Articulação, trabalho coletivo e solidariedade foram fundamentais em movimento que ocupou a Seduc do estado por cerca de 30 dias

Texto: Nana Soares | Edição: Claudia Bandeira
Revogar a lei 10.820/2024 e exonerar o Secretário Estadual de Educação, Rossieli Soares. Foram esses os objetivos de centenas de indígenas de mais de 50 etnias que ocuparam a sede da Secretaria de Educação (Seduc) do Pará em janeiro, só saindo de lá mais de um mês depois, com o compromisso do governador Helder Barbalho pela revogação e com o desgaste político de Helder e de seu secretário. E isso quando o estado e a capital, Belém, estão no centro dos holofotes de todo o mundo por estarem às vésperas de sediar a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025 (COP 30), em novembro.
“Nós trabalhamos muito nos eixos de território, educação e saúde, e a lei 10.820 foi um retrocesso em relação a tudo que defendemos, afetando não só as nossas populações, mas todos os povos”, resume Margareth Pedroso, liderança do povo Maytapu e atual coordenadora do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA). “Precisamos não só de um espaço físico em boas condições, mas também de professores em sala de aula, e com condições para lá estar. Para chegar às nossas bases, é preciso iniciativa do governo, e a lei aprovada fazia o contrário, tirava todos os incentivos”, critica ela.
A imensa vitória da resistência indígena na luta pelo direito à educação de qualidade para todas e todos foi fruto de muita organização dos movimentos indígenas do Pará, e da solidariedade e apoio de outras categorias que se somaram à luta, como professoras e professores. E conseguiu revogar uma lei que, segundo ativistas do estado, foi aprovada sem o debate necessário e que sintetizava os objetivos da gestão Rossieli para a educação paraense.
“O segundo mandato do Helder tem sido de ataques institucionais à educação presencial no campo para quilombolas, indígenas, assentados, entre outros grupos”, resume a antropóloga e professora Iza Tapuia, que atua na região do Baixo Tapajós (no oeste do estado do Pará). Em sua avaliação, essa é a principal diferença em relação ao primeiro mandato do político. Avaliação similar à da coordenadora-geral do Sindicato dos Trabalhadores e das Trabalhadoras em Educação Pública do Pará (SINTEPP), Conceição Holanda, e de Letícia da Conceição, educadora e integrante do Comitê da Campanha Nacional pelo Direito à Educação no Pará. “Depois de um primeiro mandato de popularidade recorde, o governador, neste segundo mandato, supostamente estaria orientando a gestão para elevação nos rankings nacionais de educação e exposição do Pará no cenário nacional e internacional. Helder e Rossieli (ambos ministros do governo Temer) buscavam resultados e visibilidade”, avalia Letícia.
A lei 10.820/2024
A lei 10.820/2024, alvo das reivindicações dos movimentos indígenas, foi aprovada em dezembro de 2024 e sancionada pelo governador Helder Barbalho (MDB), estabelecendo regras para o exercício do magistério no estado. A lei unificou dezenas de legislações vigentes, o que fez com que várias delas fossem alteradas ou mesmo revogadas, incluindo algumas que versavam sobre a educação escolar indígena. Por isso, movimentos de populações indígenas, quilombolas, rurais e ribeirinhas entendiam que a 10.820 criava insegurança jurídica e abria brecha para a retirada de direitos já conquistados.
Uma das leis revogadas com a criação da nova legislação era a 7.806/2014, que estabelecia o Sistema Modular de Ensino (Some). O Some regulamenta o funcionamento de aulas presenciais em áreas distantes dos centros urbanos, e há uma extensão específica para o ensino escolar indígena, o Somei (sigla de Sistema de Organização Modular de Ensino Indígena). O Some e o Somei são mecanismos para assegurar a educação presencial em regiões de difícil acesso, respeitando as culturas, línguas e saberes tradicionais. Por isso, sua ausência na nova lei era tão preocupante para os movimentos indígenas (já o Some constava no texto, mas com regime de remuneração alterado).
