Apesar de reconhecer as limitações da Lei 13.415/2017, a proposta ainda precisa ser aprimorada, principalmente com relação ao Ensino Técnico Profissionalizante
Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira
Alvo de inúmeras críticas por acirrar desigualdades educacionais, o Novo Ensino Médio (NEM) vai voltar ao Congresso Nacional em breve, podendo sofrer alterações e inclusive ser revogado. Esse importante passo para a garantia do direito à educação vem após mudanças sugeridas pelo próprio Ministério da Educação (MEC), realizadas após consulta pública sobre o NEM.
A nova versão sugerida pelo governo – e que será novamente analisada no Legislativo -, apesar de incorporar várias demandas da sociedade civil, continua insuficiente ou vaga demais em alguns pontos, especialmente nas propostas para o Ensino Técnico Profissionalizante, modalidade que permite várias exceções no ensino e na carga horária, potencialmente piorando a qualidade do que é ofertado aos estudantes se comparado ao modelo de educação integrada, a exemplo de Escolas Técnicas Estaduais e Institutos Federais de Educação.
Consulta Pública: a sociedade quer outro Ensino Médio
Entre 9 de março e 6 de julho de 2023, o MEC realizou Consulta Pública para Avaliação e Reestruturação da Política Nacional de Ensino Médio, ouvindo diferentes atores da sociedade. Com base nas informações colhidas nessa consulta pública, a Pasta divulgou, no início de agosto, sugestões de alterações na Lei 13.415/2017, que instituiu o Novo Ensino Médio. O Ministério, que não divulgou os dados coletados mas sim um resumo deles, apresentou 12 áreas críticas e propôs sugestões em seis delas. Com base nisso, vai construir um texto que precisará passar pelo Congresso. Órgãos e entidades da área da Educação – como a Campanha, a CNTE e o Fórum Nacional de Educação – puderam enviar suas considerações sobre a proposta para ajudar a construir a essa versão final a ser enviada ao Legislativo.
Como apontou a CNTE em sua análise, a consulta pública expôs críticas a praticamente todos os pontos do Novo Ensino Médio, como os itinerários formativos, a diminuição da carga horária, a organização curricular, a possibilidade de ensino à distância (EaD), a falta de infraestrutura nas escolas brasileiras para cumprir com a lei e o consequente aumento nas desigualdades educacionais causado por esse processo.
A partir desse diagnóstico, o MEC propôs recompor a carga horária destinada à Formação Geral Básica (FGB) para 2.400 horas; reduzir o número de itinerários formativos – que passam a se chamar “percursos de aprofundamento e integração de estudos” – de cinco para três; e o fim do uso de EAD na Formação Geral Básica. No entanto, essas mudanças não se aplicam a estudantes que estejam cursando o Ensino Técnico Profissionalizante, pois para elas e eles ainda é possível que a carga horária da FGB seja menor (de 2.200 horas, as quais se somariam 800 a 1000 horas de cursos técnicos) e que até 20% da oferta de Educação Profissional Técnica seja ofertada via EAD. Além disso, a proposta do Ministério mantém a possibilidade de contratação via notório saber na formação técnica profissional, o que não apenas pode trazer problemas para a qualidade do ensino como é um retrocesso para a valorização docente.
Ainda em relação ao currículo, o MEC sugere que passem a compor a formação básica geral (FGB): arte, educação física, literatura, história, sociologia, filosofia, geografia, química, física, biologia, educação digital e espanhol como alternativa ao inglês. Já os itinerários formativos seriam nas áreas de: Linguagens, matemática e ciências da natureza; Linguagens, matemática e ciências humanas e sociais; Formação técnica e profissional. Em relação ao ENEM, o governo propõe que a edição de 2024 permaneça atrelada à FGB e que seu formato para os anos seguintes seja objeto de debate no contexto da elaboração do novo Plano Nacional de Educação (PNE).
Para diferentes representantes do campo comprometido com a educação pública, laica e de qualidade para todas e todos, as propostas apresentadas pelo governo são uma boa notícia ao reconhecer as limitações do modelo instituído pela Lei 13.415/2017 – tanto é que requerem uma nova análise legislativa. As propostas também incorporam sugestões do campo progressista, como o aumento da carga horária da FGB, o que a Campanha Nacional pelo Direito à Educação chamou de “passo crucial para a garantia de uma formação sólida de nossos estudantes”. A entidade – que participou ativamente do processo da Consulta Pública, inclusive criticando sua metodologia em nota – destacou também o recuo no uso de Educação a Distância, mas defende que ainda é necessário “avançar para a garantia de educação 100% presencial, em todas as suas variantes, sem exceção”. Quanto à organização curricular, a Campanha vê avanços, mas acredita que a proposta ainda possa ser aperfeiçoada – a entidade, bem como a CNTE, por exemplo, defendem que o Espanhol não seja uma alternativa ao inglês mas sim complementar. A Campanha Nacional pelo Direito à Educação também mantém a crítica aos itinerários formativos, ainda que ganhem outro nome, defendendo que eles constem como “parte diversificada dos currículos”.
