Abandonado e inviabilizado desde o golpe de 2016, PNE volta ao horizonte na transição do governo. Desafio é revogar medidas de austeridade que o sufocaram
Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira
O novo governo Lula ainda não começou, mas tem inúmeros e urgentes desafios pela frente. Em todas as áreas, como apontam os boletins do gabinete de transição, o cenário deixado por Bolsonaro é de terra arrasada. A educação não apenas é um dos campos mais afetados pelos cortes orçamentários, mas também sofre com a ausência da participação social e da gestão democrática. No centro dessa tempestade, um completo abandono do Plano Nacional de Educação (PNE) que, embora tenha vigência até junho de 2024, nunca norteou as políticas educacionais do atual governo – e desde o golpe parlamentar de 2016 tem sido, na prática, descontinuado pelas sucessivas políticas de austeridade.
O primeiro relatório da equipe de Educação do gabinete de transição corrobora essa percepção. De acordo com o colegiado, o Ministério da Educação (MEC) durante o governo Bolsonaro “perdeu protagonismo na execução orçamentária de programas, ações e investimentos” e teve sua condução marcada pela “inaptidão técnica, aversão ao diálogo e improviso”. O relatório, entregue no dia 30 de novembro com diagnósticos e recomendações para o novo governo, não é público (os trechos acima foram obtidos pelo G1), e um novo documento ainda deve ser entregue durante o mês de dezembro. “A Comissão de Transição tem como objetivos fazer um diagnóstico da situação em cada área e propor ações imediatas que o governo pode fazer logo após a posse. Mas não é possível ter certeza de que as recomendações serão acatadas, porque elas ainda precisam ser aprovadas pela Coordenação Geral, que filtra o que é ou não encaminhado ao novo governo que, por sua vez, também dá seu aval sobre colocar a recomendação em prática ou não”, explica Heleno Araújo, Presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e membro da equipe de transição em educação. Ou seja, ainda há muito espaço para disputa das pautas.
“As agendas prioritárias se dividem entre aquelas a serem recolocadas na centralidade e voltarem a avançar, como o PNE, regulamentações e orçamento, e aquelas a serem revogadas – como o Teto de Gastos e novo Ensino Médio”, resume Andressa Pellanda, coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que também destaca a centralidade das pautas de recomposição do orçamento e recuperação dos impactos da pandemia de Covid-19. Heleno também destaca a defesa intransigente do uso de recursos públicos para a educação pública. “Todos os atores que quiserem contribuir são bem-vindos, mas não podem receber dinheiro público. Não podemos continuar com a política de entregar as escolas públicas ao setor privado, aos militares da reserva, às famílias”, reforça. “Precisamos retomar o Plano Nacional de Educação como epicentro das políticas educacionais do nosso país”.
Outros pontos abordados no primeiro relatório já entregue foram a redução de recursos para as políticas educacionais e o desmonte de programas como o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), o Programa Universidade Para Todos (Prouni) e o Proinfância. O gabinete de transição na área converge também em reverter projetos ultraconservadores da agenda de Bolsonaro, como a educação domiciliar e a militarização.
Mas, apesar dos muitos consensos, a composição heterogênea do GT reflete as disputas do campo e são um prenúncio de que a luta por uma educação pública, gratuita, laica e de qualidade para todas e todos seguirá no novo governo. Tópicos como o Sistema Nacional de Educação (SNE), o Custo Aluno-Qualidade (CAQ) e a revogação da Emenda Constitucional 95 (EC 95, do Teto de Gastos) e do Novo Ensino Médio continuarão em disputa, bem como a urgência em assegurar os mecanismos de participação e controle social. “Pelo cenário posto na Transição e frente ampla de coalizão formada ao redor de Lula, com inclusão de representações do campo empresarial que gestaram e sustentaram as reformas de Estado e na área da educação desde Temer, vejo com preocupação como serão encaradas essas agendas, já que apoiam tais reformas”, alerta Andressa. “Desde antes de começar o novo governo já estamos vendo que o reformismo neoliberal não deve ser deixado tão enfaticamente quanto deveria para a retomada da centralidade das políticas sociais com financiamento adequado e gestão democrática”, completa.
Centralidade do PNE e financiamento da educação pública
Como a Iniciativa De Olho nos Planos vêm reportando ao longo de anos, a mais importante política educacional brasileira e fruto de anos de debates com intensa participação social, foi escanteada no governo Bolsonaro. O último monitoramento da Campanha Nacional pelo Direito à Educação mostrou que 86% das metas e indicadores não serão cumpridas até o fim da vigência do PNE se o ritmo atual for mantido. E além do descumprimento há metas em retrocesso. Ou seja, retomar a centralidade dos Planos no próximo mandato é primordial para o país voltar a avançar em educação e reduzir as desigualdades educacionais e sociais.
