituras de interesse: a mulher ao livro de flores e o homem ao jornal econômico.
Outro alvo de críticas é a seleção de autoras(es). Na contramão do postulado pela Lei 10.639/2003, a coleção desconsidera a literatura Africana e Afro-Brasileira, invisibilizando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política do Brasil. “Em um material, tem que se ter como princípio a seleção de obras mais diversas possível, o que inclui selecionar autoras e autores negros, mulheres, LGBTs, indígenas. Isto porque, pensando em termos de Brasil, é representativo de todos esses grupos sociais. Se eu ignoro toda essa produção, que é de excelência e grande valor artístico e literário, eu nego avanços intelectuais e artísticos desses grupos ao longo da história brasileira, nego até a humanidade dessas pessoas”, avalia Esdras Soares, professor e mestrando em estudos comparados de literaturas de língua portuguesa.
Na apostila “Para ler e entender os grandes autores”, das vinte pessoas selecionadas, apenas três são mulheres e não há nenhuma autora negra. Entre os autores homens, há um embranquecimento físico e intelectual. “O caso do Machado de Assis é mais emblemático em termos de branqueamento de intelectuais negros brasileiros. Ele sofreu esse processo em vida e, após a sua morte, pessoas reivindicaram sua branquitude. E até hoje a gente vê essa caracterização nos materiais didáticos com ilustrações ou pinturas em que ele aparece como um autor de pele branca, cabelo ondulado, raramente enrolado, nariz fino, lábios cobertos pela barba. Mesmo na sua literatura, é comum omitir aspectos raciais da obra, dizendo que, apesar de ele viver em plena época escravocrata, não tocava nessas questões e não se posicionava. Pensando nos ambientes escolares, isto é muito cruel. Tanto para o próprio Machado como para as crianças negras, que merecem se ver ali representadas como produtoras de conhecimento intelectual e artístico. Então representá-lo como branco em um material didático, além de um grande equívoco, é racista”, analisa Esdras.
A seleção sexista e racista não ocorre apenas entre as(os) autores. As ilustrações de crianças e adultos disponíveis ao longo dos textos passa longe de refletir a diversidade da população brasileira. Enquanto nos dados da Pesquisa Nacional de Amostra em Domicílios (PNAD) 2015 o percentual de homens brancos é de 21,3%, nas ilustrações da Coleção Ler Faz Bem há uma super-representação que triplica este índice, atingindo um percentual de 69%. Já os homens negros, em consequência, são subrepresentados.
“Me preocupa o efeito que isso causa nos estudantes que fazem parte desse grupo. Qual é o efeito dessa interdição – tanto de personagens, quanto de autores – sobre estudantes negros? Se existem vários autores(as) negros(as), por que estes(as) escritores(as) não aparecem nem no currículo nem nos materiais didáticos? Isso é uma questão fundamental que todos que trabalhamos com educação temos que ficar atentos(as)”, questiona Esdras.
Nota-se ainda que, das 631 aparições humanas da coleção, apenas três são mulheres negras. Além da quantia ínfima, as ilustrações retratam um lugar de submissão e situações de humilhação, reforçando estereótipos negativos e práticas racistas para as crianças, professoras(es), familiares e toda a comunidade escolar.
No exemplar “Estimulando o aprendizado, praticando o conhecimento”, há um box de curiosidade com a parte IV do poema Navio Negreiro, de Castro Alves, acompanhada de uma ilustração de duas pessoas negras escravizadas acorrentadas. “Além de serem só 3 mulheres negras, elas são representadas com submissão, subalternidade. Se isto é o modelo, como essa criança vai se entender? Então é bem preocupante como esse material forma as crianças. Mesmo o reflexo para as crianças não negras, pois legitima um modelo eurocêntrico”, afirma Elly Bayó, professora da Creche Angela Masiero e mãe de estudante da EMEIEF Padre Fernando Godat.
Ela narra que, apesar da 10.639 estar instituída há muito tempo, é muito frequente que ela seja ignorada nas escolas. “Com muita dificuldade, a gente está em processo de reverter esse eurocentrismo da escola. Temos coisas pontuais, fruto de muita luta. Então quando esse material chega, vai na contramão de todo esse esforço”, analisa.
Elly ressalta ainda a importância de que se retrate em livros didáticos a população negra em toda a sua diversidade e não apenas com um mesmo tom de pele e aparência estereotipada. “A gente tem observado muito as crianças que não se enxergam dentro da raça negra. Por conta da cor de pele, não se enxergam nem de um lado, nem de outro. Quando esse livro didático legitima a situação de não pertencimento dessa criança, isso tem efeitos drásticos, difíceis de resolver na vida adulta. Isso influencia depois na vida profissional, fazendo com que não se sintam pertencentes aos espaços, não acreditem no seu potencial, porque isso reflete o que vivenciaram na escola. Então a influência de um material como esse na vida de uma criança negra é muito grande. Ela já é invisibilizada socialmente em outros meios, quando o livro didático reforça isso é muito complicado. Gera problemas de autoestima muito grandes, difíceis de transformar. Só com muita reconstrução desse orgulho.”, afirma Elly Bayó, professora da Creche Angela Masiero e mãe de estudante da EMEIEF Padre Fernando Godat.
