Acesso ao Ensino Superior e escolha profissional, Infraestrutura e valorização das professoras, discussões sobre raça, gênero e sexualidade, senso crítico e participação estudantil estão entre as principais demandas das/os jovens
Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira
Desde que se intensificou a luta pela revogação do Novo Ensino Médio (NEM), muito tem se discutido sobre o que seria um Ensino Médio de qualidade. Uma pergunta que pressupõe que não existe alternativa ao modelo em vigor desde 2017, imposto sem escuta de jovens estudantes e comunidades escolares. Mas não faltam pessoas propondo novos modelos e ideias para a etapa. E, igualmente importante, propondo que essa discussão seja feita coletivamente e não imposta de cima para baixo, e que as e os estudantes – sejam parte fundamental do processo.
Raramente ouvidas/os, elas e eles sentem na pele os efeitos de uma reforma que precarizou ainda mais as redes públicas, aumentando o abismo dentro do sistema público mas também em relação à rede privada. Estudantes trabalhadoras e trabalhadores, cursando formação técnico-profissional, EJA ou do período noturno são particularmente penalizados. Diretamente afetados e sentindo seu futuro ameaçado pela Reforma, estudantes têm sim muitas propostas de como fazer diferente e onde. E a discussão sobre qualidade do Ensino Médio precisa incluí-los.
Coletamos algumas dessas vozes nos últimos meses em atividades e formações do projeto Tô no Rumo, da Ação Educativa, em manifestações #RevogaNEM e no diálogo direto com jovens. Perguntados sobre que Ensino Médio querem, além da revogação do NEM e o fim dos itinerários formativos, alguns temas são mais prevalentes: que as escolas possam prepará-los melhor para o ENEM para que tenham melhores chances de ingressar em universidades públicas; debates e formação crítica sobre temas como política e democracia, além de saúde mental, gênero, raça, sexualidade, violências e discriminações; maior participação estudantil; escolas com melhor infraestrutura e que valorize docentes e todas as profissionais.
Compartilhamos abaixo algumas das respostas e reflexões.
Acesso ao Ensino Superior, escolha profissional e jovens trabalhadoras/es
As jovens e os jovens com quem conversamos compartilham uma frustração: a insegurança em prestar o ENEM e demais vestibulares. Além de serem sequestradas/os pelos chamados itinerários formativos, soma-se a isso, segundo elas/es, a falta de informações e de incentivo ao acesso ao Ensino Superior. E os problemas se agravam para estudantes que trabalham e do noturno, ainda mais afetadas/os pelo enxugamento da carga horária.
Elas e eles sentem falta de uma escola que oriente questões mais amplas ou mais básicas, como o próprio processo de inscrição nos vestibulares, de isenção das taxas, de escolha de carreiras, a possibilidade de auxílio financeiro através do Prouni e do Fies. Uma educação que mostre mais possibilidades de futuro.
“Queria que o Ensino Médio focasse nos alunos entrarem nas universidades públicas, porque é exatamente o que as escolas particulares fazem. Eu nunca tive um simulado da Fuvest, por exemplo. Se a gente soubesse que tem as mesmas oportunidades para entrar nas universidades públicas, seria uma motivação a mais. As feiras de profissões que eu fui, fui por conta própria, nunca foi a escola, porque o sistema quer mais é por a gente como operário, trabalhador. Acaba que para algumas pessoas [o acesso à universidade] é uma escada rolante, para outras é um muro que precisa ser escalado” (Esther, 3º ano do EM).
“Um bom Ensino Médio precisa melhorar a qualidade do ensino e realmente preparar os alunos para o vestibular. Eu achava que estava arrasando, mas quando prestei vi que não sabia o básico. Tem que melhorar, mas não só sobre o que cai no vestibular mas também informações sobre o próprio processo, sabe? Eu não sabia que algumas questões valiam mais, que eu podia entrar na USP com a minha nota do ENEM, não sabia muita coisa. Também seria legal uma orientação vocacional, porque saí da escola sem saber o que eu queria fazer na faculdade, não sinto que minha escola me ajudou (Carlos Eduardo, concluiu o Ensino Médio em 2022).
“O Ensino Médio que eu queria era com uma preparação baseada no perfil dos alunos. Por exemplo, os alunos do noturno em geral trabalham, a escola tem que se basear nisso. Nossa carga horária já é muito reduzida, vai ter aluno do terceiro ano que não sabe fazer uma redação, uma conta de divisão. Como ele vai continuar no emprego ou procurar uma oportunidade melhor se não tem a oportunidade de evoluir e aprender no lugar de evoluir e aprender, que é a escola? Hoje, marketing ocupa metade da minha grade, eu vou para a escola aprender a subir um vídeo no Youtube. Isso talvez funcionasse no ensino integral, mas não no noturno com carga horária reduzida. Quando eu confrontei o diretor da escola sobre isso, ouvi que a proposta era o aluno entrar no mercado de trabalho e não necessariamente no ensino superior. Ou seja, como vou conseguir ingressar por minha escolha se não tenho a oportunidade de aprender o básico? Se não dá nem para ter uma oportunidade de emprego melhor, quem dirá ingressar no ensino superior.