“A gratificação era fator crucial no Some para poder levar os professores para os territórios, é uma oferta absolutamente diferenciada. É entendendo isso que compreendemos o impacto da lei 10.820 – que não extinguia o Some, mas o inviabilizava”, resume a educadora Letícia da Conceição.
E também por isso argumentava-se que a lei 10.820 abria uma brecha para a expansão do ensino à distância no estado, especialmente em um contexto de expansão do Cemep, um modelo em que os estudantes têm aulas por meio de uma televisão.
Os grupos afetados também alegam não terem sido devidamente consultados na elaboração da lei, aprovada no dia 19 de dezembro. Nesse contexto, a outra reivindicação indígena era – e segue sendo – a exoneração do secretário Rossieli Soares, em cuja gestão se apresentou e aprovou a lei contestada. Para ativistas, Helder Barbalho vem, junto com Rossielli, aprofundando os ataques à educação neste segundo mandato. Investigação da plataforma Amazônia Vox apurou, por exemplo, que o investimento destinado à Educação Indígena no Pará teve corte de 85% entre 2023 e 2024. E que, em 2025, apenas R$500 mil serão destinados para a implementação da Educação Escolar Indígena segundo aprovado na Lei Orçamentária Anual (LOA).
Antes do Pará, Rossielli também foi secretário de Educação dos estados de São Paulo e do Amazonas – neste último, foi condenado por improbidade administrativa. Entre abril e dezembro de 2018, foi Ministro da Educação e, antes disso, como o próprio governo paraense define, “participou ativamente da reformulação do Novo Ensino Médio”, sancionada em fevereiro de 2017 e incessantemente criticada desde então.
Resistência e ocupação da Seduc
É nesse contexto que a ação de resistência liderada pelos indígenas começa a tomar forma. Ainda antes da aprovação da lei 10.820, os povos já estavam mobilizados contra os retrocessos, especialmente o avanço do ensino à distância e as condições precárias de infraestrutura. “No Baixo Tapajós, ainda não temos escolas estaduais regulares, apenas as modulares [via Somei], então a entrada do Cemep nos preocupa, especialmente porque nem sempre temos energia e internet. Além disso, o ensino modular funciona”, diz Margareth Maytapu, coordenadora do CITA. “E quando vimos a lei e que ela ia de encontro a tudo que nós lutamos, é briga. Não era uma lei para nós, nós da ponta não fomos consultados. E isso fez com que nos revoltássemos, porque era como se não existíssemos, sendo que sim, existimos e estamos aqui, preservando a floresta. Nada para nós sem nós”, reforça ela.
Entendendo que a lei recém-aprovada no estado era uma ameaça direta à educação e aos direitos indígenas de maneira geral, lideranças de 14 povos que compõem o Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA) reuniram-se para pensar quais seriam as ações para forçar a revogação da 10.820/24.
“Primeiro, tomamos a decisão que não iríamos matricular nenhum aluno no Cemep, pois já temos o nosso sistema [o Somei]. Mas, mesmo depois dessa pressão, a lei foi aprovada em dezembro, no apagar das luzes do ano. Então nos reunimos mais uma vez e percebemos que a pressão tinha que acontecer em Belém, que se ficássemos parados a lei ia entrar em vigor e seria um ataque à educação como um todo, não só a indígena”, relembra Iza Tapuia, professora do Somei e membro do CITA.
Logo nos primeiros dias do ano um barco com cerca de 50 pessoas partiu rumo à capital para a ocupação, chegando em Belém no dia 13 de janeiro. A ordem, como enfatizam as lideranças participantes, era revogar e exonerar. No início da ocupação, houve confronto com a polícia, mas o acampamento indígena conseguiu se estabelecer. Como contou o site Amazônia Real, o início do protesto teve também intimidações e restrição a comida, água e acessos aos banheiros e outros locais do prédio.
