Projeto de lei aprovado no Senado que regulamenta o SNE tem falhas graves e não avança na democratização da Educação brasileira
Texto: Nana Soares // Edição: Claudia Bandeira
“Muito político-burocrático, pouco político-democrático”. É assim que Salomão Ximenes, professor de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC) e doutor em Direito de Estado pela USP, resume o projeto de lei complementar 235/19, que regulamenta o Sistema Nacional de Educação. O projeto de lei foi aprovado por unanimidade no Senado no início de março, após alterações do relator Dario Berger (MDB/SC) no projeto original de Flávio Arns (Podemos/PR). Agora, vai entrar em votação na Câmara. A votação ainda não tem data, mas a matéria caminha em regime de urgência, mesmo que apresente falhas graves em pontos importantes como o Custo Aluno-Qualidade (CAQ), gestão democrática e avaliação da educação básica.
O SNE, previsto na Constituição Federal e no Plano Nacional de Educação (PNE) de 2014, ainda não tem lei que o regulamente. Assim como o SUS na saúde, o SNE teria, na educação, as funções de dar coesão e unidade às políticas públicas, articular realidades locais com a nacional, integrar o sistema educacional, assegurar a colaboração e a cooperação – inclusive financeira – entre as esferas municipais, estaduais e a União, combater iniquidades, fortalecer a participação social e a gestão democrática em educação, além de especificar os recursos que integram o financiamento da educação e que formam os padrões de qualidade do CAQ. Mas para fazer tudo isso precisa de uma lei de regulamentação forte, coerente e que valorize esses aspectos, o que não está acontecendo até o momento.
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Embora os projetos de lei já existissem há algum tempo, o governo Jair Bolsonaro apressou a regulamentação do PLP 235/2019. O texto foi aprovado conforme versão proposta pelo relator Dário Berger (MDB-SC) e, segundo reportagem do Alma Preta, existe um acordo com o presidente da Câmara, Arthur Lira, para que a matéria seja aprovada. Ele teria dito que é “mais um projeto para o governo chamar de seu”. As votações foram nos dias 23 de fevereiro e 9 de março, quando o projeto foi aprovado por unanimidade, e agora deve ser analisado diretamente no plenário da Câmara, tendo incorporado o PLP 25/2019, de autoria da deputada professora Dorinha Rezende (DEM-TO) e relatoria de Idilvan Alencar (PDT-CE) que também tratava da regulamentação do SNE. Por tramitar em regime de urgência, pode ser colocado em votação a qualquer momento. Para Salomão Ximenes, um equívoco político, pois uma lei desse porte requer um debate mais amplo na sociedade – e, segundo ele, o texto falho deixa clara a imaturidade da discussão até agora.
Há vários pontos questionados por organizações, ativistas e pesquisadores comprometidos com o direito à educação pública de qualidade. Um deles é que desigualdades e discriminações a serem combatidas – como racismo estrutural ou desigualdade de gênero – não são explicitamente citadas. Outros problemas são brechas na regulamentação do CAQ e a falta de detalhamento dos insumos mínimos de qualidade, além da falta de participação social e de falhas no detalhamento de mecanismos de avaliação da educação básica – pontos estes levantados em nota técnica da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (Campanha).
CAQ: falta de detalhes e brechas políticas
O CAQ, mecanismo que de fato redistribui os recursos educacionais nas diferentes regiões do país e que tem o potencial de reduzir desigualdades ao assegurar um padrão mínimo de qualidade, não está sendo detalhado como deveria no projeto do SNE aprovado pelo Senado. Em outras palavras, o detalhamento do que seriam, de fato, os insumos mínimos para garantir um padrão de qualidade nas escolas (como água, saneamento básico, computador, acesso à internet, biblioteca, quadra poliesportiva coberta, número adequado de alunos por turma, etc), não é feito no substitutivo de Dario Berger. A sugestão da Campanha é justamente fazer esse detalhamento para que estes padrões sejam explicitados.
