Documento referência também contempla a revogação do Novo Ensino Médio. Texto deve ser a base do novo PNE
Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira
Entre os dias 28 e 30 de janeiro, milhares de pessoas de diversos segmentos educacionais – como educadoras e educadores, estudantes, pais, gestão escolar, movimentos sociais e sociedade civil organizada – reuniram-se em Brasília para a Conferência Nacional de Educação (CONAE). Com o tema “Plano Nacional de Educação 2024-2034: Política de Estado para garantia da educação como direito humano com justiça social e desenvolvimento socioambiental sustentável”, a CONAE teve como objetivo construir as diretrizes, metas e estratégias que devem guiar o novo Plano Nacional de Educação (PNE), documento que orientará as políticas em Educação na próxima década.
Movimentos, entidades e ativistas comprometidos com a educação pública, laica, de qualidade para todas e todos participaram ativamente da Conferência – apesar dos desafios históricos para efetivar a gestão democrática em espaços como esse. As discussões dos três dias de evento resultaram num documento referência, que só foi consolidado após aprovação de cada um dos seus pontos pelos participantes. Esse texto, que é a base do novo PNE, contempla várias agendas importantes, como: o aumento do investimento em educação pública, a revogação do Novo Ensino Médio (NEM) e a necessidade das discussões sobre gênero, raça e combate a todas as formas de discriminação.
O documento referência agora será entregue formalmente pelo Fórum Nacional de Educação (FNE) – que também reúne diversos segmentos educacionais – ao Ministério da Educação/Presidência da República. O governo, por sua vez, analisará o texto construído coletivamente à luz da Constituição e demais legislações em vigor, fazendo possíveis adaptações e o apresentará como projeto de lei ao Congresso para que enfim inicie sua tramitação no Legislativo. O novo PNE só vira lei após aprovação na Câmara, no Senado e posterior sanção presidencial, podendo sofrer alterações em cada uma dessas etapas. Embora o atual PNE termine sua vigência ainda em 2024, este processo não tem data para ser finalizado – o ministro da Educação, Camilo Santana, manifestou interesse de apresentar o texto ao Congresso neste primeiro semestre.
Com tantos passos – e poucas garantias – até a aprovação do novo PNE, por que é importante que a CONAE tenha defendido a revogação do NEM? O que significa ter uma agenda validada pela Conferência? É uma vitória apenas simbólica? Como podemos usar isso em nossa luta por uma educação de qualidade para todas e todos?
Documento referência: validação de peso
O papel de uma Conferência Nacional de Educação é influenciar a elaboração, reformulação e implementação das políticas educacionais, o que se complementa ao papel de monitoramento e avaliação dos planos nacionais, estaduais e municipais, por seus respectivos fóruns (FNE, FEEs e FMEs). Por isso, ela precisa assegurar a maior representatividade geográfica e de segmentos possível. Na CONAE de 2014, foram mais de 4 mil delegados (com direito a voto), e neste ano cerca de 2.500 pessoas participaram e 1847 delegadas e delegados foram eleitos em etapas anteriores, nas conferências municipais, regionais e estaduais, além das indicações nacionais feitas conforme regimento aprovado pelo FNE.
“A CONAE é o principal processo participativo nacional que visa vocalizar as demandas da sociedade civil para o campo das políticas educacionais, legitimando proposições, diagnósticos e denúncias. Logo, é muito importante termos aprovadas na Conae propostas e moções que manifestam desafios a serem priorizados pelas políticas educacionais”, destaca Denise Carreira, Professora da FEUSP, integrante da coordenação da Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação e sócia-educadora da Ação Educativa.
O texto-referência que chega na CONAE é resultado do que foi trabalhado nos níveis estadual e municipal. Ou seja, quando uma agenda é aprovada na etapa nacional, ela foi validada pela sociedade civil em um processo amplo, complexo e representativo – ainda que não seja perfeito. Neste ano foram 8.651 emendas aos 1.134 parágrafos que compunham o texto inicial. O texto final aprovado propõe, entre outras agendas, a revogação da Reforma do Ensino Médio e da Base Comum Curricular; a universalização da pré-escola a partir dos quatro anos e do ensino fundamental de nove anos, educação em tempo integral para pelo menos metade dos estudantes e investimento de 10% do PIB para a educação.
“Em termos gerais, temos conquistas importantes, porém a fragilidade das condições das crianças, adolescentes e jovens negras (os), indígenas e migrantes no sistema de ensino nacional é flagrante, de maneira que a equidade racial deve ocupar papel central na construção da agenda por direitos educacionais. Entendemos que é preciso um olhar para a equidade racial mais profundo e em vários temas”, ressalta a representante da Uneafro, Adriana Moreira, destacando que o novo PNE não será de fato democrático se não contemplar o combate ao racismo de forma estrutural.
