Educação foi a área com o maior corte orçamentário em 2021, e persistem os ataques a projetos que asseguram condições dignas de ensino e aprendizagem durante a pandemia
Por Nana Soares
A pandemia de Covid-19 obrigou as comunidades escolares de todo o país a se reinventarem, transferindo o que era possível para o online e remoto. No entanto, em um país desigual como o Brasil, esse fenômeno deixou suas marcas: no mês de outubro de 2020, por exemplo, 5.5 milhões de crianças e adolescentes não estavam realizando nenhuma atividade escolar, segundo o Unicef. Negras e negros, indígenas, estudantes com deficiência e moradores de áreas rurais ou do Norte e Nordeste do país eram os principais afetados. Os motivos são muitos, como a falta de acesso à internet e a celulares/computadores/tablets para realizar as atividades. O abandono escolar é outro problema, já que, com a renda familiar afetada, muitos estudantes tiveram que procurar trabalho.
Longe da escola e confinados em casa, outros direitos também são comprometidos. Desde o início da pandemia, aumentaram as denúncias de violência doméstica e sexual contra mulheres, meninas e meninos, e aumentou a insegurança alimentar – não só em casa, causada pelo aumento da pobreza e do desemprego, mas também porque a alimentação escolar está sendo violada neste período. Em suma, o direito à educação foi profundamente afetado pela pandemia.
Neste contexto e considerando que o direito à educação está intimamente relacionado à garantia de outros direitos, a área deveria ser prioritária em 2021, com políticas de enfrentamento à pandemia e às desigualdades exacerbadas no ano passado. Mas o que se observa no Brasil é o contrário, com sucessivos projetos de lei que desconsideram o contexto sanitário e a realidade das escolas brasileiras, prolongando a precariedade e a violação do direito à educação no país. Isso sem contar o corte de 27% no orçamento em 2021 que fez da Educação a área mais prejudicada na distribuição de recursos.
Ainda, o projeto de lei (PL) 3477/20, que dispõe sobre a garantia de acesso à internet a alunos e a professores da educação básica pública, foi vetado por Jair Bolsonaro em março de 2021, após aprovação no Congresso. Além da internet, o PL 3477 previa a aquisição de tablets para os estudantes do Ensino Médio da rede pública. Esses foram exatamente os maiores desafios relatados pelas redes municipais de educação à pesquisa da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). Segundo o levantamento, realizado em quase 4 mil municípios, quase 80% das redes respondentes tiveram dificuldade com a conectividade dos alunos, reforçando a necessidade de ampliar este acesso. No entanto, o presidente vetou o PL com a justificativa do impacto orçamentário e de que o PL não observava as exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal. Agora, deputados, deputadas, estudantes e ativistas pela Educação organizam-se para derrubar o veto presidencial quando o projeto voltar à Câmara, o que deve acontecer ainda esta semana.
“É uma dificuldade ver que a maioria dos estudantes está tendo seu direito constitucional violado. A abstenção de mais de 50% no ENEM, por exemplo, mostra desistência, desespero. O que tem afetado os estudantes brasileiros é um combo: falta merenda, condição, internet, auxílio emergencial. A falta dessas condições vai fazer o Brasil perder uma geração para o desemprego, desnutrição e violência”, diz Rozana Barroso, presidenta da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES).
A segunda maior dificuldade relatada na pesquisa da Undime foi adequar a infraestrutura das escolas à situação de emergência sanitária. Não à toa, quase dois terços dos dirigentes ouvidos relataram que suas redes pretendiam continuar as atividades não presenciais em 2021. O levantamento realizado pela Iniciativa De Olho Nos Planos em outubro de 2020 com escolas indígenas, quilombolas e do campo observou as mesmas dificuldades: problemas de conectividade dos alunos e das famílias e condições extremamente precárias nas escolas. Banheiros interditados, frequentemente sem insumos, fornecimento irregular de água, energia elétrica e merenda foram relatados por quase todos os agentes das comunidades escolares. Além disso, o número de funcionários era insuficiente para suprir todas as demandas. Em uma escola indígena, as salas eram separadas por uma parede de gesso e os professores precisavam combinar entre si as atividades desenvolvidas para que o barulho não impedisse a outra turma de ter aula.
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A retomada das aulas presenciais em escolas com problemas de infraestrutura é um risco sério do ponto de vista epidemiológico. Nota técnica de abril/2021 da Rede Escola Pública e Universidade (REPU) aferiu isso em primeira mão: com dados coletados por profissionais em 299 escolas do estado de São Paulo, a rede constatou que a incidência de Covid-19 entre os professores e professoras da rede pública foi 192% maior do que a incidência na população geral da mesma faixa etária. O crescimento de casos também foi muito superior ao da população geral. “A principal conclusão é que as escolas não podem ser considerados ambientes incondicionalmente seguros, isso não existe. Elas precisam de reformas e insumos. Sem considerar isso, ninguém está verdadeiramente debatendo os riscos. Vacinar a população adulta não dispensa a obrigação de outros protocolos de segurança”, opina Fernando Cássio, professor adjunto da Universidade Federal do ABC e um dos autores do estudo. “O que vemos agora é que as pessoas têm medo de voltar, porque não confiam na capacidade do Estado ou do mantenedor de escola privada em manter os padrões de segurança. É primordial qualificar o debate com dados e informação, porque não se pode continuar induzindo as pessoas ao erro e fazê-las arriscar a vida em meio a uma crise humanitária”, completa.
