Articulação com o mundo do trabalho e ações intersetoriais: um olhar crítico sobre políticas de transferência de renda no campo da educação

Iniciativas são necessárias e celebradas por especialistas e movimentos sociais, mas sozinhas ainda são insuficientes para diminuir evasão e abandono escolar

Créditos: EBC – Agência Brasil

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira 

A gestão de Camilo Santana no Ministério da Educação (MEC) inaugurou ao menos duas importantes iniciativas de incentivo à permanência estudantil através de programas de transferência de renda: o Pé de Meia e a Rede Nacional de Cursinhos Populares (CPOP). Os programas têm o objetivo de diminuir os índices de abandono e evasão escolar e de incentivar jovens de origens populares e periféricas a ingressarem na universidade. E são iniciativas celebradas pelos movimentos sociais e por especialistas em educação que, no entanto, ressaltam os limites das políticas de transferência de renda para enfrentar as desigualdades educacionais se não articuladas a ações intersetoriais. 

O Pé de Meia, lançado em 2023, tem sido a principal vitrine da atual gestão na Educação e atualmente contempla 4 milhões de estudantes. O programa, que pretende “promover a permanência e a conclusão escolar de estudantes matriculados no ensino médio público” e “democratizar o acesso e reduzir a desigualdade social entre os jovens”, paga valores mensais (de R$200) diretamente a/o estudante de até 24 anos que esteja matriculado na etapa e tenha ao menos 80% de frequência, além de R$1.000 ao final de cada ano do ensino médio concluído, que só podem ser retirados da poupança após a formatura na etapa. No caso de estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA), o incentivo é de R$200 ao comprovar matrícula e R$225 pela frequência. Há ainda um adicional de R$200 pela participação no Enem para todos os beneficiários. Somando todos os incentivos, o valor total pode chegar a R$9.200 por aluna ou aluno ao longo do Ensino Médio. 

Já a recém-criada Rede Nacional de Cursinhos Populares (CPOP), lançada no último mês de março e que ainda está aceitando adesões, deve pagar R$200,00 mensais por até nove meses a estudantes de cursinhos populares que desejam ingressar no ensino superior via Enem, com foco em “estudantes da rede pública socialmente desfavorecidos, especialmente negros e indígenas”. Esses valores serão transferidos via instituições de ensino. Segundo o MEC, o investimento no ciclo 2025-26 é de R$24,8 milhões, direcionados a 108 cursinhos, com expectativa de atender 4.320 estudantes. O órgão projeta investir R$74,5 milhões até 2027, em 324 cursinhos populares. Entre os objetivos declarados do programa estão o fortalecimento de cursinhos pré-vestibulares populares e comunitários; a preparação de estudantes, ampliando a possibilidade de acesso à universidade nesses grupos; a retomada do interesse desses jovens pelo Enem; e a ocupação de vagas em cursos de graduação de instituições federais. 

“Os programas de transferência de renda podem cumprir parcialmente o papel de manter jovens motivados e motivadas a permanecer na escola, entendendo a educação como ferramenta de transformação social. Mas, sozinha, a transferência de renda não é suficiente para isso. Ao contrário, é uma das medidas necessárias, e precisa vir acompanhada de ações em outras áreas”, resume Débora Dias, coordenadora do advocacy e articulação política da Uneafro, organização do movimento negro brasileiro que há 16 anos luta pela educação popular e formação política.

A avaliação de Débora leva em consideração que há vários fatores relacionados à permanência de alunas e alunos na escola, seja no ensino regular ou em cursinhos pré-vestibular. Dados do Censo Escolar da Educação Básica de 2023 e da “Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua 2016-2023, por exemplo, mostram que quase 9 milhões de jovens entre 18 e 29 anos não concluíram o ensino médio e estão fora da escola – sendo o Ensino Médio o principal momento do abandono e da evasão escolar. Entre os motivos estão, historicamente, a necessidade de trabalhar e o desinteresse pela escola, além da gravidez e do trabalho doméstico e/ou de cuidado, dois fatores especialmente relevantes no caso das meninas e mulheres. 

A juventude negra é especialmente atingida, sendo mais de 70% dos 9 milhões de pessoas entre 14 e 29 anos que não completaram o ensino médio, seja por terem abandonado a escola antes do término ou por nunca a terem frequentado. E enquanto cerca de 30% de estudantes brancos entre 18 a 24 anos cursavam o ensino superior, apenas 16,4% de pretos ou pardos da mesma idade o faziam – e o diploma de graduação é obtido por apenas 2.9% dos pretos e pardos entre 18 e 24 anos. 

