Texto apresentado pelo Governo tem metas mais generalistas, dificultando o monitoramento e controle social das políticas educacionais
Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira
No dia 26 de junho de 2024, um dia após a lei 13.005/2014, do Plano Nacional de Educação (PNE), completar 10 anos, o governo federal enviou o projeto do novo Plano ao Congresso Nacional. O PL 2.614/2024 mantém alguns pontos do atual PNE, mas ainda está distante do que foi deliberado na Conferência Nacional de Educação (CONAE), não contemplando várias de suas agendas.
O novo projeto, que ainda não iniciou sua tramitação, traz 18 metas para o próximo decênio (o atual PNE tem 20). Em linhas gerais, os temas tratados não mudam muito (estão contempladas todas as etapas da educação básica e superior, qualidade da educação, valorização das profissionais, gestão democrática e redução de diversas desigualdades). Mas vários objetivos são colocados de forma mais generalista, com métricas menos específicas ou metas intermediárias menos ambiciosas e mais tardias. Alguns dos objetivos não alcançados do atual PNE permanecem.
“O novo PNE para 2024-2034 apresenta avanços, principalmente na transversalidade da igualdade e equidade nas metas, e mantém o patamar de investimentos de 10% do PIB. No entanto, carece de ousadia em diversas áreas”, resume Andressa Pellanda, coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, entidade que divulgou nota técnica comentando retrocessos, avanços e lacunas deste projeto. Andressa considera que não há uma articulação clara entre a política educacional e planos de desenvolvimento econômico e social, que alguns grupos marginalizados não são mencionados ou que as metas sobre eles não estão suficientemente detalhadas, e a falta de uma política robusta de educação para justiça climática e proteção socioambiental. Para Andressa, o novo PNE precisa de “metas mais ousadas, percentuais mais ambiciosos e prazos mais curtos para recuperar os anos de descumprimento do PNE atual e para realmente transformar a educação no Brasil”.
O balanço mais recente da Campanha sobre o andamento do atual PNE mostrou que o cenário de descumprimento é generalizado. Dez anos depois de entrar em vigor, quase 90% das metas e dispositivos não foram cumpridos (e três metas estão em retrocesso), as desigualdades sociais, étnico-raciais e regionais persistem, bem como a falta de dados, especialmente sobre as populações indígenas e quilombolas. Em alguns casos, como no analfabetismo funcional (Meta 9 do atual PNE) e acesso ao ensino fundamental (Meta 2), a situação é ainda pior do que em 2014. Por exemplo, hoje a porcentagem de jovens de 6 a 14 anos que frequenta ou já concluiu o ensino fundamental é de 95.7%, contra 97.2% em 2014. São mais de um milhão de crianças fora dessa etapa.
Esses dados mostram o tamanho dos desafios educacionais que o país tem pela frente e que, na avaliação de Andressa, podem não ser suficientemente enfrentados com este novo PNE, caso o projeto não sofra alterações. A coordenadora da Campanha o classificou como tendo “uma abordagem conservadora”, aquém do necessário para garantir que a educação brasileira avance de forma significativa e inclusiva.
Educação de Jovens e Adultos: texto mais abrangente, mas menos preciso
Um exemplo do que narra Andressa pode ser o que propõe o PL 2.614/2024 para a Educação de Jovens e Adultos (EJA). O novo projeto traz várias novidades em relação ao atual PNE – por exemplo, abarca idosos na população alvo e levanta a possibilidade de apoiar financeiramente as e os estudantes desta modalidade para que possam concluir seus estudos. Como relembra Franciele Busico, diretora do Cieja Perus e integrante do Fórum Estadual EJA de São Paulo, “a inclusão dos idosos – na verdade, de qualquer pessoa acima dos 15 anos de idade -, é um direito constitucional. Entre os idosos, frequentemente são pessoas que trabalham desde criança e para quem a escola era inacessível, então é muito importante considerar esse público e garantir o direito à educação em qualquer idade”.
Mas, em contrapartida, o novo projeto para o PNE traz muito menos métricas e prazos que estimulem e favoreçam o monitoramento e avaliação do cumprimento das metas. Como destaca Andressa Pellanda, da Campanha, uma das lições do PNE 2014-2024 foi justamente a importância de incluir metas intermediárias e especificar métricas de avaliação, para garantir que o progresso possa ser medido e ajustado conforme necessário.
As diferenças nesse aspecto são nítidas. No texto aprovado em 2014, as metas 9 e 10 objetivam:
Já a meta 10 do projeto enviado ao Congresso Nacional em 26 de junho é assim apresentada:
Para o coordenador da Unidade de Educação de Jovens e Adultos da Ação Educativa, Roberto Catelli, se o projeto for aprovado sem o detalhamento necessário há o risco real de que o novo PNE seja ainda mais descumprido em relação à EJA – uma das modalidades mais abandonadas na última década, completamente escanteada e subfinanciada. “A maneira com que as metas estão colocadas no texto não obriga o governo a cumprir nada, tornando assim a proposta muito mais uma carta de princípios do que de fato um plano para os próximos 10 anos”, diz. “São bons princípios, mas sem meta. Aumentar uma ou um milhão de matrículas tanto faz”. E alerta: “Metas [bem estabelecidas] não garantem o cumprimento, mas sim um controle social, permitem o monitoramento e a denúncia. Se não há obrigação, o Estado pode defender os princípios mas não fazer efetivamente nada. Corremos o risco de ter um PNE com boas ideias e nenhuma política de implementação”.
