Em discussão no Congresso, nova proposta de FUNDEB não garante o direito à educação com equidade

Ao transferir recursos às redes de ensino por meio da aferição de desempenho de estudantes, proposta de FUNDEB anuncia acirramento das desigualdades educacionais. 

Foto apresenta parlamentares em mesa conversando sobre o FUNDEB. Na foto é possível ver Dorinha Seabra (DEM) e Rodrigo Maia (DEM). Também está presente a Gulmakai Champion Denise Carreira.
Capítulo Brasil da Rede Gulmakai se reúne com Rodrigo Maia para conversar sobre FUNDEB. Júlia Daher/De Olho nos Planos

Está em discussão no Congresso a renovação do Fundo Nacional de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB). Principal mecanismo de financiamento da educação no país, o FUNDEB hoje subsidia 40 milhões de matrículas, da creche ao Ensino Médio. O modelo vigente desde 2007 termina este ano e uma nova proposta de fundo deve ser aprovada em breve. 

“É uma oportunidade sem precedentes de pensar em uma política de requalificação do financiamento para, de fato, como está colocado no Plano Nacional de Educação (PNE), avançar progressivamente rumo ao direito à educação de fato pleno para a população”, avalia o professor da Universidade Federal do ABC, Salomão Ximenes, em entrevista ao Podcast Professores Contra o Escola Sem Partido.

Segundo Salomão, apesar de ter sido um grande passo em relação ao mecanismo anterior de financiamento, o FUNDEF, os valores arrecadados no modelo atual de FUNDEB ainda são insuficientes para que o país dê conta de todas as demandas da Educação Básica. Ele afirma que, para que seja possível reduzir desigualdades, ampliar matrículas, melhorar a qualidade da educação e assegurar a valorização das/os profissionais, é necessário um maior financiamento da área com complementação da União ao Fundo. “O valor atual é insuficiente para o cumprimento do mínimo para garantir uma educação em condições de qualidade em todo o Brasil”, pontua.

Na leitura do professor, as discussões em torno do novo modelo de FUNDEB têm revelado a existência de uma “ideologia do financiamento suficiente da educação brasileira”. Ignorando tanto documentos internacionais (que evidenciam o subfinanciamento da Educação Básica no Brasil), quanto o próprio PNE (que propõe quase duplicar o percentual do PIB investido em educação), grupos empresariais e seus parlamentares aliados têm defendido que o principal problema da educação é a má gestão e distribuição dos recursos. 

Salomão coloca que, a partir de um discurso bastante sinuoso e enganoso no sentido de defender maior equidade e igualdade, o que esse campo defende é que não são necessários mais recursos da União, bastaria uma redistribuição entre estados e municípios dos recursos comprovadamente insuficientes.”Falar que municípios que sequer alcançaram as metas do PNE têm recursos suficientes é mera ideologia”, argumenta.

Para Salomão, para contrapor a ideia de que já há investimento suficiente em educação é necessário parametrizar o debate a partir do Custo-Aluno-Qualidade.

O CAQi é um padrão mínimo de investimento que calcula quanto custa por ano, por etapa e modalidade da Educação Básica, por aluno, para se garantir insumos de qualidade em toda escola do país. Esses insumos vão desde a infraestrutura dos prédios até a garantia de condições de trabalho, formação e valorização das/os profissionais da educação e cumprimento do piso do magistério que atualmente é de R$ 2.886, 24 para 40h semanais.

“É importante que adotemos o CAQi para que tenhamos clareza do quanto é necessário investir para assegurar uma educação de qualidade. Senão, a gente começa a achar que Rio de Janeiro e São Paulo, que são mais ricos, têm recursos suficientes, quando sequer conseguem implementar o mínimo segundo o CAQi. Sequer conseguem estabelecer um número adequado de alunos por sala, uma remuneração atrativa do magistério, uma boa infraestrutura nas escolas, uma inclusão significativa de todas as crianças, um atendimento adequado na Educação de Jovens e Adultos”, argumenta.

Ele explica que, sem que haja aumento do financiamento por parte da União e sendo aprovada a proposta defendida pelo campo empresarial que atua na educação, municípios de maior arrecadação perderiam recursos e seriam os responsáveis por financiar outros municípios mais pobres,ou seja, seriam os municípios os responsáveis pelo financiamento da Educação Básica no país desobrigando a União de sua responsabilidade de acabar com o histórico subfinanciamento da área.  

Um modelo de FUNDEB que garanta o direito à educação

Reunidas na Campanha Nacional pelo Direito à Educação, entidades de defesa da garantia do direito à educação lançaram uma nota técnica com propostas de de aprimoramento do desenho do FUNDEB.

Na nota, as entidades apontam que, para que o FUNDEB seja capaz de consagrar o direito à educação e garantir a implementação das metas do PNE, é imprescindível que haja um  aumento efetivo da complementação da União. Este aumento deve ter como critério de cálculo o Custo-Aluno-Qualidade-Inicial.

Para garantir o padrão mínimo de qualidade estabelecido pelo CAQi, as entidades afirmam que é necessário que a complementação da União ao Fundo seja elevada do patamar atual de 10% para 40%.

“Não faz sentido o Governo Federal entrar com só 10% do Fundeb quando ele arrecada 60% da receita tributária do país. Por isso a gente defende que o Governo Federal entre com 40%. Com esses 40% a gente consegue dar um primeiro passo de implementar o CAQi, que o PNE dizia que tinha que ser implementado em 2016 e não foi implementado”, defende Salomão.

Assinam a nota Ação Educativa, ActionAid, Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (FINEDUCA), Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA-CE), Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE), Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (Mieib), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme) e União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime).

