A educação a distância volta a ser vista como possibilidade ao Ensino Fundamental pela equipe do presidente Jair Bolsonaro. Especialistas mostram preocupação
Foto: Empresa Brasil de Comunicação
No plano de governo do candidato eleito à Presidência Jair Bolsonaro (PSL) consta a defesa da Educação à Distância como “alternativa para as áreas rurais onde as grandes distâncias dificultam ou impedem aulas presenciais”. No entanto, declarações dadas por Bolsonaro à imprensa antes mesmo do pleito eleitoral já sinalizavam outras possibilidades para a modalidade, para além do expresso no documento.
Ele afirmou que a Educação à Distância pode ser usada já no Ensino Fundamental, bem como Médio e Ensino Superior como forma de baratear a educação – as crianças poderiam ir para a escola somente para fazer provas ou participar de aulas práticas. Ele também defendeu que a estratégia seria válida para combater o ‘marxismo’ nas unidades e considerou que muitos pais preferem educar seus filhos em casa, fazendo menção à prática do ensino domiciliar (Homeschooling).
A Educação à Distância é regulamentada nas instituições de Ensino Superior. Um decreto publicado pelo Ministério da Educação em 2017 (9057/2017) regulamenta a modalidade em todo o território nacional, possibilitando às instituições ampliar a oferta de cursos superiores de graduação e pós graduação a distância. Dados do Censo da Educação Superior (2016) apontam que 33% de novos universitários chegaram à etapa pela modalidade.
A chancela, no entanto, não é válida para a Educação Básica, salvo em situações específicas. O professor da Universidade Federal do ABC e doutor em Direito pela USP, Salomão Ximenes, recorre ao Inciso 1 do Artigo 208 da Constituição Federal para apontar a ilegalidade da prática. “É inconstitucional na medida em que a Constituição prevê o atendimento da Educação Básica dos 4 aos 17 anos na escola”, assegura.
A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) por sua vez, grafa no parágrafo 4º do artigo 32, que “o Ensino Fundamental será presencial, sendo o ensino a distância utilizado como complementação da aprendizagem ou em situações emergenciais.” “Fora os casos excepcionais de desastre previstos na legislação, crianças hospitalizadas, internadas, pensar isso como uma política pública, por exemplo para áreas rurais, é, na verdade, acentuar desigualdades em condições de atendimento e no acesso à escolarização, que também é inconstitucional”, adverte Ximenes.
A Educação à Distância na Educação Básica não poderia ser justificada nem a partir de uma escolha familiar. Uma decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF) vetou a possibilidade do homeschooling ser considerado um meio lícito das famílias proverem educação.
Educação x ensino
Para além de uma questão legal, pensar a Educação à Distância como alternativa à educação escolar traz impactos sociais aos estudantes. Para o educador e professor da Universidade Federal do ABC, Fernando Cássio, o projeto prevê uma radicalização para a Educação Básica, “uma vez que tira da educação o que a constitui, que é a relação”, coloca. Para o especialista, sem uma relação com o espaço [a escola], a educação é esvaziada para uma situação de ensino/aprendizagem que são conceitos diferentes.
No artigo “Ensino à Distância: equívocos, legislação e defesa da formação presencial”, publicado na Revista Universidade e Sociedade, uma publicação do Andes Sindicato Nacional, os pesquisadores Beatriz Alexandrina de Moura Fétizon e César Augusto Minto, da Faculdade de Educação da USP, falam sobre a diferença. “A educação é um processo social que, do ponto de vista mais amplo, representa o instrumental de que o grupo humano dispõe para promover a autoconstrução da humanidade de seus membros; e, do ponto de vista individual, a possibilidade de desenvolver atributos que permitam ao indivíduo construir-se humano (ou construir sua própria humanidade) a partir de seu equipamento pessoal e da ação do grupo”.
