Advogado e consultor do Cedeca-Ceará, Márcio Alan Moreira aborda a importância, as dificuldades e os desafios para a participação de crianças e adolescentes no Brasil
Qual é a importância de se dar oportunidade para a participação de crianças e adolescentes na construção de políticas públicas? Há uma idade mínima para que possam participar? Como fazer para inserir estes atores no debate político de maneira que possam ser protagonistas na defesa de suas demandas?
Para responder estas questões, o portal De Olho nos Planos entrevistou o advogado e consultor do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedeca) do Ceará, Márcio Alan Moreira. Segundo o advogado, a participação de crianças e adolescentes na elaboração de políticas se refere, inclusive, ao modelo de democracia que se busca construir. “É imprescindível que se tenha um alicerce democrático desde a mais tenra idade para que a gente possa alcançar uma sociedade democrática em sua plenitude mais à frente”, defendeu.
Além de abordar os fatores necessários para a construção deste alicerce democrático, Márcio Alan destacou a necessidade de desburocratizar a lógica de participação e ampliar a mobilização em torno dos Planos de Educação. “O debate dos Planos de Educação se dá, em muitas vezes, via os Fóruns Municipais e Estaduais e por meio de uma estrutura representativa. Mas o que a sociedade precisa reivindicar é que estas discussões passem dos Fóruns para as escolas e que, desta forma, amplie o número de professores, estudantes e pais envolvidos”, afirmou o advogado.
Leia abaixo a entrevista completa com Márcio Alan Moreira:
De Olho nos Planos (De Olho) – Qual a importância de envolver crianças e adolescentes na construção das políticas públicas?
Márcio Alan Moreira (Márcio) – A importância fundamental da discussão da participação de crianças e adolescentes na política de maneira geral e, especificamente, na construção de políticas públicas se refere a qual modelo de democracia se busca construir. É imprescindível que se tenha um alicerce democrático desde a mais tenra idade para que a gente possa alcançar uma sociedade democrática em sua plenitude mais à frente.
(De Olho) – Existe algum limite para esta participação ou uma idade inicial para que a criança possa participar?
(Márcio) – Existe um mito, principalmente, quanto à participação das crianças já que o adolescente tem possibilidade de voto a partir dos 16 anos. No entanto, hoje nós temos mecanismos de consulta e participação e técnicas pedagógicas em que é possível verificar a opinião da criança, inclusive, das menores de três ou quatro anos. Elas já têm como dar opinião, principalmente, sobre as políticas que a afetam e sobre a própria dinâmica da escola.
A partir disso, podemos pensar em políticas mais amplas como brinquedotecas populares, de bairros, e até mesmo consultar as crianças sobre a forma de atendimento em serviços de assistência, saúde e educação, verificando, também, a percepção da criança sobre a cidade.
Primeiro temos que superar o mito de que a criança não teria condições de participar. Segundo, buscar uma construção democrática plena. E, em terceiro lugar, retrair o poder adulto sobre as crianças que faz com que decidamos tudo por elas. Temos que trabalhar na perspectiva de que as decisões podem ser compartilhadas, levando em consideração que a criança sabe o que a aflige, o que lhe causa dor e o que lhe falta.
Temos que mudar a percepção de como nós vemos a infância, não mais como objeto. Em algumas situações, até pela imaturidade da criança, vai ser necessária a orientação dos pais e familiares, mas é possível pensar em um outro tipo de relação em que a gente vai poder escutar o que aquela criança gosta em uma sala de aula e o que ela gostaria que fosse diferente.
(De Olho) – E quais seriam os principais desafios para garantir esta participação?
(Márcio) – O principal desafio é como criar uma estrutura e uma dinâmica estatal para garantir a participação. É obvio que tem mudanças que podem ser realizadas em âmbito doméstico e individual, mas o Estado deve assumir essa participação como política fundamental, seja no posto de saúde, seja nas discussões sobre as obras públicas.
Tivemos já algumas experiências no Brasil na elaboração do Orçamento Criança Adolescente e de Plano Diretor, mas muitas vezes são experiências que tratam de questões específicas e não levam a lógica de participação para o Estado como um todo. É importante que isso seja uma política em todos os níveis da administração e, obviamente, a escola é fundamental, já que passa muito tempo com as crianças.
(De Olho) – Há algum caso que possamos utilizar como exemplo de participação das crianças e adolescentes?
(Márcio) – Alimentada pelo Cedeca – Ceará, nós tivemos a Rede Opa em que grupos de adolescentes discutiam, principalmente, a participação no orçamento público. (Clique aqui e veja informações sobre a experiência da Rede Opa) Cerca de 80 adolescentes se preparavam para intervir no orçamento público, construindo emendas e buscando parlamentares que pudessem apresentar estas emendas a projetos de leis orçamentárias. E várias das emendas foram aprovadas e tratavam de reivindicar a construção de escola, mais recursos ao combate do trabalho infantil, à construção de posto de saúde, etc.
