Recente balanço da Campanha com dados desagregados por sexo e por raça mostra que, além do cenário geral de descumprimento do Plano, persistem as desigualdades educacionais
Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira
Os balanços anuais que monitoram o cumprimento do Plano Nacional de Educação (PNE) realizados pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação vêm mostrando, ano após ano, um cenário generalizado de descumprimento da mais importante política educacional brasileira. A edição divulgada em junho de 2022 mostrou que 86% das metas e indicadores não seriam cumpridas até o fim da vigência do PNE (2024) se o ritmo atual for mantido. E para além do descumprimento, há metas em retrocesso e até mesmo aquelas sem dados disponíveis para que a sociedade monitore seu andamento.
Um novo balanço divulgado no último mês adicionou mais nuances a este cenário já bastante desfavorável ao trazer os dados das metas e indicadores desagregados por raça/cor, sexo e por estado. A análise detalhada evidencia o grande desafio de fazer com que a Educação de qualidade seja uma realidade para todas e todos os brasileiros, já que persistem as desigualdades educacionais entre brancos e negros em praticamente todos os indicadores. Em contrapartida, sequer é possível dar o mesmo diagnóstico sobre a educação da população indígena e de pessoas com deficiência, uma vez que não há dados suficientes sobre elas. Ainda, as desigualdades regionais e disparidades entre rede pública e privada mostram que há muito a ser feito mesmo nas metas e indicadores que à primeira vista caminham bem.
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“O balanço detalhado nos dá a possibilidade de aprofundar o panorama nacional. Dito isso, o que ele traz de mais negativo é o que já estava posto nacionalmente: estamos distantes de cumprir as metas e estratégias do Plano Nacional de Educação a menos de 2 anos de seu fim. E o que temos de dados novos se destacam em termos das desigualdades”, resume Andressa Pellanda, coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Por exemplo: a região norte é a que tem indicadores mais alarmantes nas metas de acesso, permanência e qualidade, seguida pelo nordeste; a população negra ainda está em situação de exclusão e desigualdade em relação à população branca, ainda que as distâncias tenham diminuído; e embora as mulheres sejam mais escolarizadas e a maioria entre as profissionais da educação, persistem desigualdades nas metas de valorização das profissionais.
O impacto da pandemia também pode ser visualizado. Por exemplo, no indicador 2A (Percentual da população de 6 a 14 anos que frequenta ou já concluiu o Ensino Fundamental). Se antes o indicador estava próximo da meta de cumprimento, em 2021 caiu para um nível menor do que o de 2014, quando começou o período de vigência do PNE. E com um agravante: essa queda foi mais acentuada entre a população preta. Ou seja, em um cenário geral de retrocesso, as desigualdades por raça/cor se intensificaram. Jaqueline Santos, diretora de projetos para ações programáticas em justiça racial e justiça de gênero da Fundação Friedrich Ebert Stiftung (FES) Brasil, destaca que o retrocesso nesse indicador é gravíssimo e exige um olhar mais cuidadoso. “Precisamos pensar nessa grande lacuna: o que aconteceu na transição do ensino fundamental 1 para o ensino fundamental 2 que perdemos tantos alunos? Como isso impacta as desigualdades?”, questiona. Como ela sintetiza, “a média não mede desigualdades”. Ou seja, agendas prioritárias para planejar estratégias e ações muitas vezes podem ser invisibilizadas olhando-se apenas para os números gerais.
Já que estamos quase no fim da vigência do atual PNE, Jaqueline defende que um novo Plano Nacional de Educação foque mais explicitamente em metas de equidade, almejando a redução de desigualdades raciais, de gênero, regionais, entre outras. Ou, em outras palavras, que tanto o PNE quanto os planos estaduais e municipais subsequentes sejam políticas orientadas pelas diferentes necessidades e especificidades de diversos grupos sociais e dos territórios brasileiros.
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Desigualdades por raça/cor e sexo
Essa necessidade é evidente uma vez que os dados do último levantamento mostram, por exemplo, que tanto o analfabetismo absoluto como o funcional são mais prevalentes entre pretos e pardos do que em brancos (ainda que os últimos avanços tenham sido mais pronunciados entre os negros) e que a população negra ainda não atinge a média de 12 anos de estudo obrigatório na população de 18 a 29 anos. Invisibilizada nas pesquisas, os dados disponíveis mostram que a população indígena tem muito menos acesso à educação integral, além de um percentual muito baixo de professores da educação básica com pós-graduação (12%, ante 50% da população branca). Para Andressa Pellanda, esses dados mostram que “a especialização em educação no Brasil ainda é pouco decolonial e restrita ou quase a alguma política de incentivo à progressão de carreira e especialização de docentes indígenas”.