São esses os números que programas como o Pé de Meia e o CPOP tentam alterar. Débora Dias, da Uneafro, as avalia como fundamentais considerando o cenário socioeconômico e “heranças de governos anteriores – como as reformas do Ensino Médio, trabalhista e previdênciária, além do contexto pós pandêmico – que têm nas juventudes um dos grupos mais atingidos, especialmente as juventudes negras, periféricas, indígenas, quilombolas e em outras situações de vulnerabilidade e de dificuldade de acesso ao trabalho digno”. 

A Rede Nacional de Cursinhos Populares (CPOP) é especialmente celebrada pela Uneafro, pois é uma agenda antiga da organização, que já a tinha levado ao MEC anteriormente. “Os cursinhos populares são uma realidade e transformam as vidas de jovens, foi graças a eles que sonhei com a universidade pública, e foi graças a um programa de transferência de renda [o Bolsa Trabalho, programa municipal de São Paulo], que consegui finalizar o cursinho. Sou a prova real que essas políticas ajudam na permanência e transformam vidas”, defende a ativista que, no entanto, pondera que a proteção da juventude deve ir além disso. “É preciso conectar com políticas de saúde, moradia, emprego, assistência social e com melhores condições para a própria escola pública existir. E essas políticas passam pela valorização de todo o corpo docente e das profissionais da comunidade escolar. Isso sim cria um ciclo de proteção social. Seria interessante, por exemplo, que fosse uma política conectada ao programa Juventude Negra Viva”, diz Débora. 

Sobre a valorização docente vale comentar que os dados do Censo Escolar 2024 evidenciaram que praticamente metade das professoras e professores das redes estaduais de ensino estão em situação temporária (49%). Nas escolas municipais esse percentual chega a 35%. O último balanço do Plano Nacional de Educação 2014-2024 realizado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação também aponta uma queda significativa na porcentagem de docentes ocupantes de cargos de provimento efetivo: em comparação com os números de 2014, houve uma redução de 14 pontos percentuais. 

Políticas de transferência de renda na educação: forças e limitações

A professora do Departamento de Ciências Humanas e Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Maria Carla Corrochano, concorda com a necessidade das ações intersetoriais, pontuando que as pesquisas na área já demonstram que o nível socioeconômico é um fator associado ao abandono escolar, e não apenas por conta da necessidade de ingresso no mundo do trabalho. Por isso, políticas de apoio financeiro são importantes – “essas políticas são fundamentais em um país tão marcado por desigualdades, como é o caso do Brasil”, defende. 

Baseando-se em iniciativas anteriores de apoio financeiro a estudantes – como o Bolsa Trabalho e o Projovem -, a professora celebra uma característica do Pé de Meia: a transferência de renda direta ao estudante, sem intermediação da escola ou família. Para Carla, que foi consultora da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para a elaboração da Agenda e do Plano Nacional de Trabalho Decente para a Juventude no Brasil, é uma iniciativa também importante para a construção da autonomia juvenil. Importante também, em sua visão, é que as únicas contrapartidas exigidas pelo programa sejam a matrícula e a frequência escolar, sem excluir estudantes que trabalham. “Outros programas já exigiram, por exemplo, participação em cursos profissionalizantes ou atividade voluntária na comunidade, mas algumas análises revelaram problemas nessas exigências: atividades que não faziam sentido para os jovens e realizadas em contextos bastante precários”. Entretanto, ela alerta que a frequência mínima exigida, de 80%, precisa ser acompanhada e avaliada de perto, pois pode se mostrar elevada demais para os jovens que o programa pretende alcançar. “Estamos falando de grupos que podem ter trajetórias escolares muito diversas, com dificuldades para alcançar os percentuais de presença e aprovação exigidos. Além disso, pode-se colocar muita pressão nos docentes e nas escolas, uma vez que a frequência baixa ou reprovação podem ocasionar o descadastramento do estudante do Programa”, pondera ela. 

Carla Corrochano reforça também a urgência de abordar os outros múltiplos fatores que levam ao abandono escolar. Dentro da escola, esses fatores incluem condições materiais e de infraestrutura do ambiente escolar e do trabalho docente, além de mudanças curriculares (como as inseridas pelo Novo Ensino Médio) que tornam a relação com a escola ainda menos atraente e conectada com as juventudes e seus territórios. “Tenho percebido [nas pesquisas em curso], por exemplo, que os jovens estão muito ressentidos com o desencontro entre a formação de seus docentes e aquilo que lhes é atribuído para lecionar. Ou seja, que professoras e professores dão disciplinas de áreas que não são especialistas. Os jovens percebem isso e demandam mudanças. E é um alerta para dizer que se não tornarmos a escola melhor em todos os sentidos, temos um problema. Tudo isso pode comprometer o sucesso de um programa”.

