Por pressão de grupos religiosos, metas relacionadas à igualdade de gênero foram retiradas do Plano Municipal de Educação de Ipê (RS)
Com cerca de seis mil habitantes e a 170 quilômetros da capital do estado do Rio Grande do Sul, o município de Ipê (RS) e sua população enfrentaram polêmica durante a tramitação do terceiro Plano de Educação da cidade (PME 2015-2025). Após a elaboração do documento ser conduzida pelo Conselho Municipal de Educação (CME), pelo Fórum Municipal de Educação (FME) e pela Secretaria Municipal de Educação (SME), os vereadores decidiram retirar do Plano os trechos que estivessem relacionados à igualdade de gênero.
“Ficamos indignados com a retirada da questão de gênero, mas nossa principal revolta foi por terem desrespeitado todo o processo participativo de construção do Plano. O Fórum e o Conselho se reuniam semanalmente para discutir o PME, o que fez com que os professores se sentissem ainda mais ofendidos”, declarou a presidente do CME e representante do Fórum, Cristiane Parisoto, que também é professora das redes estadual e municipal de ensino em Ipê.
O atual Plano de Educação da cidade gaúcha começou a ser construído a partir da instituição do Fórum em 2013. “Depois de constituir o Fórum Municipal de Educação, começamos a participar também nas etapas preparatórias da Conae [Conferência Nacional de Educação]”, relatou Cristiane. Segundo ela, o Fórum foi criado para “elaborar e fiscalizar o Plano, tendo caráter permanente e sendo composto por representantes das redes estadual e municipal, da Câmara dos Vereadores, do conselho tutelar, de mães e pais e das secretarias da Fazenda e da Saúde, entre outros”.
“O mais estranho é que os vereadores não nos ouviram e, no dia da votação, simplesmente tiraram as citações de gênero do Plano e o aprovaram. Foi estranho porque só ouviram o lado religioso e começaram a distorcer as informações. Um vereador chegou ao cúmulo de dizer, por exemplo, que se o Plano não fosse alterado qualquer professor poderia mandar meninos beijarem meninos e meninas beijarem meninas”, reclamou a presidente do CME.
Em resposta à atitude dos vereadores, tanto representantes do Conselho quanto representantes do Fórum e da sociedade civil começaram a se manifestar contra a aprovação do PME. “Escrevemos um manifesto assinado pelos educadores das sete escolas de Ipê, solicitando que o Prefeito vetasse o projeto com as emendas e que fosse realizada nova sessão para aprovação do Plano, onde pudéssemos nos manifestar. Isso não aconteceu e o PME foi sancionado com as mudanças”, afirmou Cristiane. (Clique aqui e confira o manifesto)
Participação pela cidadania
Ainda que os vereadores e o Prefeito Valério Marcon (PP) não tenham aprovado o texto conforme foi construído pela sociedade civil, a presidenta do Conselho Municipal de Educação (CME) continua defendendo a gestão democrática na elaboração de políticas na área educacional. “De tudo isso, fica a certeza de que, mesmo com avanços no Plano, ainda temos que lutar pela efetivação da gestão democrática. E, cada vez mais, a sociedade precisa se organizar e participar. Os Conselhos de Educação e principalmente os Fóruns Municipais de Educação são ótimos exemplos de como é possível exercer nossa cidadania”, afiançou Cristiane.
Após o texto ter sido aprovado, representantes do Conselho e do Fórum Municipal de Educação de Ipê, juntamente com professores das escolas municipais e estaduais e pais dos Círculos de Pais e Mestres (CPMs) das escolas, participaram de sessão da Câmara dos Vereadores, registrando o desapontamento e esclarecendo as distorções divulgadas a respeito do Plano. “Dessa forma, mostramos ao Poder Legislativo que nós, educadores, queremos ser ouvidos quando forem tratar de educação, e os lembramos que o Estado é laico e que não podemos deixar que convicções religiosas determinem o que ensinaremos em nossas escolas”, relatou a presidenta do CME.
Apesar de se sentir desrespeitada, a professora acredita que o processo de construção do PME de Ipê serve para provocar toda a população da cidade: “muita gente não quer se incomodar, mas precisamos assumir o compromisso de participar da construção das políticas públicas. Passei tudo o que ocorreu para meus alunos, ressaltando que não podemos aceitar que outros decidam por nós. Nós precisamos nos fazer ouvir e esse é um dos legados de toda a nossa mobilização”.
Igualdade de gênero
Quanto às temáticas relacionadas à igualdade de gênero, Cristiane observa que – constando ou não no Plano de Educação – elas já estão presentes no cotidiano das escolas. “Principalmente no ensino médio, onde estavam as estratégias relacionadas à gênero no nosso PME, vejo o quanto não abordar este tema dificulta a permanência dos jovens. Uma das estratégias fazia referência à formação dos professores para trabalharem com estes temas e a ideia de que todos estudantes possam ser incluídos de fato”, exemplificou a presidenta do Conselho.
Ainda que a referência à “gênero” não conste no PME, a professora ressalta que não é necessário que “deputados, senadores ou vereadores aprovem isso nos Planos para que estes temas façam parte das nossas aulas”. E complementa: “somente queríamos assegurar que nós professores tivéssemos formação continuada sobre esses temas, que nossas bibliotecas pudessem receber acervo a esse respeito e que fosse criada uma rede de proteção contra esse tipo de discriminação, para evitar a evasão escolar dos adolescentes e jovens vítimas de preconceito. Além disso, quando discutimos relações de gênero, estamos também evitando a propagação do machismo e da violência contra a mulher”.
Veja também: “O que fazer se a igualdade de gênero não tiver sido aprovada no Plano de Educação?”
Imagens: Processo de construção do Plano Municipal de Educação de Ipê (RS) / Divulgação
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Reportagem – Gabriel Maia Salgado
Edição – Ananda Grinkraut