Políticas de austeridade na Educação, Reforma do Ensino Médio e militarização das escolas tornam o cumprimento do PNE ainda mais difícil

O descaso do Governo Bolsonaro com o Plano Nacional de Educação e a intensificação das políticas de austeridade em sua gestão ampliaram as desigualdades educacionais no país

Estudantes protestam contra cortes na Educação em Macau (RN). Foto: Vitória Matos/Estudantes Ninja

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

Todos os anos a Campanha Nacional Pelo Direito à Educação (Campanha) divulga seu balanço do cumprimento das metas e dispositivos do Plano Nacional de Educação (PNE, Lei 13.005/14). E ano após ano o cenário de descumprimento se agrava. A última edição, lançada em junho, apontou que além das metas não cumpridas ou graves retrocessos, há também uma importante lacuna de dados que impediu a avaliação de quase metade das metas e dispositivos. Retrato da gestão Bolsonaro, que aprofundou as políticas de austeridade na educação e dificultou de diversas maneiras a participação social, a gestão democrática e a transparência. Das 20 metas, 8 apresentam retrocesso em ao menos um dispositivo, e também são 8 as que não têm dados suficientes para avaliação. No total, a taxa de descumprimento é de 86%. 

Como a Iniciativa De Olho nos Planos sempre reitera, o PNE começou a ser esvaziado já em 2015, e o cenário se agravou após o golpe parlamentar de 2016 e com a aprovação da Emenda Constitucional 95 (EC 95, o Teto de Gastos), que constitucionalizou os cortes orçamentários por 20 anos. “Vínhamos em um esforço muito grande de construir o PNE como epicentro das políticas educacionais, mas fomos afetados pela mudança no cenário político, que veio seguida de um descontrole imenso e de um ataque sistemático aos direitos sociais”, resume Márcia Angela Aguiar, professora da UFPE e Diretora de Cooperação Internacional da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE). Márcia destaca outros dois baques importantes no cumprimento do PNE para além da EC 95 e que, em sua visão, indicaram também uma inclinação para o setor privado: as alterações na composição do Fórum Nacional de Educação e na composição do CNE, reduzindo a representação da sociedade civil (que respondeu criando o FNPE e a Conape).

O governo Bolsonaro nunca norteou a política educacional pelo PNE e deu seguimento às políticas de austeridade que inviabilizam o cumprimento do plano. Além do subfinanciamento da Educação que inviabiliza o PNE como um todo, em seu governo também avançaram medidas que o impactam, como a Reforma do Ensino Médio e a militarização das escolas. “Vemos que o contexto político é um elemento determinante. Para além da ausência de recursos, o PNE também está em disputa quando se avançam pautas como a educação domiciliar, as tentativas de criminalizar discussões sobre gênero. Tudo isso causa um tumulto”, complementa Márcia Angela Aguiar. 

O novo Ensino Médio, como destacou a Campanha em seu último balanço, é um marco negativo para o cumprimento da Meta 3, que diz respeito à universalização do atendimento escolar para a população de 15 a 17 anos e a elevar as matrículas do Ensino Médio para 85%. O cenário atual é de quase meio milhão de jovens nessa faixa etária fora da escola, e a taxa de matrícula líquida, que já não avançava no ritmo ideal, teve queda durante a pandemia. Retrocessos que devem ser agravados pela Reforma do Ensino Médio, uma vez que essa dá margem à privatização e não garante as condições necessárias nas escolas como infraestrutura e falta de professoras/es com formação adequada, além de estabelecer um currículo mínimo através dos chamados itinerários formativos. Na prática, como destaca a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) em nota técnica sobre o tema, a reforma acirra as desigualdades educacionais: “Os/as estudantes mais pobres da rede estadual – particularmente os/as do Ensino Médio noturno – são sempre mais prejudicados/as: têm menos possibilidades de escolha, mais aulas sem professores e a oferta de expansão da carga horária mais precarizada”. 