Os pesquisadores afirmam que tais construções exigem a adoção de políticas públicas adequadas, a partir da articulação de áreas que constituem os direitos sociais, prevendo o grau de humanidade e de cidadania que se deseja garantir a toda a sociedade.
O conceito de ensino, igualmente importante, mas muito menos abrangente que o conceito de educação, segundo os autores, “diz respeito à forma sistematizada – que se constitui num conjunto organizado, envolvendo a seleção de conteúdos e métodos – de trabalho pedagógico, que é adotada com o objetivo de disponibilizar, a todos os membros da sociedade, as informações, os conhecimentos e as teorias que já compõem um acervo de saberes que, por sua vez, é patrimônio da humanidade”.
Segundo Fétizon e Minto, o ensino trata-se do meio pelo qual se busca garantir às pessoas, via escolarização formal numa instituição específica – a escola, aquilo que lhes é essencial para construir suas próprias visões de mundo e poder agir de forma consciente, influindo na história e na cultura da sociedade em que vivem.
Outro ponto que os autores consideram é que o ensino também é uma atividade muito mais complexa do que a mera difusão de informações e que, estas, não são necessariamente úteis por si só, ou seja, precisam ser trabalhadas em prol de benefícios individuais ou coletivos.
Em resumo, não se trata de demonizar a modalidade, mas de entender as circunstâncias para a sua adoção, desde que não seja a substituição das escolas. Iniciativa parecida com as ideias defendidas por Bolsonaro e sua equipe foi tomada no ano passado pelo governo Temer (MDB). Por meio do decreto 9057/2017, o governo chegou a autorizar a Educação à Distância na Educação Básica mas, depois de inúmeras críticas, recuou da decisão alegando erro na redação do artigo que abria a possibilidade.
A escola como espaço de socialização
A professora da Faculdade de Educação da PUC-SP Maria Elizabeth Almeida reforça que o papel da Educação à Distância não é o de substituir as escolas. “Ela deve ajudar na expansão da educação, no sentido de atender situações específicas ou mesmo de expandir o momento do encontro do professor e seus alunos para outros espaços virtuais”, considera.
Isso não diminui, no entanto, o papel da escola enquanto espaço de socialização. “Os alunos aprendem a conviver com as diferenças, com os diversos arranjos existentes na sociedade que vão além daquele do núcleo familiar”, atesta Almeida. A especialista também considera que a prática da Educação à Distância requer disciplina e maturidade para organizar o estudo, motivo pelo qual também não a indica para as crianças.
Outra questão, mencionada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais (Contag) em nota de repúdio, é a necessidade da educação acontecer próxima da vida das pessoas e das propostas curriculares serem ajustadas ao contexto e realidade locais.
“É imprescindível que a educação no campo e do campo não se dê de forma dissociada da realidade do local em que está inserida cada escola, a integração entre o ensino e a vivência prática das comunidades rurais é fundamental. Desta forma, também é importante a utilização de instrumentos e equipamentos que assegurem a formação e a integração entre teoria e prática, o que lhes garantirá processos de aprendizagens que assegurem a preservação da cultura, dos costumes e a construção de conhecimentos de acordo com a realidade das comunidades rurais”. A nota reforça que a formação na área da educação do campo não se limita a oferecer apenas conteúdos teóricos, exige uma construção de conhecimento que não pode ser obtida por meio da modalidade EAD.
O uso da Educação à Distância como alternativa a uma suposta ideologia curricular também é rebatida por Almeida. “Todo currículo é carregado de ideologia, o que não quer dizer ser sobre um partido A ou B. Falo de um currículo que se relaciona com a cultura, com o contexto local e global. Veja, não estou falando de abandonar as propostas curriculares, mas o professor tem sim o papel de trabalhar com os alunos a realidade”, finaliza a educadora.
Reportagem: Ana Luiza Basilio
O Especial #EducaçãoNasEleições é uma parceria entre Ação Educativa e Carta Educação.