Promulgação do novo Fundeb foi conquista importante de 2020, mas não basta para mitigar os efeitos de crises econômicas e sociais exacerbadas pela pandemia
A conclusão de que 2020 foi um ano atípico e com grandes desafios é praticamente unânime, e na educação não foi diferente. A pandemia evidenciou e intensificou desigualdades educacionais e afetou diretamente o financiamento de áreas sociais no país. Os debates em torno da aprovação do novo Fundeb e, posteriormente, de sua regulamentação também marcaram 2020, representando uma importante conquista rumo à educação de qualidade para todas e todos. Mas nenhuma dessas discussões se encerrou no ano passado. As medidas de austeridade que impactam a Educação seguem em vigor, assim como o debate em torno do retorno seguro às aulas presenciais. Ainda, a regulamentação do Fundeb necessita de outros debates e leis complementares para sua completude.
A partir dos principais acontecimentos e aprendizados de 2020 para a Educação, elencamos aqui alguns dos principais desafios para o ano que se inicia, comentados por representantes de diferentes frentes de luta pela Educação de qualidade.
A promulgação da Emenda Constitucional 108 em agosto, que tornou o Fundeb permanente, foi uma conquista significativa de 2020. O fundo é o principal mecanismo de financiamento da educação básica no país e pode garantir maior equidade na educação ao destinar mais recursos para redes mais necessitadas, sem desamparar nenhuma outra. O novo Fundeb incorporou avanços como o Custo Aluno-Qualidade (CAQ), o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb) – ambos mecanismos criados pela sociedade civil -, o sistema de repasse híbrido e a maior contribuição da União na complementação de recursos. Ainda, o novo Fundeb destina 70% dos recursos para a valorização de todos os profissionais da educação e proíbe o desvio dos recursos de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino para o pagamento de aposentadorias.
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Os projetos de regulamentação do Fundo – etapa necessária para que ele entrasse em vigor em janeiro de 2021 – foram apresentados logo após a promulgação. No entanto, a discussão ficou parada no Congresso por meses, também prejudicada pelo período de eleições municipais. O projeto de regulamentação só tramitou em dezembro, tendo sido aprovado na última semana antes do recesso parlamentar, não sem embates. O projeto de regulamentação apresentado inicialmente pelo deputado Felipe Rigoni (PSB-ES) havia recebido destaques que aumentavam o repasse para instituições privadas. Tais manobras poderiam retirar quase R$16 bilhões das escolas públicas, segundo nota técnica da Campanha Nacional pelo Direito à Educação em parceria com a Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca). O Senado rejeitou as emendas e votou pelo texto original, aprovado pela Câmara no dia 17 de dezembro. A base governista ainda tentou obstruir a votação da matéria, mas não conseguiu. A sanção presidencial aconteceu na semana seguinte.
“O processo colocou as conquistas da EC 108/2020 em grande risco. Pelo risco de virar o ano sem esta regulamentação, o que inviabilizaria o início de implementação do Fundeb a partir de janeiro de 2021, ou pelo risco de ser editada uma Medida Provisória com retrocessos, com afobamento e abrindo espaço para agendas privatistas e inconstitucionais, a Câmara aprovou um texto inicial que seria extremamente danoso ao Fundo. Através de uma mobilização ampla liderada pela Campanha e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e dos estudos técnicos da Campanha e da Fineduca, conseguimos que esses retrocessos fossem rechaçados no Senado Federal e depois confirmados pela Câmara. Somente essa conquista já é uma vitória imensa, pois conseguimos preservar os preceitos aprovados na Constituição e conseguiremos avançar de fato em termos de financiamento da educação básica”, avalia Andressa Pellanda, coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
No entanto, ativistas ressaltam que o texto aprovado também não foi o ideal. Heleno Araújo, presidente da CNTE, ressalta que embora a promulgação em meio ao governo Bolsonaro seja uma conquista, ainda restam trechos “contraditórios” com o objetivo do Fundeb de reduzir desigualdades. Por exemplo, a vinculação de parte dos recursos ao desempenho das redes municipais e estaduais – o que pode dar mais recursos para redes que já estão em melhores condições. Heleno também considera que a pressa em aprovar o novo Fundeb e sua regulamentação prejudicaram o debate junto à sociedade.
