Para a pesquisadora do Núcleo de Estudos de Participação e Ação Coletiva da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Ana Cláudia Teixeira, o Estado brasileiro avançou nos últimos doze anos, mas ainda há dificuldades para a aceitação de espaços de participação popular na construção de políticas municipais, estaduais e federal.
Em entrevista ao portal De Olho nos Planos, Ana Cláudia destacou a importância de espaços como conselhos e conferências temáticas – como as conferências de educação -, para que a sociedade civil possa se articular, obter informações e realizar alianças para se manifestar também por meio do judiciário, em nível nacional ou via denúncias à imprensa.
Em sua fala, também, a pesquisadora apontou desafios para a relação dos governos com a sociedade civil e analisou as políticas de participação nas gestões do presidente Lula e na atual administração da presidenta Dilma Rousseff. “Nós vivemos em um jogo de forças muito desigual e a visão participativa enfrenta um passado e um presente altamente tecnocrata e vinculado a compromissos da governabilidade que amarra e engessa demais o jogo político”, disse Ana Cláudia.
Confira abaixo a entrevista completa:
De Olho nos Planos – Recentemente, observamos o adiamento da Conferência Nacional de Educação e as várias manifestações de repúdio em resposta a este adiamento. Quais são os principais entraves para que se consolidem políticas de participação popular no Brasil hoje?
Ana Cláudia Teixeira – É difícil e um pouco arriscado falar em nível geral, mas nas áreas mais recentes, como a educação, há a batalha para se garantir o mínimo necessário para as coisas funcionarem, de forma que ainda se gasta um bom tempo com discussão sobre regimento, definição da composição e como o conselho deve se estruturar em termos de recursos. Este é um grau inicial.
Por outro lado, as áreas que estão mais consolidadas passam tanto pelo debate sobre a efetividade de suas decisões, quanto em relação a sua representatividade e se estão todos os setores à mesa.
Mas, de maneira geral, o Estado brasileiro está despreparado para incorporar estes espaços de participação. Mesmo na área da saúde, que já está mais consolidada, muitos municípios enfrentam resistência por parte da secretaria que não admite aquele espaço como legítimo de discussão e decisão, tentando empurrar seus representantes para dentro dos espaços, inclusive, destinados à sociedade civil.
De Olho – E como o estado brasileiro está ou não preparado para lidar com processos participativos na construção de suas políticas?
ACT – Existem variações, já que alguns municípios e estados fizeram esforços de criar secretarias específicas para a participação popular. Os governos da Bahia, do Rio Grande do Sul e do Distrito Federal, por exemplo, têm tentado estruturar secretarias específicas. E isso implica não só dar visibilidade às ações, mas garantir infraestrutura, ter respeito às decisões e estabelecer um diálogo mais aprofundado.
Alguns municípios como Guarulhos e Belo Horizonte também tem tido iniciativas neste sentido. No entanto, o que se reclama há muitos anos é que na maior parte dos municípios não há estrutura como recursos para deslocamento e lanche para representantes da sociedade civil. Como querer que o usuário do serviço da Assistência Social, que está em situação de rua, participe, sem ter as condições mínimas para que ele se alimente naquele dia, por exemplo.
Às vezes não se disponibiliza recursos para um boletim informativo, um site e uma equipe responsável por sistematizar as discussões para a tomada de decisões e para o monitoramento das políticas. E do ponto de vista do debate é necessário garantir a sistematização das reuniões. As áreas da saúde e educação estão mais organizadas e têm sistemas próprios de informação, de forma que é possível planejar, tomar decisões em longo prazo e discutir fazendo um debate de alto nível sobre priorização. As informações e a sistematização de um diagnóstico preciso sobre as condições da área é a prioridade número um.
É claro que nada disso é neutro, mas juntar as informações e talvez já questioná-las já é um ponto de partida.
De Olho – E como você avalia a importância destes espaços de participação para a construção de políticas?
ACT – O espaço do conselho ou do plano participativo é um espaço importante de articulação entre os setores da sociedade e até com setores do governo. Na prática, a gente vê que são espaços onde ocorrem muitas alianças entre setores do Estado e da sociedade civil. Não é uma polarização da sociedade civil versus o estado.