Repasse meritocrático de recursos

Em sua formulação mais recente, apresentada no dia 3 de março, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de renovação do Fundo altera a maneira como é realizada a distribuição dos recursos advindos da complementação da União, vinculando-os aos resultados educacionais das redes de ensino. As redes que obtiverem melhores resultados, receberão mais dinheiro. 

Na avaliação da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, condicionar o repasse de recursos ao desempenho escolar pode aumentar as desigualdades entre as redes, já que uma melhoria no desempenho depende de uma elevação do investimento. “No mundo todo, isso resultou em maior desigualdade entre redes e escolas públicas”, afirma a entidade em nota técnica.

Para tentar amenizar esse efeito, o novo texto do FUNDEB propõe constitucionalizar o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SINAEB). Previsto no art. 11 do PNE, o SINAEB propõe o estabelecimento de processos avaliativos mais amplos, participativos e diversificados. Porém, a nota da Campanha defende que caso seja mantido o cenário de distribuição de recursos a partir de resultados em avaliações externas em larga escala será necessário “aprimorar a redação do substitutivo, vedando que redes públicas com maior arrecadação e, portanto, com maior capacidade de avançar nas avaliações de larga escala, não sejam ainda mais privilegiadas”. 

A regulamentação do SINAEB foi construída pelo INEP em diálogo com entidades do campo, movimentos sociais e universidades, contudo, foi revogada em 2016, durante a presidência de Michel Temer.

O condicionamento do financiamento à melhoria de desempenho também é criticado pela FINEDUCA. Para a associação, as consequências da implementação desses critérios são “inaceitavelmente incertas e carentes de suficiente fundamentação”, pois seriam necessárias avaliações anuais de desempenho dos municípios e também porque pode acirrar desigualdades prejudicando as redes de ensino das localidades cujos estudantes têm situação socioeconômica mais desfavorável.  

O novo FUNDEB e a educação escolar indígena, quilombola e em territórios de vulnerabilidiade social

O aumento do percentual de contribuição da União de 10% para 40% é também defendido pelo Capítulo Brasil da Rede Gulmakai do Fundo Malala. O Capítulo é constituído por ativistas, vinculados a organizações da sociedade civil brasileiras, que foram convidados a integrarem a Rede por Malala Yousafzai, prêmio Nobel da Paz, em sua visita ao Brasil em julho de 2018.

Em estudo lançado no final de 2019, as entidades defendem que, além do aumento da complementação, é necessário que o Fundo tenha fatores de ponderação na distribuição de recursos que assegurem a educação escolar indígena, quilombola e no campo uma diferença positiva de pelo menos 50% em relação ao valor aluno-ano, até que sejam compatibilizadas com os custos reais pela implementação do CAQ.  

O documento defende também que as escolas dessas modalidades tenham acesso a um percentual adicional de recurso que funcionaria como um mecanismo complementar de correção de desigualdades intrarredes de ensino e intramunicípios.

Merenda e transporte em risco

A proposta também coloca em risco orçamentário o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa Nacional de Apoio ao Transporte Escolar (PNATE). A ameaça advém do fato da última versão do relatório, ainda a ser votado na Comissão Especial da Câmara, permitir que se utilize o Salário-Educação como parte da complementação da União ao Fundo.

O Salário-Educação é um recurso obtido através da tributação de empresas. De todo o montante arrecadado, 60% é direcionado aos estados e municípios segundo o número de matrículas.  Os outros 40% ficam sob a administração da União e, através do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), são utilizados para o custeio de programas suplementares da Educação Básica, como os de transporte, alimentação, material didático e saúde. 

Ao incorporar os recursos do Salário-Educação ao FUNDEB, a PEC15/15 apresenta um falso anúncio de aumento do investimento da União em educação, uma vez que não se trata de um recurso novo, mas sim de transferência dos Programas Nacionais de Alimentação e Transporte Escolar. Em decorrência dessa transferência de recursos o aumento de complementação da União ao Fundo anunciado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, de 10% para 20%, na realidade não é uma duplicação nos investimentos. Segundo a projeção desenhada pela Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (FINEDUCA), com a utilização dos recursos do Salário-Educação, a real complementação da União ao Fundeb seria de 15,8%, e não de 20% como anunciado publicamente. 

Assim, além da complementação ser insuficiente, ações essenciais para o acesso e permanência de estudantes nas escolas garantidas pelos Programas Nacionais de Alimentação e Transporte Escolar correm sério risco de extinção. Mais uma vez as crianças, adolescentes e jovens mais prejudicados/as serão aqueles/as pertencentes às famílias mais vulneráveis economicamente e socialmente.

Investimento obrigatório em manutenção e desenvolvimento do ensino

Além de colocar em risco programas suplementares, a inserção da cota federal do  Salário-Educação no FUNDEB pode ter efeito sobre outros investimentos federais em educação.

De acordo com a Constituição, 18% das receitas da União devem ser utilizados na Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE). Nesse percentual obrigatório, não são contabilizadas despesas suplementares, como a merenda. Assim, os recursos do Salário-Educação não eram contabilizados no percentual obrigatório de investimento da União. 

No desenho anterior de Fundeb, 30% do total da complementação de 10% da União ao Fundo podia ser considerado na contabilização destes 18% obrigatórios. Esse percentual de 30% é mantido no novo desenho de Fundo que propõe 20% de complementação descontados do percentual que a União já é obrigada a gastar em educação.  “O aumento, portanto, é uma ilusão”, analisa Salomão. Na visão do professor, isso pode ter efeito sobre investimentos em educação feitos pela União que não passam pelo Fundeb, como, por exemplo, o financiamento do Ensino Superior.

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