Autarquia vem sofrendo sucessivos desmontes na atual gestão, prejudicando o planejamento de políticas educacionais a longo prazo. Servidores resistem
Texto: Nana Soares | Edição: Claudia Bandeira
O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) tem como objetivo promover estudos e avaliações periódicas sobre o sistema educacional brasileiro a fim de subsidiar a formulação e implementação de políticas públicas, como o Plano Nacional de Educação (PNE). É fundamental para pensar a Educação a longo prazo. Não à toa, está sob ataques do governo Bolsonaro desde o início da gestão. Nos últimos anos, o INEP tem sofrido com sucessivos desmontes de sua estrutura, que afetam a capacidade da autarquia ligada ao MEC de cumprir suas funções, isso quando não é alvo de intervenções explicitamente político-ideológicas.
O Enem ilustra esse processo. A maior prova de acesso ao ensino superior do país incomoda o governo federal – pelos temas das redações, pelas menções à ditadura militar, por seu papel na democratização das universidades do país. Nas vésperas da edição de 2021, Bolsonaro chegou a declarar que a prova teria a “cara de seu governo”, indicando uma intervenção político-ideológica em sua formulação. Ficou na intenção, porque as mudanças desejadas esbarram na burocracia do órgão e exigem mais do que o desejo de um único governante. “Nós, servidores públicos, só podemos fazer o que está previsto em lei. Para alterar o Enem precisa mexer em outras normas que o regulam, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Não basta um comando de voz de uma empresa contratada”, enfatiza Alexandre dos Santos, servidor do órgão desde 2008.
Alexandre foi um dos servidores que, em novembro, assinou um documento com uma compilação de denúncias de casos de assédio moral e tentativas de intervenção no Enem partindo da nova diretoria do INEP. O material foi entregue à Câmara dos Deputados, ao Tribunal de Contas da União, à Controladoria-Geral da União e à ouvidoria do próprio INEP. Alexandre avalia que, depois de um período de fortalecimento, tanto o Inep como o aparato estatal como um todo vêm sendo atacados, num processo que se intensificou com a chegada de Bolsonaro ao poder. O Enem é o alvo preferencial – e talvez o mais visível – dos ataques, sendo parte de “um instrumento de guerra ideológica criada por Bolsonaro”, segundo o servidor. Essa guerra se materializa com as sucessivas trocas de dirigentes e com os ataques à burocracia – por exemplo, com a proposta de Reforma Administrativa, que retira a estabilidade dos servidores, tão crucial para evitar que o Enem 2021 tivesse a “cara do governo”.
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Nessa sucessão de trocas de diretoria, a última foi a que mais preocupou os servidores do INEP. Atitudes do atual diretor, Danilo Dupas Ribeiro, sinalizaram a terceirização do banco de itens do Enem, além de ser uma gestão marcada por ações – descritas na carta denúncia entregue em novembro – classificadas pelos funcionários como intimidatórias e de assédio moral. A gota d’água foi Danilo se retirar do plantão no fim de semana de aplicação do Enem, deixando as responsabilidades daquele fim de semana para os servidores. A situação ficou tão insustentável que, na semana da prova, 35 funcionários entregaram seus postos de chefia, sinalizando que não queriam participar do projeto em curso. Todo esse processo é resumido por Alexandre da seguinte maneira: “As trocas de gestão por si só sinalizam um enfraquecimento, uma vez que a administração pública exige conhecimento sofisticado e há uma curva de aprendizagem para entender o INEP. Trocas frequentes na diretoria acabam diminuindo a velocidade das entregas do órgão. Com Danilo, um novo projeto ficou visível, um projeto que quer enfraquecer o instituto e, na verdade, a capacidade do Estado de produzir informações. É um projeto de desmantelamento da capacidade estatal de entender o que está acontecendo e formular políticas públicas a partir disso”.
