Contenção de gastos no orçamento 2025 pode afetar de maneira mais profunda as políticas sociais
Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira
Ainda não se sabe ao certo como será o Orçamento de 2025 – a votação e aprovação estão atrasadas -, mas é possível dizer que ele não será generoso com as áreas sociais, como saúde, educação e assistência social. Nos últimos meses, o governo federal, especialmente via ministérios da Fazenda e do Planejamento, tem sinalizado cortes, contingenciamentos e outras medidas que podem significar menos recursos para esses setores. E no próximo ano deve ser aprovado o novo Plano Nacional de Educação (PNE), com validade de 10 anos, e que, ao contrário do que vem sinalizando a agenda econômica, prevê um aumento gradual do investimento em Educação.
“Os contigenciamentos que acontecem ao longo do ano atrapalham o cumprimento das metas educacionais, isso quando não há bloqueio de recursos. São componentes que atrapalham muito a gestão e o direito à educação, uma vez que se perde qualquer possibilidade de planejamento”, explica Nelson Amaral, professor da UFG e atual presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca).
Além disso, um montante significativo do orçamento é hoje distribuído via emendas parlamentares – mecanismo com muito menos controle social e transparência. “O Legislativo atualmente é responsável pela execução de parte do Orçamento, e há uma certa chantagem do Congresso”, alerta Cleo Manhas, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), organização que monitora o orçamento público sob a lente dos direitos humanos.
Todos os anos, o orçamento do país é definido pela Lei Orçamentária Anual (LOA), cujo projeto é enviado pelo Executivo ao Congresso até dia 31 de agosto. Neste ano, o governo ainda não enviou o projeto referente a 2025 porque o passo anterior está atrasado. Para elaborar a LOA, é preciso que a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) já tenha sido votada – o que ainda não aconteceu. A LDO dá as diretrizes para o governo construir a LOA, sinalizando quais serão as prioridades orçamentárias. Ela deve ser aprovada pelo Congresso até julho, mas neste ano a Casa Legislativa entrou em recesso sem votá-la. Por isso ainda não é possível saber com certeza como estará distribuído o Orçamento para 2025. Ele segue em disputa, tendo as áreas sociais como alvos prioritários.
Teto de Gastos, Arcabouço Fiscal: como o governo pode usar o dinheiro que arrecada
Atualmente é o arcabouço fiscal, aprovado em 2023, que diz quais são as regras de gastos do dinheiro público. Ele substituiu a Emenda Constitucional 95 (o Teto de Gastos), promulgada em 2016, e que congelou os gastos públicos. Segundo a EC 95, os gastos em áreas como saúde e educação só podiam subir de acordo com a inflação, não havendo nenhum aumento real no investimento. O governo Bolsonaro descumpriu muitas vezes o Teto de Gastos, mas nunca para investir nas áreas sociais. Essa política de austeridade, sem investimentos reais em Educação, afetou fortemente o planejamento educacional e praticamente inviabilizou o cumprimento do atual Plano Nacional de Educação.
O arcabouço fiscal em vigor prevê que as despesas podem aumentar além da inflação, mas que o aumento não pode ultrapassar um certo patamar e deve ser compatível com o aumento da arrecadação. Ou seja, depende bastante da receita e, apesar de mais flexível, ainda impõe um limite. O arcabouço deve cumprir todas as obrigações constitucionais (como os pisos para Educação e Saúde), não se sobrepondo a elas.
Quase tudo – cerca de 90% – que o governo arrecada já tem destino certo. No caso da Educação, há o Fundeb e o piso constitucional, previsto também para outras áreas. Por conta disso, desde a década de 90 existe um mecanismo que autoriza que parte (20%) dessa receita comprometida seja desvinculada. Ou seja, que possa ser gasta em qualquer área. O mecanismo hoje se chama Desvinculação de Receitas da União (DRU). Criado para ser provisório, acabou sendo prorrogado diversas vezes e está em vigor até dia 31 de dezembro de 2024. No quebra-cabeça do orçamento para 2025, cogita-se prorrogar a DRU para aumentar a receita sem destino pré-determinado.