Por mais de um mês, centenas de indígenas, representando cerca de 55 etnias, permaneceram no prédio, contando com o apoio logístico e financeiro de movimentos indígenas e não indígenas. “Acho que a princípio todo mundo se assustou, porque não imaginavam que os indígenas poderiam ocupar a Seduc, mas ocupamos e foi um movimento incrível”, diz Iza Tapuia, liderança que também esteve presente desde o começo do movimento.”Nós formamos um grupo de mídia indígena muito forte e comunicamos à sociedade, e ela respondeu de maneira fabulosa”, acrescenta. Iza refere-se a todo o apoio logístico e financeiro que permitiu que a ocupação continuasse e abrigasse mais pessoas. “Das 7h às 22h as pessoas passavam, deixavam barracas, colchonetes, alimentação, água, davam o apoio que nós precisávamos. Sem esse apoio não passaríamos esse tempo todo, do ponto de vista da infraestrutura. Foi o movimento popular de Belém que, de alguma forma, garantiu nossas condições materiais para estar lá”, avalia.
Além do acampamento na Seduc, indígenas e outros apoiadores também fizeram um protesto na rodovia BR-163, na região de Santarém, no dia 29 de janeiro, para aumentar a pressão ao governo. Somando à pressão, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) protocolou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra a lei, e o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) também declarou apoio incondicional às comunidades indígenas mobilizadas. E a articulação com outros movimentos, como quilombolas e as trabalhadoras e trabalhadores da educação, também ganhou força. O SINTEPP, que representa essa última categoria, articulou uma greve em diálogo com o movimento indígena, que aconteceu em janeiro. “É muito interessante porque de fato a pauta estava muito articulada. Éramos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, SINTEPP, artistas, todos envolvidos pela revogação da lei e pela exoneração de Rossielli. Acho que essa já é uma primeira grande vitória”, diz Iza Tapuia.
No período da ocupação, o governo chegou a convocar a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, para negociar, e, no dia 22 de janeiro, pressionado, anunciou a criação de um grupo de trabalho para elaborar um projeto de lei sobre a Política Estadual de Educação Escolar Indígena – mas esse não era o objetivo do movimento. Depois da criação dessa política, no entanto, o governador publicou um vídeo dizendo que as demandas apresentadas haviam sido atendidas e que os manifestantes estariam impedindo o acesso ao trabalho de servidores e danificando a estrutura da secretaria. A Justiça determinou que o vídeo fosse apagado por considerar falsas essas afirmações. “Mais uma vez, há um grande mérito do movimento aí, porque por mais que a legislação seja importante, não foi ela que fomos discutir. E além disso, não adianta ter uma lei se as outras legislações não a respaldam”, reforça Iza Tapuia.
Foi no dia 5 de fevereiro que o governador Helder Barbalho anunciou a revogação da lei 10.820/2024, mas a ocupação do prédio da Secretaria de Educação permaneceu até a assinatura do termo de compromisso para revogá-la – documento que também menciona a criação de um grupo de trabalho com representantes de diversas instâncias para discutir o estatuto do magistério, plano de cargos, carreiras e salário de profissionais da educação. A revogação, votada por unanimidade pela Assembleia Legislativa do Pará, foi publicada no Diário Oficial do Estado no dia 13 de fevereiro. Agora, voltaram a valer as diretrizes que estavam em vigor até o dia 19 de dezembro de 2024.
“Foi uma vitória muito grande no sentido de que o movimento não se dividiu. Dentro da Seduc, se falava em uma segunda Cabanagem, por contar com indígenas, ribeirinhas, quilombolas e professores enfrentando o governo. Tivemos apoio de partidos e de vários grupos, mas não eram eles que estavam conduzindo a ocupação”, avalia a antropóloga e professora Iza Tapuia. Ela menciona também o acolhimento e valorização dos novos apoiadores que se juntavam à causa enquanto ela acontecia como um fator de sucesso, e destaca que as e os manifestantes estavam coesos e fortes espiritualmente. “Nada que nos diferenciava foi maior do que aquilo pelo qual lutamos em conjunto, e também estávamos muito fortes espiritualmente, guiados por Tupã, por nossos espíritos protetores, lembrando que não estamos sós”.