Escola e trabalho: excludentes ou complementares?

Além desses fatores, é imprescindível considerar as experiências juvenis com o mundo do trabalho se o objetivo é reduzir o abandono escolar. A PNAD Contínua de 2022, por exemplo, mostrava que mais de 60% dos jovens entre 15 e 29 anos trabalhavam, buscavam trabalho ou combinavam trabalho e estudos. “Ou seja, é preciso pensar políticas que considerem o que os jovens realmente estão fazendo, inclusive para protegê-los de trabalhos ilegais, irregulares ou precários”, diz Carla Corrochano. ”É preciso saber que tipo de trabalho esses jovens estão realizando – e isso inclui os trabalhos de cuidado – e como isso afeta sua frequência escolar”.

Essa abordagem é especialmente importante porque, como os dados mostram, o trabalho é uma realidade para a juventude brasileira. E, se as políticas educacionais de transferência de renda não levarem isso em consideração, podem ter o efeito contrário ao que pretendem no papel. “Se o pensamento for de fazer um programa de transferência de renda para substituir o trabalho, não vai dar certo, não é assim”, resume Eliane Ribeiro, professora da Escola de Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e especialista nas áreas de Políticas Públicas de Educação e Juventude. Eliane é enfática ao destacar esse ponto, não só pelo valor simbólico atrelado ao trabalho quanto pela própria discrepância de valores entre o que é recebido por um programa de apoio estudantil e um trabalho, ainda que precário. “A bolsa de 200 reais não substitui o trabalho, mas ela dá mais apoio, força e incentivo aos jovens. Para substituir o trabalho a bolsa teria que ser de outro valor, mas além disso há um valor agregado ao trabalho na sociedade, em ter seu dinheiro, sua autonomia e poder contribuir. Cansei de ouvir que era o que permitiria comprar um botijão de gás, a fralda do filho, que é o dinheiro do lanche”, lembra, referindo-se às pesquisas que fez com jovens participantes do programa PROJOVEM. 

Ou seja: é preciso pensar a escola e o trabalho de maneira articulada e não concorrente. “É pensar no estudante trabalhador, que é a maioria nas camadas mais pobres, que quer estudar e tem direito a isso”, reforça Eliane. Isso significaria, como destaca a professora, abrir mão do beneficiário “ideal”. “E por isso é importante também avaliar se programas como o Pé de Meia vão conseguir acessar, de fato, os mais vulneráveis. Em um outro projeto implementado em Niterói, por exemplo, percebemos que os beneficiários eram aqueles que já iriam terminar o ensino médio, que tinham famílias atuantes e parceiras na escola, com trajetórias mais lineares”. Esse mesmo alerta é levantado pela professora Carla Corrochano, da UFSCAR, que adverte que as trajetórias das e dos jovens brasileiros são cada vez menos lineares, com muitas entradas e saídas da escola. “É possível que a política acabe funcionando mais para quem já tem trajetórias regulares”. 

O alerta é relevante, uma vez que outras políticas educacionais em curso no Brasil caminham no sentido oposto ao do Pé de Meia, dificultando trajetórias escolares de estudantes trabalhadoras e trabalhadores. A oferta de Ensino Médio no período noturno e de Educação de Jovens e Adultos (EJA), por exemplo, onde estudantes trabalhadores são maioria, vem diminuindo consistentemente: Na rede paulista, havia 85.515 matrículas a menos na EJA presencial em 2023 se comparado a 2020, segundo nota técnica da Rede Escola Pública e Universidade (REPU). Foi uma queda de 61.9% nas matrículas, e a quase totalidade dessas perdas foram no período noturno. Além disso, as matrículas do ensino noturno regular também tiveram queda de 8.7%. Os pesquisadores da REPU ainda levantam a hipótese, na nota técnica, que a expansão do Programa Ensino Integral (PEI) pode ter influência nessa redução, uma vez que estudantes trabalhadores e trabalhadoras muitas vezes só podem frequentar a escola em um turno, e não em período integral. Portanto, acabam se afastando da escola quando estas aderem ao programa PEI.

“É preciso que os programas [educacionais] sejam mais flexíveis para dar conta da diversidade da juventude brasileira e possam articular várias dimensões, como a escola, o trabalho e a vida familiar e social”, diz a professora Eliane Ribeiro, da UNIRIO. A coordenadora de advocacy e articulação política da Uneafro, Débora Dias, afirma que o movimento social vai ficar de olho para que os novos programas não reforcem desigualdades nem deixem ninguém de fora: “As iniciativas ainda são piloto. Vão ser testadas, compreendidas e metrificadas para entendermos seu impacto. E nós vamos acompanhar de perto e, enquanto movimento social, sempre tensionar mais o debate”. 



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