Na avaliação de Caio Gerbelli, professor de história da EJA e integrante do Fórum municipal de educação de Santo André, o material negligencia a educação para as relações étnico raciais de forma criminosa. Ele destaca a existência de um box de curiosidade na apostila “Descobrindo, Brincando e Aprendendo” em que Gilberto Freyre é apresentado acriticamente com destaque para uma aspa em que se diz que o Brasil é a maior democracia racial do mundo. “Parece que é uma verdade, não há criticidade. Então o aluno pode tomar isso como verdade e o material ser um desserviço para a educação”, critica.
“Então o material é contraditório: coloca uma imagem de mulher negra escravizada e ao mesmo tempo diz que o Brasil é uma democracia racial”, contrasta.
Ausência de diálogo,intimidação e censura
Discordando da abordagem do material, uma das professoras optou por não usá-lo em aula, marcou uma reunião de mães e pais para justificar o motivo e sugeriu que os(as) estudantes o levassem para casa. Mesmo cumprindo os processos necessários de justificação, foi intimidada pela gestão. “Fui chamada atenção pela secretaria de educação. Vieram sem marcar, em horário de aula, me tiraram da sala, puseram outra professora para ficar com as minhas crianças e fui para uma reunião com um grupo de 4 coordenadoras mais equipe gestora para prestar esclarecimentos”, narra Vania.
Segundo ela, apenas algumas professoras em estágio probatório têm usado o material por medo de intimidação. Outras optaram por enviar para casa ou usar como passatempo. Em uma das escolas, houve uma reunião com as famílias, em que se mostrou o material e as pessoas presentes concordaram com sua inadequação. “Uma mãe até falou o que se compra em uma banca de jornal é mais bonitinho”, brinca.
Até o momento de escrita da reportagem, duas escolas (EMEIEF Salvador dos Santos e EMEIEF Homero Thon) haviam lançado cartas abertas de negação dos materiais. “A gente tem se posicionado, mas não tem obtido resposta”, pontua Cassia. A coleção também foi pauta de debate no programa Sempre um Papo, em que a professora Elly Bayó e a filosofa Djamila Ribeiro conversam sobre a educação e o lugar de fala da população negra.
Segundo a professora Elly, o tema já foi pautado em intervenção durante a audiência pública sobre a situação das creches realizada pela Defensoria na Câmara Municipal de Santo André em 24 de março. Na ocasião, a Secretaria não se pronunciou sobre o assunto. Durante a escrita da matéria, o De Olho também procurou o órgão, que, após receber o detalhamento da entrevista, deixou de dar retorno.
A Secretária Municipal de Educação, Dinah Kojuck Zekcer havia se comprometido publicamente em 2017 com o cumprimento das metas do PME. Nos anos que antecederam seu mandato, a Prefeitura de Santo André desenvolveu projeto destinado a organizar o processo de monitoramento do plano de forma participativa.
Promovendo a implementação da lei 10.639/03 e das metas 7 e 8 do PME, o município realizou ações formativas direcionadas à superação do racismo e outras discriminações. Oficina de confecção de bonecas abayomis, visita ao Museu Afro Brasil (em São Paulo) e leitura de livros que abrangem a temática da diversidade (como Menina Bonita do Laço de Fita, Obax, Bruna e a Galinha d’Angola) e aplicação pelas escolas dos Indicadores da Qualidade na Educação-Relações Raciais na Escola, uma metodologia de autoavaliação institucional que visa avaliar a implementação da Lei 10.639 com participação de toda comunidade escolar.
Um vídeo sobre todo esse processo foi produzido para contar um pouco mais sobre as etapas, materiais, atividades, resultados e participantes envolvida(o)s. Nele, Dinah se compromete a estudar e acompanhar o Plano Municipal de Educação para “conseguir dar continuidade ao trabalho da outra administração”.
Aprovado em julho de 2015, o plano está em vigor e dever ser implementado até 2025. As ações da Prefeitura, entretanto, têm seguido na contramão do esperado. Apesar do PME se propor a “garantir e efetivar mecanismos de participação e de consulta de toda comunidade escolar na formulação e acompanhamento dos projetos político-pedagógicos, currículos escolares, planos de trabalho e regimentos escolares, assegurando a participação de todos na avaliação dos gestores escolares, docentes e demais profissionais da educação”, a adoção e implementação da coleção foi feita em desconsideração ao princípio da gestão democrática.
“É um material que vem em uma perspectiva de cima para baixo, é imposto para os professores. Não faz parte do planejamento, do PPP, de nada”, reclama Caio. “O que nós temos vivido hoje na Secretaria de Educação de Santo André é um processo bastante autoritário de implementação de materiais pedagógicos sem discussão”, completa Cassia.
A gestão democrática é um princípio do Estado de Direito, previsto e regulamentado no princípio VIII da LDB e na Meta 19 do PNE. Para a sua efetivação, é necessário estabelecer mecanismos legais e institucionais que desencadeiem e estimulem a participação social e política. Essa participação deve incidir no processo de tomada de decisão com relação à definição das prioridades e formulação de iniciativas escolares e políticas educacionais, ao planejamento das escolas e políticas, à definição do uso de recursos, à divisão e cumprimento de responsabilidades e ao monitoramento e avaliação das políticas.