Muitos amigos nem foram prestar vestibular para universidades públicas porque eles acham que não vão passar, aí nem vão prestar, preferem trabalhar e pagar uma particular. E também vários alunos da minha escola vão ficar sem fazer ENEM porque não sabiam do prazo de isenção. Se a gente não tem orientação é muito difícil. Por outro lado, uma das melhores coisas que me aconteceu foi uma professora trazer ex-alunos da mesma origem que a gente e que fizeram universidade e estão em diversas carreiras. Decidi fazer ENEM por causa disso, eu consegui me visualizar na carreira das pessoas que foram na escola” (Josué, 3º ano do EM).
Além do acesso ao Ensino Superior, estudantes também ressaltaram a importância do Ensino Médio tratar dos caminhos existentes para a formação profissional.
“Em um olhar mais esperançoso, acho que toda escola deveria ter apoio para caminhos diferentes, não só a universidade. Não é todo mundo que quer seguir esse caminho e seria importante apresentar as opções para escolhermos algo que gostamos e que possamos contribuir para a comunidade. Tipo aulas de teatro.” (Biah, 3º ano do EM)
“Um Ensino Médio de qualidade, é o que me proporciona diversas experiências, me dá um bom ensino e me prepara bem para vida adulta e para o mercado de trabalho” (Pamela, 2º ano do EM).
Outras conversas com estudantes que participaram das oficinas de formação do projeto Tô No Rumo evidenciaram que o técnico profissionalizante ofertado pelas escolas de ensino médio regular não atendem às suas expectativas de formação profissional:
“O ensino médio que eu quero é que essas aulas adicionais “profissionalizantes” não interfiram no ensino básico” (estudante EM). (leia mais aqui)
Senso crítico, participação e mobilização estudantil
Outro ponto fundamental da discussão sobre qualidade do Ensino Médio na visão de estudantes é a participação e mobilização estudantil, além de uma formação crítica sobre a realidade.
“Não vejo muita participação dos alunos e professores na escola, acho que mesmo que os alunos concordem com uma causa, como quando protestamos contra a PEI, ainda não tem mobilização. Os pais achavam que era coisa de aluno preguiçoso que queria menos aula. Acho que o Ensino Médio tem que fomentar o pensamento crítico dos alunos. (Biah, 3º ano do EM).
“Nosso movimento precisa mobilizar estudantes de escolas públicas e particulares, mobilizar estudantes universitários, pois isso vai afetar nosso futuro” (Bruna, 2º ano do EM).
“Queremos um ensino médio combativo, popular no qual os estudantes possam ser o que quiserem. Um Ensino Médio que ensine pensamento crítico, ciências humanas e que as matérias que caem no vestibular sejam ensinadas nas aulas”. (Mateus, 1º ano do EM).
Há relatos sobre a realidade e precarização do ensino noturno que atende, em sua maioria, estudantes trabalhadoras e trabalhadores. E de como é importante o apoio e incentivo por parte da gestão para que a participação aconteça independentemente do turno que estudam.
“Acredito que estudantes iam ter mais tempo para mobilizações e ações tipo participar do grêmio se tivessem apoio da diretoria e não que tivessem que fazer tudo por iniciativa própria. Poderíamos desenvolver mais, mas como fazer se os alunos do noturno já trabalham, chegam na escola cansados do trabalho? No noturno está todo mundo cansado, professor e alunos trabalharam o dia inteiro. Então sinto também que não tem a mesma preocupação e o mesmo apoio do que nos outros horários, a carga horária é menor..não tem tanto tempo de conversar com os alunos, vai ser passado o que é preciso para passar de ano” (Esther, 3º ano do EM).
A escuta de jovens para a construção de uma proposta que faça sentido e gere transformação na vida de estudantes também foi colocada como uma demanda do grupo durante os encontros de formação do projeto Tô No Rumo:
“Queremos ser ouvidos”
“Um ensino que leva em conta o saber e opiniões dos alunos”
“Precisamos que o Grêmio seja mais ouvido e realmente lutem com os alunos”
“Ensino médio com mais escuta, menos violência e mais acolhimento”
“Queremos debates para construirmos uma mudança”
Na perspectiva da formação crítica e do desenvolvimento, inclusive em processos de formação profissional, estudantes ressaltaram durante o encontro a cultura como um campo de possibilidades a ser trabalho pela escola:
“A escola mata artistas. Queremos mais cultura e arte!”