O Plano Nacional de Educação (PNE, Lei 13.005/14) aprovado em 2014 após acirrada tramitação no Congresso foi uma vitória da sociedade civil e dos movimentos sociais da área da Educação, sublinhando a importância do planejamento educacional, orientando o investimento e a gestão, além de referenciar o controle social e a participação cidadã. Mas começou a ser esvaziado já em 2015 com medidas de ajuste fiscal do segundo governo Dilma. E a aprovação da EC 95 em 2016, que constitucionalizou os cortes orçamentários por 20 anos, inviabilizou qualquer progresso real, já que sem novos recursos é impossível cumprir várias das metas do PNE que preveem, por exemplo, aumento de matrículas. Fora o efeito em cascata do descumprimento da meta 20, que versa sobre a ampliação do investimento público em educação pública. O resultado deste abandono é que persistem as desigualdades educacionais entre brancos e negros no país, bem como as desigualdades regionais e disparidades entre rede pública e privada.
A boa notícia é que a proposta de governo de Lula para seu terceiro mandato não apenas mencionava a retomada do PNE, mas também a necessidade de investir em educação de qualidade e de revogar o Teto de Gastos. Uma preocupação ausente, por exemplo, na proposta da então candidata Simone Tebet, que agora compõe um dos GTs da equipe de transição. Lula também prometeu assegurar a continuidade das políticas de cotas sociais e raciais na educação superior e nos concursos públicos federais, bem como sua ampliação para outras políticas públicas. Um ponto de atenção é que sua proposta não cita as Leis 10.639/03 que completará 20 anos em 2023, e a 11.645/08, que tornaram obrigatório o ensino e a cultura africana, afrobrasileira e indígena em todas as escolas públicas e privadas do Brasil. Isso evidencia o enorme desafio no reconhecimento do racismo como estruturante das desigualdades no país.
Apesar da aprovação do Novo Fundeb no final de 2021 com aumento da contribuição da União ao Fundo, o novo governo deve se atentar à regulamentação do VAAR (Valor Aluno Ano por Resultado) no Fundeb como ponto estratégico de entrada da luta contra o racismo no financiamento. Assim, a distribuição de 2,5% da complementação da União deve ser feita conforme indicadores de atendimento e melhoria da aprendizagem que visem reduzir as desigualdades nos termos do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SINAEB), incorporando dimensões e processos avaliativos que envolvam a participação das comunidades escolares e captem desafios referentes às desigualdades educacionais, aos insumos (CAQ) e aos processos pedagógicos.
E além do desafio de retomar a centralidade do atual PNE, o terceiro mandato de Lula abarcará o período final de sua vigência, tendo ainda que construir e propor um novo Plano Nacional de Educação para entrar vigorar a partir de julho de 2024.
“Entendo que os maiores desafios para o próximo mandato são reestabelecer o financiamento, que foi diminuindo ano a ano principalmente por conta da EC 95, e reestabelecer a participação social, muito afetada por exemplo pela Portaria 577 do MEC, que desconfigurou o Fórum Nacional de Educação ao retirar a participação da sociedade civil. Revogar a EC 95, reestabelecer a previsão orçamentária e o retomar o diálogo são os objetivos, sempre tendo o PNE como norte”, destaca Heleno Araújo.
EJA e Ensino Médio
Não há modalidade ou etapa de ensino que tenha passado ilesa pelo governo Bolsonaro. As universidades federais não têm verbas para pagar residentes e bolsistas, a alimentação escolar teve reajustes vetados, sobrecarregando ainda mais estados e municípios. A Educação de Jovens e Adultos (EJA) foi quase totalmente desfinanciada – em 2022 o orçamento de 8 milhões de reais é apenas 0.44% do que foi em 2012. Esses desafios dão a urgência da revogação da EC 95 para que o país volte a investir em educação de qualidade para todas e todos e não deixe ninguém para trás.
Os últimos balanços do PNE também mostram que nesse cenário geral de desmonte e destruição, algumas metas estão particularmente prejudicadas. Entre elas, as que se referem à redução de desigualdades, o combate ao analfabetismo e o Ensino Médio. O novo Ensino Médio, como destacou a Campanha em balanço, é um marco negativo para o cumprimento da Meta 3, que diz respeito à universalização do atendimento escolar para a população de 15 a 17 anos e ao aumento das matrículas nesta etapa. Mas a reforma dá margem à privatização e não garante as condições necessárias nas escolas como infraestrutura e falta de professoras/es com formação adequada. Na prática, como destaca a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) em nota técnica sobre o tema, acirra as desigualdades educacionais, aumentado o fosso entre estudantes da rede pública e da rede privada e mesmo dentro da rede pública. “A reforma do ensino médio continuará em pauta porque está se destruindo por si própria – além de ser totalmente descabida em termos de educação, não há condições para implementá-la”, destaca a coordenadora geral da Campanha, Andressa Pellanda.