Além da coleção Ler faz Bem, outros dois materiais recém adotados pelo município têm sido criticados por advirem de um processo semelhante de imposição da gestão. Um deles, Jovens Empreendedores Primeiros Passos, de autoria do Sebrae, propõe trabalhar empreendedorismo com crianças. “Ele tem um viés mercadológico, portanto é antiplano. A proposta do material é desenvolver autoestima, coletividade, em um gênero bem neoliberal. Tem uma perspectiva que vai na contramão do trabalho no contexto educativo. Não dialoga, por exemplo, com a Educação de Jovens e Adultos” reclama Caio, professor da EJA. Já o segundo material, Mind Lab, se propõe a trabalhar o que se tem chamado de habilidades socioemocionais. “É um projeto que propõe jogos competitivos para crianças de 4, 5 e 6 anos. Na mesma lógica do Ler, houve formação e implementação obrigatória”, conta Cassia Manchini, professora da EMEIF Dr. Janusz Korczak
Em articulação do Fórum Municipal de Educação com o mandato da vereadora Bete Siraque (PT), será realizada uma audiência pública específica sobre os materiais “Ler Faz Bem”, “Mind Lab” e “Sebrae”. A ideia é que o evento conte com a presença de professoras(es) da rede municipal de educação, representantes do Fórum Municipal de Educação, sindicatos, entidades do movimento estudantil e de juventude e docentes da Universidade Federal do ABC. Inicialmente agendada para 12/05, a audiência teve que ser adiada por indisponibilidade dos palestrantes.
A coletânea “Ler faz Bem” é composta por um livro do professor e 12 exemplares estudantis separados por 4 faixas etárias: 4 e 5 anos (3), 6 e 7 anos (3), 8 e 9 anos (3), a partir de 10 anos (3). A coleção conta ainda com um site de apoio em que, entre outras coisas, se afirmava que o material estaria estruturado a partir das metas do Plano Nacional de Educação. Na metade de maio, entretanto, o site saiu do ar e só retornou no final do mês com uma modificação: a exigência de uma navegação personalizada.
O autor, Gustavo Tomazin, é também dono da editora responsável pela coleção: Brasileirinho Editorial. Publicitário, foi por três anos e meio secretário de desenvolvimento da Prefeitura de Sumaré. Desde setembro de 2015, é filiado ao PSDB, partido composto também por Paulo Serra, prefeito do município.
Segundo apuração do De Olho, a Coleção Ler Faz Bem foi adotada pelos municípios de Indaiatuba, Santa Gertrudes, Aparecida de Goiânia, Torrinha, Mauá e Salto. Só em Santo André foram gastos R$3 milhões.
“De cima para baixo”
Resultado de uma adoção sem consulta as profissionais da rede e de uma implementação por exigência da SME, o material tem gerado muita insatisfação do corpo do docente. A ausência de diálogo e a compulsoriedade das decisões da Secretaria estão entre os principais incômodos citados.
“Houve um lançamento obrigatório em horário de trabalho. Uma formação que era, na verdade, um show de mágica”, conta Vania, professora da EMEIEF Fernando Pessoa. “No evento de apresentação do material, não se disse nada sobre ele. Houve uma apresentação mágica falando que o material era interessante, sem falar do material em si. Foi um entretenimento para dizer que a leitura nos leva a caminhos da imaginação”, completa Cleide Gonçalves Silva, professora da EMEIEF Augusto Boal.
Insatisfeita com o processo de adoção e com a qualidade do material, a professora Cassia Manchini, da EMEIF Dr. Janusz Korczak, relata que é possível encontrar erros conceituais no que se refere à escrita e atividades que não condizem com os objetivos enunciados. Ela relata que “o material inteiro tem textos que não tem conexão, não têm nexo com os processos de leitura e escrita, não aprofundam a questão abordada, nem o tema tratado, nem a vida do autor”.
Segundo as impressões da professora Cleide, a coleção não atende aos interesses e anseios das professoras, nem das crianças “Se você vai trabalhar leitura, precisa de um material que proporcione à criança pensar sobre o mundo que a cerca, analisar aquilo de outra maneira, e este material nem isso consegue, não instiga as crianças. Quando o material chegou, as crianças viram, abriram a caixa emocionadas e depois ficaram ‘ah, é isso? Não tem nada para ler?’ Porque o que está ali não interessa a elas”, comenta Cleide.
Saiba Mais:
– Santo André realiza atividades com foco no combate ao racismo na escola
– Santo André distribui materiais sobre o Plano Municipal de Educação
– Planos de educação podem contribuir com a superação do racismo na escola
– Vídeo: por que é importante discutir gênero na escola
– Vídeo: Educação e Relações Raciais
Reportagem: Júlia Daher
Edição: Cláudia Bandeira
Parabéns pela iniciativa de combate a imposição de conteúdo ou falta (do mesmo).
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Att, Equipe De Olho