Solidariedade e apoio intermovimentos
Como as próprias lideranças indígenas destacam, a solidariedade e o apoio de outros movimentos e categorias foi fundamental para que a manifestação popular conseguisse revogar uma lei tão rapidamente. E a aliança com povos quilombolas e com profissionais da educação foi especialmente importante. Foram ‘guardiões’ da ocupação, negociadores com as forças policiais, além de participar da ocupação em si. Além disso, as e os profissionais da educação entraram em greve, aumentando a pressão e o desgaste político de Helder Barbalho e Rossieli Soares.
“A gestão Helder/Rossieli vem paulatinamente atacando a categoria: acabando com a eleição direta para direção, tirando gratificações inerentes ao exercício do magistério, e o golpe de misericórdia que foi a lei 10.820, que acabava com plano de carreira, com a lei do sistema modular de ensino, com aulas suplementares, entre outros. Além disso, o governo não dialoga com a categoria. Então a aprovação da lei gerou muita indignação”, conta Conceição Holanda, coordenadora geral do Sindicato dos Trabalhadores e das Trabalhadoras em Educação Pública do Pará (SINTEPP). A professora conta que a entidade já havia decidido não iniciar o ano letivo em protesto a essas medidas, e que, com a ocupação da Seduc pelos movimentos indígenas e quilombolas, as ações passaram a ser articuladas.
“Desde o início dialogamos sobre o que fazer: o SINTEPP ficou do lado de fora da Seduc, e indígenas e quilombolas seguraram a onda lá dentro. Era preciso agir de forma coordenada, não dava para ter um setor ocupando prédio público, outro em greve, e não pensar coletivamente”, reforça. A coordenadora do Sindicato também destaca o apoio da sociedade à greve e à ocupação como um diferencial desse movimento. “Foi uma greve que mobilizou a sociedade, que percebeu que havia um problema na educação para diferentes atores estarem se movimentando. Fazia tempo que não víamos tanto apoio e solidariedade”, diz ela.
“Quando você percebe que não é só você que está sofrendo, por que não juntar todo mundo e ir à luta?” – Margareth Pedroso, do povo Maytapu, coordenadora do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns
Conquistas e o que vem pela frente
O movimento paraense conseguiu a revogação da lei 10.820/24 – e a criação de um grupo de trabalho para propor alternativas -, mas não logrou a saída do secretário de educação do estado, Rossielli Soares. Essa segue sendo uma pauta dos movimentos que participaram da ocupação, que destacam que o trabalho continua e que a dimensão dos protestos trouxe desgaste político à atual gestão.
“O governo segue pressionado, com o Ministério Público em cima dele e nós em cima do Ministério Público”, assegura Iza Tapuia. “Continuamos na batalha pela sua saída [do Rossielli] pois é uma pessoa perniciosa para a educação brasileira. Nesse sentido, uma vitória foi conseguir visibilizar os problemas dessa figura”, diz a professora.
Esse é, para a educadora Letícia da Conceição, um legado fundamental do movimento de ocupação da Seduc que levou à revogação da lei 10.820. Ela classifica esse episódio como “a primeira grande crise de uma gestão que até então só crescia em popularidade”, enfatizando que essa perspectiva foi trazida pela pauta da educação. “A revogação após quase um mês de ocupação, gerou desgastes irreversíveis para a gestão. Esse recuo na alteração do Estatuto do Magistério mostrou que os poderes do governador e o controle da narrativa das fundações empresariais na educação tinham limites. Mesmo após a desocupação do prédio e mesmo com a manutenção do Secretário, o assunto não saiu da pauta: os contratos firmados com as inúmeras fundações empresariais passaram a ser alvo de denúncias e investigações, os relatos de professores denunciando a realidade das escolas não pararam de surgir”, acrescenta.
Nessa linha, Margareth Maytapu, liderança à frente do CITA, traz um chamado à ação: “se não dermos a cara a tapa, nenhum governo vai atuar pela gente, então o que esse caso deixa para mim é que a união e o diálogo ainda são armas pra fazer a diferença nesse mundo. Mas para isso, precisamos lutar”.