“Em resumo, é preciso detalhar mais o CAQ e amarrar qual seria a contribuição ou participação da União na garantia desse CAQ”, explica Nalu Farenzena, vice-presidenta da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca). “Não é que o CAQ não está sendo contemplado no texto, mas é preciso reforçar a noção de Custo Aluno-Qualidade ligado a referenciais e insumos que sejam redistribuídos de forma equitativa. E é preciso vincular o CAQ ao Fundeb, porque não se trata de criar mais um mecanismo de complementação da União, mas sim vincular ao que já temos”, completa. Caso o texto final continue sem fazer esse detalhamento, ela alerta que a lacuna pode levar a mais discussões e disputas em torno da regulamentação do CAQ, que já é alvo de disputas há anos e não faz parte da agenda dos setores empresariais na educação. “O CAQ precisa ser operacionalizado. Se não for detalhado nesse momento, a regulamentação vai ter que vir de outro modo, e isso pode ser por decreto ou por processos mais amplos. Ou seja, se não se resolve agora o mecanismo ainda fica vulnerável a uma regulamentação centralizada vindo do Executivo”, finaliza Nalu.
Mas para além do detalhamento dos insumos, Salomão Ximenes enxerga ainda outros problemas – técnicos e políticos – no texto em relação ao CAQ, de modo que correm o risco de esvaziar o mecanismo. Estes problemas estão presentes nos Artigos 38, 39 e 40 do texto aprovado no Senado. Dizem, respectivamente, que a complementação se dará conforme os fatores de ponderação (saiba mais aqui), que estará sujeita à disponibilidade financeira da ocasião, e que a suplementação da União tem caráter facultativo. Como Salomão explica, essas redações invertem o sentido do CAQ e o que já está previsto em lei sobre ele. Por exemplo, é o CAQ que estabelece os parâmetros de ponderação do FUNDEB, e não o contrário. Além disso, a disponibilização do recurso é obrigatória e não depende da disponibilidade financeira. “Ou seja, se aprovado dessa forma é um texto com constitucionalidade bastante questionável, uma vez que o CAQ está previsto na Constituição”. Por isso, acredita o professor da UFABC, ainda que o CAQ seja detalhado, o projeto de Lei Complementar 235/19 ainda pode representar um retrocesso em relação à regulamentação desse mecanismo.
Gestão democrática
Ao regulamentar o Sistema Nacional de Educação e a cooperação interfederativa, o PLC 235/19 também estabelece os mecanismos de governança, monitoramento e avaliação do Sistema. E aqui há mais um problema sério: o texto não contempla a participação de sociedade civil, sindicatos, estudantes ou comunidades escolares nessas esferas, apenas gestores. Embora reconheça mecanismos que já existem, como o Fórum Nacional de Educação, as comissões tripartite e bipartite contariam apenas com governo em sua composição, sendo portanto um retrocesso no aspecto da gestão democrática e da participação social na educação.
“Há menção a instâncias com participação social, mas não naquelas que de fato são deliberativas e permanentes, onde isso precisa ser reforçado. É preciso que a participação social esteja nos meios do SNE e não apenas como um princípio, e para isso já temos um instrumento jurídico muito forte para lançar mão, que é o fato da Emenda 108, do Fundeb, ter inserido na Constituição o preceito de que a sociedade deve participar da formulação, monitoramento, controle e avaliação das políticas sociais, inclusive a educacional”, explica Nalu Farenzena, explicando que, mais uma vez, as propostas em tramitação no Congresso não contemplam mecanismos já previstos em outras leis e marcos.