O professor da Faculdade de Educação da USP, Eduardo Januário, também critica a pouca inserção da pauta racial no debate. “Não há dúvidas sobre o avanço do Novo Fundeb em relação ao anterior, mas houve poucos esforços dos movimentos sociais ligados à educação e dos parlamentares quando considerado o processo de luta por justiça social a partir da discussão das desigualdades raciais”, diz. Um exemplo dessa estagnação é a ausência, nas condicionalidades para distribuição de verba, de um indicador que priorize previamente o combate à desigualdade racial. “Os acordos internacionais que consideram a educação como mecanismo primordial para o combate à desigualdade racial poderiam ser melhor observados durante todo o processo, com destinação de verba específica para tal. É possível qualquer projeto que visa tratar equidade fazê-lo sem tratar a questão racial?”.
“A pandemia mostrou que o processo adequado para o ensino-aprendizagem envolve todos os segmentos da comunidade escolar” – Heleno Araújo, presidente da CNTE
A não inclusão, na EC 108, dos demais profissionais da educação na discussão sobre o piso salarial e a não definição de prazos para alguns convênios com instituições privadas também são alvo de críticas. Sobre o primeiro item, o presidente da CNTE lembra que “o artigo 206 da Constituição explicita que o piso salarial profissional nacional é para o conjunto de profissionais, que são listados na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Ao tratar do piso somente para professoras e professores, a Emenda 108 abandona ou descumpre o que determina a Constituição. São propostas que não atendem às reivindicações históricas dos trabalhadores e das trabalhadoras em educação”, diz Heleno Araújo.
Já a coordenadora-geral da Campanha, Andressa Pellanda, ressalta a vitória da mobilização em um contexto adverso: “Foram cinco anos de tramitação para aprovação deste novo e permanente Fundeb, marcados por tentativas fortes de redução do recurso público para a educação pública, de privatização da educação e de desresponsabilização do papel importantíssimo da União no financiamento ativo da educação básica. Esses grupos e pautas foram vencidos por nossos estudos técnicos de alto nível, por mobilização social da comunidade educacional e por melhor articulação política das instituições e ativistas que defendem a educação como direito. Isso precisa ser registrado, a mobilização social foi decisiva para essa vitória”, celebra.
“O Movimento Negro centrou suas forças em denunciar que o racismo, escancarado pela pandemia, está instituído no modelo econômico e nos mecanismos do Estado, mas a mobilização mais efetiva na agenda do Fundeb se deu apenas no momento da regulamentação. Poderíamos ter avanços maiores se houvesse esforço específico ao tema racial” – Eduardo Januario, professor da Faculdade de Educação da USP
No entanto, a regulamentação do Fundeb não se encerra com a aprovação da Lei 14.113/20. Há outros mecanismos previstos na Emenda Constitucional 108 que ainda precisam de leis complementares, como o CAQ, o Sinaeb e o SNE. O Custo Aluno-Qualidade (CaQ) determina quanto deveria ser investido por estudante (considerando sua etapa de ensino, localidade e outros fatores) para garantir as condições adequadas de ensino e aprendizagem; o Sistema Nacional de Educação organiza o regime de colaboração entre os diferentes níveis de governo; e o Sinaeb é a política de avaliação base para a distribuição de parte dos recursos da complementação da União. Dos 23% mínimos, 2,5% devem estar vinculados a indicadores de aprendizagem e de enfrentamento das desigualdades, que por sua vez devem estar especificados na regulamentação do Sinaeb até 2023.
Na tramitação da regulamentação do Fundeb, o movimento negro foi crucial para incluir a luta pelo combate à desigualdade racial na lei aprovada. No artigo 14, especificou-se que um dos critérios para o repasse dos recursos (VAAR) é a redução das desigualdades educacionais socioeconômicas e raciais medidas nos exames nacionais do sistema nacional de avaliação da educação básica. No entanto, o VAAR ainda segue em regulamentação. Ainda, dispositivos como os fatores de ponderação, que determinam quanto será o investimento por aluno em diferentes etapas e modalidades de ensino, também ainda serão revistos. Para 2021, valem os mesmos fatores da primeira versão do Fundeb. Na avaliação de Andressa Pellanda e do professor Eduardo Januario, o texto aprovado não foi suficientemente ousado nos fatores de ponderação para etapas e modalidades historicamente subfinanciadas, como a educação infantil, do campo, quilombola e indígena, e educação de jovens e adultos.