Para Andressa Pellanda, Coordenadora-Geral da Campanha, é necessário implementar “uma política abrangente a nível nacional que confronte e se esforce para eliminar as vastas disparidades no âmbito educacional que marcam a disponibilidade do ensino médio. Isso vai além das meras alterações no currículo, requerendo também o encerramento da insuficiência de recursos financeiros”. Visão compartilhada por Sérgio Stoco, professor de Políticas Públicas na Unifesp, membro do Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES) e do Fórum Nacional de Educação (FNE), para quem a consulta foi um processo de mediação importante com a sociedade e com os movimentos sociais da Educação, mas ainda com muitas limitações conceituais quanto a que Ensino Médio se quer e como construí-lo. Ele defende que uma política para o Ensino Médio deve ser construída com um Sistema Nacional de Educação (SNE) definido, com um novo PNE em vigor, bem como com ampla escuta e participação da sociedade e, principalmente, com novos investimentos nesta etapa de ensino.
A falta de novos recursos para o Ensino Médio é um dos pontos mais criticados da Reforma, já que tende a aumentar as desigualdades entre as redes pública e privada e mesmo entre as redes públicas. As flexibilizações – como da formação geral básica e dos modelos de contratação docente – também são muito criticadas por precarizar essa etapa. “A Reforma não pretende trazer mudanças efetivas ou dar direcionamento político à educação nacional, mas sim tenta regulamentar a flexibilização. Seu objetivo não é propor nada, e sim deixar abertas as portas pra fazer qualquer coisa”, resume Sérgio Stoco, enfatizando que mesmo possíveis pontos positivos da Reforma já estavam contemplados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), não necessitando de lei específica.
Ensino Técnico profissionalizante: pouca definição e propostas aquém do necessário
Se mesmo após as mudanças sugeridas pelo MEC a Lei 13.415 ainda tem problemas, a situação se agrava quando olhamos especificamente para o Ensino Técnico e Profissionalizante. A respeito dessa modalidade, vários pontos ainda estão pouco definidos. E os que estão mais desenhados mantêm retrocessos, como a menor carga horária na formação geral básica (2200h, ante as 2400h da formação geral) e a possibilidade de até 20% do ensino à distância, além da contratação de profissionais via notório saber. Ainda, no desenho proposto, a formação profissional pode ser extremamente precarizada e de baixa qualidade, pois pode ser validada através do acúmulo de vários cursos menores.
“Infelizmente, do jeito que está sendo proposta, a Educação Técnico Profissional só pode levar a um caminho de precarização”, resume o professor Sérgio Stoco, da Unifesp e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU). “Uma leitura atenta do que é proposto percebe que há uma espécie de ‘vale-tudo’: qualquer coisa que der uma certificação conta como carga horária do ensino médio, o que é um jeito simples do setor privado vender seus serviços”, explica, alertando que até mesmo palestras podem contar como certificação profissional. Soma-se a isso a permissão para o ensino à distância, ferramenta que tem sérias denúncias quanto a sua baixa qualidade e já deu margem até para aulas por televisão, sem a presença de professoras ou professores. Fora isso, ainda pode aumentar a exclusão e as desigualdades educacionais, pois exige acesso e disponibilidade de um aparelho com conexão estável à internet, além de letramento digital. Fatores que, como visto durante a pandemia, estão longe de ser uma realidade no país.
Há ainda outra importante fonte de preocupação: a contratação de profissionais via notório saber. Como explica Sérgio Stoco, este conceito, em sua concepção, é importante para reconhecer outros saberes além do científico, mas no contexto do NEM tem sido uma forma de desvalorizar a carreira docente. “A alteração nos artigos 61 e 62 da LDB flexibilizou para, no fundo, dizer: ‘qualquer um pode virar professor’”. Para os governadores é ótimo, pois os desobriga de várias legislações criadas para proteger a carreira docente”, diz.
A nota técnica da Campanha Nacional pelo Direito à Educação defende ser “essencial eliminar da legislação a permissão para que pessoas com “notório saber” atuem como professoras/es no Ensino Médio, pois reconhecer o valor dos conhecimentos no campo pedagógico é fundamental para valorizar a profissão docente. A aceitação de tal possibilidade em cursos de Educação Profissional Técnica de Nível Médio também desconsidera a importância do conhecimento científico subjacente às técnicas e tecnologias, uma vez que a formação para o trabalho não pode prescindir desse aspecto”.
Os problemas e limitações do modelo técnico profissionalizante no contexto do NEM já são sentidos pelas comunidades escolares do estado de São Paulo. No estado, onde a implementação do Novo Ensino Médio dá-se de forma acelerada, está em vigor um programa chamado Novotec, que “oferta cursos técnicos e profissionalizantes gratuitos, orientação vocacional e oportunidades de estágio para jovens dentro do Ensino Médio da rede pública”. O Novotec tem quatro modalidades de cursos profissionalizantes, ministrados por profissionais externos à escola, entre eles o Novotec Expresso, que certifica as e os estudantes semestralmente. A qualidade dessa certificação, no entanto, é bastante questionável.