A Uneafro, organização que há 15 anos luta por uma educação antirracista e anticolonial, participou de todas as etapas e elegeu delegados/as para a Conferência Nacional. Em 2024 optou por também levar uma comitiva de 30 estudantes negras/os, indígenas e periféricos para uma incidência mais direta e crítica ao modelo atual. Foram cartazes, faixas, panfletagem, música, além da ação política mais tradicional. “Entendemos que há hoje um dilema no processo da construção das Conferências, que poderiam significar muito mais para as demandas históricas da população brasileira, sobretudo para a população negra. Ainda que se reconheça a relevância das construções e sistematizações do universo acadêmico e da fundamentação teórica das políticas públicas, é fundamental a escuta qualificada das demandas dos grupos populacionais ainda excluídos do direito à educação. Sem essas características fundamentais, a conferência pode padecer por se tornar uma espaço estéril em virtude de seu caráter tecnocrata e suas resoluções não corresponderem às demandas objetivas dos grupos mais fragilizados da sociedade brasileira”, avalia Adriana Moreira, representante da organização. A crítica da Uneafro é que espaços como as conferências de educação têm tido cada vez mais dificuldade de dialogar com as bases. Por isso o esforço de levar estudantes para conhecerem esse espaço e fortalecer a agenda da equidade racial como eixo estruturante do PNE.
Processos como as Conferências buscam assegurar que o Plano Nacional de Educação – a mais importante política pública de planejamento educacional – não seja construído apenas com a visão do governo. Nessa linha, segundo as regras aprovadas nesta edição, as decisões têm caráter vinculante. Isto é: o governo não pode apresentar ao Congresso um texto que contrarie as diretrizes construídas na CONAE com participação da sociedade. “A CONAE é um esforço de muitas pessoas e que gera um documento que tem um caminho árido até a aprovação. Precisamos defendê-lo, porque se não estivermos atentos, a tendência é que existam alterações significativas em relação ao que foi pensado”, diz Sérgio Stoco, professor de Políticas Públicas na Unifesp e membro do Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES), que compõe o Fórum Nacional de Educação (FNE).
Isso pode ser muito estratégico em temas como a revogação do Novo Ensino Médio (NEM), até agora abordada com certa resistência pelo Ministério da Educação, mas explicitamente defendida no texto da CONAE. O documento referência, por ter um olhar integral sobre a Educação brasileira, não fala apenas na revogação mas sim da construção de uma nova política para o Ensino Médio [e outras etapas], uma vez que se trata de uma política para a próxima década. Ou seja, o governo federal tem a obrigação de defender um PNE nesse sentido.
Moções: explicitando posicionamentos
Além do documento referência, na CONAE há ainda outra possibilidade de marcar posicionamento sobre diferentes agendas: aprovando moções favoráveis ou desfavoráveis em relação a quaisquer temas relevantes. As moções podem ser propostas por qualquer pessoa ou segmento, devem ser endossadas por um número mínimo de entidades ou delegadas/os e então votadas na plenária final, podendo ser aceitas ou rejeitadas. As moções aprovadas expressam o posicionamento ou sentimento daquela audiência – mas não são parte do texto-base do novo PNE. “O texto da moção é a representação explícita, direta e enunciada daquilo que se está pensando, ao passo que o que vai para o documento referência é fruto de um processo de negociação. Por isso, várias questões que aparecem em ambos os processos não aparecem no documento referência com os mesmos termos que aparecem nas moções aprovadas”, explica Sergio Stoco, membro do FNE e coordenador de um dos eixos da CONAE 2024.
Mas legitimar certas agendas por moções é importantíssimo, como ressalta a professora Denise Carreira, porque elas podem ser utilizadas como instrumento de pressão política durante a tramitação do novo PNE ao demandar políticas e programas que enfrentem os desafios colocados nas moções e demais deliberações. Elas também podem ser utilizadas em ações junto ao Sistema de Justiça, em iniciativas no Congresso Nacional e em relatórios e denúncias às instâncias de direitos humanos, como às vinculadas à Organização dos Estados Americanos (OEA) e à Organização das Nações Unidas (ONU).