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“Em 2021, precisaremos iniciar a implementação do Fundeb, que precisará ser construído com uma série de novos mecanismos de funcionamento. Essa implementação já vem com um golpe: a base para aumento do valor por aluno para 2021 já começa menor e, como o piso salarial tem vínculo com o valor por aluno, partiremos de um patamar menor também para o piso. Ainda, será preciso seguir no processo de regulamentação do SNE, Sinaeb e CAQ, três agendas muito grandes e muito complexas, mas muito necessárias sistemicamente e para o bom funcionamento do Fundeb a médio e longo prazos. São projetos construídos com trabalho árduo e precisam ser finalmente regulamentados e implementados. Somente com a regulamentação do SNE, do Sinaeb e do CAQ é que teremos uma regulamentação plena do Fundeb”, destaca a coordenadora-geral da Campanha.
Embora tenha sido uma vitória significativa em 2020, o novo Fundeb não garante, sozinho, os recursos necessários para assegurar uma Educação de qualidade para todas e todos. O financiamento da Educação é profundamente afetado por outras medidas macroeconômicas, que continuam a desfinanciar a educação mesmo em um contexto de emergência sanitária como a pandemia de Covid-19. Nesse sentido, atuar para reverter esses retrocessos será crucial em 2021.
Entre as medidas de maior impacto estão a Emenda Constitucional 95 (o Teto de Gastos), que limita os gastos em áreas sociais por 20 anos e a PEC 188 (do Pacto Federativo), que propõe a fusão dos pisos de saúde e educação, fazendo as áreas essenciais disputarem orçamento. Ainda, o Orçamento de 2021 não prevê recursos suficientes para áreas sociais e educação.
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Para se ter uma ideia da falta de investimentos na Educação pública, 32.6 bilhões de reais não foram destinados à Educação em 2019, apesar de estarem previstos no orçamento. E desde que a Emenda Constitucional 95 entrou em vigor, muitos programas educacionais tiveram seu orçamento significativamente reduzido. As despesas com programas suplementares realizadas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), por exemplo, caíram 33.9% entre 2014 e 2019. Em 2020, a Lei Complementar 176 também limitou o recebimento de recursos via novo Fundeb. “Ou seja, 2021 ainda será de muito trabalho se quisermos seguir avançando para conseguir cumprir com o que determina nossa Constituição e nossa legislação”, lembra Andressa Pellanda.
Para a CNTE, a garantia da participação social é outra pauta prioritária em 2021, além da mobilização de toda a comunidade escolar para fazer frente às tentativas de retrocesso, como reformas administrativas e tributárias regressivas, a PEC 188 e o Teto de Gastos. “São muitas as lições que 2020 nos deixou. A importância do Estado ficou escancarada e a pandemia nos mostrou como é preciso investir nas escolas públicas do nosso país para elas serem um ambiente de segurança sanitária e para os estudos. É preciso investir nas escolas para que tenham banheiro, água, energia e equipamentos e conexão”, resume.
Aprendemos em coletivo, lutamos em coletivo e vencemos em coletivo, para garantir que nosso povo tenha a justiça social que lhe é de direito.“ – Andressa Pellanda, da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação
Ainda, é necessário assegurar que os Planos de Educação, políticas de estado que devem orientar a política educacional independentemente do governo no poder, sejam cumpridos.
Aprovado em 2014, o Plano Nacional de Educação (PNE) reúne metas a serem cumpridas até 2024 para que o país avance na garantia do direito à Educação. A ele, se seguiram os Planos de municípios e estados. No entanto, o PNE não está sendo cumprido. Segundo o último monitoramento realizado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, cerca de 85% dos dispositivos do PNE não serão cumpridos até o final de sua vigência. Na mesma linha, os planos de educação locais também enfrentam dificuldades em sua implementação – intensificadas pela pandemia e pelas transições municipais. Nesse cenário, a iniciativa De Olho Nos Planos elaborou um folheto com recomendações para avançar na implementação dos planos de Educação. O material tem download gratuito e pode ser acessado neste link.