Para Salomão Ximenes, o texto aprovado no Senado se concentra demais na regulamentação interfederativa. Isto é, em como as diferentes esferas (União, estados e municípios) deverão interagir e se articular entre si. E sobra pouco espaço para outras regulamentações. “Esse é um aspecto importante, mas não é o único que deveria ser tocado pelo Sistema Nacional de Educação. Nesse sentido, a proposta é deficitária porque ela em alguma medida confunde a relação interfederativa com o próprio Sistema, que vai além disso, e não mexe em gargalos importantes, como o Conselho Nacional de Educação, além de mencionar as escolas apenas uma vez. É um Sistema Nacional de Educação que não fala de escola. Está mais preocupado em resolver um conflito federativo”, critica Salomão.
Em relação ao Conselho Nacional de Educação (CNE), o PLP não altera sua composição – hoje dependente de nomeações da Presidência da República através de lista tríplice. Por isso, seria mais um aspecto em que o projeto aprovado no Senado e defendido pelo governo Bolsonaro não avança na gestão democrática. O Conselho Nacional de Saúde, em comparação, tem sua composição dividida entre usuários do SUS (50%), trabalhadores do sistema (25%) e gestores (25%). “Particularmente, acho descabido dizer que não compete a essa proposta regular isso, pois o CNE é central para o Sistema”, finaliza Salomão.
SINAEB
Por fim, o projeto de lei que agora vai à Câmara também precisa fortalecer o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SINAEB), que amplia o sentido da avaliação ao avaliar também a qualidade, a equidade e a eficiência da educação básica.
Além da necessidade de ser um sistema de avaliação permanente, como destacou Salomão, o SINAEB precisa prever processos participativos de avaliação junto às comunidades escolares, por meio da autoavaliação institucional participativa, para que as realidades e demandas das escolas sejam consideradas nos processos avaliativos e nas políticas educacionais. É necessário também prever a articulação do SINAEB com o CAQ de modo a fornecer indicadores para a avaliação da qualidade e equidade na educação.
O substitutivo do relator Dario Berger precisa agora ser corrigido na Câmara para definir os princípios, as diretrizes e as dimensões avaliativas do SINAEB retomando a Portaria 369 de maio de 2016 que instituiu o Sistema e que foi construída pelo INEP em diálogo com organizações da sociedade civil, movimentos educacionais e com profissionais da educação.
Em resumo: o SNE é fundamental para fazer avançar a educação brasileira pública e de qualidade para todas, todos e todes. E sua regulamentação está atrasada. No entanto, os textos aprovados até agora estão muito aquém do que a educação brasileira precisa, e seu debate está sendo encurtado e apressado no processo de tramitação. Na pressa de regulamentar o trabalho interfederativo, princípios cruciais como a participação social estão sendo deixados de lado. Cabe à mobilização popular tentar barrar, ou ao menos amenizar, mais esse retrocesso.
Oi Claudete, tudo bem?
Inicialmente apostamos sempre no diálogo entre o CME, o FME e a Secretaria de Educação. Porém, se nada foi feito, é possível recorrer à via da judicialização, já que a deliberação da Conferência foi desconsiderada pela gestão municipal.
Muito bem explicado. Pois, precisamos lutar pra que a sociedade civil tenha voz e vez através dos sindicatos e organizações que defendem uma educação igualitária e que oportunize a todos os cidadãos as mesmas condições.
Bom dia!
Moro em Tucuruí estou, até novembro, na presidência do Conselho Municipal de Educação. Em novembro de 2021 foi realizado a Conferencia municipal de Educação e aprovado pela comunidade as Metas e Estratégias do Plano Municipal de educação.
Para minha surpresa no dia 19/07, na surdina, foi aprovado na Câmara municipal o Plano encaminhado pelo poder publico. Esse Plano retirou várias metras e estratégias importantes para a Educação e regrediu o Plano de melhoria da Educação em 80% em relação o plano de 2012- 2021.
Encaminhei a secretaria de Educação e a gestão municipal a solicitação do motivo e alertando sobre a gravidade da violação do documento, mas nada foi feito.
Gostaria de orientações sobre a situação.
At. te
Claudete Ranieri