Três ideias que circulam sobre doutrinação e “ideologia de gênero” na escola e que são falsas

Em tempos de debate político, informações erradas circulam nas redes sociais sobre educação; entenda o que elas significam de fato

Nos últimos anos, o debate acerca da suposta “ideologia de gênero” e da “doutrinação” nas escolas do país cresceu de forma veloz não só entre profissionais e envolvidos no campo da educação, como também na sociedade em geral.

Um dos agentes para o crescimento dessa discussão, responsável pelo combate à “ideologia de gênero”, foi o Escola Sem Partido (ESP), movimento que existe desde 2004 e cuja visibilidade aumentou com a tramitação de projetos de lei sobre o tema na Câmara dos Deputados em alguns estados e municípios. O movimento ESP tem por objetivo coibir uma suposta “doutrinação ideológica” dos professores e professoras, que inclui também a abordagem de temas como gênero, raça e sexualidade no ambiente escolar.

Quando analisamos os programas de governo dos presidenciáveis no segundo turno, encontramos posicionamentos e propostas que conversam com essa questão. Fernando Haddad (PT) fala em instituir o programa “Escola com Ciência e Cultura”, como contraponto ao Escola Sem Partido. Jair Bolsonaro (PSL), por sua vezm, pretende ampliar a oferta de matemática, ciências e português “sem doutrinação e sexualização precoce”, além de combater a forte doutrinação e expurgar a ideologia de Paulo Freire.

Para entender esse cenário, o Especial #EducaçãoNasEleições reuniu três ideias que estão circulando na nossa sociedade sobre como anda a educação brasileira e fala o porquê elas são falsas.

“A prática da doutrinação política e ideológica em sala de aula está disseminada em todo o sistema de ensino”

O Escola Sem Partido, junto com outros setores, propaga a desinformação em relação ao que ocorre nas escolas brasileiras. Segundo eles, há em nosso país movimentos que defendem uma escola pública vinculada a um determinado partido político ou ideologia. Desse modo, existiria em todo o Brasil, a “doutrinação ideológica” e as noções de política e cidadania estariam contaminadas de conceitos marxistas. Daí viria a doutrinação e a necessidade de apresentar todas as “versões” dos fatos históricos.

Vale lembrar que política não é algo ruim para a sociedade, e sim um jeito de buscar, de forma coletiva, soluções para nossas questões sociais, que afetam o cotidiano dos brasileiros, como, por exemplo, a baixa qualidade da saúde e da educação. A política, enquanto ação, é uma das formas de garantirmos nossos direitos enquanto cidadãos.

“Não existe nenhum movimento social de educação que defenda isso [escola vinculada a um determinado partido político], algo terminantemente proibido pela Constituição Brasileira e pela legislação educacional. Pelo contrário, a Constituição fixa que a educação é um direito de todos e dever do Estado e estabelece em seu artigo 206 que a pluralidade de ideias e de concepções pedagógicas esteja sempre na base da educação. Na verdade, são as propostas do ESP que constituem um ataque a esse princípio da pluralidade de ideias na educação, já que defendem a aprovação de leis que proíbem que as escolas discutam questões fundamentais para a promoção da igualdade na sociedade brasileira”, afirma Denise Carreira, coordenadora da Ação Educativa, em seu artigo “No chão da escola: conversando com famílias e profissionais da educação sobre o Escola Sem Partido”.

“A ideologia de gênero quer desconstruir as famílias e influenciar nossas crianças”

Durante os debates sobre os planos de educação municipais, estaduais e nacional, em 2014, um dos temas que ganhou mais visibilidade foi a “ideologia de gênero”, que seria uma expressão cunhada por grupos contrários ao debate sobre superação das desigualdades entre homens e mulheres, à violência contra a mulher e a homofobia para acusar que as/os professoras/es e a mídia estariam confundindo as crianças e as incentivando a trocar de sexo.

Suas consequências seriam a sexualização precoce de crianças e adolescentes e a destruição da família. O combate a essa ideologia teve em sua liderança um movimento conservador de origem religiosa, que viu ameaças à construção da família ao falar de gênero na escola. Só que falar de gênero na escola é falar sobre quem somos, sobre como cada aluno ou aluna se enxerga no mundo, como se entende, e é fundamental para combater violências e discriminações – ou seja, o famoso bullying. Ser contra o debate de gênero na escola não é proteger a família, é promover a intolerância no ambiente escolar.