Na elaboração do Plano Diretor de Fortaleza, a Rede Opa pressionou e ocorreu a ampliação do processo participativo para adolescentes. Já quanto ao Orçamento Criança Adolescente, foi criado um livrinho do que as crianças queriam para a cidade, mas o que elas decidiram não foi implementado na realidade. E não adianta só escutar as crianças, mas sim construir um mecanismo completo em que aquela vontade manifestada possa influenciar o processo decisório.
Outra iniciativa interessante, também, foi realizada pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE) em 2005 e 2006. Foi elaborada uma pesquisa sobre a qualidade na educação infantil ouvindo as crianças, inclusive, as crianças de creche. Uma metodologia bem interessante garantindo a opinião das crianças bem pequenas. (Veja mais informações sobre a pesquisa realizada pela CNDE e pelo Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil – Mieib)
(De Olho) – E quanto aos Planos de Educação, como garantir a participação de crianças e adolescentes em sua elaboração?
(Márcio) – Primeiro a escola deve cumprir um papel determinante como um núcleo para garantir a participação de crianças e adolescentes neste processo. E também não podemos ter Planos só de gaveta. Como o PNE [Plano Nacional de Educação] obriga os municípios e estados a construírem e adequarem seus Planos de Educação dentro do prazo de um ano, a tendência é que os municípios o elaborem rapidamente para cumprir a determinação, mas sem fazer deste um processo democrático de discussão da educação na cidade.
O fundamental é gerar essa participação a partir da escola para desburocratizar o processo, com diversas plenárias e debates entres os segmentos. É um momento único em dez anos para que a escola convide professores, diretores e estudantes a refletirem sobre o processo educacional que vivenciam.
(De Olho) – E o que vem impedindo, de maneira geral, que essa dinâmica aconteça?
(Márcio) – A dinâmica da escola brasileira é extremamente burocratizada e acaba tendo professores em uma relação de precarização do trabalho, com práticas autoritárias com os estudantes, sem a devida atualização da prática pedagógica e com direções escolares que são muitas vezes geridas por uma lógica burocrática de conter desvios e violações.
A maioria das escolas brasileiras, na verdade, é avessa a um processo democrático mais profundo. É um problema estrutural e não da escola A ou B.
(De Olho) – Diante destes problemas estruturais, quais são as ações possíveis de se fazer para a efetivação desta participação?
(Márcio) – Existem algumas ações interessantes como a que ocorreu durante a construção do Plano de Educação de Fortaleza, em 2009, em que uma das preocupações era como envolver efetivamente os estudantes e a comunidade escolar. Além de serem organizados vários dias de mobilização nas escolas, foi construída uma cartilha sobre o Plano voltada para os estudantes. E também teve um dia específico em que as escolas fizeram atividades voltadas apenas para as discussões sobre o Plano.
O debate dos Planos de Educação se dá, em muitas vezes, via os Fóruns Municipais e Estaduais e por meio de uma estrutura representativa. Mas o que a sociedade precisa reivindicar é que estas discussões passem dos Fóruns para as escolas e que, desta forma, amplie o número de professores, estudantes e pais envolvidos.
Agora que estados e municípios têm um ano para construir ou adequar seus Planos é fundamental desburocratizar a lógica. Muitas redes pensam somente sob a lógica de repetir no município o que está determinado no PNE.
Deve-se estudar essa realidade e compreender quais são os desafios da educação local, o que precisa de investimento e o que pode ir além do Plano Nacional. Os Planos Estaduais e Municipais não podem ir contra o nacional, mas pode ir além dele. E essa reflexão é importantíssima.
Não adianta fazer uma reunião por mês, durante o horário de expediente da maioria das escolas e dos professores. É importante pensar em como ampliar este debate em um caráter mobilizatório. Tem que ter vontade de governo para isso e pressão da sociedade civil para conseguirmos realmente aproveitar esta oportunidade. Nós fizemos uma grande discussão nacional e podemos fazer grandes discussões municipais e estaduais.
(De Olho) – Como é possível concretizar esta participação levando em consideração que estados e municípios têm o prazo de um ano para elaborarem seus Planos de Educação?
(Márcio) – Todo dia e em todas as escolas estão presentes os professores, a gestão e os estudantes. Será que não conseguem organizar um núcleo de discussão do Plano em uma destas escolas em seis meses?
O público-alvo da discussão da educação, prioritariamente, são professores, diretores, estudantes e os pais. À exceção dos pais que passam pela escola apenas em alguns períodos, todos os outros já estão no mesmo ambiente. Se tiver vontade, a administração pode reservar metade do expediente de um dia para discutir o Plano.
Se por um lado o prazo pode ser pequeno se pensarmos a construção do Plano de maneira ampla, o Estado tem que aproveitar o fato de que já possui as pessoas em mesmo ambiente que é a escola.
Foto: Campanha Nacional pelo Direito à Educação
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Reportagem – Gabriel Maia Salgado
Edição – Ananda Grinkraut