Ausências de gênero e população LGBTQIA+
Indicadores, métricas e prazos para monitoramento e controle social não são a única ausência sentida no texto enviado ao Congresso para o próximo Plano Nacional de Educação. O projeto de lei do governo para o novo PNE não menciona em nenhum momento os termos “gênero”, “orientação sexual” ou a população LGBTQIA+. Teoricamente, essas populações e agendas estariam contempladas nas diversidades, igualdade, equidade e combate a discriminações. Vale lembrar que uma das marcas da tramitação do atual PNE, em 2013, foi justamente a ofensiva ultraconservadora contra o “gênero”, termo que acabou sendo retirado do texto final – o que fomentou uma cultura de censura e perseguição a essa agenda nas escolas. Desta vez, os termos sequer constaram no texto inicial, que também não contemplou populações em situação de migração e refúgio, e fala de justiça climática em termos muito amplos.
Em relação a metas e estratégias que abarquem a superação de desigualdades étnico-raciais – como a educação indígena e a quilombola -, também são criticadas as ausências de métricas e indicadores mais precisos e ousados. “Não adianta falar em termos genéricos se não houver construção para que essa política realmente exista. Isso significa ter indicadores para poder ter orçamento para cumpri-los. Nada acontece sem isso, sem estabelecer os parâmetros que darão acesso ao recurso”, enfatiza Ana Paula Brandão, diretora programática da ActionAid Brasil e coordenadora do Projeto SETA. Ela destaca a importância das métricas e indicadores, mas também que eles sejam relevantes para cada meta. Por exemplo, educação indígena e educação quilombola precisam ser trabalhadas junto a questões territoriais e respeitar as especificidades de cada espaço. Também precisam de mais dados sobre essas populações, o que hoje é uma grande lacuna. “Pelo IBGE, agora sabemos o número absoluto de indígenas e quilombolas, mas seguimos sem dados na educação, inclusive com recorte de gênero. É muito difícil, por exemplo, ter dados que acompanhem toda a trajetória escolar de uma menina negra, menos ainda de indígenas e quilombolas”, reforça Ana Paula. “As ações precisam ser direcionadas, explícitas. Se não, vai depender muito mais da boa vontade de gestores”, complementa.
A diretora da ActionAid chama o cenário de “vergonhoso” considerando que já são muitos os documentos, legislações e mecanismos no Brasil que reconhecem tais desigualdades e tentam corrigi-las – como as leis 10.639/2003 e a 11.645/2008 -, mas que seguem sendo pouco executados. “[A lacuna nessas agendas] é uma loucura, considerando que já temos marco regulatório consolidado, além de informação suficiente – produzida inclusive pelo Estado – que justifique sua inclusão não apenas de forma transversal, mas central. Isto é, que não apenas constem, mas guiem todo o Plano Nacional de Educação”.
Financiamento, gestão democrática e qualidade
Em relação ao financiamento, o projeto para o novo PNE conserva a meta de financiamento de 10% do PIB para a educação – reivindicação da sociedade civil e que esteve longe de ser alcançada no decênio 2014-2024. O não cumprimento dessa meta, estreitamente relacionado às políticas de austeridade do período, teve efeito cascata em todo o Plano, impossibilitando seu pleno cumprimento. Para Andressa Pellanda, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a manutenção da meta é uma melhoria “na medida em que reitera um compromisso já estabelecido e reconhece a importância de altos investimentos na educação”. No entanto, a Coordenadora Geral da Campanha alerta para o retrocesso na meta intermediária de financiamento, que ficou para o 6º ano de vigência (frente ao 5º ano do Plano anterior), e o estabelecimento de 7% do PIB até o sexto ano, em comparação com os 10% previstos anteriormente pela Lei nº 13.005/2014.
“O principal aprendizado do PNE 2014-2024 é a necessidade de uma implementação rigorosa e de um acompanhamento contínuo e estruturado das metas e estratégias, em articulação com uma política econômica a serviço dos direitos sociais. O descumprimento avassalador das metas anteriores destaca a importância de estabelecer mecanismos claros de monitoramento e avaliação”, destaca Andressa.
E no que diz respeito à avaliação educacional, há uma outra importante lacuna no projeto de lei apresentado pelo Governo: o desempenho de estudantes medido por avaliações externas em larga escala é basicamente o único fator utilizado para balizar a qualidade da Educação e das metas. Não são mencionados, por exemplo, mecanismos como a avaliação institucional e a autoavaliação institucional participativa, o que enfraquece o aspecto de gestão democrática do texto.