Um dado positivo em relação à raça/cor é a diminuição de desigualdades no acesso à educação básica. No entanto, permanecem os desafios de permanência, como a queda do indicador 2A durante a pandemia demonstra para o ensino fundamental, e também o indicador 3B para o Ensino Médio. Mas o avanço mais significativo vem do Ensino Superior, como no indicador 12A (Porcentagem de matrículas na Educação Superior em relação à população de 18 a 24 anos): ainda que persista a desigualdade no acesso entre brancos e negros, de 2014 para cá a variação da matrículas de pessoas pretas na universidade aumentou 9,4 pontos (ante 5 da população branca). Similarmente, o indicador 12B, que trata sobre conclusão do ensino superior, também mostra avanços maiores na população preta.
A redução dessas desigualdades, que embora não aconteçam no ritmo necessário para cumprir o PNE no prazo adequado, pode ser creditada às políticas de ações afirmativas como a Lei de cotas. Não à toa, ela está sob ameaça. “Fica nítido que as tendências de reversão de antigas desigualdades se dão por conta das políticas de ações afirmativas. E a nível federal são as cotas raciais, e não as sociais, que estão ameaçadas”, reforçou Jaqueline dos Santos, da FES Brasil, evidenciando a centralidade da pauta racial para o cumprimento do PNE. Além disso, no lançamento da publicação ela também chamou a atenção para nuances que só aparecem quando dados são desagregados. Por exemplo, as mulheres negras tiveram grande inserção nas universidades públicas, mas seguem concentradas em áreas como pedagogia, enfermagem e outras profissões de cuidado, com pouca representação em áreas como engenharia e ciências exatas. Ou seja, é preciso pensar inclusão também nos termos da representação em todas as áreas.
Diferenças regionais e problemas de qualidade
O Brasil tem disparidades regionais muito significativas em praticamente todas as metas e indicadores analisados pela Campanha. Norte e Nordeste têm índices piores em vários indicadores, como os de analfabetismo absoluto e funcional. As metas de ensino superior também mostram forte concentração nas unidades da federação mais ricas – como os estados do sudeste e o Distrito Federal, que concentram, por exemplo, a titulação de mestres e doutores (meta 14).
Por outro lado, o detalhamento mostrou uma situação alarmante no estado de Roraima, que apresentou retrocessos e/ou estagnações em diversas metas de acesso e conclusão na Educação Básica, incluindo a Meta 12 de matrículas, frequência e conclusão do Ensino Superior. Já o Rio Grande do Norte, estado onde houve recente política de valorização de profissionais da educação (meta 17 do PNE), vai melhor do que a média nacional. Lá, docentes com ensino superior completo recebem, em média, o dobro do que outros profissionais com a mesma escolaridade. “[O Rio Grande do Norte] é um estado em que o balanço detalhado evidencia melhorias de indicadores na progressão de pontos percentuais em quase todas as metas que dependem do governo do estado, tendo tido em geral progressões equivalentes ou melhores que os demais estados da região Nordeste, com destaque para a Meta 3, de ensino médio, em que o RN atinge a melhor variação do Brasil, e para a Meta 9 com redução significativa do analfabetismo absoluto”, ressalta Andressa Pellanda, coordenadora da Campanha.
A nível federal, houve um completo abandono da modalidade da Educação Integral, com o fim do programa Mais Educação e sua substituição pelo Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, que tem problemas sérios de qualidade e que não dialoga com as demandas juvenis. No estado de São Paulo, o projeto de “expansão da carga horária” associado ao novo Ensino Médio tem na verdade o efeito de ampliar ainda mais as desigualdades educacionais ao reduzir o ensino presencial dos mais pobres e estimular a privatização na rede estadual, como defende o professor de políticas educacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC) e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU), Fernando Cássio. “Desde 2018 as pesquisas da REPU mostram que o Programa Ensino Integral (PEI), que atende um número limitado de estudantes, amplia as desigualdades educacionais, separa negros e brancos, ricos e pobres e exclui estudantes com deficiência, criando uma ilha de excelência em meio a um mar de exclusão”, critica o professor. Isso porque tendem a atender aqueles já em melhores condições dentro do ensino público. “Os estudos já mostram que a abertura de uma PEI faz com que os estudantes mais pobres migrem para a escola regular mais próxima, que começa a ficar superlotada. Isso fez com que esse ano faltassem vagas na rede estadual para alunos do ensino fundamental, o que não acontecia há décadas. Ou seja, é uma política que vai na contramão da concepção do PNE”, resume Cássio.
No ensino médio, a precarização e sucateamento vêm por efeito das PEIs mas também por uma política aliada: o Novo Ensino Médio. Essas políticas, têm, na prática, aumentado o fosso entre estudantes da rede pública e da rede privada e mesmo dentro da rede pública. A Reforma do Ensino Médio, como mostram balanços da Campanha e estudos da REPU, dá margem à privatização da educação e não garante as condições necessárias nas escolas, como infraestrutura e professoras/es com formação adequada. O resultado é que estudantes mais pobres da rede estadual, particularmente do Ensino Médio noturno, têm menos possibilidades de escolha, mais aulas sem professores e a oferta de expansão da carga horária mais precarizada. “O estado de SP, o mais rico do país, sequer consegue entregar as mil horas letivas anuais, quem dirá debater currículo, projeto de vida. O nível de precariedade é absoluto. O Novo Ensino Médio é publicizado como dando liberdade de escolha, mas na verdade é um barateamento da educação dos mais pobres – uma reforma que não equipou escolas, não contratou professores, não construiu sala de aulas”, sintetiza Fernando Cássio, enfatizando a perversidade de uma política que precariza ainda mais a escola de quem mais precisa dela. Em 2022, diversas organizações, incluindo a Ação Educativa, assinaram uma carta aberta pela revogação da Reforma do Ensino Médio.