Tais impactos também devem ser sentidos por quem opta pela Educação Profissional técnica de nível médio, foco da Meta 11 do PNE. Essa modalidade, onde só houve aumento de matrículas na rede pública, pode ser impactada pelo Novo Ensino Médio uma vez que o itinerário formativo que contempla a formação técnica e profissional é bastante questionado em relação à manutenção da qualidade, pois permite que profissionais sem formação docente lecionem disciplinas e que até 30% do ensino médio seja realizado no formato de educação a distância (EaD). “Esta última, para além de questões relacionadas à qualidade, mostrou enormes limitações relacionadas ao próprio acesso – e, especialmente, à equidade de acesso – durante a pandemia”, reforçou a Campanha no balanço do PNE. A diretora da ANPAE, Márcia Aguiar, é ainda mais contundente, contextualizando a reforma do Ensino Médio na perspectiva neoliberal e de austeridade na Educação: “É uma concepção de currículo ligada à ideia de formar um trabalhador dócil e domesticado, de reduzir suas possibilidades de formação. Uma ruptura em relação ao que era construído até então a duras penas: a educação básica voltada para a formação da cidadania”. Ruptura que é completada por outras políticas como as de militarização e da educação domiciliar. Neste contexto, diversas organizações, incluindo a Ação Educativa, assinaram uma carta aberta pela revogação da Reforma do Ensino Médio

O crescente aumento de escolas militarizadas – processo que tem grande aval do governo -, impacta especialmente as metas que se referem à participação social e gestão democrática da Educação, como a meta 19, e à redução das desigualdades educacionais, como a meta 8. Isso porque, como nos explicou em entrevista a professora Catarina de Almeida Santos, as escolas militarizadas operam sob uma lógica de hierarquia, obediência e repressão. Nesse sentido, negam o direito à educação. “Educação tem a ver com o desenvolvimento pleno dos sujeitos, de suas especificidades, de formar uma pessoa para a vida em sociedade, e a militarização nega essa lógica. Ao proibir a demonstração de afetividade, regular as maneiras de sentar, de correr, obrigar a bater continência, forma-se um sujeito que entende que a única possibilidade do certo é obedecer aquela lógica”, explicou ela. 

Outras metas que já vinham em retrocesso seguem nesta situação gravíssima. Por exemplo, as metas que abarcam a redução das desigualdades educacionais – agravadas durante a pandemia -, a Educação de Jovens e Adultos (EJA) e a Educação Integral. A EJA, abarcada pelas metas 9 e 10, segue em situação de completo abandono. Dois dados chamam a atenção: de acordo com os últimos dados disponíveis, apenas 2,2% das matrículas de EJA estavam integradas à profissionalização. Percentual abaixo do observado no início da vigência do atual PNE (2.8%) e muito distante da meta de 25%. Ainda, o programa Brasil Alfabetizado, que atendia principalmente municípios com altas taxas de analfabetismo, foi ainda mais desidratado em seus recursos, estando virtualmente extinto. A professora da Faculdade de Educação da USP Maria Clara Di Pierro já havia alertado que essa era a característica do governo Bolsonaro para a EJA: não revogar as políticas da área, mas sim desfinanciá-las. O resultado é a destruição de uma modalidade já há muito negligenciada. A Educação Integral, por sua vez, apresenta uma das situações mais graves em relação a seu cumprimento, como observou a Campanha. Os dois dispositivos da meta 6 caíram entre 2014 e 2021, ao invés de subir. Foram mais de 10 mil escolas e 1 milhão de matrículas perdidas e sem perspectiva de recuperação. 

Subfinanciamento e lacuna de dados: retratos de uma gestão excludente e autoritária

O subfinanciamento da Educação brasileira que inviabiliza o cumprimento do PNE como um todo não é novidade, mas nem por isso é menos preocupante. A meta 20 prevê que o país amplie o investimento público em educação pública progressivamente até o equivalente de 10% do PIB em 2024, uma conquista histórica dos movimentos e organizações que defendem a educação pública e de qualidade. O percentual ficou na faixa dos 5% entre 2015 e 2017, tendo uma queda ao invés de subir. Reflexo das políticas de austeridades que apenas se intensificaram desde o Teto de Gastos. O não cumprimento dessa meta tem efeito cascata em todo o PNE, pois sem novos recursos a implementação das outras metas – que preveem, por exemplo, maior número de matrículas em diferentes níveis – fica inviabilizada.

É significativo que a maior conquista no tema do financiamento educacional dos últimos anos – a constitucionalização do novo Fundeb com maior participação da União -, não tenha conseguido amenizar o cenário de destruição, tamanha sua amplitude. Em nossa última análise do cumprimento do PNE, o professor José Marcelino de Rezende Pinto, vice-presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), alertou que a política de fundos tem suas limitações: precisa de mais investimento. “Sem mais dinheiro, não adianta muito mexer e fazer ajustes nestes mecanismos porque o total permanece o mesmo”, explicou. Outros desafios para o cumprimento dessa meta incluem a regulamentação do CAQ, que vincula o financiamento com parâmetros de qualidade para a educação básica. Apesar de já estar previsto na Lei do novo Fundeb e em outros marcos educacionais, o CAQ ainda não foi implementado. 