Essa manobra é interessante para o governo principalmente porque hoje mais da metade dos recursos discricionários – os não obrigatórios, não “carimbados” – é distribuída pelo Congresso através das emendas parlamentares. Por isso, diz-se que há uma “disputa entre Poderes” quando o assunto é orçamento, com o Executivo tendo que dividir o espaço com o Legislativo. Um ponto importante sobre as emendas parlamentares é que são um mecanismo com menos transparência e controle social do que o recurso via leis e programas já estabelecidos, que passam, por exemplo, por análise de Tribunais de Contas.
“O que acontece hoje no Brasil é uma situação muito complexa e paradoxal de briga entre poderes pelo controle do orçamento. A pequena parte discricionária, onde estão os investimentos em novos programas e que o governo pode decidir onde alocar, está migrando para as mãos do Congresso, que hoje controla quase 60% desse tipo de recurso. Como a maior parte dos recursos não tem essa flexibilidade, isso significa que o governo tem que disputar a discriccionaridade com o Congresso. E hoje ele está de certa forma rendido nessa disputa, pois há cada vez mais emendas impositivas”, resume a Ursula Peres, pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e professora do curso de Gestão de Políticas Públicas na EACH/USP. “E, para abrir espaço no Orçamento, o governo tem caminhado mais para reduzir as despesas obrigatórias do que para brigar com o parlamento pelos recursos de investimentos, que são transformados em emenda e muitas vezes sem qualquer controle sobre sua execução”, diz Cleo Manhas, do Inesc.
Financiamento da Educação: principais mecanismos
A Educação pública tem várias fontes de financiamento. Na educação básica, a principal é o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). O Fundeb é um repasse obrigatório em todas as esferas (União, estados e municípios) e subsidia cerca de 40 milhões de matrículas, com mecanismos concebidos para enfrentar as desigualdades educacionais. Em 2020, ele foi alterado e constitucionalizado, tornando-se permanente. Nessa alteração, mais que dobrou a contribuição da União ao Fundeb. Ou seja, o governo federal é quem mais entra com recursos, repassando-os a estados e municípios – e esse aporte vai aumentar até pelo menos 2026. Além de ser um repasse obrigatório, o Fundeb ficou de fora do novo arcabouço fiscal, o que implica que as regras que limitam os gastos do governo não se aplicam a ele.
Outro compromisso da União é investir em educação ao menos 18% de tudo que é arrecadado com impostos – é o piso constitucional. Aprovado na Constituição Federal de 1988, é um compromisso orçamentário obrigatório (também há um piso para a Saúde de 15%, mas com origem diferente dos recursos). O piso também ficou limitado ao reajuste da inflação enquanto o Teto de Gastos esteve em vigor (2016-23).
Além dos gastos obrigatórios, há os chamados recursos discricionários, que são os não obrigatórios – e por isso, em geral são os mais ameaçados quando se fala em corte de gastos e controle de orçamento. Na educação, estão entre os gastos discricionários: transporte e alimentação escolar, livros didáticos, Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), os repasses a universidades federais e recursos de assistência estudantil.
O atual Plano Nacional de Educação determina que o total investido em Educação corresponda a 10% do PIB brasileiro – meta que nunca foi cumprida, sendo o patamar atual de cerca de 5.5%. O projeto do novo PNE enviado pelo Executivo ao Congresso reproduz essa meta para o próximo decênio.
Quais as ameaças ao financiamento da Educação
Muitas leis e programas já asseguram e regulamentam os mecanismos de financiamento da Educação, mas têm sido descumpridos ao longo dos anos sem grandes consequências. Ou impactados por políticas de austeridade fiscal, como o Teto de Gastos, que fez com que a Educação deixasse de receber mais de R$7 bilhões. “O financiamento da educação caiu consideravelmente durante a vigência do Teto de Gastos e no governo Bolsonaro, mas não foi só aí, não podemos nivelar por baixo. Se olharmos o PNE percebemos que ao longo dos 10 anos houve retrocesso. Teve Teto, Bolsonaro e pandemia, mas mesmo em governos democráticos não estamos aplicando o que deveríamos”, reforça Cleo Manhas, do INESC, ressaltando o subfinanciamento histórico da Educação pública brasileira.
