Documentos, que deveriam nortear políticas públicas, raramente são referenciados nas principais candidaturas estaduais. Em contrapartida, militarização das escolas está presente em um quarto das propostas analisadas
Texto: Nana Soares
Os Planos de Educação – seja o Nacional, os estaduais ou municipais -, que deveriam nortear as políticas públicas da área até 2024, são citados por apenas 25% das principais candidaturas aos governos estaduais, e ainda mais raras são as menções que posicionam os Planos como documentos de referência. A análise é da Iniciativa De Olho Nos Planos, que leu as propostas dos principais candidatos e candidatas a governos estaduais de todas as unidades da federação.
A análise considerou, em cada estado e no Distrito Federal, as duas ou três candidaturas com mais intenções de voto de acordo com pesquisas de agosto de 2022. No total, foram 59 candidatas e candidatos (confira a lista no fim da matéria), dos quais três sequer enviaram propostas de governo ao TSE.
Destas 59 candidaturas, apenas 15 fazem menção aos Planos de Educação – nenhuma no Centro-Oeste e cerca de 30% nas outras regiões. Quando o assunto é avaliação educacional, candidatos de 7 estados não fazem qualquer menção – e os que fazem, norteiam-se apenas pelas avaliações externas e em larga escala de desempenho dos estudantes, como o Ideb. Também é preocupante a ascensão das propostas de militarização das escolas, pauta fortemente encorajada por Bolsonaro. Elas são explicitamente mencionadas em 15 propostas de governo, fora as candidaturas que mencionam aumento de disciplina, austeridade e parcerias militares.
Planejamento e financiamento educacional: Planos de Educação e EC 95
Como nossa análise das candidaturas presidenciáveis já mostrou, a retomada do PNE e de mecanismos que garantam sua implementação não são prioridade para os candidatos – apenas Lula e Tebet mencionam o PNE e somente o ex-presidente busca revogar a EC 95, que inviabilizou o cumprimento do Plano. Essa tendência permanece nas candidaturas estaduais. Apenas uma candidatura (de Roberto Requião, do PT-PR) menciona a Emenda Constitucional 95 como um obstáculo para o investimento público em áreas sociais.
A Procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo, Élida Graziane, reforça que essa deveria ser uma agenda também dos governadores. Isso porque estados e municípios são mais onerados pelo teto de gastos a nível federal. Por exemplo, o recente veto de Bolsonaro à correção de valor repassado ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) faz com que o valor de referência, de 2017, esteja fortemente defasado pela inflação do período. “Isso faz com que quem tenha que pagar essa diferença sejam os governadores e prefeitos. Quando o governo federal não corrige essas tabelas, quando gastos básicos estão asfixiados, a responsabilidade é transferida para estados e municípios. Afinal, não dá para não ofertar merenda escolar, para não oferecer saúde pública e universal. Nesse sentido, a Emenda Constitucional 95 acirra a guerra fiscal na federação brasileira”, resume Élida.
Especificamente sobre os Planos, algumas menções ao PNE nas propostas de governo estadual referem-se na verdade a algumas de suas metas específicas, como a alfabetização, universalização do acesso à educação infantil, fundamental e Ensino Técnico Profissionalizante ou metas de Educação Integral. Apenas Roberto Requião (PT-PR) menciona as metas de participação popular e gestão democrática previstas no PNE, reafirmando o compromisso com a realização das Conferências Municipais, Regionais e Estaduais de Educação e de um amplo debate social para os próximos planos decenais. Ainda, algumas poucas propostas mencionam a construção dos novos Planos de Educação ao fim do decênio ou versam sobre o fortalecimento/revisão dos atuais Planos Estaduais, não detalhando como pretendem fortalecer os planos ou fazê-los serem cumpridos.
Sobre isso, Élida Graziane pontua que o próximo plano já deveria, de fato, estar sendo discutido, mas que os Planos de Educação estão fora da agenda da sociedade, de gestores e de órgãos de controle. “Estamos no oitavo ano de vigência do PNE e com 86% de descumprimento das metas. É preocupante que não haja qualquer constrangimento, principalmente de candidatos que concorrem à reeleição, sobre o não cumprimento. Que não haja a necessidade de justificar porque os planos não estão sendo cumpridos. Os órgãos de controle não conseguem sequer implementar a responsabilização pelo não cumprimento para quem descumpre. E, para completar, a Emenda Constitucional 119 chancela o déficit da aplicação em educação. Então temos, neste processo eleitoral, a percepção clara de que a educação não é prioridade”, avalia a Procuradora.