Por fim, a lacuna de dados educacionais coroa o cenário preocupante de retrocessos observados nos últimos anos e de descumprimento do PNE. Para realizar a última edição do Balanço do PNE, a campanha teve que se valer da Lei de Acesso à Informação – e mesmo assim 8 metas ainda não tinham dados suficientes. Principalmente pelo atraso na realização do Censo do IBGE e de dados de responsabilidade do INEP, como o Censo da Educação Básica. O INEP, aliás, está sob ataque no governo Bolsonaro desde o início da gestão. Nos últimos anos, tem sofrido com sucessivos desmontes de sua estrutura, que afetam a capacidade da autarquia ligada ao MEC de cumprir suas funções de promover estudos e avaliações periódicas sobre o sistema educacional brasileiro a fim de subsidiar a formulação e implementação de políticas públicas, como o PNE.  É a “tempestade perfeita” para inviabilizar o que se atinjam das metas do Plano Nacional de Educação, como define Márcia Angela Aguiar, da ANPAE. A falta de transparência, marca característica da gestão Bolsonaro, impede que a população tenha acesso aos dados sobre o próprio país e que possa construir políticas transformadoras a partir daí. Os mais afetados, portanto, são sempre os grupos historicamente marginalizados, que são ativamente invisibilizados de programas e ações governamentais. 

O caso de Santo André-SP: a saída é pelo coletivo

Apesar do dramático cenário nacional, não faltam exemplos de ativistas, membros das comunidades escolares, gestoras e gestores comprometidos com o cumprimento dos planos a nível municipal, estadual e nacional. O edital “Planos de educação vivos: vamos contar as suas histórias!”, promovido pela Iniciativa De Olho nos Planos em 2021, mostra alguns desses casos inspiradores. 

Em Santo André (SP), por exemplo, a movimentação de ativistas preocupadas e preocupados com a educação antirracista tem conseguido algumas vitórias, ainda que com muita luta. A cidade teve um longo processo de construção de seu Plano Municipal, fortemente marcado pela participação social. Um de seus aspectos mais importantes é o monitoramento social participativo, realizado através de diversos mecanismos, como o Comitê de Articulação Interfederativa e a implementação dos Indicadores de Qualidade na Educação – Relações Raciais na Escola que gerou um Documento de Recomendações para implementação das Metas 7 e 8 do PME. Tais iniciativas já conseguiram realizar relatórios de monitoramento do plano, formações de educadoras e educadores sobre as leis 10.639/2003 e 11.645/2008, e a sociedade civil tem procurado incidir no Fórum Municipal de Educação e no Conselho Municipal de Educação. 

Um grande desafio, como conta Elly Bayó, educadora e integrante do Conselho Municipal de Educação do município. Ela aponta que a participação da sociedade civil vem sendo limitada e que instâncias fundamentais vem sendo cooptadas para reduzir a incidência da sociedade civil. Mas que, com muita coletividade, o município tem conseguido, por exemplo, retomar o uso dos Indicadores nas escolas e creches do município. “A duras penas e porque estamos pressionando muito o Conselho e os Fóruns de Educação. Nossos debates acabam reverberando no cotidiano escolar, e vemos os Indicadores aparecerem nas escolas de novo, embora isso não significa que eles estejam sendo colocados em prática”, ressalva. Elly destaca a centralidade do Grupo Guardião no âmbito das unidades escolares e da sociedade civil nas instâncias formais de monitoramento. “Temos pautado a importância de usar esse material (Indicadores) que já está pronto, foi feito com recursos públicos e é coerente com o que precisamos fazer na rede municipal”, diz. “Santo André já seria uma referência em educação antirracista se simplesmente tivesse usado o material que já tem há anos”, complementa. Em Santo André, para além das imensas dificuldades em assegurar a participação da sociedade civil nas instâncias formais, há ainda problemas no monitoramento do Plano – corroborando o diagnóstico feito pela Campanha -, como falta de dados oficiais que dificultam o monitoramento com qualidade. “Mas entendo que a saída é a construção da coletividade, apostar em uma coletividade que não se restrinja aos espaços formais, porque apenas esses espaços não dão conta de tudo. Uma coletividade Ubuntu. É preciso irmos e ouvirmos o chão da escola, outras pessoas em outras realidades. A luta é coletiva”, resume Elly.

Uma ideia sobre “Políticas de austeridade na Educação, Reforma do Ensino Médio e militarização das escolas tornam o cumprimento do PNE ainda mais difícil

  1. EDNA CORREA BATISTOTTI

    A análise dos Planos de Educação feito aqui nos ajudam e motivam a continuar nesse processo. É um espaço de resistência!

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