Efeitos a longo prazo
Desde o início da gestão Bolsonaro, isso também tem acontecido no IBGE (com o adiamento do Censo 2020, ainda não realizado) e no INPE (atacado por Bolsonaro por publicizar os dados do desmatamento, o que levou a uma troca na gestão). Romualdo Portela, presidente da ANPAE, destaca a gravidade do que está em curso e as consequências nefastas para a educação, já que sem dados confiáveis não é possível fazer um planejamento educacional de qualidade. “O INEP é responsável pelos Censos da Educação Superior, do Magistério, além das provas nacionais. Se não temos dados sobre acesso e progresso no sistema, não sabemos o que precisa ser enfrentado pelas políticas públicas”.
Romualdo preocupa-se especialmente com a Prova Brasil (de avaliação da Educação Básica), pois o modelo atual só tem vigência até 2022, e ainda não há informações suficientes sobre como será a nova versão. “O MEC destituiu a comissão de ex-presidentes do INEP que estava encarregada de pensar alternativas, substituindo por uma comissão com pouca familiaridade em avaliações educacionais. Nessa gestão, tudo o que se refere a planejamento está em risco. O que já foi planejado – como o Enem, que já tinha uma estrutura razoavelmente estável – está sendo mal executado, mas a margem para destruição é menor. Mas tudo que é planejamento está num nível preocupante”, diz ele, que ressalta haver um limite na capacidade de resistência dos servidores, sendo necessária uma grande mobilização popular em defesa do INEP.
Movimentação parlamentar
A recente movimentação dos servidores parece ter iniciado essa mobilização de que fala Romualdo: senadores e deputados criaram uma Comissão Mista justamente com o objetivo de avaliar qual a situação das políticas públicas do INEP e se elas estão sendo intencionalmente prejudicadas – iniciativa celebrada pelo servidor Alexandre Santos. Como explica o deputado Professor Israel (PV-DF), membro da comissão, também está no escopo da Comissão entender se o banco nacional de itens do Enem está propositalmente esvaziado para viabilizar uma terceirização e identificar se as avaliações futuras estão garantidas, já que trazem as informações para elaborar, executar e avaliar políticas públicas em educação. A iniciativa também deve investigar a demissão massiva dos servidores e suas denúncias, bem como trabalhar para aprovar leis que beneficiem o órgão. Um exemplo é a PEC 27/2021, que propõe mais autonomia para INEP, IPEA e IBGE. “Entendemos que mais autonomia é necessária porque o INEP produz dados que, em última análise, podem constranger o governo. Por isso, não pode ser excessivamente submisso”, diz o parlamentar.
O desmonte tem cor, etnia e classe
As tentativas de desmonte do INEP, junto a outras políticas do governo Bolsonaro em Educação, são, também, um meio de mantê-la como um privilégio de poucos. O Enem 2021 teve o menor número de inscritos desde 2005 e também foi a edição mais branca da história. Dentre os motivos, está o fato do MEC não ter autorizado a inscrição gratuita a quem faltou ao exame de 2020 por causa da pandemia. Como lembra Alexandre Santos, essa é a materialização do projeto contra o qual os servidores se insurgiram. “Um projeto que promove desigualdade, amplia exclusão e cria mais barreiras para o pobre ter acesso. Isso está impresso nas estatísticas, e as estatísticas dificultam a manutenção do discurso. Se não há evidências, qualquer discurso cabe”, diz ele.
Segundo dados do INEP, 82% dos jovens pobres são negros. E, como lembra a professora Analise da Silva, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a desigualdade e a política de exclusão começam muito antes do Enem. “O novo Ensino Médio, por exemplo, com seus percursos formativos, traz uma “escolha” que não é escolha: cursar a formação profissional, que já permite o trabalho em pouco tempo, ainda que de forma precária, ou a universidade, com uma promessa de renda daqui vários anos. Dito de outro modo, mesmo aqueles jovens pobres que chegam ao Enem, chegam em condição de desigualdade. Trabalham com salários defasados, em condições precárias e frequentemente na informalidade. Se são aprovados, encontram uma universidade em contexto de redução de bolsas e políticas de permanência estudantil”, elenca. Parafraseando Darcy Ribeiro: não é crise, é projeto.