“Durante a CONAE aprovamos a autoavaliação participativa da escola como fundamental para o fortalecimento da gestão democrática em educação e também como parte do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica, que tem como objetivo ampliar o conceito de qualidade para além das avaliações externas em larga escala. Isso significa que quando falamos de qualidade outros aspectos precisam ser considerados, inclusive para contextualizar os resultados de avaliações como o Ideb. Esses aspectos se relacionam à infraestrutura das escolas; acesso, permanência e conclusão dos estudos; gestão escolar democrática; valorização das profissionais da educação; igualdade de gênero e raça na educação; entre outros”, destaca Claudia Bandeira, coordenadora da Iniciativa De Olho Nos Planos.
O Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SINAEB), criado pela sociedade civil, avalia a equidade e a eficiência da educação básica, prevendo processos participativos de avaliação junto às comunidades escolares para que as realidades e demandas das escolas sejam consideradas nos processos avaliativos e nas políticas educacionais. O projeto do novo PNE não faz menção ao SINAEB e apresenta uma visão restrita de qualidade tendo como principal referência as avaliações externas em larga escala, como o Ideb, o que pode acirrar ainda mais as desigualdades educacionais no país.
Ainda sobre gestão democrática, falta no texto apresentado pelo MEC detalhamento sobre a sua regulamentação e elementos que assegurem a continuidade e a estabilidade das políticas para além dos ciclos governamentais.
Distância da CONAE
Agendas cruciais para a garantia do direito à educação de qualidade e para a redução das desigualdades educacionais no Brasil estão ausentes no texto que pode vir a ser o novo Plano Nacional de Educação, apesar de terem sido amplamente debatidas na Conferência Nacional de Educação (CONAE) realizada em janeiro, e constarem em seu texto final.
Esse texto – posteriormente validado pelo Fórum Nacional de Educação e entregue ao MEC – é o que, segundo o regulamento da CONAE, deveria ser base do projeto de lei do PNE, uma vez que é fruto de debate entre diferentes setores da sociedade. Em 2024, o texto teve inclusive caráter vinculante, isto é: o governo não poderia apresentar ao Congresso um texto que contrarie as diretrizes construídas na CONAE. Por isso foi tão importante assegurar agendas de equidade na Conferência. Para representantes ouvidas/os nesta reportagem, o projeto proposto pelo governo não chega a contrariar a CONAE, mas se distancia do que foi nela debatido ao retirar vários pontos do texto final.
Andressa Pellanda, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, ressalta que a falta de uma política robusta de educação para justiça climática e proteção socioambiental, que foram agendas amplamente debatidas e demandadas na CONAE 2024, demonstra uma abordagem “tímida” do governo em relação a desafios emergentes. Já Roberto Catelli, da Ação Educativa, avalia que o texto enviado ao Congresso é uma peça reduzida e reorganizada das discussões da CONAE. Gestora da EJA, Francielle Busico reforça ainda vários retrocessos ou lacunas destacados pela nota técnica da Campanha em relação à Educação de Jovens e Adultos: “a discussão da CONAE foi bem mais profunda do que o que aparece no texto, mais voltada a uma política de reparação de direitos, e não de caráter generalista”. Ela sente falta de maior ênfase na oferta presencial da EJA, da abordagem de temáticas transversais em Direitos Humanos, maior detalhamento sobre EJA nas prisões e da menção às salas de acolhimento para filhos e filhas de estudantes da modalidade.
“O PNE não dialogou tanto com os resultados da CONAE, então quando há lacunas tão importantes [no texto], todo o esforço feito na Conferência fica, de certa forma, em segundo plano”, resume Ana Paula Brandão, do Projeto SETA.
Expectativas para a tramitação
O processo de tramitação que culminou na lei 13.005/2014 deixa a expectativa de que o projeto de lei do novo PNE também deve ser alterado nas casas do Congresso. Se as mudanças serão para corrigir suas lacunas e retrocessos ou para reafirmá-los, vai depender do jogo político, por sua vez muito influenciado pela pressão social em torno da matéria. O Ministério da Educação sinalizou o desejo de aprovar a nova lei ainda em 2024, para que possa entrar em vigor em 2025, mas as eleições municipais de outubro podem alterar substantivamente a agenda e o próprio ritmo de votações do Congresso.
Roberto Catelli, da Ação Educativa, não é otimista em relação à adição de metas e indicadores mais precisos, uma vez que a Comissão de Educação da Câmara é presidida pelo deputado conservador Nikolas Ferreira. Já a leitura de Ana Paula Brandão, coordenadora do Projeto SETA, é que a ausência da agenda de gênero no documento do novo PNE deva minimizar as tensões durante sua tramitação – mas que pode ser revertida, inclusive de maneiras “criativas”, como com o reforço das interseccionalidades ao longo do texto.
Por sua vez, Andressa Pellanda, Coordenadora Geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, organização que trabalha fortemente na incidência em políticas públicas, têm expectativas de que o novo PNE passe por melhorias significativas durante a tramitação, especialmente nas áreas de articulação intersetorial e econômica, inclusão de políticas para grupos marginalizados e incorporação de metas mais ousadas e específicas. “As expectativas de aprimoramento estão centradas na necessidade de uma avaliação institucional e estrutural das políticas educacionais e na inclusão de estratégias detalhadas, além de uma maior ênfase na educação para a justiça climática”, destaca.