Por isso, em 2022, diversas organizações, incluindo a Ação Educativa, assinaram uma carta aberta pela revogação da Reforma do Ensino Médio. Essa não é uma posição unânime no campo da educação, e por isso embates nesse tema podem acontecer no governo Lula. Mais uma vez, será necessária grande mobilização e pressão dos setores progressistas da Educação para garantir que visões privatistas não se imponham na discussão.
Pautas ultraconservadoras
Muitas foram as agendas ultraconservadoras na Educação impulsionadas por Bolsonaro ao longo de seu mandato: a militarização das escolas, a educação domiciliar, enfraquecimento da laicidade e a criminalização de debates sobre gênero, raça e direitos humanos são alguns deles.
A militarização, por exemplo, foi intensificada logo no início do governo, através de portaria de 2019 que criou o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim). Nesse modelo, o estado ou o município assinam termo de cooperação com o MEC e policiais militares ou das Forças Armadas podem atuar dentro das escolas, com função pedagógica, administrativa e disciplinar. E foi consenso entre a equipe de transição que o novo governo deve revogar essa portaria e tentar reverter o processo de militarização tão impulsionado por Bolsonaro. Como enfatizou a professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UNB), Catarina de Almeida Santos, em webinário promovido pela Iniciativa De Olho nos Planos, tão importante quanto não fomentar essa agenda é tentar reverter o processo de militarização.
Resta saber se isso, de fato, acontecerá, e se o novo governo Lula será bem sucedido em desmobilizar uma demanda que tem certo apoio popular e que também pode ser implementada a nível estadual ou municipal. Um exemplo: em 2020, o estado do Paraná sozinho anunciou a adesão de 216 escolas da rede estadual a esse modelo, processo implementado sob a gestão de Renato Feder, recentemente anunciado por Tarcísio de Freitas como futuro Secretário de Educação em São Paulo a partir de 2023, um risco para a qualidade das escolas no Estado.
INEP
O primeiro relatório da equipe de transição, segundo o G1, também apontou fragilidades na coordenação do MEC para a elaboração das provas do Enem. Isso pode ser um sintoma das sucessivas tentativas de desmonte do órgão responsável por elas, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Na gestão Bolsonaro, foram muitas as intervenções no Inep na tentativa de deixar o Enem com “a cara do governo” – e se não houve intervenção ideológica na escolha das questões, o ano de 2021 foi palco do Enem mais branco da história. Além disso, microdados do Censo Escolar foram descartados pelo Inep, o que causou reação de entidades, redes de pesquisa e movimentos sociais.
O INEP teve sucessivas trocas de dirigentes e ataques à burocracia – por exemplo, uma proposta de Reforma Administrativa que retira a estabilidade dos servidores que foram cruciais na resistência ao desmonte. A pressão foi tanta que 35 funcionários entregaram seus postos de chefia na semana do Enem 2021, sinalizando que não queriam participar do projeto em curso.
Sendo o INEP fundamental para a produção de dados sobre a realidade educacional brasileira, frear os desmontes, fortalecer o órgão e retomar coletas de dados e bases de informações mais sólidas para o monitoramento das políticas educacionais é também um dos grandes desafios do terceiro governo Lula.
Sistema Nacional de Educação (SNE)
O SNE já está previsto na Constituição e no PNE, mas ainda não tem lei que o regulamente, colocando-o como um dos grandes desafios do novo governo na área de Educação. Em março de 2022, o projeto de lei complementar 235/19, que regulamenta o SNE, foi aprovado por unanimidade no Senado após ter sido apressado pelo governo Bolsonaro. Agora, o projeto – que tem falhas graves em pontos como o Custo Aluno-Qualidade (CAQ), gestão democrática e avaliação da educação básica – aguarda análise na Câmara.
Assim como o SUS na saúde, o SNE teria, na educação, as funções de dar coesão e unidade às políticas públicas, articular realidades locais com a nacional, integrar o sistema educacional, assegurar a colaboração e a cooperação – inclusive financeira – entre as esferas municipais, estaduais e a União, combater iniquidades, fortalecer a participação social e a gestão democrática em educação, além de especificar os recursos que integram o financiamento da educação e que formam os padrões de qualidade do CAQ. Mas para fazer tudo isso precisa de uma lei de regulamentação forte, coerente e que valorize esses aspectos, o que não aconteceu até o momento. Como detalhamos em matéria de abril, um dos desafios da lei do SNE é regulamentar o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica e vincular o CAQ ao Fundeb. Mas caso o texto final continue sem fazer esse detalhamento, a lacuna pode prolongar os embates em torno da regulamentação do CAQ, que já é alvo de disputas há anos e não faz parte da agenda dos setores empresariais na educação. Além disso, o texto não contempla a participação de sociedade civil, sindicatos, estudantes ou comunidades escolares nas esferas de decisão e monitoramento, apenas gestores. Embora reconheça mecanismos que já existem, como o Fórum Nacional de Educação, as comissões tripartite e bipartite contariam apenas com governo em sua composição, sendo portanto um retrocesso no aspecto da gestão democrática e da participação social na educação.