PNE em risco?
A meta 20 do PNE prevê que o Brasil amplie o investimento público em educação pública, o contrário do que tem acontecido nos últimos anos. A meta de aumentar o investimento progressivamente até o equivalente de 10% do PIB em 2024, conquista histórica dos movimentos e organizações que defendem a educação pública e de qualidade, tem ficado estagnado na faixa dos 5% de 2015 a 2020. E o não cumprimento da meta 20 atua em efeito cascata em todo o PNE, pois sem novos recursos a implementação das outras metas – que preveem, por exemplo, maior número de matrículas em diferentes níveis – fica inviabilizada.
No governo Bolsonaro, a Educação sofreu sucessivas reduções orçamentárias, seja com corte ou bloqueio de verbas. No início de outubro, por exemplo, foi anunciado um novo bloqueio de mais de 2 bilhões de reais, dos quais parte seria retirada do Ensino Superior, que já tem funcionado no limite do orçamento. Fernando Cássio, professor da UFABC e membro da REPU, destaca que, no governo Bolsonaro, as universidades públicas – responsáveis pela maior parte da produção científica brasileira – passaram a ter que lidar com mais do que os cortes orçamentários, já intensificados desde 2016. “Os cortes em geral se davam no começo do ano, não ao longo dele, quando os contratos já estão em curso. Sob o nome ‘corte’ ou ‘bloqueio’, o que interessa é o efeito prático: as universidades estão sem recursos. Se não por cortes no MEC, pelos cortes na área de ciência e tecnologia. É um vale tudo para fechar o ano, porque o governo se comprometeu tanto com o orçamento secreto que agora não consegue fechar as contas”, diz Cássio.
Apesar da gravidade do cenário, em 2022 foram poucas as candidaturas, tanto presidenciáveis quanto a nível estadual, que mencionaram ou se basearam nos atuais Planos de Educação. Em âmbito nacional, apenas Lula (PT) se compromete a retomar as metas do PNE e reverter os desmontes do atual governo, inclusive revogando a Emenda Constitucional 95, que inviabilizou o cumprimento do PNE tão logo ele foi aprovado. Já entre candidatas e candidatos a governos estaduais, apenas 1 em cada 4 propostas de governo mencionava os Planos de Educação em alguma instância. Ou seja, é preciso que a população, organizações e movimentos sociais exijam em âmbito nacional, estadual e municipal a avaliação e construção participativas dos Planos de Educação, uma vez que os decênios de vigência acabarão durante o próximo mandato do Executivo. “A luta pela aprovação e pela centralidade dos planos de educação nas políticas governamentais segue sendo crucial, não só por conta do cenário de eleição de candidaturas que marginalizam os planos, mas por conta do desafio ainda enorme de compreensão da necessidade de construção de políticas de Estado, em detrimento de políticas de governo, e de falta de gestão democrática e formação política da sociedade, que não tem espaço e não está acostumada a participar das decisões e do monitoramento de políticas públicas, diminuindo a possibilidade de cobrança para a efetivação dessas políticas”, reforça a coordenadora da Campanha.
A gestão de Jair Bolsonaro, por exemplo, nunca norteou a política educacional pelo PNE. Ao contrário, deu seguimento às políticas de austeridade que o inviabilizaram já em 2015, um ano após sua aprovação. Bolsonaro não apenas manteve a Educação subfinanciada e sofrendo com sucessivos cortes orçamentários, como também avançou em medidas que impactam o PNE negativamente, como o Novo Ensino Médio e a militarização das escolas. Para um eventual novo mandato, o atual presidente mantém o alinhamento com políticas neoliberais e de austeridade. Em contrapartida, o ex-presidente Lula (PT) quer “investir em educação de qualidade, no direito ao conhecimento e no fortalecimento da educação básica, da creche à pós-graduação, coordenando ações articuladas e sistêmicas entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, retomando as metas do Plano Nacional de Educação e revertendo os desmontes do atual governo”. O candidato promete assegurar a continuidade das políticas de cotas sociais e raciais na educação superior – implementadas nas gestões petistas – e nos concursos públicos federais, bem como sua ampliação para outras políticas públicas.
O compromisso com a construção participativa de Planos de Educação e com a garantia de financiamento adequado para o cumprimento de suas metas e estratégias são critérios que devem ser levados em consideração pelas pessoas que defendem a redução das desigualdades e a melhoria da qualidade da educação para todes no Brasil.