Foram 57 moções aprovadas na edição de 2024, sendo quatro delas propostas pela Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação: pelo direito à educação e contra a censura nas escolas: “NÃO AO SILÊNCIO E AO MEDO: por uma política de promoção da igualdade de gênero, raça e diversidade sexual na educação – promovendo direitos e enfrentando violências e discriminações contra meninas, mulheres e população LGBTQIA+”; “Inclusão de movimentos sociais e organizações da sociedade civil como segmento da próxima CONAE”; “Moção pela desmilitarização da educação básica e em defesa da educação democrática”; e “Moção contra a liberação da educação domiciliar e em defesa do investimento nas escolas públicas”. “Pela Revogação do Novo Ensino Médio | O Novo Ensino Médio aprofunda Desigualdades e é Retrocesso para Educação Pública, por isso Defendemos sua Revogação. Não Podemos Retroceder!” foi uma moção submetida pela Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS), Campanha Nacional pelo Direito à Educação e Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES/UNICAMP).
A desmilitarização urgente de escolas públicas é uma demanda já antiga de diversas entidades e coletivos do campo da educação. “Somente o fim do decreto do Programa de Escolas Cívico-militares pelo governo federal em 2023 – fruto da pressão da sociedade civil – não deu conta desse desafio, já que muitas escolas públicas seguem militarizadas e governos estaduais anunciaram a expansão de programas de militarização”, justifica Denise Carreira. Já a moção contra a liberação da educação domiciliar, tema que está no Senado, será mobilizada pela Articulação no convencimento de parlamentares contra a medida.
A moção que reforça a urgência de uma política de promoção da igualdade de gênero, raça e diversidade sexual na educação é, por sua vez, chave para pressionar o Ministério da Educação e o governo federal a enfrentar o desafio de construir e implementar políticas robustas e urgentes, inclusive no enfrentamento da violência contra meninas, mulheres e população LGBTQIA+. “É importante ter essa moção aprovada para enfrentar o silêncio e o medo de forças progressistas com relação a essas agendas, sequestradas nos últimos anos por grupos de extrema-direita que promovem pânico moral, desinformação e perseguições às escolas, visando atacar políticas públicas comprometidas com o enfrentamento das desigualdades e à própria democracia”, reforça Denise.
Por sua vez, a inclusão dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil como segmento da CONAE é fundamental para ampliar a participação de sujeitos que foram decisivos na resistência ao desmonte das políticas e programas educacionais dos últimos anos e na formulação de propostas para as políticas públicas. “Essa moção traz uma provocação ao Fórum Nacional de Educação quanto à importância de maior radicalização dos processos de participação social comprometidos com o fortalecimento da democracia e a concretização de direitos constitucionais”, reforça a integrante da coordenação da Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação e sócia-educadora da Ação Educativa.
A luta por um PNE que enfrente as desigualdades educacionais nunca para
As demandas que constam no documento referência da CONAE e que vão servir de base para o novo texto do PNE não vêm de agora. Foram construídas ao longo de anos, senão décadas. Da mesma forma, a luta não se encerra com o fim da CONAE. O PNE ainda tem um longo caminho até sua aprovação, podendo sofrer alterações substanciais. Por isso, a sociedade civil e os movimentos comprometidos com a educação pública e de qualidade precisam continuar vigilantes para que essas demandas históricas sigam contempladas no texto que vai virar lei.
“É importantíssimo ter um documento, mas precisamos ter pessoas lutando pelo documento, senão ele de nada serve”, diz Sergio Stoco, destacando a importância da sociedade civil em todas as próximas etapas – do texto do MEC até a tramitação legislativa. “As pessoas que participaram [da CONAE] têm que estar conscientes de que continuam sendo pessoas responsáveis por esse processo”, completa. Até porque, depois da aprovação do PNE, seguem as construções dos planos de educação estaduais e municipais. E as batalhas em torno do termo “gênero” na tramitação do atual PNE, dez anos atrás, ilustram bem a importância de seguir na luta: apesar de inicialmente constar no texto apresentado pelo governo, a intensa campanha de grupos conservadores à época conseguiu retirar todas as menções à gênero do texto final, o que deu brecha para que planos abertamente antigênero fossem aprovados em outros níveis, e fomentou uma onda de censura e perseguição nas escolas de todo o país.
Por isso, como a Uneafro reforça, o esforço é para assegurar o que foi contemplado, mas também para melhorar onde for possível. Por exemplo, trazendo a agenda da equidade racial de forma mais estrutural. “Já estamos pensando em toda uma agenda em torno do PNE, com um plano de acompanhamento do processo, além de ações mais pontuais. Independente do texto final apresentado, temos que nos preparar para a luta”, resume a ativista Adriana Moreira.