Ainda assim, avança no Legislativo o projeto de lei 5595/2020, que torna a educação um serviço essencial e, com isso, obriga a retomada imediata das aulas presenciais em escolas e universidades de todo o país. Sob a justificativa dos impactos da pandemia na educação, como os narrados no início deste texto, o PL também proíbe a suspensão de aulas presenciais durante pandemias e calamidades públicas (o que afeta o direito de greve) e insere os profissionais da educação como grupo prioritário no calendário de vacinação. O projeto foi aprovado no Congresso e será apreciado pelo Senado Federal nesta semana.
Historicamente subfinanciada, a educação de jovens e adultos (EJA) recebe menos investimento do que o ensino regular. Desde o início da pandemia, ao menos 60 mil educandos abandonaram os estudos somente no estado de São Paulo. A precarização da EJA, no entanto, vem de antes. Michel Temer diminuiu os repasses para a modalidade; Jair Bolsonaro extinguiu a secretaria responsável pelo desenvolvimento da EJA, a Secadi; e desde 2016, o governo federal não compra mais livros didáticos específicos. O resultado foi uma queda de mais de 30% nas matrículas de 2010 a 2019. A lei de regulamentação do novo Fundeb, aprovada em 2020, também não mexeu no repasse para a EJA, embora isso vá ser revisado em 2022.
“Se antes a EJA aparecia com problemas nas normativas e editais, agora ela nem existe mais”, resume a professora Analise da Silva, da UFMG e especialista em EJA. “É preciso garantir não só o ingresso, mas também a permanência dos estudantes. Por exemplo, o plano de dados móveis para o aluno acessar as aulas, porque não é só ter celular ou tablet, ter um plano que permite assistir ao vídeo, abrir um mapa. Isso é garantir a permanência. Não dá para afirmar que só isso resolveria a questão, mas se não sequer tentarmos, não tem como resolver”, diz ela, que lembra que se avançou muito pouco na qualificação do ensino remoto emergencial e existem outros fatores influenciando o direito à educação na pandemia: “É essencial incluir estudantes da EJA nas políticas de alimentação. Talvez, se garantir o básico, essas pessoas não rompam o distanciamento social, não vão para a rua buscar bicos, procurar emprego (e não encontrar). Mas não é isso que vemos. Ao contrário, há um abandono, quando não um incentivo a morte”.
Proposto por Paula Belmonte (CIDADANIA/DF), Adriana Ventura (NOVO/SP), Aline Sleutjes (PSL/PR) e General Peternelli (PSL/SP), e com relatoria de Joice Hasselmann (PSL/SP), o PL tem sido fortemente criticado pelos movimentos de educação e parlamentares da oposição, pois, ao propor a volta imediata, ignora o cenário epidemiológico e a falta de estrutura das escolas ao redor do país. “Nunca negamos a importância da escola. Ao contrário, nós somos os mais interessados em voltar, não aguentamos mais essa situação. Mas nós estamos interessados em voltar para uma escola estruturada, segura e em um Brasil que supera o coronavírus”, diz Rozana Barroso, da UBES, que acrescenta que a priorização na vacinação não é garantia de nada, considerando que a volta seria imediata e que a vacinação avança de maneira lenta e desigual nos estados. “Há uma tentativa de manipulação narrativa, já que no conceito jurídico ‘essencial’ não é sinônimo de ‘importante’. Não há dúvidas de que a educação é importante, mas ela não pode ser considerada serviço essencial porque ao obrigar a reabertura de escolas em massa e sem seguir os protocolos, haverá um risco enorme de ainda maior descontrole da pandemia e milhares de mortes por Covid-19”, defende Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação.
A Campanha, que se opõe ao PL, cruzou informações dos votos dos deputados neste projeto de lei com o voto sobre o teto do auxílio emergencial. O cruzamento mostrou que 69% dos parlamentares que apoiam o PL 5595 – isto é, entendem que as aulas presenciais devem ser retomadas imediatamente – também votaram a favor do teto do auxílio emergencial. Ou seja, pelo limite do auxílio às famílias mais pobres. “Um dos principais argumentos para a aprovação, na Câmara dos Deputados, da educação como atividade essencial é a suposta preocupação com as crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. No entanto, é possível notar a falta de coerência deste argumento, já que o teto ao auxílio emergencial deixou 9,1 milhões de pessoas na extrema pobreza. Não é uma preocupação com as crianças”, afirma Andressa.
A organização lançou também um posicionamento público urgindo a rejeição do PL pelo Senado Federal, com oito argumentos principais, e uma nota técnica com as análises jurídicas e do impacto do PL. A Campanha destaca a ameaça ao direito de greve, a indefinição de algumas regras, como a frequência de estudantes e profissionais que sejam dos grupos de risco, e um conflito federativo. Ainda, enfatiza que meramente obrigar as comunidades escolares a retomarem as atividades presenciais não resolve as vulnerabilidades sociais dos estudantes, além do risco sanitário devido às más condições das escolas: “Existem alternativas e meios de garantir a oferta do ensino na pandemia e isso exige investimento público do Estado. O governo federal caminha na contramão dessa premissa, bloqueando verbas na educação”. Como resume a presidenta da UBES, Rozana Barroso, “o que adianta é planejamento, diálogo com comunidade escolar e responsabilidade. Enquanto não for o momento de retornar, é preciso garantir o acesso à educação em casa”.
Diante deste cenário o que se pode observar é, mais uma vez, a omissão do governo federal em garantir as condições necessárias para um retorno seguro levando em consideração as desigualdades educacionais do país. Isso requer ação coordenada entre os entes federados, escuta das comunidades escolares e investimento financeiro. Priorizar a educação não é forçar reabertura sem segurança em um dos momentos mais dramáticos da pandemia no Brasil.