“Valorização da criatividade, respeito, desenvolvimento de todos”
Gênero, raça e sexualidade
Muitas iniciativas juvenis, como as selecionadas pelo Edital “EM LUTA – Estudantes por um Ensino Médio de Qualidade!”, promovido pelo projeto Tô no Rumo, em 2022, têm como eixos estruturantes de suas propostas as agendas de gênero, raça e sexualidade. Essas são agendas que, para estudantes, se relacionam com inclusão, respeito, combate à violência e educação de qualidade.
“Acho que discussões de gênero, raça e sexualidade precisam fazer parte da escola porque isso abre a nossa mente para incluir pessoas” (Esther, 3º ano do EM).
“Os debates na escola também não aconteciam nunca no noturno. Sobre racismo, palestras de Dia Internacional da Mulher, essas coisas. É complicado porque o aluno já chega sem vontade de estudar e ainda não tem incentivo”. (Carlos Eduardo, concluiu o Ensino Médio em 2022).
Relatos durante a formação do projeto Tô No Rumo:
“Menos bullying nas escolas”
“Uma escola sem preconceito em que todos sejam respeitados”
“Mais pautas LGBTQIAPN+, raciais e educação de qualidade.”
Infraestrutura, alimentação e valorização das profissionais da educação
Sobre os insumos necessários para uma boa escola, estudantes ressaltaram a importância da existência e utilização de laboratórios e bibliotecas, alimentação e materiais de qualidade e internet.
“O Ensino Médio precisa de mais investimento para os alunos se interessarem mais pelas aulas. Na minha escola tem laboratório, sala de informática, vários locais, mas não são usados. A biblioteca está fechada há anos. Isso faz a gente perder a vontade de estudar, tanto que muitos alunos vão para a escola pela parte social e não pelo estudo” (Esther, 3º ano do EM).
“Mais biblioteca nas escolas” (depoimento de estudante durante encontro de formação do projeto TNR).
“Ensino de forma digna todos os dias. Que possamos ter almoço para estar na escola, precisamos do passe-livre e de ônibus de qualidade para acessar outros lugares” (Maria Helena, 3º ano do EM com ensino técnico).
“Refeições saudáveis” (depoimento de estudante durante encontro de formação do projeto TNR).
“Quero um Ensino Médio que não tenha somente material digital porque não é todo mundo que tem acesso e isso só dificulta a educação e o ingresso às universidades” (Duda, 2º ano do EM)
Chama atenção o depoimento de um estudante que relatou falta de água no período noturno, além da falta de professoras/es. Vale comentar que a escola que ele estudava está situada na região central de um município da Região Metropolitana de São Paulo.
“(…) cheguei a ter aulas eletivas, sobre tecnologia, ter projeto de vida. Mas quando mudei para o noturno não tinha nada disso, achei totalmente negligenciado. Chegamos a ter período em que só faltava água no noturno e só o noturno ficava sem aula” (Carlos Eduardo, concluiu o Ensino Médio em 2022).
A valorização das profissionais da educação também é uma demanda de jovens estudantes.
“Eu adoro minha professora de artes porque é quem consegue despertar senso crítico nos alunos (…) Se o Novo Ensino Médio fosse com professores assim seria muito melhor, por que onde mais construir debates políticos de forma certa se não na escola? Se for deixar para o mundo, vai ter problema, porque tem muito preconceito e ignorância. A escola que deveria preparar a gente pro mundo, ensinar o pensamento crítico” (Biah, 3º ano do EM).
“Profissionais qualificados e preparados” (depoimento de estudante durante encontro de formação do projeto TNR).
E mais: que EM queremos?
Vale destacar ainda outras agendas que aparecem como demandas para jovens, como a da Saúde Mental. O grupo de jovens do Edital “EM LUTA – Estudantes por um Ensino Médio de Qualidade!” elegeu essa uma agenda comum a todos os projetos e demandaram um encontro específico para discuti-la.
“O Ensino Médio de qualidade é aquele que prioriza a saúde mental do aluno e que traz oportunidade para todo mundo” (Rafaela, 3º ano do EM).
Outro ponto que tem sido muito discutido com a implantação do Novo Ensino Médio é contra a privatização da educação.
“A educação pública atual está num processo de privatização e o Novo Ensino Médio é uma tentativa deliberada de aumentar essa distância e assim justificar a privatização das escolas. Por exemplo, vão dificultar e piorar o ensino público, menos pessoas vão entrar nas universidades vindo de escolas públicas e vão usar esses dados para dizer que escolas públicas não funcionam e que é preciso privatizar, o que vai piorar ainda mais o Brasil” (Gustavo, 3º ano do EM).
Por fim, vale destacar a fala de um estudante que relaciona a oferta de um Ensino Médio de qualidade com a garantia do direito humano à educação para todes.
O Ensino Médio que eu quero é um Ensino Médio para todas, todos e todes. A educação não é para ser um luxo, é uma coisa que todas as pessoas precisam ter, é um direito de nascença como alimentação, moradia. É o mínimo para a pessoa ter liberdade para pensar” (Antonio, 2º ano do EM).