Na mesma linha, o apoio aos municípios na implementação dos Planos Municipais de Educação aparece em algumas propostas, mas sem detalhamento. E apenas cinco candidaturas entre as 59 mencionam a articulação dos planos em mais de uma instância: nacional, estadual e/ou municipal. Fátima Bezerra (PT-RN), por exemplo, pretende, em um eventual segundo mandato, “avaliar e monitorar o cumprimento das metas e estratégias do Plano Estadual de Educação em sintonia com o PNE e os Planos Municipais de Educação, fortalecendo ações articuladas, sistêmicas e colaborativas entre Estado, Municípios e União, com encaminhamentos para renovação desses Planos, a partir de 2024”.
Puxada por Bolsonaro, militarização avança
A militarização das escolas, ou a transferência da gestão das escolas civis públicas para a Polícia Militar, é uma das facetas do projeto ultraconservador em curso para a Educação. Está explicitamente presente em uma de cada quatro candidaturas analisadas pela Iniciativa De Olho Nos Planos, um número alarmante e que reflete os incentivos da gestão de Jair Bolsonaro a essa agenda. Embora seja um processo antigo, intensificou-se em 2019 com a criação do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim). Apenas na gestão de Ratinho Junior (PSD), no Paraná, 199 escolas passaram por este processo. E o governador, que tenta a reeleição em 2022, quer ampliar este número, como deixa explícito em sua proposta de governo.
Como lembra Catarina de Almeida Santos, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) e uma das coordenadoras da Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação (REPME), a militarização vem em um processo de expansão que data do fim da década de 1990, e entre os primeiros decretos do governo Bolsonaro estava o Nº 9.465, de 02/01/2019, que criou a Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares (Secim). “A partir daí não apenas observamos uma expansão do processo, especialmente nos municípios, mas também a mudança na nomenclatura, porque até então o processo de militarização não utilizava essa denominação”, explica ela. “O Pecim até hoje não conseguiu cumprir seu objetivo de militarizar 54 escolas por ano, mas fez com que a militarização entrasse na agenda nacional, o que impulsiona o processo no país ainda que a escola não se militarize via Pecim”. Para Catarina, incentivar a militarização é, ainda que inconscientemente, criminalizar a comunidade escolar. “Em nosso imaginário, a polícia cuida de marginais. Levar a polícia para a escola é uma autodeclaração que são essas pessoas que estão na escola, porque é com quem a polícia teoricamente lida”, complementa.
Além da expansão no Paraná, todas as principais candidaturas no Distrito Federal, Goiás, Acre e Roraima ou citam diretamente metas de militarização ou versam com o aumento da disciplina, vigilância e austeridade. Também encorajam a pauta, no nordeste: Fernando Collor (PTB) em Alagoas, Carlos Brandão (PSB) no Maranhão, Fabio Dantas (Solidariedade) no Rio Grande do Norte e Nilvan Ferreira (PL) na Paraíba. No Sudeste são dois casos: Carlos Manato (PL) no Espírito Santo, e Tarcísio de Freitas (Republicanos) em São Paulo, ambos aliados de Bolsonaro. Também aliado de Bolsonaro, Onyx Lorenzoni (PL), candidato no Rio Grande do Sul, é outro favorável à agenda.
A proposta de Carlos Manato é a que mais se dedica a defender o projeto de militarização nas escolas. O candidato argumenta que parte da sociedade “perdeu o respeito pela escola, pelo professor e pela educação” por conta de uma cultura de “não disciplina” e de “sobrepor as ideologias em relação às matérias que serão exigidas no âmbito profissional”. Em resposta, propõe um incentivo a bandas marciais, um resgate de símbolos nacionais, típicos do pensamento militar, e a ampliação das Escolas Cívico-Militares (ECMs) em alinhamento com o MEC. O candidato defende que as ECMs não têm “qualquer tipo de ideologia” e baseia-se no desempenho positivo dessas escolas em avaliações externas.