As regras fiscais – como o Teto de Gastos e o Arcabouço Fiscal em vigor – estabelecem limites para os gastos sociais, mas não fazem o mesmo para todos os outros gastos do governo. Fica de fora, por exemplo, o pagamento de juros da dívida pública. “Por que falamos de austeridade fiscal o tempo todo? Em DRU, em acabar com vinculações constitucionais? Porque o tempo todo se sinaliza e se dá satisfações ao ‘mercado’ para garantir que vai haver pagamento dos juros. As políticas de austeridade não mexem na dívida pública, no mercado financeiro”, ressalta Nelson Amaral, presidente da Fineduca. “Austeridade é uma palavra difícil pra dizer que estamos cortando dinheiro das políticas que te alcançam”, resume ele.
Cleo Manhas, do INESC, reforça essa crítica, ressaltando que, quando o assunto é Orçamento, o governo federal é pressionado de todos os lados. “Por que a crítica é sempre do governo ‘gastar muito’ e sobre a necessidade de uma regra fiscal rígida para conter os gastos? É porque estão falando de gastos sociais. Um dos nossos maiores desafios é mostrar que essa narrativa é uma falácia e que na verdade o governo gasta muito menos do que deveria gastar com sua população, especialmente a mais empobrecida e vulnerabilizada”, diz.
Com o orçamento tão “pressionado” para os gastos sociais, a tendência é que as despesas discricionárias – não obrigatórias – sejam as mais afetadas. Na avaliação de Ursula Peres, da EACH/USP, o Ensino Superior, especialmente universidades federais, pode estar particularmente vulnerável. “A educação básica tem uma certa proteção por causa do Fundeb, que é obrigatório. Além disso, a maior parte dos recursos de emendas parlamentares tendem a ir para municípios, responsáveis também pela educação básica. São as verbas discricionárias que permitem a compra de equipamentos, a manutenção de laboratórios, condições de infraestrutura nas universidades. Nada disso é obrigatório, no Ensino Superior só são gastos obrigatórios os salários e a manutenção básica” explica. Ou seja, a expansão do ensino superior público fica ainda mais difícil, e há uma tendência a uma precarização dessas instituições – o que afeta majoritariamente as populações já marginalizadas.
No entanto, até mesmo os repasses obrigatórios para a Educação podem estar ameaçados. Em 2024, falou-se publicamente sobre a possibilidade de alterar as regras do piso constitucional para Saúde e Educação, limitando-os a 2,5% de crescimento acima da inflação.
Isso porque esse é um investimento que está fora do arcabouço fiscal e sob uma regra diferente, podendo crescer mais do que as outras despesas incluídas no arcabouço. Por isso o desejo do governo de limitá-lo, sob argumento de não pressionar ainda mais os gastos em outras áreas e/ou gastos não obrigatório.
A Iniciativa De Olho nos Planos alertou para esse descompasso – e sua potencial ameaça ao financiamento em saúde e educação – ainda em 2023. O advogado e professor da UFABC, Salomão Ximenes, apontou à época que o Novo Arcabouço Fiscal, se aprovado, poderia, como lei complementar, obrigar uma mudança na Constituição com consequências para os pisos constitucionais. O que se mostrou verdadeiro, já que o Ministro da Fazenda e ex-Ministro da Educação, Fernando Haddad, cogitou alterá-los. Segundo o que circulou na imprensa em junho, a ideia só não avançou porque o presidente Lula se opôs. Mas como a LOA ainda não foi aprovada, não é possível saber se o risco foi totalmente descartado.