A professora Lívia L* é testemunha disso. Formada em história e lecionando na rede pública da região metropolitana de SP, desde que sua escola aderiu ao Novotec, ela também acompanha as aulas de um dos itinerários integrados do programa. E não poupa críticas: “Descobrimos que os professores externos foram contratados à distância, sem falar com ninguém, e claramente muitos nunca haviam dado aula antes”, diz.
Ela, como docente da unidade, fica na sala enquanto o profissional contratado via notório saber ministra o itinerário – em seu caso, de Marketing Digital, escolhido em uma votação com baixo quórum de alunos. “É adoecedor. São trabalhadores precarizados com formação e consequente visão neoliberal rasa dando aula para nossos alunos. Nós professores temos que ficar dentro da sala acompanhando a aula de outro professor, sem diálogo com nossa formação e sem clareza se devemos interferir ou não. Me colocando no lugar do outro profissional, escolho não fazer isso”, conta. Uma decisão difícil, considerando que de acordo com o programa os contratados e contratadas sequer precisam ter formação em licenciatura ou pedagogia. “Você percebe que têm dificuldade de reger a sala, de acessar os alunos e de administrar a aula”. Na primeira aula, no entanto, Lívia interferiu para explicar como funcionava o Novotec. Isso porque o docente perguntou à turma porque havia escolhido aquela formação, ao que ouviu de muitos que “não escolheram nada”.
Um artigo de Evaldo Piolli e Mauro Sala sobre o programa concluiu que o Novotec “e esse conjunto de programas irão criar uma maior estratificação hierárquica no Ensino Médio do estado, contribuindo para uma formação desigual da força de trabalho para um mercado de trabalho cada vez mais precarizado”. Por vários motivos: cursos curtos para a qualificação profissional, majoritariamente de baixo custo, “que não demandam grandes laboratórios e equipamentos, e [com] alta taxa de inculcação ideológica, já que diretamente ligados à gestão e negócios capitalistas. (…) Trata-se de convencer a juventude que a precariedade das suas próprias vidas faz parte da racionalidade do modo de produção capitalista.”, segundo os autores.
O modelo do Novotec é restrito ao estado de São Paulo, mas seus princípios podem ser replicados em outras redes, mesmo com a nova proposta do MEC para o Ensino Médio. Como resume o professor Sérgio Stoco: “do ponto de vista do que está colocado [pelo MEC], essa formação específica [técnico profissionalizante] é uma enganação absoluta, não tem como remendar. No fim do processo, tudo vai virar mais desigualdade”.
Batalhas legislativas pela frente
A volta do projeto do Novo Ensino Médio ao legislativo, que deve acontecer neste segundo semestre, representa uma excelente oportunidade para tentar reverter os retrocessos trazidos pela “Reforma irreformável”. Em um processo que até agora foi conduzido por decretos e marcado por pouca ou nenhuma transparência e diálogo com a sociedade, levar o assunto para debate amplo já é, de certa maneira, uma derrota para os defensores do NEM. “Tudo que avançamos até aqui foi por conta da pressão nas ruas e junto aos organismos do poder público, assim como do trabalho – que tem sido muito intenso e árduo – no Fórum Nacional de Educação, recomposto. Isso mostra como a participação social precisa ser fortalecida e institucionalizada, para garantir políticas melhores para a educação”, resume Andressa Pellanda, coordenadora-geral da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação.
Mas o caminho não será trilhado sem desafios, já que a atual composição do Congresso é bastante conservadora, e que os setores empresariais e de interesses privatistas na Educação também estarão pressionando para que suas agendas sejam contempladas. Ou seja, a disputa está posta. Por isso o professor Sérgio Stoco, também membro do FNE, reforça a necessidade da articulação social e política para que quem se opõe ao NEM consiga pressionar o Congresso e fazer valer sua voz. “É preciso que o governo não tenha dúvida que a única coisa que deve fazer é revogar a 13.415”. Para o professor, revogar significa voltar à legislação anterior para que se possa, sem afobação, construir os novos mecanismos para uma nova política para o Ensino Médio. “O ideal é revogarmos a 13.415 e já encaminharmos outros pontos para avançarmos, porque não dá para fazer tudo agora. Para ter um novo Ensino Médio precisa ter um novo PNE, um SNE, que não vão sair agora. E temos que, primordialmente, ter o Custo Aluno Qualidade. Só com todas as escolas e todos os professores com estruturas e condições podemos pensar em reforma”.
A Coordenadora-Geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, está otimista com os próximos passos. Pois se é verdade que o Congresso Nacional pode levar questões retrógradas ao texto, “ele também reage a pressões da sociedade, em que já avançamos e já estamos com o recado dado sobre o NEM”. A própria volta ao Congresso mostra que a mobilização já está surtindo efeito.
*Nome alterado para preservar a identidade da docente