Catarina de Almeida Santos, no entanto, contesta fortemente a associação entre escolas militarizadas e bom desempenho escolar. Esse bom desempenho, lembra ela, parte de uma lógica de exclusão. “Em geral, o perfil das escolas muda depois da militarização: embranquecem e atendem pessoas com mais condições financeiras”, descreve a pesquisadora. “É comum que essas escolas transfiram quem não se adequa ao projeto, o que engloba tanto o não concordar mas também tem a ver com o rendimento do aluno. Então quem em geral tem problemas de rendimento, o que sabemos ser influenciado por fatores sociais, será excluído”, explica. Catarina também chama a atenção para a ausência de candidaturas cujas propostas enfrentem a militarização: “Sem dúvida é muito preocupante ter tantos planos de governo prevendo a ampliação das escolas militarizadas, tendo em vista que já temos tantas e não deveríamos ter nenhuma. Mas não me parece menos preocupantes as propostas que falam da gestão democrática e da valorização de profissionais da educação e do protagonismo dos estudantes não falarem nada ou não preverem a desmilitarização das escolas já militarizadas. O silêncio é também muito revelador em uma questão tão grave. Quem se cala pretende não ampliar, mas pretende manter as já existentes? Não pretende fazer uma gestão para reverter o quadro?”.
Avaliação educacional: abordagens limitadas e parciais do que a lei prevê
Outra lacuna importante nas propostas de governos estaduais enviadas ao TSE é a da avaliação educacional. As principais candidaturas de sete estados (Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Amazonas, Pará, Roraima, Rondônia e Amapá) não mencionam nenhuma proposta nesse sentido, e, em linhas gerais, quando este tópico é abordado, não há muitos detalhes ou então a avaliação fica totalmente pautada por avaliações externas em larga escala de desempenho de estudantes. Neste caso, quase 70% das propostas estão alinhadas a uma lógica da meritocracia na educação, vinculando seus resultados a premiações e bonificações de escolas e profissionais da educação. Em outras palavras, escolas e redes com melhor desempenho teriam mais aporte financeiro do estado. E o processo de avaliação, ao invés de reduzir as desigualdades educacionais, as acirraria ainda mais.
Para Claudia Bandeira, pedagoga e assessora da Iniciativa De Olho nos Planos pela Ação Educativa, essa análise evidencia o “enorme desafio que temos no país com relação à avaliação educacional”. “Chama a atenção que nenhum Plano de Governo faz referência à avaliação institucional e à autoavaliação da escola realizada com participação das comunidades escolares como um importante mecanismo de diagnóstico, inclusive para contextualizar resultados das avaliações externas em larga escala de desempenho de estudantes, na medida em que considera como qualidade na educação outras dimensões como a valorização das profissionais da educação; as condições de infra-estrutura das escolas; a gestão democrática; o acesso, permanência e sucesso dos/as estudantes na escola; as relações raciais e de gênero na educação; entre outros”, completa.
Pelo contrário, algumas propostas vão de encontro a essa ideia. A já citada proposta de Carlos Manato (PL-ES) utiliza o desempenho escolar para justificar um processo de militarização, e ACM Neto (União Brasil-BA), Fábio Dantas (Solidariedade-RN), Paulo Dantas (MDB-AL), Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) e Eduardo Leite (PSDB-RS) falam em vincular o repasse de ICMS aos resultados obtidos nas avaliações externas de larga escala.
No entanto, o arcabouço legal de referência para a Educação no país já explicita que os mecanismos de avaliação educacional devem ir além das avaliações externas de desempenho. O Plano Nacional de Educação, em seu artigo 11, quando trata do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SINAEB) prevê a avaliação e a autoavaliação institucional. “Nesse sentido é fundamental retomarmos a discussão sobre a Portaria 369, de maio de 2016, que regulamentou o SINAEB, por meio de processos participativos liderados pelo Inep e que foi revogada logo após o golpe parlamentar de 2016”, complementa Claudia (saiba mais aqui). “Para que a avaliação educacional contribua com a redução das desigualdades educacionais é preciso que Planos de Governo estabeleçam processos avaliativos mais amplos, participativos e diversificados que considerem insumos e processos pedagógicos no debate sobre qualidade na educação”.