Na realidade, os estudos sobre gênero tem a ver com entender as origens e consequências dos lugares sociais diferentes (e desiguais) para homens e mulheres. Nesse sentido, tais teorias pretendem questionar comportamentos e condutas atribuídos aos sexos biológicos, jogando luz na força das construções culturais, que dependem de vários fatores – e que mudam de acordo com a época em que vivemos, com o lugar e com os costumes.

“A escola é um espaço para o aluno ter contato com a diferença, principalmente a escola pública, que é onde percebemos isso melhor. Na escola pública você consegue ter um contato maior com a diversidade, diversidade no âmbito geral”, relata Juliana, aluna da rede estadual de São Paulo em 2016.

O fundamentalismo religioso, presente em várias religiões, acredita que sua visão de mundo é a única possível de existir e ser seguida. Todas as outras crenças ou formas de ver o mundo seriam ameaças aos valores tradicionais. Mas ser religioso não é ser fundamentalista!

“É na convivência nos núcleos familiares, na rua, no trabalho e na escola – um importante espaço de socialização – que aprendemos sobre nós e sobre os outros. Por meio da interação social, do contato, de conflitos e de negociações, as pessoas se mostram, se conhecem, refletem, aprendem a negociar num exercício constante do diálogo que leva à articulação de saberes, de experiências e à redução das desigualdades, principalmente raciais.”, apontam Ana Lúcia Silva Souza e Ednéia Gonçalves, no texto “Reeducação nas relações raciais e ESP”.

A laicidade é um dos princípios da educação, defendida, inclusive, por instituições religiosas que acreditam que as entidades públicas, como a escola, não podem ser espaços de uma religião única, e sim o local de acolhimento, de respeito e de solidariedade às diversas manifestações religiosas. A liberdade religiosa está na nossa Constituição e deve ser respeitada.

“É preciso expurgar a ideologia de Paulo Freire da escola”

Paulo Freire é um dos intelectuais brasileiros mais conhecidos internacionalmente. Seu compromisso com uma educação de qualidade e com a mudança da nossa realidade foi seu objetivo de vida. Em um país com altos índices de analfabetismo, Freire realizou experiências inovadoras no campo da alfabetização de jovens e adultos.

No exílio, durante a ditadura militar, passou por vários países. Trabalhou durante 15 anos no Conselho Mundial de Igrejas, na Suíça, local em que aprofundou suas reflexões e teorias enquanto educador, viajando e assessorando governos em políticas públicas de alfabetização e educação. Inclusive, sua formação cristã o influenciou durante toda a vida.

Sendo assim, a suposta ideologia de Paulo Freire nada mais é que respeitar as realidades e trajetórias de educandos e educandas. É entender que os saberes são diversos e que o processo de educação não é uma transmissão do conhecimento – o que ele denominou como “educação bancária”, mas um profundo processo de transformação e conscientização do seu papel e do seu lugar no mundo.

“É verdade, educar não é adestrar. Todo proselitismo, toda doutrinação devem ser combatidas na escola, como o fez Paulo Freire. Mas é dever do professor formar cidadãos fomentando o debate e a discussão sobre valores, sobre a educação que queremos, sobre a educação que precisamos para o país que queremos”, conta Moacir Gadotti, presidente de honra do Instituto Paulo Freire e professor aposentado da Universidade de São Paulo, no artigo “A Escola Cidadã frente à Escola Sem Partido”.

Que saber mais sobre o Escola Sem Partido e a importância de discutir gênero na escola? O Especial #EducaçãoNasEleições indica dois livros:

Reportagem: Denise Eloy

 

O Especial #EducaçãoNasEleições é uma parceria entre Ação Educativa e Carta Educação.

Carta Educação Ação Educativa Eleições

 

Acompanhe todos os conteúdos do especial #EducaçãoNasEleições:
– Quais são os desafios da educação escolar indígena para a presidência
– Corrida Presidencial: Plano Nacional de Educação tem presença tímida
– O que 10 candidaturas à presidência propõem para a educação no Brasil
– Reforma do Ensino Médio: entre a propaganda e a realidade
– 20 metas de educação tão boas que você vai querer tatuar
– Quanto custa a educação pública de qualidade no Brasil?
– No centro da fogueira: gênero, raça e diversidade sexual nas eleições
– BNCC e a defesa da centralização curricular nas candidaturas ao planalto
– Como os planos de governo se comprometem (ou não) com as metas de educação
– Analfabetismo no Brasil: cenário e estratégias de superação

Uma ideia sobre “Três ideias que circulam sobre doutrinação e “ideologia de gênero” na escola e que são falsas

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