Expectativas para o orçamento e financiamento da Educação em 2025
Nem Cleo Manhas, Nelson Amaral ou Ursula Peres acreditam que os pisos constitucionais serão alterados para o próximo ano, mas concordam que as leis orçamentárias e a política econômica de forma mais ampla devem cercear ou limitar ainda mais alguns gastos em Educação. A professora da EACH/USP, Ursula Peres, destaca uma possível nova prorrogação da Desvinculação de Receitas da União (DRU) e acredita que o governo deve propor um orçamento “no limite do limite”. O presidente da Fineduca, Nelson Amaral, vê com preocupação que a defesa do piso constitucional tenha sido feita pelo próprio Presidente da República e não pelo ex-ministro da Educação, Fernando Haddad. “Acredito que para 2025 o governo deve fazer de tudo para aumentar a receita, mas acho que melhorias só se muito pontuais, não vejo nenhuma grande sinalização em relação à educação e saúde, ao cumprimento do PNE, até porque o arcabouço fiscal não permite”, avalia, enfatizando que a situação das universidades federais deve continuar limítrofe e exigindo mobilização de docentes, entidades estudantis e movimentos sociais.
Já Cleo Manhas, assessora política do INESC, alerta para movimentos que reduzam as fontes de financiamento para as áreas sociais. Por exemplo, alterações nas cestas de impostos. “Outra possibilidade é alterar o conceito de “receitas correntes líquidas”, que é de onde sai o dinheiro mínimo da saúde. O risco está aí o tempo todo, e educação, saúde, previdência e assistência social são as áreas em maior risco”, diz.
Para Ursula Peres, a educação pode ser alvo prioritário por receber maior de repasse da União se comparada, por exemplo, à saúde, ainda que os recursos para a educação sejam insuficientes para avançarmos na garantia de uma educação de qualidade e para a implementação das metas e estratégias do PNE. “Não é que a educação tenha financiamento suficiente, mas vem recebendo mais recursos da União, especialmente desde a aprovação do Novo Fundeb”, explica ela. “Mas reduzir os recursos em educação afeta direitos básicos e universais. E considerando, por exemplo, os mecanismos do Fundeb para aportar mais dinheiro para escolas que mais precisam, mexer nesses recursos é colocar em risco toda uma agenda de redução de desigualdades”. A pesquisadora do Centro de Estudos da Métrópole, Ursula Peres, destaca a importância de uma reforma tributária que assegure mais receitas para o governo como possibilidade de conter esses cortes – mas que ainda é incerta.
Como o novo PNE e o planejamento educacional podem ser afetados
Para quem olha de perto a política econômica atrelada ao direito à educação, um aspecto é consenso: sob a vigência do arcabouço fiscal, vai ser muito difícil aumentar os recursos para Educação segundo o que determina o PNE. “A meta de 10% não pode ser só figurativa, até porque há cálculos que a justificam e que mostram como precisamos desses recursos”, reforça Cleo Manhas, do Inesc. Ela se refere à Nota Técnica da Fineduca divulgada em dezembro de 2023, em que a entidade defende a manutenção dos 10% do PIB no novo PNE, mas sugere metas intermediárias diferentes das propostas pelo governo para facilitar seu cumprimento. O presidente da Fineduca, Nelson Amaral, é categórico ao dizer que a inclusão dessa meta por parte do governo foi positiva, mas que a análise do contexto traz dúvidas se ela realmente vai ser cumprida. “Tudo traz a questão: ela foi colocada para valer ou para satisfazer a base do governo?”.
Ursula Peres, da EACH/USP, enfatiza ainda o papel crucial de coordenação entre as esferas de poder para fazer valer o PNE e todas as políticas educacionais. Tema que ressalta a urgência do Sistema Nacional de Educação, que ainda não foi regulamentado. “O PNE depende das três esferas colocando e organizando recursos. Para um direito de fato ser garantido, não basta estar na Constituição, tem que estar no orçamento, e das três esferas. O direito à educação depende de uma ação coordenada e ajustada de União, estados e municípios remando para o mesmo lado”.
Mas em um contexto de cerceamento progressivo aos gastos sociais, a assessora política do INESC, Cleo Manhas, lembra da importância do campo progressista manter e sustentar um posicionamento crítico com relação aos cortes para as políticas sociais. “Sempre temos o ‘medo’ de fortalecer a extrema direita, mas o que de fato a fortalece é não falar. Eles nunca vão cobrar mais gastos sociais. Nós precisamos disputar essa narrativa e lembrar que a política econômica não é um fim em si mesmo, ela é um meio. O que de fato é um fim é saúde e educação pública e de qualidade para todas e todos”.