E a partir destes espaços é que a sociedade civil consegue, inclusive, muitas informações e alianças que fazem com que seja possível se manifestar, também, em outras instâncias, seja no judiciário, em nível nacional ou fazendo denúncias na mídia. É uma combinação de estratégias e o espaço institucional do conselho ou de uma conferência pode ser uma delas.
De Olho – E como você avalia a política de participação popular nas últimas gestões do governo federal – dos governos Lula e Dilma?
ACT – Nos últimos governos tivemos avanços enormes em termos de pluralização e do aumento de vozes, considerando até mesmo a grande parte de pessoas que vieram da sociedade civil com trajetória de movimento social e que foram para dentro do governo.
No entanto, é possível dizer que o nível de exigência para a participação foi rebaixado. Nos anos 1990, o discurso do Partido dos Trabalhadores (PT) era que a participação levava à inversão de prioridades e à partilha do poder, aonde a sociedade ia de fato entrar em choque com o status quo. Já nos últimos anos, o discurso mudou e agora a participação se estabelece como o diálogo entre as pessoas e o Estado. E o diálogo é isso: um fala uma coisa e outro fala outra, mas não se diz qual será o resultado.
Nos anos 1990, o resultado seria a inversão de prioridades. Essa mudança semântica mostra os sinais da participação popular nas políticas públicas hoje. Aumentam-se as vozes e o diálogo, mas ao que parece não é algo que chega a inverter as prioridades do estado brasileiro.
As políticas de participação melhoraram muito em comparação com o que vinha sendo feito nos governos do Fernando Henrique [Cardoso], em que ocorreram episódios horrorosos como o fechamento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar. A questão é que nós vivemos em um jogo de forças muito desigual e a visão participativa enfrenta um passado e um presente altamente tecnocrata e vinculado a compromissos da governabilidade que amarra e engessa demais o jogo político.
De Olho – E porque isso aconteceu? O que nos levou ao modelo de democracia participativa em que nos encontramos hoje?
ACT – Nós não tivemos nem a reforma do Estado nem a reforma política à altura desses espaços institucionais. E, para isso, teríamos que ter outra relação com o congresso nacional de forma que ele não fosse dominado por setores economicamente poderosos e que não houvesse financiamento privado de campanha. Todo esse jeito de operar a política impactou negativamente os espaços participativos.
De Olho – E quais seriam as perspectivas para a construção de políticas com participação popular?
ACT – Com as manifestações de junho do ano passado e com o aumento de reivindicações pela internet, observa-se a crescente pressão por uma participação direta e menos mediada por representações de entidades, associações e sindicatos. Estamos passando por um momento de inflexão em que a gente não sabe o que vai dar.
Talvez um caminho interessante seja o Brasil aumentar os referendos, plebiscitos, consultas pela internet e as ouvidorias que existem, mas não são sistematizadas como espaços de pressão e de escuta da sociedade. A pressão por uma democracia mais direta e menos mediada por organizações está sendo questionada, mas isso não é necessariamente bom, pensando no valor da discussão coletiva e do debate qualificado, em contraponto ao que poderia se tornar um grande assembleísmo.
De Olho – Você poderia elencar alguns exemplos de processos participativos que podem servir como referência para a criação de políticas públicas na área da educação?
ACT – A saúde é sempre utilizada como referência importante e como área que se estruturou em termos de participação, mas é preciso olhar tanto seus avanços como seus entraves.
Um dos maiores entraves da área da saúde foi a estruturação de um sistema público universal, mas que se implantou na prática como um sistema para os pobres. É importante aprender com os desafios que a área da saúde enfrenta para poder estruturar uma participação popular em um sistema que também é altamente dominado pelo setor privado.
*Foto: Ana Cláudia Teixeira / Divulgação
Reportagem – Gabriel Maia Salgado
Edição – Ananda Grinkraut
Gostaria de expor o exemplo da cidade em que vivo, basta os conselhos questionarem o poder público das ações e utilização dos recursos, acabaram com os conselhos. Hoje em Ilhabela não existem mais Conselho Municipal de Meio Ambiente e do Plano Diretor. O pior é que não temos a quem recorrer e enquanto isto a cidade e os cidadãos perdem em qualidade ambiental.